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6 | CIÊNCIAHOJE | 308 | VOL. 52 FOTO ARQUIVO PESSOAL O papel das agências de inteligência voltou à pauta de dis- cussões com o caso [Edward] Snowden em junho passado. Mas, segundo alguns analistas, os serviços secretos sempre existiram e é ilusão pensar que as atividades de espionagem cessarão. Caberia então a cada país desenvolver meios mais eficientes para se defender da espionagem externa? De fato, é ilusão pensar que as atividades de espionagem cessa- rão. A inteligência é uma das atividades fundamentais de qualquer Estado, e tem reflexos diretos sobre o bem- -estar de todos os cidadãos. É a partir de dados de inte- ligência que o Estado planeja e executa políticas públi- cas de defesa nacional, segurança pública e relações exteriores. Parte das atividades de inteligência diz res- peito à proteção das informações que são sensíveis para a própria realização dessas políticas. Ou seja, a ideia de que cada país deve desenvolver meios efetivos de inte- ligência e de contrainteligência é uma faceta permanen- te das relações internacionais. Em 7 de julho, reportagem do jornal O Globo revelou que a espionagem eletrônica norte-americana também atinge o Brasil e, em 1° de setembro, o Fantástico divulgou que os Estados Unidos espionaram inclusive a presidente Dilma. De acordo com a Constituição brasileira, é crime realizar inter- entrevista MARCO AURÉLIO CEPIK ESPIONAGEM: QUAL O LIMITE? A revelação de Edward Snowden no jornal britânico The Guardian sobre o monitoramento de comuni- cações e informações feito pelo Prism – programa de vigilância eletrônica altamente secreto manti- do pela agência de segurança nacional (NSA) dos Estados Unidos desde 2007 – despertou novos questionamentos sobre os serviços de inteligência. Qual o limite para essas atividades? Elas são compatíveis com regimes democráticos? Para combater o terrorismo, é legítimo usar espionagem eletrônica e invadir a vida privada de cidadãos? O cientista político Marco Aurélio Cepik, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi convidado pela Ciência Hoje a responder essas perguntas. Pesquisador do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais (Nerint) do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo (Cegov-UFRGS), Cepik diz que é ilusão pensar que as atividades de espionagem cessarão, mas considera o momento oportuno para o Brasil extrair lições sobre a necessidade de reduzir vulnerabilidades, melhorar a proteção de conhecimentos sensíveis e infraestruturas críticas. ALICIA IVANISSEVICH | CIÊNCIA HOJE | RJ

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  • 6 | CINCIAHOJE | 308 | VOL. 52

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    SOAL

    O papel das agncias de inteligncia voltou pauta de dis-cusses com o caso [Edward] Snowden em junho passado. Mas, segundo alguns analistas, os servios secretos sempre existiram e iluso pensar que as atividades de espionagem cessaro. Caberia ento a cada pas desenvolver meios mais eficientes para se defender da espionagem externa? De fato, iluso pensar que as atividades de espionagem cessa-ro. A inteligncia uma das atividades fundamentais de qualquer Estado, e tem reflexos diretos sobre o bem--estar de todos os cidados. a partir de dados de inte-ligncia que o Estado planeja e executa polticas pbli-cas de defesa nacional, segurana pblica e relaes exteriores. Parte das atividades de inteligncia diz res-peito proteo das informaes que so sensveis para a prpria realizao dessas polticas. Ou seja, a ideia de que cada pas deve desenvolver meios efetivos de inte-ligncia e de contrainteligncia uma faceta permanen-te das relaes internacionais.

    Em 7 de julho, reportagem do jornal O Globo revelou que a espionagem eletrnica norte-americana tambm atinge o Brasil e, em 1 de setembro, o Fantstico divulgou que os Estados Unidos espionaram inclusive a presidente Dilma. De acordo com a Constituio brasileira, crime realizar inter-

    entrevista

    MARCO AURLIO CEPIK

    ESPIONAGEM: QUAL O LIMITE?A revelao de Edward Snowden no jornal britnico The Guardian sobre o monitoramento de comuni-caes e informaes feito pelo Prism programa de vigilncia eletrnica altamente secreto manti-do pela agncia de segurana nacional (NSA) dos Estados Unidos desde 2007 despertou novos questionamentos sobre os servios de inteligncia. Qual o limite para essas atividades? Elas so compatveis com regimes democrticos? Para combater o terrorismo, legtimo usar espionagem eletrnica e invadir a vida privada de cidados?

    O cientista poltico Marco Aurlio Cepik, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi convidado pela Cincia Hoje a responder essas perguntas. Pesquisador do Ncleo de Estratgia e Relaes Internacionais (Nerint) do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo (Cegov-UFRGS), Cepik diz que iluso pensar que as atividades de espionagem cessaro, mas considera o momento oportuno para o Brasil extrair lies sobre a necessidade de reduzir vulnerabilidades, melhorar a proteo de conhecimentos sensveis e infraestruturas crticas.

    ALICIA IVANISSEVICH | CINCIA HOJE | RJ

    LUCIANA ROMANARealce

  • CINCIAHOJE | 308 | OUTUBRO 2013 | 7

    ceptao de comunicaes telefnicas, de informtica ou telemtica sem autorizao judicial. Os Estados Unidos, alm de desrespeitarem nossa Constituio, tambm esto violan-do normas do direito internacional, no? Quais as medidas legais que o Brasil pode tomar para se defender desse crime contra direitos fundamentais? A Constituio brasileira no tem validade em outros pases. Ela se aplica ape- nas nos limites da jurisdio nacional. Os direitos e ga-rantias fundamentais consagrados pela Constituio so tambm abarcados pela legislao penal, que probe e pune a interceptao de comunicaes (postais, tele-grficas, informticas etc.) sem autorizao judicial. Ape-nas pessoas fsicas e jurdicas, pblicas ou privadas, submetidas jurisdio brasileira podem ser punidas por esses crimes. O que O Globo revelou foi um esquema bastante complexo de articulao entre empresas de te-lecomunicaes dos Estados Unidos e empresas de tele-comunicaes que atuam e tm sede no Brasil no sentido de cooperar para dar acesso a metadados relativos s co-municaes telefnicas que circulam por meio das res-pectivas infraestruturas. Isso faz com que, em caso de apurao de quebra da legislao brasileira por empresas que operam no Brasil, o Estado possa lanar mo de uma srie de medidas para sua responsabilizao. No plano internacional, contudo, a situao um pouco mais com-plicada, porque se lida, de um lado, com agentes privados (empresas) sediados em outros pases e, de outro lado, com aes oficiais de agentes e rgos estatais.

    No primeiro caso, o questionamento da legalidade das medidas de espionagem deve ser processado por meio da jurisdio de cada pas. J no segundo caso, h regimes internacionais envolvidos que lidam tanto com a proteo e a preservao da soberania dos Esta- dos quanto com a promoo e proteo de direitos hu-manos fundamentais. A apurao da responsabilidade de um pas por ilegalidade no plano internacional po- de-se resolver tanto pela via diplomtica, quanto pela via judicial (especialmente no mbito da Corte Interna-cional de Justia). Entretanto, o governo brasileiro sina-lizou que pretendia buscar vias multilaterais para apu-rar e tratar a questo: participou de reunies tcnicas de trabalho com equipes dos dois pases para esclarecer as revelaes de Snowden e, de outro lado, a presiden- te Dilma e o ministro das Relaes Exteriores disseram que a questo deve ser levada para fruns em que se discuta governana de telecomunicaes e da internet.

    Qual o limite para as atividades de inteligncia? At onde se pode justificar a invaso da vida privada? Um pas poderia investigar a vida alheia de cidados de outros pases? No plano internacional, no contexto anrquico das rela- es entre os pases, no h limites estabelecidos. Os limites so geralmente dados pela capacidade que ca- da Estado tem de conduzir suas atividades de intelign- >>>

    cia e de contrainteligncia, ou seja, pela necessidade de neutralizar as operaes de inteligncia dos de- mais pases. Esses limites so, inclusive, difceis de precisar, uma vez que grande parte dessas ativida- des ocorre em segredo. Cada pas, entretanto, nos ter- mos de sua organizao constitucional, tem diferen- tes mecanismos administrativos, institucionais, jur- dicos e polticos que organizam, regulam e limitam a ao dos rgos de inteligncia. No caso brasileiro, temos a Constituio federal no topo dessa pirmide regulatria. Temos a Lei de Acesso Informao, determinando os diferentes nveis de acesso a da- dos produzidos e capturados por rgos do Estado. Temos decretos que detalham esse arcabouo. No caso dos Estados Unidos, por outro lado, a Constituio e a legislao federal (a Lei de Controle do Crime e de Proteo das Ruas, de 1968, e a Lei de Monitoramento de Inteligncia Estrangeira, de 1978) funcionam como baliza. O pas bastante claro: no h limites para ao do Estado norte-americano no que diz respeito ao monitoramento de estrangeiros fora do pas. Isso se intensificou ainda mais depois do 11 de setembro, com o Patriot Act [Ato patritico] que ampliou os poderes de preveno e combate ao terrorismo internacional.

    Em nome do combate ao terrorismo, justificada a espiona-gem de cidados comuns? Essa vigilncia autorizada no poderia ser uma permisso disfarada para a espionagem industrial e comercial entre pases? Que riscos correm os Estados mais pobres e com menos recursos tecnolgicos de segurana? Como disse, inteligncia, no plano inter-nacional, faz parte da competio poltica e econmica travada pelos Estados, o que significa que espionagem industrial e comercial algo praticado ordinariamente pelos pases mais poderosos contra seus inimigos, com-petidores e mesmo aliados. Nessa competio, os Esta- dos menos desenvolvidos esto em desvantagem natu- ral. justamente isso que aconteceu no caso do es- cndalo da NSA: os Estados Unidos se valeram de sua posio privilegiada no que diz respeito distribui- o de infraestrutura de telecomunicaes e con-

    ESPIONAGEM INDUSTRIAL E COMERCIAL ALGO PRATICADO ORDINARIAMENTE PELOS

    PASES MAIS PODEROSOS CONTRA SEUS INIMIGOS, COMPETIDORES E MESMO

    ALIADOS. NESSA COMPETIO POLTICA E ECONMICA, OS ESTADOS MENOS

    DESENVOLVIDOS ESTO EM DESVANTAGEM

    LUCIANA ROMANARealce

    LUCIANA ROMANARealce

    LUCIANA ROMANARealce

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    vamente aos imperativos de segurana nacional do Reino Unido. Uma anlise a respeito da legalidade da iniciativa deve levar em conta uma avaliao mais aprofundada do ordenamento jurdico do pas. O que se pode dizer que a destruio de discos rgidos conduzida sob ordem do governo britnico incua diante das diversas possibilidades de armazenamento de arquivos digitais que existem atualmente.

    A informao no mundo de hoje vale mais do que muitas ri-quezas nacionais. O senhor acredita que, num futuro prximo, as guerras entre pases acontecero por disputa de informa-o? Se um pas, por exemplo, decidir interferir no sistema informatizado de eletricidade de vrias capitais e cidades de outra nao, poder provocar um apago generalizado, cau-sando inmeros prejuzos. O vazamento de informaes sobre as operaes de interceptao e vigilncia dos Es-tados Unidos contra diversos pases e regies, incluindo o Brasil, demonstra que o desenvolvimento tecnolgico na era digital cria novos desafios, riscos e oportunidades para os pases. Na guerra e na paz, as atividades de in-teligncia dos Estados seguem existindo no sculo 21.

    As atividades de inteligncia dos pases so uma funo de seus recursos e de suas necessidades. En- tre as vrias misses que os rgos de inteligncia po- dem receber em diferentes contextos, o apoio ao pla- nejamento de capacidades defensivas e o desenvolvi-mento e/ou aquisio de sistemas de armas, de acordo com o monitoramento das sucessivas inovaes e di- nmicas tecnolgicas dos adversrios, so certamente algumas delas. Tambm se espera que a inteligncia seja capaz de subsidiar o planejamento militar e a elaborao de planos de guerra, bem como de apoiar as operaes militares de combate e outras (operaes de paz, assistncia, misses tcnicas etc.). Finalmente, espera-se que a inteligncia possa alertar os respons- veis civis e militares contra ataques-surpresa, surpresas diplomticas e graves crises polticas internas que po-dem nunca ocorrer, mas para as quais os governantes preferem assegurar-se em vez de arriscar.

    Entretanto, vale lembrar que atos de sabotagem, ataques cibernticos e operaes de guerra eletrni- ca so atos de guerra, uma alternativa de alto custo para qualquer Estado. Neste episdio, o mais impor- tante o Brasil extrair lies sobre a necessidade de re-duzir vulnerabilidades, melhorar a proteo de conhe-cimentos sensveis e infraestruturas crticas. Nesse sentido, alm de cobrarmos explicaes do governo norte-americano, importante termos maior explici- tao governamental acerca das misses, recursos, requisitos, qualidade analtica esperada e controles democrticos das providncias de contrainteligncia e segurana informacional dos rgos responsveis no Estado brasileiro.

    centrao de empresas de TI [tecnologia da informa- o] sob sua jurisdio.

    O imperativo de segurana compatvel com o estado de di-reito, com a democracia? Quem pode ter acesso a informaes secretas? A democracia diz respeito institucionaliza- o de mecanismos para garantir a participao e a oposio poltica no processo de conduo dos rumos do Estado. Uma das tarefas fundamentais do Estado (ao lado da promoo do bem-estar social) a garantia da ordem pblica e da segurana nacional. O que imperativo mesmo que se articulem a agilidade do funcionamento dos servios de inteligncia e os me- canismos de controle democrtico.

    O Brasil espiona seus vizinhos da Amrica Latina? No tenho como saber ao certo, mas creio que no. Considerando as prioridades divulgadas publicamente dos rgos de inteligncia das foras armadas e da ABIN [Agncia Brasileira de Inteligncia], bem como os esforos bra- sileiros de construo de um processo de integrao regional abrangente e fundado na confiana mtua, a espionagem propriamente dita contra os pases vizi- nhos implicaria riscos maiores do que os eventuais be-nefcios. O Brasil quer garantir a manuteno e o aprofundamento da integrao regional. Construo de confiana requisito necessrio para isso. O Brasil no espiona pases vizinhos porque isso minaria a confiana que os demais pases tm nele.

    O governo britnico exigiu do Guardian, que fez as denn- cias sobre os programas secretos de monitoramento das comunicaes, que entregasse todos os arquivos em seu poder, ameaando o jornal de processo judicial. Como fica a liberdade de imprensa? Qual a legitimidade dessas ordens governamentais? importante que se ressalte que, em abstrato, no se pode tomar a segurana e a liberdade de imprensa como valores absolutos. Nesse caso, pare-ce que a liberdade de imprensa foi ponderada relati-

    entrevista

    O VAZAMENTO DE INFORMAES SOBRE AS OPERAES DE INTERCEPTAO E VIGILNCIA DOS ESTADOS UNIDOS CONTRA DIVERSOS PASES E REGIES, INCLUINDO O BRASIL, DEMONSTRA QUE O DESENVOLVIMENTO TECNOLGICO NA ERA DIGITAL CRIA NOVOS DESAFIOS, RISCOS E OPORTUNIDADES PARA OS PASES

    LUCIANA ROMANARealce

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