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Educação. Temas e Problemas | n.º 1 | Ano 1 | 2005 Que Rumos para a Educação? ___________________________________________________________________ 1 VOZES COM HISTÓRIA(S) NA EDUCAÇÃO SÉRGIO NIZA: A CONSTRUÇÃO DE UMA DEMOCRACIA NA ACÇÃO EDUCATIVA Américo Peças “Teremos de concentrar-nos na substância da Cultura e do Conhecimento (e não em formalismos didácticos) e na substância da Democracia para a organização social do nosso trabalho pedagógico. Para isso propusemos formar-nos pela construção ética e cooperada das nossas vidas, na escola como na sociedade que, assim, vamos transformando.” Sérgio Niza (2003) 1. Sérgio Niza: Breve Nota Biográfica Sérgio Niza nasceu em Campo Maior, vila raiana do Alto Alentejo, em 1940. Fez os seus estudos em Campo Maior, em Estremoz e no Liceu Francês, em Lisboa, antes de ingressar na Escola do Magistério de Évora (1960-63) para ali obter o diploma de professor do ensino primário. Logo no primeiro ano de exercício profissional (1963- 64), na Escola Primária do Rossio, em Évora, Sérgio Niza ensaiou, com os seus alunos, a concepção de um município escolar a partir da proposta de Educação Cívica de António Sérgio. Revelava-se, logo aí, a visão de educação escolar como iniciação e exercício da intervenção democrática, que constitui um dos pilares do pensamento pedagógico de Sérgio Niza. Trabalhou depois no Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Calouste Gulbenkian, a convite de Rui Grácio, que já tinha sido seu professor, colaborando activamente em projectos de formação contínua de educadores profissionais. De Rui Grácio guarda Sérgio Niza a memória fundadora e inspiradora de que é possível “uma escola outra”.

Entrevista Sergio Niza

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Educação. Temas e Problemas | n.º 1 | Ano 1 | 2005 Que Rumos para a Educação?

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VOZES COM HISTÓRIA(S) NA EDUCAÇÃO

SÉRGIO NIZA: A CONSTRUÇÃO DE UMA DEMOCRACIA NA ACÇÃO EDUCATIVA

Américo Peças

“Teremos de concentrar-nos na substância da Cultura e do Conhecimento (e não em formalismos didácticos) e na substância da Democracia para a organização social do nosso trabalho pedagógico. Para isso propusemos formar-nos pela construção ética e cooperada das nossas vidas, na escola como na sociedade que, assim, vamos transformando.”

Sérgio Niza (2003)

1. Sérgio Niza: Breve Nota Biográfica

Sérgio Niza nasceu em Campo Maior, vila raiana do Alto Alentejo, em 1940.

Fez os seus estudos em Campo Maior, em Estremoz e no Liceu Francês, em Lisboa,

antes de ingressar na Escola do Magistério de Évora (1960-63) para ali obter o diploma

de professor do ensino primário. Logo no primeiro ano de exercício profissional (1963-

64), na Escola Primária do Rossio, em Évora, Sérgio Niza ensaiou, com os seus alunos,

a concepção de um município escolar a partir da proposta de Educação Cívica de

António Sérgio. Revelava-se, logo aí, a visão de educação escolar como iniciação e

exercício da intervenção democrática, que constitui um dos pilares do pensamento

pedagógico de Sérgio Niza.

Trabalhou depois no Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Calouste

Gulbenkian, a convite de Rui Grácio, que já tinha sido seu professor, colaborando

activamente em projectos de formação contínua de educadores profissionais. De Rui

Grácio guarda Sérgio Niza a memória fundadora e inspiradora de que é possível “uma

escola outra”.

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Em Fevereiro de 1965 Sérgio Niza constituiu, com outros cinco professores, o

Grupo de Trabalho de Promoção Pedagógica no Sindicato Nacional de Professores

(S.N.P.), no âmbito dos cursos de aperfeiçoamento profissional promovidos por Rui

Grácio. O gérmen do que viria a ser a matriz do Movimento da Escola Moderna

Portuguesa emergia já ali claramente: o grupo analisava e reflectia sobre as práticas de

ensino a partir dos produtos de aprendizagem dos alunos, partilhava e debatia textos

para aprofundamento teórico dessa praxis e produzia instrumentos auxiliares do trabalho

pedagógico. No Boletim do S.N.P. (vol.V-3, 1965, pp 40-42) Sérgio Niza discorria

assim sobre essa experiência: “A escola ‘para a vida e pela vida’ é, agora, a vida de

professores e alunos, com a sua realidade própria de um grupo social, sem artifício, ou

sem situações artificiosamente criadas para o ensino. A cooperação em todos os quadros

da nova comunidade escolar (…) é o apelo da realidade de hoje.”.

Sérgio Niza passou ainda pelo Centro Helen Keller, escola pioneira na

integração de crianças deficientes visuais, onde tomou pela primeira vez contacto com

as propostas de Célestin Freinet. Do pedagogo francês marca-o sobretudo a sedução do

Movimento, porque para Sérgio Niza “a grande ideia de Freinet é essa, a de ligar

pessoas que façam de si uma força, que se animem, e que fundem uma necessidade de

encontro”.

No Centro Helen Keller trabalhou com João dos Santos, psicanalista e

pedopsiquiatra, cuja reflexão sobre a escola o ajuda a sublinhar, o que já era por si

intuído: a positividade fecunda da relação pedagógica autêntica, fundada na afeição e no

respeito por todas as crianças. E neste contexto estimulante emerge outro dos eixos que

definem a obra de Sérgio Niza: a determinação activa contra a exclusão e a defesa

inabalável “da orientação inclusiva das escolas, defesa a que chamamos correntemente

escola inclusiva ou adaptativa, isto é, uma escola capaz de se adaptar com eficácia

curricular à diversidade dos seus alunos, pela diferenciação do trabalho pedagógico”

(Niza, 2004).

Em 1966, participando com Rosalina Gomes de Almeida, em Perpignan, no

Congresso da Federação Internacional dos Movimentos da Escola Moderna (FIMEM),

traz consigo a responsabilidade da criação do grupo português da Escola Moderna. A

partir daqui Sérgio Niza assumirá o Movimento da Escola Moderna (MEM) como o

espaço vital de desenvolvimento pessoal e profissional.

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Nos anos 80, sob o seu impulso, decorre no Movimento um fecundo debate

interno com o objectivo de clarificar a sua cultura pedagógica e de reforçar uma

identidade própria. Esse questionamento vai provocar o deslocamento progressivo das

concepções empiristas e pedocêntricas que inspiravam as técnicas Freinet. O MEM

orienta-se decisivamente para uma perspectiva do desenvolvimento das aprendizagens

por interacção sociocentrada, inspirada nos contributos de Vigotsky e de Jerome Bruner,

perspectiva que atravessa e sustenta, com elevada congruência, o trabalho de formação

cooperada e o modelo pedagógico de intervenção escolar que os professores do MEM

prosseguem e aprofundam.

Implicando cada vez maior número de profissionais, de todos os graus de ensino,

e suportado numa prática obsessiva da democracia e da cooperação como matrizes

epistémicas e organizacionais, o MEM é hoje uma referência incontornável na história

da pedagogia.

Sérgio Niza foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian (1966-1969)

desenvolvendo investigação pedagógica no quadro do INP-Institut National

Pédagogique (hoje Institut National de Recherche Pédagogique) em Paris.

É membro do Conselho Científico Pedagógico da Formação Contínua de

Professores.

É Director do Centro de Formação de Professores do Movimento da Escola

Moderna.

É Director da Revista “Escola Moderna”.

Como Professor Convidado tem leccionado na Universidade de Évora, na

Universidade do Minho e na Universidade Moderna.

É Professor Auxiliar Convidado, desde 1982, no ISPA-Instituto Superior de

Psicologia Aplicada.

2. Em diálogo com Sérgio Niza

Falar com Sérgio Niza é uma experiência exaltante. Na tradição dos grandes pedagogos,

a sua visão de escola reivindica e inspira uma visão do homem e do mundo. Dos

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homens no mundo. Dos homens como co-autores e construtores do mundo. É uma visão

que nos convoca para uma paideia fundada na democracia e fecundada pela

radicalidade democrática, onde pela solidariedade e pela cooperação nos podemos,

todos, edificar em cidadania esclarecida e emancipada.

Sérgio Niza faz-nos habitar cada palavra: desoculta-lhe os sentidos, derruba os muros

que a oprimem, rasga-lhe janelas, reinventa-lhe horizontes. Por isso o seu discurso é

denso de significados e intenso de consequências. “Não se comunica com palavras, só

se comunica com textos”, disse-nos. Eis aqui o texto com que nos fala.

Num livro muito comentado, José Gil afirma que o medo e a falta da ideia de futuro,

que nos caracterizam como povo, determinam o que ele chama de “não inscrição” na

História, o que faz com que, em Portugal, nada aconteça. O teu percurso de mais de 40

anos, como profissional e cidadão, exemplarmente comprometido com a educação,

contrariam a tese do filósofo. A precocidade com que, já em 1965, com 25 anos de

idade, enunciavas a importância do diálogo para o aperfeiçoamento pedagógico,

resulta do amplexo estimulante em que te constituíste e construíste professor.

Talvez me venha, do que dizes, a dolorosa consciência do tanto que faz falta às

crianças que fracassam na escola. De como poderão não gostar, de como poderão não se

apaixonar por outras coisas de outras culturas, coisas que não sejam a cultura do

quotidiano delas, e esse trânsito não se pode fazer sozinho. Isso decorre sempre de

contactos, de relações. No fundo, as aprendizagens, como diriam hoje os

socioculturalistas pós-vigotskianos, como a inteligência, são distribuídas. Precisamos de

ter suportes variados, que vão desde as pessoas até aos instrumentos intelectuais, aos

objectos culturais, aos ambientes, às formas de organização. Tudo isso é que nos ajuda a

aprender e a construir a nossa inteligência, e nós cuidamos pouco e mal disso na

educação escolar.

Eu tenho muito essa consciência pelas facilidades que me proporcionaram e

pelas possibilidades que pude criar com os outros. As coisas não prosseguem sempre

em linha recta, e atravessam desníveis também. Quer dizer que há rumos que nós

traçamos e que podemos traçar cedo nas nossas vidas. Os rumos não se podem traçar

tarde de mais, porque depois os caminhos são muito lentos.

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Os caminhos da cultura e da educação, que se fundem, requerem continuidades

muito grandes. Transformações, mas continuidades. Raramente saltos! E não suportam

derivas incontroladas, senão perdemo-nos. E perdemos a herança. Nós somos animais,

entre outros animais na natureza. Nós não somos deuses. Precisamos deles, criámo-los,

mas não somos deuses. Temos de tirar partido das nossas limitações. Disso é que temos

de ter muita consciência. O que é preciso é ir melhorando os caminhos

progressivamente, com uma grande capacidade crítica. E não ir fazendo reformas

retóricas neste quadro do reformismo liberal, parlamentarista, do homem liberal da

idade moderna, que raramente se traduzem em acções transformadoras.

Tendo a idade contemporânea começado há já tanto tempo, é como se

coleccionássemos referenciais permanentemente incumpridos. Em Portugal, parece que

nós não passámos pela construção do homem liberal, do indivíduo, de todas essas

dimensões das Luzes. Cumprimos mal tudo isso. E agora vemo-nos confrontados como

povo com uma história mal cumprida. Não aproveitámos o conhecimento, as liberdades,

a possibilidade de descobrir os direitos individuais e já estamos envolvidos numa ideia

em construção que não é nada ainda, porque se chama apenas um depois. Chamar a um

tempo histórico pós, já é um caso inquietante. Dizer pós-moderno significa também que

a modernidade foi tão determinante que o que vem a seguir é apenas o que aconteceu

depois de então. O facto de a pós-modernidade parecer ser apenas um estar indignado,

estar zangado com os valores da modernidade, demonstra a insuficiência do seu

contributo para construir uma história e uma cultura afirmadamente contemporâneas.

Porque é sobretudo reactivo. Mas teremos de dizer o que queremos. Porque os da idade

moderna sabiam bem o que queriam. Produziram um conjunto de trabalhos, de ideias e

de reflexões, por vezes contraditórias mas magníficas.

No entanto a reflexão crítica actual, às vezes contundente, vigorosa, radical, tem

sido frutuosíssima. O que eu acho é que a proposta pós-moderna é analítica mas

raramente mobiliza para a construção. A nominalização é incontornável na nossa cultura

europeia. Os nomes têm de ser nomes que identifiquem e afirmem. Designar um

programa por depois de não é desafiador. É como se fosse uma mistura de protesto e de

saudade. Não é interessante. Protestar e ter saudade não é mobilizador.

Eu prefiro que continuemos a falar da nossa contemporaneidade. Esse conceito

contém as perspectivas modernas, as perspectivas pós-modernas, e outras que possam

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estar presentes e em diálogo. Dá ao mesmo tempo a noção de tempo presente, do valor

que tem o tempo presente. Aquilo que temos de fazer agora para resolver os problemas

do agora. Porque só os sabemos resolver com o saber que fomos acumulando. E esse

saber é história. É a cultura em história, em memória. E só desse lugar podemos avançar

com as projecções a que chamamos futuro, os projectos de evolução e mudança.

Esse ancoramento na história e na cultura vem marcar toda a tua visão da escola e da

pedagogia.

Eu sou um culturalista. Com tudo o que isto possa ter de positivo e de negativo.

Eu ancoro todas as significações na dimensão sincrónica e diacrónica da cultura. Hoje

diríamos das culturas, seja a cultura dos quotidianos das pessoas, seja a cultura

tradicionalmente chamada humanística e a cultura científica. E aí com a grande marca

de António Sérgio e de Rui Grácio e com a importância que Rui Grácio, que foi meu

professor de filosofia, dava à epistemologia das ciências. Marcou-me muito o estudo da

génese do conhecimento, a reflexão sobre o conhecimento e sobre a construção da

ciência.

A Escola para mim é um instrumento poderosíssimo para regular e construir a

pluralidade cultural e fazer caminho para a unidade da ciência. E se se perde essa

dimensão, perde-se tudo. Sempre entendi um professor como um intelectual, como um

trabalhador intelectual. Os trabalhadores têm instrumentos, têm utensílios de trabalho

privilegiados, que também são instrumentos caracterizadores e construtores da própria

profissão. Inquieta-me muito que os professores não tenham consciência de que os seus

instrumentos profissionais são os instrumentos de trabalho intelectual. E que um dos

seus instrumentos mais poderosos, também um dos artefactos mais poderosos da

invenção humana, é a escrita. Os professores têm medo da escrita, não estão à vontade

na escrita, têm medo de perceber que ela é decisiva para a construção das aprendizagens

dos alunos, parecem ignorar que o falar e o escrever é que constroem o conhecimento. É

através da acção de construção de textos pela fala e pela escrita, que se constrói também

o conhecimento. Esta falta de consciência leva a que só o professor é que fala. Mas se o

aluno não pode falar o conhecimento, está impedido de utilizar uma estratégia

fortíssima para a construção do conhecimento. Se o aluno não escreve o conhecimento,

se só responde a perguntas, como é que constrói a escrita do conhecimento? E dos

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próprios professores nem falo, porque esses não têm hábitos de escrever sobre o

conhecimento, logo, como podem progredir no conhecimento!?... São coisas muito

sérias dos tempos que correm.

Daí vem a necessidade de construir uma nova cultura da profissão. Temos de

desenvolver a nossa cultura profissional, a nossa cultura de pedagogos, porque os

professores que deixam de ser pedagogos podem transformar-se em funcionários. Os

professores têm de aspirar sempre, não só a ser práticos, mas a pensar e a construir

discursos sobre as suas próprias práticas: isso é ser pedagogo! Ser pedagogo é ter uma

prática social da educação e ter um discurso e uma escrita sobre a educação e sobre a

profissão. Essa possibilidade de pensar, projectar, dialogar a profissão é que funda a

profissão.

Ora os professores portugueses, na sua maior parte, não se conseguiram descolar

dos padrões de imitação, de repetição, da lição à maneira clássica. Isto continua a

remeter-nos para a própria génese da profissão. Os professores foram chamados para

dar a conhecer os livros sagrados. E fizeram-no pelo lado da leitura e da cópia, pelo lado

do que a Igreja permitia. Copiar e saber de cor algumas dessas coisas. E interpretar.

Uma interpretação não como uma hermenêutica verdadeira, mas uma interpretação que

tinha um limite: o limite canónico, a interpretação canónica. O aluno não tinha a

liberdade para compreender ou interpretar porque estava sempre a imaginar até onde era

permitido compreender. Um conjunto de grandes constrangimentos, é claro.

O método simultâneo proposto por La Salle no século XVII para a educação dos

pobres, e que se baseava na ideia de ensinar a muitos como se fossem um só, continua a

impregnar o que hoje se chama a gramática da escola. Essa indiferença à diversidade

dos alunos vem a revigorar-se no século XIX com os primórdios do ensino obrigatório,

o alargamento a que os ingleses chamam de escola de massas. Mas o problema grave é a

massificação da relação ensino-aprendizagem. A escola de massas é um bem

democrático. O problema é a relação massificadora e a anulação das identidades. A

ideia de ensinar a muitos como se fossem um só é, de facto, recusarmo-nos a uma

relação com o outro.

Como é que há uma linha condutora do século XVII, da escola dos pobres, que

atravessou os séculos e se mantém? Apesar de termos tido contributos notáveis,

aflorações riquíssimas nos séculos XIX e XX, tudo fomos pondo de lado, continuando

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esse devir regressivo com os instrumentos mais simples, mais modestos e mais erróneos

da profissão.

Por isso não há que estranhar que os professores nem percebam o que é

podermos falar de aprendizagens com os alunos, porque eles constroem e organizam,

quer o currículo, quer a vida quotidiana da escola, em função deles próprios. Um

professor para organizar a escola nunca pensa nos alunos. Pode pensar no número de

alunos, por exemplo, mas é a pensar em si que ele está. Nunca pensa que está a prestar

um serviço, que vende um serviço aos alunos. Um professor recusa-se a pensar que

vende o seu trabalho e que o seu trabalho é um serviço. Um serviço intelectual que

presta àqueles alunos.

É perceptível, nesse quadro que traçaste, a determinação de muitas das atitudes dos

professores e a determinação da profissão.

Não é tanto num plano determinista que estou a falar. Estou sim a fazer uma

reflexão sobre coisas que a história nos assinala que aconteceram e que se incorporaram

na cultura. Aquilo que os professores, porque constitui a sua pele, já não vêem. É como

o provérbio chinês que Bruner evoca, dirigindo-se aos professores: os peixes de um

aquário não vêem a água do aquário. Esta nossa profissão tão antiga, é um pesado

manto de estratificações, mas nós não nos apercebemos delas. Fugimos sempre a uma

tomada de consciência e à explicitação do que se passa, porque por um lado nos cria

medo, e por outro lado é como se quebrasse o nosso estatuto de autoridade. Porque há

nos professores uma noção de falsa autoridade. Isso vem ainda da confusão sobre a

ideia de autor, que provém da génese religiosa das escolas: os autores eram os que

escreviam sobre, os que interpretavam, e eram as interpretações aceites pelas Igrejas do

Livro que faziam autoridade. Era preciso, para construir um discurso, ir ao discurso

deles.

Isto modernamente é muito interessante, porque nos revela bem, ao mesmo

tempo, como no cerne do discurso há sempre uma interdiscursividade, uma

intertextualidade, isto é, não há textos originais. Cada texto nosso, quer sejam as nossas

falas, quer sejam as nossas escritas, é sempre construído com falas e escritas de outros.

Ao tempo, nos primórdios, eram só os autores que constituíam autoridade, os que

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podiam ser apropriados para construir os nossos discursos, como ainda acontece entre

alguns académicos.

Os jesuítas tinham como convicção que o saber é poder. Esta fusão do saber em

poder, foi muito bem interiorizada pelos professores. Se eles sabem, têm poder. Têm de

afirmar e confirmar esse poder sobre os outros. Há aqui uma confusão entre o saber

como cultura, que constrói o homem, e o saber como instrumento que domina. E os

nossos professores perseguem às vezes mais o saber como instrumento de dominação,

do que o saber como instrumento de emancipação e desenvolvimento humanos.

Se é verdade que a Escola nunca foi à frente do processo histórico e cultural, hoje

choca-nos, ainda mais, a incapacidade que a Escola revela em integrar o discurso

científico moderno e em edificar-se na praxis social aberta que caracteriza a

modernidade. Num texto que escreveste recentemente, afirmavas que “o modo como os

professores e as escolas organizam o seu trabalho e desempenham os objectivos

públicos esperados, vem desencantando todos, de forma cada vez mais

constrangedora”. A Escola não tem futuro?

De facto a escola como instituição degradou-se tanto, e tem tão pouca

consciência do que vale para o bem e para o mal, para destruir pessoas ou para valorizar

os próprios professores e para valorizar o seu trabalho, o seu processo de produção

cultural, que provavelmente temos de redefinir as funções da escola. Tenho discutido

isto muito com António Nóvoa e a mágoa que para ele, como para tantos de nós, é o

descrédito da escola pública. E ele pensa que corremos perigos gravíssimos, porque

como trabalha tanto no Brasil, faz-lhe muita impressão que a escola pública no Brasil

seja a escola apenas para os mais pobres. É uma coisa tremenda e brutal. Porque todos

os que podem fazem tudo, como vão fazendo os portugueses, para ter os filhos numa

escola particular. Para os defender da violência, para os defender dos roubos, para os

defender dos meninos pobres… para os acantonar também e delegar a sua

responsabilidade educativa no serviço que compram.

A questão nuclear é a de saber como é que se pode fazer para não perdermos a

escola pública. Para não se perder a escola pública será necessário que os professores

percebam os novos valores e poderes de que dispõem na sociedade actual. E não agirem

como agem contra si próprios, de forma suicida. Porque funcionam num registo

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masoquista. Masoquista para a evolução da sua profissão, e num registo sádico na

relação com os alunos, porque ficam no desespero de não saber o que fazer da profissão

por construir. Essa construção só poderá acontecer com a colaboração e a partilha contra

o autismo em que se enclausuram.

No diálogo que tenho mantido com António Nóvoa cheguei à conclusão de que

teremos de acentuar mais a responsabilidade pública da educação. E voltar a rever, em

conjunto, em sociedade, os vários papéis educativos: quer das famílias, quer das

organizações privadas, quer das várias organizações públicas a vários níveis (desde os

municípios, juntas de freguesia, Estado central, etc.). Rever os tempos e as acções e,

provavelmente, rever também as responsabilidades da escola. Porque o que está a

acontecer é uma inflação brutal de funções e responsabilidades todas atiradas para a

escola, confundindo educação com escola, como se a escola devesse realizar a educação

toda. A escola é incapaz disso, nunca foi criada verdadeiramente para tal desígnio e será

absolutamente incapaz de, historicamente, realizar essa tarefa.

É necessário um dia termos a lucidez de pensar o que é que é estritamente

necessário realizar na escola. Sem querer que a escola eduque as comunidades e eduque

tudo, como se a escola tivesse uma função mitómana de missionária. A escola não pode

ter uma função missionária, tem que ter uma função cultural bem caracterizada. Para

quê? Para lhe podermos pedir contas. A escola tem, provavelmente, que reduzir

funções. Não nos podemos andar a enganar uns aos outros, criando uma nuvem de

poeira à volta das responsabilidades das instituições.

Por exemplo, quando pensamos na socialização, que é o aspecto formador da

escola, inevitavelmente a escola terá sempre uma forma de socializar. Só que é hoje

uma forma por vezes bárbara de socialização, e a escola tem de encontrar uma forma

civilizada de socializar para a vida em democracia. A escola tem de aprender os valores

da democracia. Em vez de se propor dar lições de democracia, tem de experienciar e

vivenciar a democracia no seu seio. É a proposta de socialização pela democracia. Não

pela democracia representativa, mas pela partilha directa e distribuída a nível de todos

os locais, de todos os docentes da escola. Bem concentrada no essencial das linhas dessa

socialização.

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No fundo a sustentabilidade da escola passa por uma agenda que, neste momento, é

credibilizada pelas próprias necessidades sociais e económicas, mas sem negar a

dimensão generosa, a dimensão utópica em que se edifica.

Devia edificar-se, porque a escola nunca foi verdadeiramente generosa. Foi

apenas em alguns momentos de experiência. Nós nunca tivemos uma escola

verdadeiramente democrática. Mesmo que nos lembremos da escola republicana, e se

falarmos da escola republicana não nos podemos lembrar de Portugal, onde foi tão

frustre, temos de lembrar, por exemplo, a escola republicana francesa, que também ela

não conseguiu edificar-se como republicana e democrática no seu interior. Os

professores foram sempre mais reis e as escolas foram sempre mais monarquias ou

oligarquias do que repúblicas. É quase sempre tudo muito dissimulado, o que na escola

se passa. Demorámos muito tempo a querer ver esse engendramento de ocultação do

que se passava na escola e as relações entre o poder e o saber.

Nisso Foucault é violentíssimo, mas vale a pena querer perceber aquela

violência para se perceber que as coisas não são pacíficas, e que em nome de não sei o

quê se fazem coisas terríveis. É claro que ele o faz como quem quer mostrar uma

fotografia ali a nu. Foi aquela que ele encontrou. Se isso nos magoa, que nos magoe. Ele

não faz aquelas fotografias para nos magoar, faz para gerar um espaço de luminosidade.

Permitirmo-nos ver. Fazer uma aproximação. Tornar visível alguma coisa que parecia

ser posta ao invés, muito manipulada, para parecer tudo por bem, nestas relações entre o

saber e o poder.

O que era importante discutirmos era como é que se pode gerar ou regenerar este

acordo público, a responsabilidade pública que temos na educação com as gerações que

vão nascendo. Os homens e as mulheres em criança pertencem a comunidades, a

regiões, a grandes regiões. Pertencem e deveriam pertencer-lhes no plano da

responsabilidade. Não é pertença no plano da propriedade! Pertence-nos a

responsabilidade de os ajudar, de os defender, de os ajudar a descobrir uma herança e de

os ajudar a evoluir. Mas isso é uma função de todos. Não é hoje apenas uma função do

Estado, não é hoje apenas uma função da Família, não é hoje apenas uma função da

Escola. Mas seria bom discutirmos a clarificação dessas funções: cada um faz o quê?

Quando é que entra esse actor em cena para engendrar a história? Isso é que não está

claro, está cada vez menos claro.

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Eu reduziria provavelmente o tempo e o currículo da Escola. E não se trata aqui

“ to back to basic”, voltar atrás às coisas básicas, porque não é disso que se trata. Trata-

se de hierarquizar a cultura, clarificando o que são os instrumentos, os recursos, as

fontes, os operadores, os agentes, os professores, os alunos, etc. É preciso clarificar

essas coisas, analisá-las e não nos deixarmos arrastar por este mercado disciplinar,

veiculado sobretudo pelo poder dos territórios disciplinares das Universidades. Aí as

Universidades fazem muito mal à cultura, quando podiam fazer bem.

As disciplinas não têm igual valor funcional quando eu quero resolver problemas

determinados. Elas podem ser complementares, mas há umas que não são inteiramente

complementares, algumas são raízes da árvore do saber. Delfim Santos dizia que a raiz

da árvore do conhecimento é a Pedagogia, porque “é ela que gera, é geradora e geratriz

do conhecimento”. É a Pedagogia que permite difundi-lo, é ela que permite reconstruí-

lo nas pessoas e com as pessoas. Eu diria que o instrumento construtor do conhecimento

é a comunicação interactiva, através de um campo de linguagem. Então o modo oral e o

modo escrito complementar de uma língua em que se funda a escola, como língua

oficial, são os instrumentos que não podem ter o mesmo valor, o mesmo tempo e o

mesmo tipo de trabalho das ciências da natureza. Não porque as ciências da natureza

sejam de estatuto menor, mas porque os instrumentos intelectuais que permitem integrar

e apropriar as outras disciplinas são a língua e, a seguir, a matemática. Às vezes parece-

nos um exagero eleger estes dois, mas eles são os instrumentos da construção mental,

do desenvolvimento mental e da inteligência. São eles que nos ajudam a arrumar, a

construir, a desconstruir e a reconstruir os conhecimentos culturais.

Eu colocaria a questão neste sentido em que, como já se disse em tempos, há de

facto saberes instrumentais organizadores do trabalho intelectual, processos de

desenvolvimento do trabalho intelectual e do trabalho artístico, e depois há qualquer

coisa que é já da ordem da herança dos conhecimentos. Era necessário reapropriarmo-

nos da entrada nesses conhecimentos, também pela via instrumental, quer dizer, entrar

neles com os seus instrumentos e com os seus processos próprios. Não se pode separar o

conhecimento da Física dos processos de construção da Física, porque os processos de

construção da Física introduzem na aprendizagem da Física uma espécie de disciplina

interior, de organização mental, que são ao mesmo tempo uma ética. É a congruência,

cada vez mais conquistada e que vai cada vez mais longe, entre os métodos e os

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processos que criam a Física e que desenvolvem a Física. Esta congruência reivindica

que o conhecimento de uma ciência se faça utilizando os procedimentos próprios dessa

ciência. Há aqui um casamento, um engendramento, que faz com que seja impossível

separar uma coisa da outra. Se nós estamos a tratar a Física como um texto, como um

discurso, então é apenas um discurso sobre a Física. Jamais nós entenderemos o

engendramento próprio, interno, à história da construção da própria Física e logo, se não

pudermos estar por dentro dessa cultura da Física, dificilmente iremos longe na Física.

Lemos textos sobre Física, mas nunca saberemos o que é a Física.

O que é que fazemos hoje na escola? Ouvimos discursos e lemos discursos sobre

o conhecimento. Pomos os alunos a decorar palavras ou conceitos da teoria ou dos

discursos da Física ou da Biologia. Ler discursos é diferente de poder imaginar como é

que por dentro se movem e se constroem essas coisas. Por isso, num texto que produzi

recentemente sobre a escrita, fui buscar de novo Roland Barthes para sublinhar, o mais

contundentemente possível, que nas questões do mundo da escrita é decisivo ser

escritor, posicionarmo-nos como escritores, porque posicionando-me como escritor eu

não poderei deixar de ser leitor. Mas se eu me posicionar como leitor, como nas antigas

escolas bíblicas, eu nunca chego a percepcionar como é que se constrói um texto.

Identifico e contemplo esse texto como um milagre, como uma maravilha, como uma

coisa única, como o faria um analfabeto, um iletrado.

Uma pessoa letrada tem de colocar-se hoje do lado da construção da escrita. Por

dentro dos processos de construção. Colocar-se assim em todos os saberes, que é o

colocar-se do lado de quem constrói, de quem produz a Física, de quem produz o

conhecimento biológico, de quem produz as Artes. Não apenas os discursos sobre as

Artes, sobre a Biologia ou sobre a Física. Se nos colocamos do lado da construção dos

mecanismos, do motor da construção, da produção, nós queremos avançar para

conhecer mais.

Meirieu enuncia “Pedagogia como inteligência das situações educativas”. Mas o

discurso pedagógico dominante está marcado pela opacidade tecnocrática, parece

incapaz de se assumir com relevância social e cultural. A Pedagogia como ciência é

vista com desconfiança, quando não ironicamente perspectivada como pseudo-ciência.

Porque é que a Pedagogia tem tanta dificuldade em se inscrever como ciência

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respeitada, sobretudo no campus académico e na agenda política? Que obstáculos se

colocam hoje à edificação da Pedagogia como ciência?

Nós preocupamo-nos muito sobre o lugar da Pedagogia em referência às

Ciências da Educação. Se nós pensarmos mais a sério, numa área vital, como é vital a

educação, então a melhor analogia era pensar na medicina, que trata da vida e da morte.

A medicina não se importa nada de não ser ciência. A medicina não é uma ciência. A

medicina é uma prática social da saúde. E o que alimenta a medicina e faz avançar a

medicina são muitas disciplinas e muitos saberes concertados, as Ciências Médicas. É a

iluminação sobre essa prática social, com esse conhecimento altamente exigente,

rigoroso, experimental, que faz com que os médicos sejam cada vez melhores

profissionais, e que possam recorrer, sempre que possível, à convergência de exames de

especialidade para se fazer “um juízo em síntese”, para avançar, para tomar uma decisão

que decorra da cooperação.

A Pedagogia é uma prática social indispensável. As Ciências da Educação são muito

úteis para clarificar as decisões que temos que tomar na Pedagogia. A Pedagogia não

tem de ser científica. Tem é de ser assumida plenamente como um valor inestimável. É

uma área de prática social indispensável, mas que se conquista pelo domínio dessa

prática fundada na reflexão dialógica com opções teóricas multidisciplinares e de acção.

Aprender, como na Medicina, a fazer diagnósticos e saber o que faz falta a uma criança,

em vez de a empurrar da escola, em vez de a excluir da sociedade. Os médicos não

podem fazer isso. Os professores também deviam ser proibidos de o fazer no plano da

deontologia. Têm é de aprender a conhecer os alunos, e aprender com eles a construir as

suas aprendizagens, que seria o equivalente a construir a sua saúde. Nós devíamos fazer

muita investigação, e nela participarmos, como acontece com os médicos na Medicina,

para trabalharmos melhor com os alunos, ajudando-os a aprender.

Então como é que interpretas aquele excerto de António Nóvoa quando diz que a

Pedagogia deve iluminar as Ciências da Educação?

Eu creio que para António Nóvoa pedagogo é alguém que tem uma prática

educativa comprometida socialmente, onde ensinar significa garantir aprendizagens e o

feedback de saber se se ensinou ou não se ensinou, e se o aluno aprendeu ou não

aprendeu. Onde o professor-pedagogo se envolve também na continuidade da profissão,

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isto é, na formação, para que a vá mudando, o que passa por uma reflexão constante e

pela produção de saberes que venham dessa cultura de estar assim. Percebe-se então que

há uma prática social com saberes, uns mais descritivos, outros mais interpretativos,

mais teoréticos, tentativas de compreensão. Seria o centro onde se passa o drama, a

acção educativa, o drama educativo.

Penso que o que António Nóvoa quer dizer é que as Ciências da Educação têm

que conviver com o drama, têm que conviver com a Pedagogia. Como se disséssemos

que as Ciências Médicas têm que conviver com a Medicina, com a prática social da

Medicina, que têm que conviver com o acto médico. Porque se não conviverem com o

acto médico elas não servem para nada, porque não servem para fazer avançar o acto

médico e a Saúde. As Ciências da Educação têm de conviver com o acto pedagógico.

Os cultores das Ciências da Educação, manifestamente em Portugal, não têm muita

consciência de que o seu trabalho é o de fazer avançar as práticas educativas.

Produzem-se alguns trabalhos, poucos, talvez, mas sem a consciência de que há ali uma

centralidade funcional, social, indispensável. De que há um compromisso social das

Ciências da Educação com o próprio acto educativo.

Então, na tua perspectiva, o problema não é tanto a discussão da Pedagogia como

ciência, mas a ausência de uma prática científica e de uma prática investigacional no

campus escolar.

Não há uma prática guiada deontologicamente: uma reflexão ética sobre a gestão

do acto de aprendizagem-ensino. Do lado da reflexão e do compromisso ético-político,

para organizar e gerir as modalidades e os processos de aprendizagem. Eu não tenho

preconceitos contra o ensino. Porque para mim ensino não é dar lições, mas é o poder

partilhar com outro aquilo que eu já aprendi e particularmente ao nível da construção do

Conhecimento, dos seus instrumentos de aprendizagem e do seu uso social autêntico.

Como Vigotsky disse prodigiosamente, naquele texto sobre o homem do

riquexó, eu diria também: o que é lamentável é que os professores tenham chegado ao

século XXI e continuem a ser como o homem do riquexó, isto é, como esbanjam tanta

força muscular a puxar pelo carro sem o guiar. Como é que os professores se tornaram

em “animais de carga”, quando a função da orientação e a função da energia gasta, essas

duas funções do trabalho, ao longo do tempo, se foram transformando? Os homens e as

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mulheres emanciparam-se da brutalidade do trabalho, passando a ter motores que

puxam e carregam, passando eles a orientar apenas o processo desse trabalho.

É no plano da orientação e da mobilização das aprendizagens que a profissão

devia acentuar-se e não repetindo o que está nos manuais como quem está a puxar o

riquexó. É tudo contra a inteligência. A vida de um professor é uma vida extenuante,

porque se colocou no lado errado da profissão. Faz trabalho de escravo, porque não o

faz com a cabeça, faz com o corpo todo. É ele que gasta todo o tempo, dá as lições,

estuda para dar as lições e os alunos, para trabalharem, vão para casa, onde ninguém os

pode ajudar. Quando a pessoa que os poderia ajudar era o professor. É para isso que é

pago. Esta inversão de sentido dos processos de trabalho é das coisas mais

incompreensíveis na nossa profissão, arrepia pensá-lo, e às vezes até nos faz ter

vergonha dela. Como é que nos esvaziámos de lucidez e inteligibilidade? Uma profissão

que poderá ser tão exaltante se nos soubermos colocar na perspectiva da organização do

trabalho das aprendizagens dos alunos.

Por isso é que eu costumo dizer que a organização forma. A organização educa.

E a organização ajuda a distribuir os apoios à aprendizagem. Porque ninguém pode

aprender sozinho (por vezes apenas confrontado com o manual). Tem de se passar por

vários recursos, que são os amigos, que são os companheiros, que são os mais velhos, às

vezes são os mais novos, que é o seu professor ou outros professores, que é a biblioteca,

que é o laboratório. São todos esses instrumentos de apoio. Por isso é que as

aprendizagens são distribuídas. Ou, dito como Salomon diz, “conhecimento

distribuído”. O conhecimento não é concentrado numa pessoa, é distribuído pelos

livros, pelas pessoas, pelos espaços, pelos laboratórios, pelo tempo. É outra visão das

coisas, uma concepção distribuída do conhecimento e da sua aprendizagem e do acto

solidário de compartilhá-los. Já temos esse saber acumulado. Existe disponível. Importa

utilizá-lo.

Até como prática profissional.

Claro, existe, até com a demonstração de que é possível, de que é rentável. Os

irmãos Jonhson & Jonhson, num livro sobre a violência (Como reduzir a violência nas

escolas), vão mais longe do que as suas conhecidas teses sobre aprendizagens

cooperativas. Os autores concluíram que as potencialidades do trabalho em grupo se

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alargavam para a própria instituição. Eles chamam a atenção para os estudos dos

investigadores nas empresas e de como chegaram à conclusão de que 80% dos

comportamentos humanos, numa organização, se devem à forma como ela está

organizada. Apenas 20% se devem a outras coisas. Uma instituição, vivendo as regras

da cooperação, colocando a ênfase na vida comunitária, estimulando vigorosamente a

comunicação no interior dessa comunidade, permite que os níveis de violência desçam.

Nós temos medo de falar de organização na escola. Na escola é sempre a mesma coisa!

Por isso é que o conceito de diferenciação pedagógica é um bicho-de-sete-cabeças, é

uma coisa difícil de realizar. Mas é a única forma de romper com a organização

simultânea e com a ditadura do método simultâneo. Romper com isso é uma outra

cultura organizacional que produzirá novos comportamentos, comportamentos que

decorrem dessa nova organização.

Numa reflexão recente sobre a matriz da organização social do trabalho pedagógico

dos professores do Movimento da Escola Moderna Portuguesa, defendias que temos de

caminhar “para o grau zero da transposição didáctica”. O que queres dizer com esta

intensa metáfora?

O que eu já fui dizendo tem muito a ver com o grau zero da transposição

didáctica. Esse é o desafio! Essa é aparentemente a utopia que não devia ser nada de

utópico se olhássemos a questão com uma profunda seriedade. Porque significa

simplesmente que nós sabemos que há uma cultura espontânea, que são as coisas que os

homens e as mulheres se vão ensinando uns aos outros para sobreviverem, ou para

conviverem e para viverem em sociedade. Vamos instituindo essas culturas, desde as

maneiras de comer às maneiras de estar, às maneiras de dormir, às maneiras de fabricar

as casas, de construir textos chocarreiros e coisas várias para nos divertirmos, toda a

cultura popular e toda a cultura espontânea, todas as teorias que todas as crianças têm

sobre tudo do mundo e da vida. É um mundo inestimável de saberes e de imaginação,

de divertimento, de coisas gostosas e contáveis e outras brutais e desconfortáveis. De

tudo isso é feita a cultura. Essa cultura merece respeito. Porque levou milénios a ser

construída.

Depois há uma outra construção de cultura que nós chamamos mais sofisticada,

porque tem um tipo de elaboração e de construção com exigências de prova e de rigor.

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Ou outras formas culturais de discurso que nós construímos sobre o mundo e sobre a

vida que tenham convergências, nem que sejam pragmáticas, com isso a que chamamos

real. Esses discursos culturais sobre as Ciências e as Artes têm-se construído

predominantemente a partir das Universidades.

Muitas vezes repudiamos o conhecimento que as crianças constroem sobre o

quotidiano, as suas teorias espontâneas, porque as julgamos pobres e sem valor, sem

dignidade epistemológica. O que tem dignidade é a produção científica, os textos e os

ensaios produzidos na academia. O que acontece na escola é que nós prescindimos das

aprendizagens já feitas pelos alunos. É como se eles quando entrassem na escola

entrassem no vazio. Quer dizer, tudo para trás se apagou e portanto tudo se vai passar a

partir de um princípio imaginário.

Os professores, ao quererem veicular ou iniciar os alunos no conhecimento

científico, artístico, etc., fazem transformações, acomodações, manipulações desse

conhecimento, que por sua vez já passou por várias decantações. Já foi passado pelos

seus professores, que não eram verdadeiramente investigadores, e que já o traduziram, e

regressamos à interpretação da interpretação, como se voltássemos ao tempo da escola

conventual.

O que os professores vão fazer são interpretações. Dizer coisas já interpretadas

sobre o conhecimento. E então gera-se este espaço entre dois saberes, o saber

espontâneo e o saber do conhecimento. Este lugar entre dois passa a ser um campo de

ninguém, porque muitas vezes essas manipulações vão criando uma coisa que é o

conhecimento académico, que é um terceiro conhecimento, e que às vezes é um

obstáculo para chegar ao conhecimento verdadeiro. A transposição didáctica

transformou-se no objecto epistémico da escola, um falso objecto de cultura científica

ou artística.

A transposição como teoria é útil, porém, para investigar. Podemos estudar um

campo teórico da biologia e constituir uma equipa de especialistas nessa área com o

propósito de observarem, ao longo de um tempo, como é que se acede a esses saberes,

como é que esses conhecimentos passam para as escolas; e aferir se esses saberes assim

transpostos são correctos ou incorrectos, verdadeiros ou falsos. Seria muito útil para ver

quais são as operações intermédias que os professores utilizam quando dizem que estão

a dar uma teoria.

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Nós apercebemo-nos que muitos professores, e a escola toda, sobretudo os

manuais, se vão deslocando progressivamente do conhecimento científico. Aquilo que

estão a oferecer já não é ciência. É uma coisa para a escola. São as coisas da escola. E

levar uma vida a ler coisas da escola é que é lamentável, porque destrói muito as

pessoas e esbanja muitas energias. Por isso é que eu costumo dizer que o que nós temos

de conquistar é o grau zero da transposição. Temos de fazer a entrada nas ciências não

falseando a ciência. Não transformando em conhecimento académico o conhecimento

científico. Mas procurar fazer coincidir o conhecimento académico com o conhecimento

científico e com os demais conhecimentos culturais.

As instituições de formação de professores têm aí uma responsabilidade evidente.

O que aconteceu nas instituições de formação de professores é que se tomou o

conceito de transposição de Yves Chevallard (La Transposition Didactique) como um

conceito de verificação do real. Chevallard, numa perspectiva sociológica, vai ver como

é que fazem os professores para ensinar os alunos e afirma que eles fazem uma

transposição a partir da ciência. E nós entendemos os deslocamentos que os professores

fazem na transposição didáctica. O conceito de transposição didáctica passa assim a ser,

no entendimento de muitos, um conceito integrante da própria didáctica. Temos de nos

perguntar até que grau de desvio ou de manipulação ainda é aceitável confundir a

transposição didáctica de um conhecimento com esse Conhecimento.

Alguns conceitos são úteis para fazer evoluir a forma de organizar as

aprendizagens dos alunos, que é disso que se deve tratar principalmente. O conceito de

transposição didáctica é um conceito traiçoeiro, porque é um acto de verificação do que

acontece, não é para dizer que tem sempre que acontecer assim. Nós devíamos era

encontrar formas de entrada num domínio da cultura, de maneira a manipular ao

mínimo as situações, ajudando os alunos a construírem o conhecimento dentro desse

racional, no interior dessa gramática, no campo lógico dessa disciplina. E nós não

propiciamos isso. Vejamos o que se passa no interior dos processos de ensino e de

aprendizagem: o aluno não é um produtor, não é um construtor; o aluno é um leitor, um

contemplador, um papagaio, um imitador, e tem é de acertar nas respostas a textos dos

manuais.

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É uma grande aventura, mas cada um de nós terá de ser mais culto nas ciências,

para as agarrar por dentro, porque se as agarramos só por fora não podemos ajudar os

nossos alunos a construírem/reconstruírem o conhecimento científico.

Gostava que falasses sobre o Movimento da Escola Moderna (MEM): que contributo,

que herança está a construir o MEM para a educação em Portugal, e não só, porque já

ultrapassou fronteiras? Qual a especificidade desse contributo?

A primeira especificidade é um desafio produzido numa comunidade de

profissionais da educação que, ao construírem continuadamente a profissão, procuram

produzir uma prática educativa alternativa à que viveram. Não é um desafio contra a

escola tradicional no sentido em que se dizia nos anos 60. É mesmo um desafio contra a

gramática corrente da escola. É um questionamento vigoroso ao modo como se estrutura

a relação e a organização das práticas escolares, as relações da aprendizagem com o

ensino: que poderemos nós dizer, na tradição escolar, sobre as relações entre o ensino e

o que aprendemos? O importante, para nós no MEM, são as relações entre as

aprendizagens dos alunos e os momentos em que o professor interage, como pessoa que

pode ensinar. Ensinar, neste sentido de aproximar os alunos de instrumentos mais

adequados, de processos, de saberes, de os ajudar a organizarem-se com eles. O

professor não tem de dirigir, no sentido pleno. Tem de orientar, cooperar, não deixar

fragilizar o aluno, não o deixar cair, não o penalizar. No fundo tem de ajudar o aprendiz

a vencer o esforço e as dificuldades da aprendizagem. Ajudar os alunos a garantir essa

conquista oferecendo-se como mediador esclarecido.

Os professores do MEM, enquanto se vão auto-formando em cooperação,

contribuem também com o desafio de poder construir um contraponto, uma escola

outra, tendendo para 180º de diferença. É a escola do outro lado do espelho, glosando

essa imagem poderosa de Alice que passa através do espelho. A aposta é sermos Alice a

atravessar para o outro lado do espelho. É a nossa aposta mais forte. Essa conquista

nunca está terminada. E nunca deve ser terminada porque senão transformava-se numa

didáctica normativa. Temos de nos desafiar teoricamente para estarmos actualizados e

para puxar, permanentemente, pelas nossas construções.

Também é próprio do MEM assumirmos, como professores, os nossos pequenos

contributos, e escolhermos uma “tribo”, uma família intelectual, e não alimentar

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inquietações quanto a isso. A nossa força vem daí. Hoje o conhecimento só se pode

construir “em tribo”. Entre comunidades. Não há uma comunidade científica, há

comunidades científicas, há comunidades de saberes, há comunidades de práticas. Nós

temos obrigação de escolher os nossos autores. Temos obrigação ética de escolher os

textos que estudamos. Dizer: “estes textos são da nossa família; os teus textos são da tua

família; se eu tiver tempo vou também ler os teus textos, para nos entretermos a

dialogar e a falar; mas eu tenho uma vida curta e a minha família escreveu muitos

textos, falou muito, e eu tenho de descobrir melhor a minha família”. É pelo

fundamento e pela congruência que avançamos. Prezamos obsessivamente esse valor de

congruência de família intelectual. Porque temos de rentabilizar o tempo. Uma coisa

qualquer não é possível, porque nós nos dissemos à partida que os processos, os meios

de trabalho, têm de ser inteiramente congruentes com os fins, com os valores que

defendemos, e esses são os grandes valores da democracia que estamos a construir.

Com atrasos e com descaminhos, mas nos planos dos valores incorporados temos feito

progressos, mesmo que eles não sejam interiorizados por tanta gente como nós

gostávamos, para que a família pudesse ser maior.

Não tem de haver aqui um espírito imperialista nem missionário. Nós não temos

de catequizar ninguém, não obrigamos ninguém a ser como nós, mas temos de ter a

porta aberta para todos os que queiram - e, com eles, nós partilhamos as nossas coisas.

No MEM nunca andámos atrás das pessoas. Nem lhes dissemos “agora inscrevam-se no

MEM”. Jamais! Isto não é fechar a porta, e alguns pensaram que era fechar a porta. Isto

é recusarmo-nos a fazer dessas militâncias missionantes, como quem possui a verdade.

Nós é que trabalhamos, e damo-nos melhor com os nossos modelos de trabalho,

estamos melhor com as crianças com os nossos modelos de trabalho, sentimo-nos mais

perto dos valores democráticos nos nossos modos de trabalhar.

Nós acreditamos que a democracia é difícil, é muito imperfeita, mas no plano

dos valores e das relações, nas aprendizagens que fazemos para nos aperfeiçoar como

seres humanos, é um bom cadinho, um bom caldeamento. A nossa aposta é que as

relações entre professores e alunos sejam o mais integralmente coerentes com os valores

que defendemos, valores como os da reciprocidade, da justiça, da diferença, da

intimidade, o respeito por essas coisas todas que estão nas leis mas que ninguém tenta

interiorizar e trazer à vida e às relações com os outros. É a regra da cooperação levada

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mais longe, assumindo os grupos como comunidades de conhecimento e de

aprendizagem. Estamos ali para descobrir, em comum e em cooperação, o mundo e a

vida e, em comum e em cooperação, reinstituir as suas significações.

Um outro contributo também muito importante é a estrutura. Estruturamos o

trabalho de maneira cooperativa. E motivamo-nos e avançamos no conhecimento,

comunicando. Se aquilo é um bem comum, nós temos de pôr em comum todo esse bem

comum. Tudo o que produzimos, produzimo-lo para a comunidade, e se possível

fazemos chegar mais longe, a outras comunidades, a outras turmas.

A estrutura pedagógica assenta e fecunda-se na organização democrática em

directo, sem votações (a não ser as que se revelam indispensáveis), sem delegados e

representantes. Os valores da democracia constroem-se em directo, não se constroem

em delegação. Essa é a estrutura da democracia parlamentar burguesa do século XIX.

Nós estamos a falar da educação. E da democracia na educação. De uma demopedia

para já! Que está quase toda por fazer. Mas sabemo-la pensar e podemo-la fazer. O

professor, no MEM, encaminhado por uma reflexão ética compartilhada, prescinde de

muitos dos poderes que a sociedade lhe dá abusivamente como instrumento educativo.

Estamos a falar de uma estratégia pedagógica de formação democrática, estamos a falar

na instituição dos valores, de como se instituem e se interiorizam, de como se

incorporam em nós esses valores, de maneira a que os vivamos espontaneamente e que

os passemos a usar como se fossem naturais. É disso que se trata.

A comunicação não é os outros ouvirem o que eu tenho para dizer, mas os outros

poderem dizer o que entenderam da minha intervenção. É por isso que eu prefiro o

conceito de ensino interactivo, introduzido pelos sociocognitivistas, porque o ensino

interactivo tem como base a comunicação, o diálogo para aprender.

A apropriação do conhecimento faz-se pela construção e pela acção, pela fala ou

pela escrita, e não é possível construir aprendizagens sem falar e escrever as

aprendizagens. A construção do conhecimento, historicamente, foi sempre feita assim:

dialogando, escrevendo. É necessário criar ambientes onde os alunos possam falar,

possam dizer o conhecimento, escrever o conhecimento e pô-lo a circular,

principalmente na sua comunidade, para perceberem, desde logo, como conhecer é

socialmente útil. Eu não estou a aprender para amanhã. Eu estou a aprender para já.

Tudo o que eu aprender tenho de partilhá-lo com os outros para ajudar os outros, e se

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estou a fazer um estudo eu apresento-o aos outros e submeto-o ao juízo dos outros. É ali

que ganha sentido. Não é ao professor que eu vou ensinar. O professor é uma figura um

pouco imaginária. O aluno tem de produzir para as pessoas reais, com o professor

também lá dentro e que o ajuda a ir mais longe.

E como os nossos alunos costumam ter êxito, os pais gostam muito de nós. Os

pais, vendo que nós trabalhamos muito com os filhos deles, ajudam-nos imenso a vários

níveis.

Heidegger escreveu que “o homem, para continuar autenticamente humano, deve

habitar o mundo como poeta”, isto é, ser autor, criador de uma Obra. Revês-te nesta

afirmação?

É uma maneira bonita e romântica de dizer. Mas eu diria, do nosso lado de

professores, que temos de ajudar os nossos alunos a habitar o mundo como quem

conheceu a humanidade, as possibilidades que os homens e as mulheres se deram, os

malefícios que provocaram, os desequilíbrios e as coisas más que fizeram também. Tem

que ter tudo isso para eles poderem participar como parte construtora da humanidade, e

como tal, construtores da cultura que a humanidade constrói. Nesse sentido é que eu

acho que os nossos alunos, como nós, têm de se sentir como autores, se o sentido de

autor não for o sentido de propriedade intelectual, mas sim de autor-actor. Alguém que

produz e actua. É nesse sentido que eu prefiro ligar àquele princípio tão relevante da

exteriorização de Bruner: as pessoas têm de criar obras, produtos, que é onde se revela,

publicamente, o esforço compartilhado da construção da cultura. A melhor maneira de

refundar uma pedagogia das competências da acção ou do social, é através das

produções. É podendo produzir obras. Podendo produzir textos. Podendo produzir

experiências. Podendo produzir arte. Ao nível que se puder. Mas passar por isso e ter,

não só a leitura, mas também a escrita disso. Quer dizer, a autoria. Sendo actor. Ou

sendo co-autor, no sentido em que é comparticipado sempre, porque nada na construção

de uma obra pode ser só de alguém. Há sempre uma ligação fortíssima que nega o nosso

individualismo na cultura. Nós sozinhos nunca conseguiríamos fazer nada.

Precisaremos sempre do esforço de alguém, no plano da cooperação, nem que seja o

papel que alguém fez para eu escrever. A obra é compartilhada e comparticipada.

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A questão de viver o mundo como um poeta é, para mim, mais o sentido do

“fabricar”, do construir em liberdade, compor em liberdade a partir de todas as outras

coisas de que gostei e apropriei. E desordená-las e reordená-las. É assim a poesia: uma

boa maneira de nos desordenarmos e reordenarmos. Redescobrir o texto de outro modo,

através da força que a palavra pode ter como texto. Condensar o texto na palavra. Não

estou a falar da palavra no sentido evangélico de Paulo Freire. Eu não uso a palavra no

sentido do “Verbo”. Para mim, uso a palavra mais no sentido de nominalizar, de

substantivar os sentimentos e os actos, de dar nomes às coisas para as apreender. Porque

na comunicação não se comunica com palavras, só se comunica com textos. É com

mensagens que têm princípio, meio e fim. Mesmo quando eu digo só metade, o fim já lá

está… Como na poesia, afinal.

Sérgio Niza: Referências Bibliográficas Seleccionadas

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