110
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Letras Sergio Ribeiro Granja A crônica reacionária de Nelson Rodrigues Rio de Janeiro 2009

Sergio Granja_dissertacao.pdf

  • Upload
    thais

  • View
    253

  • Download
    26

Embed Size (px)

Citation preview

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educao e Humanidades Instituto de Letras Sergio Ribeiro Granja A crnica reacionria de Nelson Rodrigues Rio de Janeiro 2009 Sergio Ribeiro Granja A crnica reacionria de Nelson Rodrigues Dissertaoapresentada,comorequisito parcialparaobtenodottulodeMestre,ao ProgramadePs-GraduaoemLetras,da UniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro.rea de concentrao: Literatura Brasileira. Orientador: Prof. Dr. Victor Hugo Adler Pereira Rio de Janeiro 2009 CATALOGAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEHB R696 Granja, Srgio Ribeiro. AcrnicareacionriadeNelsonRodrigues/SrgioRibeiro Granja . 2009. 109 f. Orientador: Victor Hugo Adler Pereira. Dissertao(mestrado)UniversidadedoEstadodoRiode Janeiro, Instituto de Letras.

1.Rodrigues,Nelson,1912-1980Crticaeinterpretao.2. AnlisedodiscursoTeses.I.Pereira,VictorHugoAdler.II. UniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro.InstitutodeLetras.III. Ttulo.

CDU 896.0(81)-95 Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao __________________________ __________________ Assinatura Data Sergio Ribeiro Granja A crnica reacionria de Nelson Rodrigues Dissertaoapresentada,comorequisito parcialparaobtenodottulodeMestre,ao ProgramadePs-GraduaoemLetras,da UniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro.rea de concentrao: Literatura Brasileira. Aprovado em 20 de maro de 2009. Banca examinadora: _______________________________________ Prof. Dr. Victor Hugo Adler Pereira(Orientador) Instituto de Letras da UERJ _______________________________________ Prof. Dr. Carmen Lcia Negreiros de Figueiredo Instituto de Letras da UERJ ________________________________________ Prof. Dr. Adriana Facina Gurgel do Amaral Instituto de Cincias Humanas e Filosofia da UFF Rio de Janeiro 2009 A meu pai, Coronel Alrio Granja, pelo exemplo de vida. A minha companheira Claudia Rocha Gonalves de Canha pelos prstimos e carinho. Agradeo ao meu orientador, o Professor Doutor Victor Hugo Adler Pereira, pelas crticas e sugestes, que enriqueceram a dissertao, e aos professores e colegas do Mestrado em Literatura Brasileira, com os quais muito aprendi O homem s comea a ser homem depois dos instintos e contra os instintos. Nelson Rodrigues RESUMO GRANJA, Sergio Ribeiro.A crnica reacionria de Nelson Rodrigues. 2009. 100 f.Dissertao (MestradoemLiteraturaBrasileira)InstitutodeLetras,UniversidadedoEstadodoRiode Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. AcrnicareacionriadeNelsonRodriguescomportaumariquezadetraosestticose ideolgicos. Do ponto de vista formal, a stira rodriguesiana remete suas razes a umaarchaica situada no "campo do srio-cmico" da Antigidade Clssica.Do ponto de vista ideolgico, ela politicamente interessada e toma partido na batalha das idias que se trava sob a ditadura militar.AcrnicajornalsticadeNelsonRodriguescontingenteedumtratamentoficcionalaoreal, sobretudo atravs do exagero, da amplificao dos fatos da vida cotidiana.Como acontecimento discursivo,estaquiabordadanumfeixetemticoqueenglobacincoeixos:amorte,onegro,o feminino, o anticomunismo e a esttica. Palavras-chave: Crnica jornalstica.Stira poltica.Acontecimento discursivo. ABSTRACT ThereactionarychronicleofNelsonRodriguescontainsawealthofaestheticand ideologicallines.Fromtheformalpointofview,thesatirerodriguesianaitsrootsbacktoan archaic located in the "field of serious-comic" of Classical Antiquity. From the ideological point ofview,itispoliticallyinterestedandtakespartinthebattleofideasthathangsunderthe military dictatorship. The news chronicle of Nelson Rodrigues is contingent and gives a fictional treatmentofreality,mainlythrough the exaggeration, the amplification of the facts of everyday life. As a discursive event, is addressed here in a bundle that includes five thematic areas: death, black, the female, the anticomunism and the aesthetics. Keywords:News chronicle.Politic satire.Discursive event.

SUMRIO INTRODUO .........................................................................................10 Autor e autoria ............................................................................................ 13 Nelson na ps-modernidade ....................................................................... 22 Nelson e seus cronotopos ............................................................................ 31 Recorte ......................................................................................................... 40 NELSON RODRIGUES E A MORTE ..................................................... 49 NELSON RODRIGUES E O NEGRO ..................................................... 58 NELSON RODRIGUES E O FEMININO................................................ 67 Bonitinha mas ordinria ............................................................................ 78 NELSON RODRIGUES E O ANTICOMUNISMO ................................ 87 NELSON RODRIGUES E A ESTTICA ................................................ 96 CONCLUSO ............................................................................................ 105 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................... 114 10 INTRODUO NelsonRodrigues,reacionrioourevolucionrio?Essaquesto,colocadapor Sbato Magaldi, d panos pra manga e exige, sem dvida, que se d tratos bola.Magaldi acolocoucomoconclusodefinitiva,nofechodolongoprefcioqueescreveuparao Teatro Completo.: Umdia,sernecessrioreveroeptetodereacionrioqueoprprioNelsonse afixou.Na verdade, h muito de feroz ironia nesse qualificativo.Porque Nelson Rodriguesfoireacionrioapenasnamedidaemquenoaceitouasubmissodo indivduoaqualquerregimetotalitrio.Quandoapessoahumanafor revalorizada,tambmdessepontodevistaeleserjulgadorevolucionrio. (MAGALDI, Prefcio in RODRIGUES, 1993: 131) Retomo-a como ponto de partida.Antes, porm, vale indagar qual o conceito que se faz Magaldi da revalorizao da pessoa humana.Ele emprega um quando, o que aponta para um tempo por vir; uma utopia, por conseguinte.Como ele se imaginaria esse tempo utpico?Em que consistiria essa revalorizao?A que plano ele se referiria: ao das relaesinterpessoais,aodasrelaestico-comunitriasmarcadaspelavizinhanaouao dasrelaessociaisextensivas?Quaisosconceitosdereacionrioerevolucionrioque Magaldi se fazia? Aosedeclararreacionrio,Nelsonassumiuumaposiodedireita,sem subterfgios.Pode-se acus-lo do que for, menos de dissimulao.A distino entre reacionrio e revolucionrio ou, o que d no mesmo, entre esquerdaedireitasoaclaramentedesconfortvelparaMagaldi,RuiCastro,Wilson Figueiredoeoutrosautores.EoprprioNelsonfinalmenterepetiria,emdiversas entrevistas,arespostaindefectvelpergunta:Osenhorreacionrio?No,sou um libertrio.Reacionria a URSS. (CASTRO, 1992: 414)11 ParaMagaldi,Nelsonapenasnoaceitavaasubmissodoindivduoa qualquer regime totalitrio.Mas ser mesmo?E a submisso ditadura militar brasileira? Essedesconfortoemserreacionriotalvezsejareveladordeumengajamento ideolgicocomasuaconseqenteposiopolticanoassumida.Afinal,nuncasesoube deumesquerdistaquesesentissedesconfortvelemserdeesquerda,anosernas masmorrasdaditadura.MasNelson,paraseassumirdedireita,precisoudeumalonga justificativa,pessoalssima,duranteaqualdesfilousuastragdiasfamiliarespara finalmente arrematar com um desabafo: Sou um ex-covarde. Nesta crnica, publicada em O Globo de 18 de outubro de 1968, menos de dois meses antes do AI-5, ele chamou os estudantes que participavam das manifestaes contra aditaduramilitardejovenscanalhas.Ao faz-lo, ele estava pondo o dedo na ferida da direitabem-pensante,chamando-adehipcrita.Mas,talvezinconscientemente,ele estivesseapenasrevelandoasuairritaocomoisolamentocrescentedaditaduramilitar, poreleapoiada.Porquehaviaumadireitaquedavaascaraseapoiavaabertamenteo regimeautoritrio,inclusiveinvadindoapresentaesteatraiseespancandoatores.Mas com essa direita ele no queria se identificar.Chegou a protestar contra ela. Quesituaoeraaquela?Asociedadeserecuperavadogolpemilitarde64. Haviaumaespciedenostalgiadaliberdade.Amsicapopularbrasileiraexplodianas paradasdesucessocomNaraLeoeElisRegina.Oteatroencenavamusicaisepeas engajadas:Opinio,comMariaBethniacantando"Carcar"("pega,mata,come"); Liberdade,Liberdade,comPauloAutran.Omovimentocineclubistarecuperavapblico para o cinema novo, que questionava o golpe com O desafio, de Paulo Csar Sarraceni.Na poesia, Thiago de Mello desafiava o regime com Faz escuro mas eu canto, e Joo Cabral de MeloNetoconsagravaatemticasocialcomMorteevidaSeverina.Eracomosefosse umaretomadadaefervescnciapolticaeculturaldoinciodosanos60emcondies histricas adversas. E esse ambiente preparava o movimento contestatrio de 68. Aquantidadedevestibulandosexcedentesem1968chegaa125mileisso repercutenegativamentenaclassemdiaque,apsterapoiadoogolpede1964,entraem rota de coliso com o regime militar. 12 Com a tendncia a uma crescente monopolizao da economia, a classe mdia vestreitar-seoespaoparaoempreendedorismoempequenosnegciosenotrabalho autnomo.Resta a via do diploma universitrio para alcanar cargos bem remunerados nos altos escales do aparelho do Estado ou das corporaes multinacionais que vo dominando onossomercadointerno.Osonhodaascensosocial,tocaroclassemdia, obstaculizado,noentanto,pelofunildovestibular.Porisso,acrisedosexcedentes preocupa o regime militar e funciona como uma presso para a expanso das matrculas no ensino superior.Quanto aos jovens canalhas de 68, vale lembrar que, entre eles, estava o seu filho Nelsinho. O regime endurece diante da contestao estudantil, enquanto o Nelson cronista consolidaoseuapoioaosmilitares.Vivamos,jento,sobaaorepressorado famigeradoDOI-CODI:assassinatosetorturas.Osdireitoshumanoseramviolados;eas garantiasconstitucionais,canceladas.Oscrceresestavamrepletosdepresospolticos. Escritores, artistas e jornalistas sofriam os rigores da censura. O prprio Chico Buarque de Holanda, ento unanimidade nacional, amargou o exlio, como Caetano, Gil e tantos outros.Em 1972, Nelsinho preso e Nelson se v defrontado com uma realidade por ele inmeras vezes negada: a tortura no Brasil. PodemosconcretizarestasquestestendoemvistaNelsonRodriguesempelo menos trs situaes: como indivduo, que tem uma histria pessoal; como teatrlogo, que tem uma obra; e como cronista, que se expe nas batalhas ideolgicas do cotidiano. no cotejo entre o cronista e o teatrlogo, tendo a sua histria pessoal como pano de fundo, que queremosinvestigaraquestocolocadaporMagaldi:reacionrioourevolucionrio? claro que cada poca ter sua resposta a essa questo.Em todo o caso, no est em questo aqui a pessoa de Nelson Rodrigues, mas a sua persona como cronista e teatrlogo. Autor e autoria 13 ParaFoucault,oautorcomofocodacoernciadodiscursonovoganas conversas cotidianas (logo apagadas), nem nos decretos ou contratos (tm signatrios, no autores), nem nas receitas domsticas ou tcnicas (annimas), etc.Mas vige nos discursos deautoria:"literatura,filosofia,cincia".(FOUCAULT,2004:27)Elesublinhaque,na Idade Mdia, a autoria era indispensvel como indicador de verdade no discurso cientfico, enquanto as obras literrias podiam circular anonimamente.Em contrapartida, desde o sc. XVII, a funo do autor vem se enfraquecendo nodiscurso cientfico, ao passo que foi se tornandoindispensvelnoliterrio:"oautoraquelequedinquietantelinguagemda fico suas unidades, seus ns de coerncia, sua insero no real". (FOUCAULT, 2004: 28) Essesvaloresdeunidade,coerncia,inseronoreal,queaficoganhado autor, so operados atravs da mediao do leitor.Bakhtin a exemplifica com Shakespeare: "nem o prprio Shakespeare nem os seus contemporneos conheciam o grande Shakespeare que hoje conhecemos".E isso porque: Os fenmenos semnticos podem existir em forma latente, em forma potencial, e revelar-seapenasnoscontextosdossentidosculturaisdaspocasposteriores favorveisataisdescobertas.Ostesourosdossentidos,introduzidospor Shakespeareemsuaobra,foramcriadosereunidosporsculoseatmilnios: estavamescondidosnalinguagem,enosnaliterriacomotambmem camadasdalinguagempopularqueantesdeShakespeareaindanohaviam penetradonaliteratura,nosdiversosgnerosdeformasdecomunicao verbalizada,nasformasdapoderosaculturapopular(predominantementenas formascarnavalescas)queseformaramaolongodemilnios,nosgnerosdo espetculoteatral(dosmistrios,farsas,etc.),nosenredosqueremontamcom suas razes Antigidade pr-histrica e, por ltimo, nas formas de pensamento. (BAKHTIN, 2003b: 363) Vigotskiadverteque,"umavezcriada,aobradeartesepara-sedeseucriador; noexistesemoleitor;apenasumapossibilidadequeoleitorrealiza"(VIGOTSKI, 1999a:XIX).Eoleitorarealizanamedidaemque"areproduz,recriaeelucida" (VIGOTSKI, 1999a: XXI). E esse tambm o juzo emitido por Barthes ao dizer que "a escrita tem esse poder de operar um verdadeiro silncio sobre a destinao".Por isso, ele anomeiade"contra-comunicao","cacografia".(BARTHES,1992:172)Mas,alm disso, Barthes sublinha que, "no texto, fala apenas o leitor. (BARTHES, 1992: 173) No outra a perspectiva de Derrida.Ele ensina que Scrates compara a uma droga(phrmakon)ostextosescritosqueFedrotrouxeconsigo.Ereforaqueesse 14 phrmakon, essa medicina, esse filtro, ao mesmo tempo remdio e veneno, j se introduz nocorpododiscursocomtodaasuaambivalncia.(DERRIDA,2005:14)Comoanota EvandoNascimentoaesserespeito,otextoescritopodedizeraquiloqueopai-falante jamais diria, constituindo uma traio origem do discurso e um parricdio em relao ao seu autor. (NASCIMENTO, 2004: 21) Com efeito, nem sempre se pode distinguir com clareza a que um dito se refere, seapontaparaumobjetopreciso,secomportaumaambigidadeousealude.auma constelaodepossibilidades.Almdisso,quandofalamos,dizemosalgoaalgum;mas, no texto literrio, para quem escrevemos? O falante escolhe o seu ouvinte, ao passo que o escritor no sabe para quem escreve1, nem pode ter certeza de que realmente haja algum paraquemescreva,postoqueoleitor quem escolhe o texto.Com isso, no se pretende negarquetodaescrituradialgica,valedizer,tememmiraumleitorideal,hipottico.Massepretenderealarque,seescreverdespertarodiscursointeriordoleitor,aescrita semleituracomoumavozsemsonoridade.Noumavozinterior,masumano-fala.Sequerumsilnciosignificativo,masumaausnciaignorada,jquealeitura(ecada releitura)comoosoproinauguralqueinfundeohlitodavida(nimo,alma)matria inerte (modelada em significantes com o p apanhado do solo Gn 2,7). Todavia, a obra clssica geralmente como um planeta na galxia do autor.A sua leitura no se far num gesto isolado, desvinculada da intertextualidade com o conjunto da obra do autor e da fortuna crtica que o consagrou. Bakhtinapresentaasidiasde"horizonteprprio"e"excedentede conhecimento" para dar forma ao campo de viso do autor. A verossimilhana da personagem , para Dostoivski, a verossimilhana do seu discursointeriorsobresimesmaemtodaasuapureza,masparaouvi-loe mostr-lo, para inseri-lo no campo de viso de outra criatura torna-se necessrio violarasleisdessecampodeviso,poisumcamponormaldevisotem capacidadeparaabsorveraimagemobjetivadeoutracriaturamasnooutro campodevisoemseutodo.Tem-sedeprocurarparaoautoralgumponto fantstico situado fora do campo de viso. (BAKHTIN, 2005: 54) 1 Isso no vlido para as mercadorias da indstria cultural.Essas so postas em circulao em um mercado administrado, atravs de tcnicas de marketing, que engendram o consumo.: "O termo [indstria cultural] foi empregado pela primeira vez em 1947, quando da publicao da Dialtica do Iluminismo, de Horkheimer e Adorno." (ARANTES, 2005: 7) 15 Transgredincia2 um conceito que procura dar conta da relao "eu tu", seja como"sujeitoobjeto"(nascinciashumanas)oucomo"autorpersonagem"(na literatura).Paraconhecer-te,eudevoprocurarexperimentaratuasituao,assumiroteu "horizonte prprio" presumido.O paradigma o da compreenso do sofrimento alheio.Eu precisocolocar-menoteulugarparatentarsentiroquetuestssentindo(empatia).S assimpodereiavaliaroteusofrimento.Atransgredinciaconsisteno"abrir-separao outro",natransgressodasfronteirasdo"eutu"emdireoao"ns";ou,ditodeoutro modo,nasuperaodosparticularismosrumoaumavisomaisuniversal.Mas"aquih umncleointeriorquenopodeserabsorvido,consumido,emquesempreseconserva uma distncia em relao qual s possvel o puro desinteresse; ao abrir-se para o outro, oindivduosemprepermanecetambmparasi"(BAKHTIN,2003b:394).Eunoposso nem devo fundir-me contigo, preciso guardar uma distncia crtica que me deixe continuar sendoeumesmo,poisjustamenteomeu"excedentedeconhecimento"quemepermite enxergar-te por inteiro e completamente, alcanar uma viso de ti que eu no posso ter de mim mesmo.Ningum consegue enxergar-se por inteiro, a menos que tenha a sua imagem refletidaporumoutro(ouhofeitiodaimagemespecularprocessonarcsico).E ningum pode ver-se completamente, pois o seu vir-a-ser s se completa com a morte (mas oquejnonopodeauto-avaliar-se).Eatravsdaexotopia3queeupossoalcanar umacompreensomaisampladoteusofrimentodoqueacompreensoquetumesmo podes ter dele.Sem exotopia no h transgredincia, pois haveria no mximo a troca de um particularismo por outro. o que acontece com aquele que substitui o sistema de valores de sua cultura pelo de outra.Um caso ilustrativo e incomum o de Pierre Verger (1902 - 1996)."Tornou-se babala em Kto, por volta de 1950, e foi por essa poca que recebeu de seumestreOluwoonomedeFatumbi:'Aquelequenasceudenovo(pelagraade)If'." (SOARES, 1997: 7) Empregolivrementeosconceitosbakhtinianos.Olatinismotransgredincia usado rarssimas vezes por Bakhtin e, geralmente, como sinnimo de exotopia.Na leitura 2 Transgrediente um "termo derivado do transgredior latino, que significa, entre ouras coisas, ir alm, atravessar, exceder, ultrapassar, transgredir". [BAKHTIN, 2003c: 7] 3 Exotopia quer dizer "estar situado do lado de fora dos limites de". Ver nota 41 In (TEZZA, 2003: 294-295). 16 quefao,prefiroforarumaespecializaodosdoisconceitos.Oprocessodescrito,no entanto, permanece fiel ao pensamento de Bakhtin. SegundoLevSemeniovichVigotski(1896-1934),escreverdespertaro discursointeriordoleitor.Comoo autor o seu primeiro ledor, ele se torna tambm seu primeiro crtico.Por esse vis, ganha relevncia a distino que Vigotski estabelece entre o crtico-criadoreocrtico-leitor.Enquantoocrtico-criador(oucrtico-artista)superaa angstiadapalavraedainefabilidadedasemoes,oindizveleoinexprimveldeseu discursointerior,comoopoetanoentusiasmodacriao,ocrtico-leitorficasem palavras.Mas,seescreverdespertarodiscursointeriordoleitor,paraVigotski,"esse 'discursointerior',ocrtico-artistapodesuscit-lodiretamentecomsuacriao",aopasso que o crtico-leitor est limitado por um discurso exterior que ele no domina.Por isso, suas observaes no existem fora da leitura e sem ela. (VIGOTSKI, 1999a: XXII) Operandocomocrtico-leitor,esboamosestasnotasdeleituradeNelson Rodriguesquetmcomofiocondutorafunododinheiroedosexocomogestoresdo estrangeiro de si mesmo.Essa operao se d a partir do que possa ser reconhecido nos rastros do etos4 do autor-narrador.A referncia ao etos merece uma explicao.Etos est aqui como um operador textual indecidvel5.Sua indecibilidade tem para ns a virtude de iluminarocordoumbilicalentreopessoaleosocial.ComosinalizaVigotski,aarte socialemns.Elaumatcnicasocialdosentimento,uminstrumentodasociedade atravsdoqualincorporaaociclodavidasocialosaspectosmaisntimosepessoaisdo nosso ser. (VIGOTSK, 1999b: 315)6 4 Emprego o termo em seu duplo sentido de thos e thos: como conjunto dos costumes e hbitos fundamentais, no mbito do comportamento (instituies, afazeres etc.) e da cultura (valores, idias ou crenas), caractersticos de uma determinada coletividade, poca ou regio; mas tambm como padro relativamente constante de disposies morais, afetivas, comportamentais e intelectivas de um indivduo,.thos: do grego thos,ous'hbito, costume'.thos: do grego thos,ous'morada, covil habitual (falando-se de animais); maneira de ser habitualmente, carter'.Segundo Chantraine, desde o grego antigo, thos no se confunde de modo algum com thos. (HOUAISS) 5 Lembremos de passagem que o termo indecidvel vem de Kurt Gdel, um dos maiores matemticos do sculo XX, que em 1931 enunciou seu famoso teorema, segundo o qual existem proposies aritmticas tais que nem elas nem sua negao so demonstrveis na aritmtica adotada. (NASCIMENTO, 2004: 29) 6 A arte social em ns, e, se o seu efeito se processa em um indivduo isolado, isto no significa, de maneira nenhuma, que suas razes e essncia sejam individuais. muito ingnuo interpretar o social apenas 17 Paraabordarmosasubjetividadedoautor-narrador,recorremosaoconceitode campo,emBourdieu.Ocampointroduzumamediaoentreoindividualeosocial.Bourdieu enfatiza que o habitus mantm com o campo uma relao de solicitao mtua equeaillusiodeterminadadointeriorcombasenaspulsesqueimpelemao investimentonoobjeto,mastambmdoexterior,combaseemumuniversoparticularde objetossocialmenteoferecidosaoinvestimento.(BOURDIEU,1997:15-16)7Ditode outromodo,oestrangeirodesimesmo,somatizaseuestranhamento.Resultadessa somatizaoafebredocorpo,essedevircomplexonoqualaspulsesestoenformadas pela sociabilidade (afinal, os hbitos alimentares e o comportamento sexual do homem so formassociaisenonaturaisdesatisfazernecessidadesbiolgicas).Sobreessecorpo ensandecidooperaacoexistncia,nemsempreharmoniosa,entrenatureza,normase tentaes culturais subjacentes s interdies que aulam a ambio e a luxria humanas. Transitandoporessassendas,oautor-narradorfazdoenunciadoum phrmakon,umadroga:remdioouveneno,venenoeremdio.Pois,comoDerrida ensina, operando por seduo, o phrmakon faz sair dos rumos e das leis gerais, naturais ou habituais. (DERRIDA, 2005: 14)

como coletivo, como existncia de uma multiplicidade de pessoas.O social existe at onde h apenas um homem e as suas emoes pessoais.Por isto, quando a arte realiza a catarse e arrasta para esse fogo purificador as comoes mais ntimas e mais vitalmente importantes de uma alma individual, o seu efeito um efeito social.A questo no se d da maneira como representa a teoria do contgio, segundo a qual o sentimento que nasce em um indivduo contagia a todos, torna-se social; ocorre exatamente o contrrio.A refundio das emoes fora de ns realiza-se por fora de um sentimento social que foi objetivado, levado para fora de ns, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tornaram instrumentos da sociedade.A peculiaridade especialssima do homem, diferentemente do animal, consiste em que ele introduz e separa do seu corpo tanto o dispositivo da tcnica quanto o dispositivo do conhecimento cientfico, que se tornam instrumentos da sociedade.De igual maneira, a arte uma tcnica social do sentimento, um instrumento da sociedade atravs do qual incorpora ao ciclo da vida social os aspectos mais ntimos e pessoais do nosso ser.Seria mais correto dizer que o sentimento no se torna social mas, ao contrrio, torna-se pessoal, quando cada um de ns vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem com isto deixar de continuar social. (VIGOTSK, 1999b: 315) 7 evidente que as estruturas mentais no so o simples reflexo das estruturas sociais.O habitus mantm com o campo uma relao de solicitao mtua, e a illusio determinada do interior com base nas pulses que impelem ao investimento no objeto, mas tambm do exterior, com base em um universo particular de objetos socialmente oferecidos ao investimento.O espao dos possveis caractersticos de cada campo, religioso, poltico ou cientfico etc., funciona, em virtude do princpio de diviso (nomos) especfico que o caracteriza, como um conjunto estruturado de licitaes e de solicitaes e tambm de interditos; ele atua como lngua, como sistema de possibilidades e de impossibilidades de expresso que probe ou encoraja processos psquicos diferentes entre si e inteiramente diferentes do mundo cotidiano; por meio do sistema de satisfaes reguladas que ele prope, impe um regime particular ao desejo, convertido desse modo em illusio especfica. (BOURDIEU, 1997: 15-16) 18 Nelson na ps-modernidade Comosesabe,arelaodopresentecomopassadocomplexa.Bakhtin sublinha que o pensamento humano nunca reflete apenas o ser de um objeto que procura conhecer;comeste,elerefletetambmoserdosujeitocognoscente,oseusersocial concreto.(BAKHTIN,2004:22)Nessesentido,hqueseatentarparaacuriosa circunstncia da recepo de Nelson Rodrigues nos nossos dias: trata-se da releitura de um autor da modernidade pela ps-modernidade. AmodernidadeestgeralmenteassociadaSegundaRevoluoIndustrial;a ps-modernidade,TerceiraRevoluoIndustrial.8Aferidoporoutrodiapaso,ps-modernootempoquesucedeaoperodohistricoqueseabrecomaprimeiraguerramundial (1914-1918) com a vitria da revoluo bolchevique de 1917 e se encerra com adebacledoblocosovitico. NoBrasil,issofoipercebidocomoumaduplaqueda:ada Ditadura Militar e a do Muro de Berlim.9"Ps-modernidade" ensina Terry Eagleton "significa o fim da modernidade, no sentido daquelas grandes narrativas de razo, verdade, cincia, progresso e emancipao universalque,comoseacredita,caracterizamopensamentomodernoapartirdo 8 A Primeira Revoluo Industrial, como se sabe, foi o conjunto das transformaes socioeconmicas iniciadas por volta de 1760, na Inglaterra (e mais tarde nos outros pases), e caracterizadas especialmente pela substituio da mo-de-obra manual pela tecnologia (tear mecnico e mquina a vapor, a princpio), seguida da formao de grandes conglomerados industriais. A Segunda Revoluo Industrial foi o conjunto das transformaes socioeconmicas iniciadas por volta de 1870 com a industrializao de Frana, Alemanha, Itlia, EUA e Japo, caracterizadas especialmente pelo desenvolvimento de novas fontes de energia (eletricidade e petrleo), pela substituio do ferro pelo ao e pelo surgimento de novas mquinas, ferramentas e produtos qumicos (como o plstico). Entre 1909 quando Henry Ford criou a linha de montagem e inaugurou a produo em srie e o final do sculo XX, quase todas as indstrias se mecanizaram e a automao se estendeu a todos os setores fabris.A Terceira Revoluo Industrial o conjunto das transformaes socioeconmicas desencadeadas a partir da segunda metade do sculo XX, com o surgimento de complexos industriais e empresas multinacionais, o desenvolvimento das indstrias qumica e eletrnica, os avanos da automao, da informtica e da engenharia gentica, e respectiva incorporao ao processo produtivo, que passou a depender cada vez mais de alta tecnologia e de mo-de-obra especializada.9 Num comentrio de orelha de livro, Moacyr Scliar aponta o curioso e desconcertante clima que se apossou do pas, aps a dupla queda, a do comunismo e a da ditadura militar. (BRAGA, 1996)19 Iluminismo."(EAGLETON,2003:316)Naperspectivaps-moderna,essasiluses,"ao fazeremflutuarideaisimpossveisdiantedenossosolhos,nosafastamdetodasas mudanaspolticasmodestas,pormeficazes,quetemosreaiscondiesdecriar" (EAGLETON, 2003: 316-317).E mais: para o ps-moderno,averdadeoprodutodainterpretao,osfatossoconstruesdodiscurso,a objetividadeapenasaquiloquequalquerinterpretaoquestionveldascoisas tenhaconseguidoimpor,eosujeitohumanoumafico,tantoquantoa realidadequecontemplaumaentidadedifusaeautodivididaquecarecede qualquer natureza ou essncia fixa. (EAGLETON, 2003: 317-318). O ps-modernismo a cultura da era ps-moderna.Eagleton caracteriza a obra dearteps-modernatpicacomoarbitrria,ecltica,hbrida,descentralizada,fluidae descontnua;dizqueelalembraopastiche10.(EAGLETON,2003:318)Aarteps-moderna rejeita a profundidade metafsica e envereda pela superficialidade, pela jocosidade e pela inafetividade.Trata-se de uma arte de prazeres, superfcies e intensidades fugazes. Desconfia das verdades e das certezas.Sua forma irnica; sua epistemologia, relativista e ctica.Rejeita basear-se em referentes a uma realidade externa a si mesma.Por isso, s se reconhecenoplanoformaledalinguagem.Proclamasuasprpriasficescomosendo infundadasegratuitas.Comisso,postulaumaespciedeautenticidadenegativa, alardeando sua irnica conscincia desse fato e pervertidamente chamando ateno para seuprpriostatusdeartifcioconstrudo.Descrentedasidentidadessingularesedas origensabsolutas,chamaatenoparasuaprprianaturezaintertextual,suareciclagem pardica de outras obras que, por sua vez, nada mais so que o resultado de tal reciclagem. (EAGLETON,2003,p.318)Todavia,omaiscaractersticodops-modernismo,para TerryEagleton,que,aculturaps-moderna,avessaalimitesecategoriasfixos, desconstriatradicionaldistinoentre'grandearte'e'artepopular',aoconstruir artefatosautoconscientementepopulistasoucomuns,ouqueseoferecemcomo mercadorias para o consumo enquanto fonte de prazer". (EAGLETON, 2003: 319) 10 O mesmo que pasticho: imitao servil de obra literria ou artstica.Do francs. pastiche (1719) 'reproduo de um quadro'; (1787) por extenso, 'obra em que o autor imita o estilo de outrem (na rea literria)'; (1935) 'pera em que o compositor reuniu trechos de msica de diferentes obras, trabalhando-as e ajustando-as a um novo esquema'.Emprstimo ao italiano pasticcio (sc. XVII) 'rascunho'; (1835) 'obra teatral ou pea instrumental escrita com a colaborao de diversos compositores'; e este do latim vulgar *pastcium. (HOUAISS) 20 TerryEagletoncolocaquestesinteressantes.Aps-modernidadeseriaa filosofia apropriada ao nosso tempo?Ou seria a viso de mundo de um exausto grupo de ex-intelectuaisocidentaisrevolucionriosque,comtpicaarrognciaintelectual, projetaram-nasobreahistriacontemporneacomoumtodo?(EAGLETON,2003:319-320) Ouainda,vistoporoutrongulo,comoacreditaFredericJameson,estaramos diantedaculturadocapitaltardioapenetraofinaldobemdeconsumonacultura?Ou ser que se trata, como insistem seus expoentes mais radicais, de um golpe subversivo emtodasaselites,hierarquias,grandesnarrativaseverdadesimutveis.(EAGLETON, 2003, p. 320) Uma literatura que semeia incertezas?Qual a funo das incertezas semeadas?Desestabilizar o pensamento nico ou diluir toda crtica?Seja como for, embora denuncie "asilusesdops-modernismo"(EAGLETON,1998),TerryEagletonreconheceque"a discussocertamentetercontinuidade,sobretudoporqueops-modernismoamais vigorosadetodasasteorias,comrazesnumconjuntoconcretodeprticaseinstituies sociais".Comefeito,nosepodeignorar"oconsumismo,osmeiosdecomunicaode massa, a poltica estetizada, a diferena sexual". (EAGLETON, 2003: 320)HaroldodeCampospropsoconceitodeps-utpico(CAMPOS,1997)para darcontadasuspenso(senoexcluso)doprincpio-esperana(conceitodeErnst Bloch)11,quesustentaraoimaginriomodernistaealimentaraseucartereminentemente crtico. Arecepops-utpicadeNelsonRodriguestalveztendaaumcronotopo12 condescendente com o reacionarismo de suas crnicas ou, pelo menos, pouco crtico delas comoacontecimentodiscursivo.Mastambmpodeserquearecepops-utpicatenha 11 A este sonhar-para-a-frente acrescente-se assim mais um sinal.O presente livro no trata de outra coisa que no o esperar para alm do dia que a est.O tema das cinco partes desta obra (escrita entre 1938 e 1947, revisada em 1953 e 1959) so os sonhos de uma vida melhor. (BLOCH, 2005, p. 21) 12 Cronotopo um termo formado pela justaposio do antepositivo crono- com o pospositivo -topo. CRONO- vem do grego khrnos,ou 'tempo', ocorre em compostos da nomenclatura cientfica do sculo XIX em diante. -TOPO vem do grego tpos,ou 'lugar', em uns poucos vocbulos da terminologia cientfica do sculo XX. [Houaiss] 21 apenas reforado o que Carlos Nelson Coutinho generaliza como uma decorrncia da via prussiananaformaosocialbrasileira:aconciliaosocialepolticaencontraum reflexoideolgiconatendnciadopensamentobrasileiroaoecletismo,ouseja, conciliaoigualmentenoplanodasidias.(COUTINHO, 1980:75)Aesserespeito, ensaio uma releitura da crnica de Nelson que dissidia desse consenso reinante. Odissdio,todavia,nodevenosconduziraumaposioreducionista,auma operaodepurorechaodooutro.LeandroKonderalertaqueaideologiacriticandoa ideologia pode se tornar mais ideolgica do que a ideologia criticada.Isso cabe como uma luva para a crtica reacionria feita pela crnica de Nelson Rodrigues, mas tambm para a crticadeesquerdasuacrnica.precisocautela,sobretudoporqueumintelectualde direita(...)podeconstruirumconhecimentomaisaberto,maisflexvel,doqueum pensamentodeesquerdaaprisionadoporfrmulasdogmticas.(KONDER,2008:228)Com essa preocupao, procuramos evitar tanto as frmulas dogmticas como a estreiteza sectria na crtica crnica de Nelson Rodrigues.Penso, no entanto, que a histria da moderna teoria literria parte da histria poltica e ideolgica de nossa poca e que a teoria literria est indissoluvelmente ligada screnaspolticaseaosvaloresideolgicos.Nessesentido,asteoriasliterriasno devem ser censuradas por serem polticas, mas sim por serem, em seu conjunto, disfarada ouinconscientementepolticas.(EAGLETON,2003:268)Comcerteza,anossauma crtica assumidamente poltica. Nelson e seus cronotopos Bakhtin,influenciadopelateoriadapercepodofisilogorussoA.A. Ukhtmski13,cunhouotermocronotopoparadarcontadaquestoespaciotemporalcomo 13 Ver CLARK, 1998:98, 125, 199, 297 22 uma unicidade indissocivel que encapsula um centro irradiador de juzos de valor.Pode-sepensartempocomoequivalentedehistrico;eespao,desocial.Nessevis,tempo-espaoequivaleahistrico-social.Masoespaciotemporaltambmpodeserpensado comoumarefraodohistrico-socialinternalizado,comoumtempo-espaointerior, psicolgico.Ou, dito em outros termos, como o ponto de partida de um mimena14. Ocronotopodeterminaaunidadeartsticadeumaobraliterrianoqueeladiz respeitorealidadeefetiva.Porisso,numaobra,ocronotoposemprecontm um elemento valioso que s pode ser isolado do conjunto do cronotopo literrio apenasnumaanliseabstrata.Emarteeliteratura,todasasdefiniesespao-temporaissoinseparveisumasdasoutrasesosempretingidasdeummatiz emocional.evidentequeumareflexoabstratapodeinterpretarotempoeo espao separadamente e afastar-se do seu momento de valor emocional.Mas a contemplaoartsticaviva(ela,naturalmente,tambminterpretadapor completo, mas no abstrata) no divide nada e no se afasta de nada.Ela abarca ocronotopoemtodaasuaintegridadeeplenitude.Aarteealiteraturaesto impregnadosporvalorescronotpicosdediversosgrausedimenses.Cada momento,cadaelementodestacadodeumaobradeartesoestesvalores. (BAKHTIN, 2002: 349)Asdiferentesperspectivasaxiolgicasdoscronotoposexplicamporque,por exemplo, colares que so objetos sagrados para os crentes das religies afro-brasileiras, no sejam mais do que adornos sem significao especial para outros brasileiros. O cronotopo um ponto de observao nico, irrepetvel no tempo, a partir do qual o sujeito observa o seu objeto.So duas as conseqncias do cronotopo.A primeira queo"horizonteprprio"do"eucognoscente"varianotempo,implicandoum conhecimentoinacabado,umaconscinciaquesempreumvir-a-ser.Aoutraqueos cronotoposdedoissujeitosqueobservemomesmoobjetonosointercambiveis:eles nunca partilharo o mesmo horizonte. Extrapolandoparaosgrandesgruposhumanosqueconstituemasclassesdas formaessociaishistoricamentedeterminadas,teremosqueospontosdevistadeclasse estaro sempre se constituindo, sero apenas parcialmente superpostos e nunca coincidiro (j que divergentes em suas perpectivas axiolgicas). 14 Para uma discusso sobre os conceitos de mimese e mimena, ver: LIMA, 2003 e 2000. 23 Se tomarmos o conceito de ideologia15 como uma viso de mundo que justifica e refora as relaes sociais do modo de produo, teremos que admitir com Barthes que "a ideologiaspodeserdominante"16,sempreaideologiadaclassedominanteemuma formaosocialhistoricamentedeterminada.Masamaneiraespecficacomocadaclasse introjetaaideologiaestmodeladapelocronotopo.Esseelementodiversificadorda formaoideolgicaintroduzaautonomiarelativaentreoncleoideolgicodaclasse dominante,homogneo,eaperiferia,heterognea,compostapelasvariantesideolgicas dasclassessubalternas,abrindoumabrechaparaainstauraodacriseideolgica,do mesmomodoqueaautonomiarelativadasesferasdacirculaoemrelaoesferada produo de mercadorias fornece a ocasio para que a crise econmica se instale. Essas consideraes querem iluminar a leitura do cronotopo literrio de Nelson. NelsonRodrigues(1912-1980)estria,emteatro,em1942,comapeaA mulher sem pecado.Mas com Vestido de noiva, de 1943, que ele inaugura o modernismo no teatro brasileiro.Desde esse marco at 1978, com A serpente, ele imprimir uma nova caraaonossopalco.Anti-NelsonRodrigues,de1973,umadesuasltimaspeas. Cumpre situar a sua trajetria no perodo. De1943a1965,operodomaisprodutivodoNelsonteatrlogo,oBrasil passouporgrandesmudanas.Transformou-sedeumpasagrrio-exportador,comuma economiadependenteemlargaescaladamonoculturadocaf,paraumpasurbano-industrial.No plano poltico, saiu, em 1945, da ditadura do Estado Novo, viveu 19 anos de democracialiberale,comogolpemilitarde1964,ingressounumaditaduramilitar.Em 15 O filsofo francs Destutt de Tracy (1754 - 1836) props o termo ideologia para designar a disciplina cientfica que, nos marcos do materialismo iluminista, investiga a origem das idias humanas como percepes sensoriais do mundo externo. No marxismo, ideologia, em sentido restrito, o conjunto de idias presentes nos mbitos torico, cultural e institucional das sociedades que se caracteriza por ignorar a sua origem material nas necessidades e interesses inerentes s relaes econmicas de produo, e, portanto, termina por beneficiar as classes sociais dominantes; em sentido amplo, a totalidade das formas de conscincia social, o que abrange o sistema de idias que legitima o poder econmico da classe dominante (ideologia burguesa) e o conjunto de idias que expressa os interesses revolucionrios da classe dominada (ideologia proletria ou socialista). Ver CHAU, 1983.Ver tambmMARX, 2005.Para um discusso interessante sobre o conceito de ideologia, ver EAGLETON, 1997. 16 "Diz-se correntemente: 'ideologia dominante'.Essa expresso incongruente.Pois a ideologia o qu? precisamente a idia enquanto ela domina [...]."(BARTHES, 2002: 41)Ver tambm CHARAUDEAU, 2004: 267-269. 24 1954,ocorreosuicdiodeVargas.Em1958,aCopadoMundonossa.Em1960, Juscelino inaugura Braslia e o Rio de Janeiro perde a condio de capital federal. Noplanointernacional,osAliadossaramvitoriososdaSegundaGuerra Mundial, em seguida comeou a Guerra Fria, e os Estados Unidos fracassam na Guerra da Coria e depois na Guerra do Vietn.Na Americana Latina, h duas revolues populares: uma, em 1952, na Bolvia, foi malsucedida; a outra, em 1959, em Cuba, saiu vitoriosa.Nesseprocesso,asociedadevaiperdendoaingenuidade.Emaisdoqueas referncias,naverdade,perdeacompostura.EssaadennciaqueaobradeNelson Rodrigues faz de um tempo no qual o empenho individual por posse e ascenso social passa porcimadetudoomais:otabudavirgindade,ainterdiodoadultrio,aamizade,a lealdade...Incremento da populao urbana, expanso miditica, deslocamento do eixo da influnciaeuropiaparaaestadunidense,oconjuntodasalteraesnascondiesde existnciacriamnovoshbitosquemudamoscostumes,subvertemosvalores,geram incertezas,provocamumestadogeraldeprecariedade,instauramainseguranapessoal.Nessequadro,afloramasfraquezashumanas,ascanalhicesmaissrdidaseos comportamentos venais.Tudo tem seu preo nessa poca de transio que troca o Deus do cu pelos deuses do mercado. De Nelson Rodrigues, aqui nos importa principalmente o escritor (diferente do indivduo privado), sua persona literria. Uma persona complexa, que, em sua obra teatral, transitadaclavevanguardistadesuaspeaspsicolgicasAmulhersempecado(1941), Vestidodenoiva(1943),Valsano6(1951),Viva,pormhonesta(1957),Anti-Nelson Rodrigues(1973)emticaslbumdefamlia(1945),Anjonegro(1946),Dorotia (1949),Senhoradosafogados(1947)atorealismodesuastragdiascariocasA falecida(1953),Todanudezsercastigada(1956),Perdoa-mepormetrares(1957),Os setegatinhos(1958),Bocadeouro(1959),Obeijonoasfalto(1961),OttoLaraResende ou Bonitinha, mas ordinria (1962), A serpente (1978) ; vale dizer, uma persona literria comidasevindasdaestticadaindeterminaoespaciotemporaldeVestidodenoivaao feixe axiolgico do subrbio carioca de A falecida. 25 Essegrandeescritor,apardesuaobrateatral,destacou-secomoumdos grandescronistadojornalismobrasileiro.EmsuascrnicasNelsoncrioutiposcaricatos inesquecveiscomooPalhares,ocanalha,agr-finadenarinasdedefunto,a estagiria de calcanhar sujo, a freira de minissaia, o padre de passeata e outros tantos de inclinao nitidamente satrica.Esse trao satrico da crnica de Nelson Rodrigues nos evoca consideraes formais e ideolgicas. Dopontodevistaformal,astirarodriguesianaremetesuasrazesao"campo dosrio-cmico"daAntigidadeClssica.ComodiriaBakhtin,"ognerosempre conservaoselementosimorredourosdaarchaica",ouseja,"umaarchaicacom capacidade de renovar-se". (BAKHTIN, 2005: 106)Ele esclarece que, Neste[ocampodosrio-cmico],osantigosincluamosmimosdeSfron,o 'dilogodeScrates'(comogneroespecfico),avastaliteraturadossimpsios (tambm gnero especfico), a primeira Memorialstica (on de Quio, Crtias), os panfletos, toda a poesia buclica, a 'stira menipia' (como gnero especfico), e algunsoutrosgneros.Dificilmentepoderiamossituaroslimitesprecisose estveis desse campo do srio-cmico.Mas os antigos percebiam nitidamente a originalidadeessencialdessecampoeocolocavamemoposioaosgneros srios como a epopia, a tragdia, a histria, a retrica clssica, etc. (BAKHTIN, 2005: 106-107) NelsonRodriguescompartilhaessaarchaicacomSergioPorto,oinsupervel Stanislaw Ponte Preta.Como bem sabido, alm do seu fabuloso escrete das certinhas do LalauedoFEBEAP,oengraadssimofestivaldebesteirasqueassolouopasps-64, Stanislaw lapidou, assim como Nelson Rodrigues, tipos inesquecveis, como por exemplo, a impossvel Tia Zulmira, que testemunhou os grandes acontecimentos histricos do sculo XXe,quandoesteveemMoscoulogoemseguidavitriadarevoluobolchevique, conheceuTroskyeStalin,profetizandoqueamboseramtocalhordasqueacabariam brigando. Dopontodevistaideolgico,comosepodeaferir,SergioPortoexerceuo espritocrticoemrelaoesquerdasemcontudodartrguaditadura.Aatitudede Nelsontodaoutra:acrnicadeNelsonsatirizaaesquerdaeosliberaisqueseopem ditadura.Isso nos obriga a situar a funo da imprensa brasileira no golpe de 1964.No se podeocultarqueagrandeimprensabrasileirateveumpapeldedestaquenacriaodo climadehisteriagolpista,napreparaodaopiniopblicaparaaquebradalegalidade democrtica. No vou me estender em citaes. Para ilustrar o que digo, basta reproduzir os 26 editoriais do JB e de O Globo, repercutindo o golpe militar. No caso, os textos falam pelo contexto. OeditorialdoJB,querigorosamentenodiznadaalmdebaboseiras,deixa tudo bem claro: DesdeontemseinstalounoPasaverdadeiralegalidade...Legalidadequeo caudilho no quis preservar, violando-a no que de mais fundamental ela tem. (...) Alegalidadeestconoscoenocomocaudilhoaliadodos comunistas.(...)Golpe?crimespunvelpeladeposiopuraesimplesdo Presidente.AtentarcontraaFederaocrimedelesa-ptria.Aquiacusamoso Sr.JooGoulartdecrimedelesa-ptria.Jogou-nosnalutafratricida,desordem social e corrupo generalizada. [JB, 01/04/1964] (FUNDAO, 2008) OeditorialdeOGlobonoficaparatrsemseuempenhonaderrocadada ordem democrtica: Vive a Nao dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas (...) para salvaroqueessencial:ademocracia,aleieaordem.Graasdecisoeao herosmodasForasArmadas(...)oBrasillivrou-sedoGovernoirresponsvel, queinsistiaemarrast-lopararumoscontrriossuavocaoetradies.(...) Poderemos,desdehoje,encararofuturoconfiantemente(...)Salvosda comunizaoquecelerementesepreparava,osbrasileirosdevemagradeceraos bravosmilitares,queosprotegeramdeseusinimigos.(...)Aliaram-seosmais ilustres lderes polticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Foras Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.(...) A esses lderes civis devemos, igualmente, externar a gratido de nosso povo.(...) Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus lderes e comoschefesmilitares,afirmaremocontrrio,estaromentindo,estaro,como sempre,procurandoengodarasmassastrabalhadoras,quenolhesdevemdar ouvidos (...). [O Globo, 02/04/1964](FUNDAO, 2008) Textosgolpistas,queproclamamemaltoebomsomocompromisso antidemocrticadagrandeimprensabrasileira.Corroboramacoernciadagrande imprensanoespritodogolpismoquesemprefoiaseivadaqualsenutriuojornalismo empresarial neste pas. Fica, no entanto, uma perplexidade: mas, ento, no havia censura imprensa durante a ditadura militar? Quem responde o jornalista Mino Carta: Em cima dadestruiodamemria,algunsjornaisinventamquesofreramcensura.OJornaldo Brasil nunca foi censurado. A Folha de So Paulo nunca foi censurada. E Mino Carta diz mais:AFolha deSoPaulo nosnunca foicensurada,comoemprestavaa suaC-14 [carrotipoperua,usadoparatransportarojornal]pararecolhertorturadosou pessoas que iriam ser torturadas na Oban [Operao Bandeirante]. Isso est mais doqueprovado.umadasobras-primasdaFolha,porqueosenhorCaldeira 27 [Carlos Caldeira Filho], que era scio do senhor Frias [Octavio Frias de Oliveira], tinharelaesmuitontimascomosmilitares.Ehojevocvessesannciosda Folha-ojornaldessemeninoidiotachamadoOtavinho[OtavioFriasFilho]- esses anncios contam de um jeito que parece que a Folha, nos anos de chumbo, sofreumuito,masnosofreunada.Quandohouveumamnimapresso,osr. FriasafastouoCludioAbramodadireodojornal.Digoquefoia"mnima presso" porque o sr. Frias estava envolvido na pior das candidaturas possveis, na sucesso do general Geisel. A Folha estava envolvida com o pior, apoiava o Frota [generalSlvioFrota,ministrodoExrcitonogovernoGeisel].OClaudio Abramo foi afastado por isso . O jornal O Globo tambm no foi censurado. Isso umapiada.[EntrevistacomMinoCarta.porAdrianaSouzaSilva,daRedao AOL, abril de 2004](FUNDAO, 2008) Nelson Rodrigues, com o imenso prestgio literrio que j granjeara como autor teatral,avultaentreoscronistasdecombatedessaimprensa,comoumpanfletriocujo discurso ecoa com grande eficincia, que faz a cabea de muita gente aps a implantao da ditaduramilitar.E,dessepontodevista,talveznosestejamosdefrontandocomdois cronotopos:odesuascrnicaseodoseuteatro.Nacrnicasobrelevaojornalista,no teatro o artista, embora Nelson seja um autor bifronte no qual o jornalista est influenciado pelo artista e vice-versa.AesserespeitovaleconsideraroqueWalterBenjaminidentificacomouma nova forma de comunicao:(...) com a consolidao da burguesia da qual a imprensa, no alto capitalismo, um dos instrumentos mais importantes destacou-se uma forma de comunicao que,pormaisantigasquefossemsuasorigens,nuncahaviainfluenciado decisivamente a forma pica.Agora ele exerce essa influncia.Ela to estranha narrativacomooromance,masmaisameaadorae,deresto,provocauma crisenoprprioromance.Essanovaformadecomunicaoainformao. (BENJAMIN, 1994: 202) Benjamin ilustra com um exemplo: Villemessant,ofundadordoFigaro,caracterizouaessnciadainformaocom umafrmulafamosa.Parameusleitores,costumavadizer,oincndionum stodoQartierLatinmaisimportantequeumarevoluoemMadri.Essa frmulalapidarmostraclaramentequeosaberquevemdelongeencontrahoje menos ouvintes que a informao sobre acontecimentos prximos. (BENJAMIN, 1994: 202) Benjaminsublinhaqueainformaoaspiraaumaverificaoimediata. (BENJAMIN,1994:203)equeelastemvalornomomentoemquenova (BENJAMIN, 1994: 204) 28 Issomepareceparticularmentevlidoparaocronotopodascrnicaspolticas de Nelson Rodrigues, indicando no s o carter contingente delas enquanto acontecimento discursivo,mastambmapressuposiodeumleitorhipotticoaserconvencidocom vistas luta poltica que est em curso.Quando escreve peas teatrais, Nelson talvez no mirenaplatiadeteatrohabitual,masnopblicoculto,nacrtica,aquecapazdelhe conferirlegitimidadenaesferadaarte.Nessepblico,nodesprezvelainflunciado pensamentodeesquerda.Nelson,quandoescreve,levariaessedadoemconta.Jna crnicapoltica,elebuscariarealizarodiscursoeficazjuntoaumpblicomenos informado,maispreconceituoso,maisinfluenciadopeladoxa,dementalidadedeclasse mdia,emgrandepartesuburbano,queolhacomespantoeressentimentoparaazonasul dosgr-finos.Emcadacaso,conscientementeouno,eleadequariaseudiscursoao pblico correspondente. Recorte Falta explicar o recorte que balizou a pesquisa.Os tpicos abordados foram a morte,onegro,amulher,oanticomunismoeaesttica.Ficaentoaquesto: porque esses e no Nelson e os heris da ptria ou Nelson e o homem do povo?Est a umaboaperguntaparaaqualeuno teria uma resposta pronta.Creio que essas escolhas so em grande parte aleatrias, fortuitas. Justificandoporqueescolheraosertomineiroparaambientarsuashistrias, Guimares Rosa deitou uma explicao que corrobora o que escrevi acima.: (...)eutinhadeescolheroterrenoondelocalizarasminhashistrias.Podiaser Barbacena,BeloHorizonte,oRio,aChina,oarquiplagodeNeo-Baratria,o espaoastral,ou,mesmo,opedaodeMinasGeraisqueeramaismeu.Efoio que preferi. Porque tinha muitas saudades de l. (ROSA, s/d, 8) NodeixadesercuriosaessaexplicaodeGuimaresRosa.Manifesta-sea uma atitude que sem dvida revela afinidades com a do artista ps-moderno, para quem a obradeartefortuita,esvaziadadas implicaesda histria e para as quais as marcaes subjetivasnosomuitopertinentes.Ocorre,noentanto,quesombradofortuitotalvez 29 vicejemdeterminaesdisfaradassobumemaranhadodemediaesdifceisde vislumbrar.Escolhitpicosqueremetemaquestesuniversais.Talveznotenhasido proposital, mas um critrio.Em todo caso, so tpicos relevantes para a crtica ideolgica das crnicas de Nelson Rodrigues. So tpicos em torno dos quais desenvolveram-se lutas ediscussesnoprocessodemodernizaodasociedadebrasileira(questesraciais,de gnero e do modelo poltico a ser adotado para conduzir esse processo).Da serem tambm estratgicosnascrnicasdeNelson,quetinhamapretensodeformaropinioedefender posiesemdiferentescampos.Portanto,provvelquenosetratedeumaescolhato desinteressada ou gratuita como possa parecer primeira vista.Talvez ela se encaixe numa perspectivadeanlise(ouseja,numhorizonteprprio)queteceasuanecessidadeno interessepelasrelaesentreaproduoculturaleasvicissitudeshistricasdaformao social. Antes de encerrar esta introduo, talvez valha a pena ainda uma palavra sobre a formao ideolgica em que se situa a crnica de Nelson Rodrigues. Aformaosocial-brasileiratevesuagnesehistrico-socialnoperododas grandes navegaes, poca do predomnio do capital mercantil, de criao de um mercado mundial.O modo de produo que aqui se estabeleceu se fundava no trabalho escravo de mo-de-obradeslocadadafrica. Nesse modo de produo, a extrao de sobre-trabalho se baseava na coao extra-econmica, a comear pelo seqestro da mo-de-obra em terras africanas.Tratava-se, portanto, de um modo de produo no-capitalista, mas subsumido lgicadocapitalismoeuropeu17.Podemosiralmedizerquesetratavadeummodode produo pr-capitalista, perifrico, fadado em sua evoluo histrica a ser modificado por fora da atrao exercida pelo centro do sistema. Essatendnciaglobalizantedosistemacapitalista,queatudotransforma,foi apontada por Marx e Engels no Manifesto Comunista: 17 Um escravismo certamente peculiar, j que articulado no nvel internacional com o capitalismo, com suas exigncias mercantis e, portanto, capaz de importar um certo tipo de cultura (e de instituies) prprias do capitalismo liberal (...) (COUTINHO, 2005: 22) 30 Emlugardasantigasnecessidadessatisfeitaspelosprodutosnacionais,nascem novasnecessidades,quereclamamparasuasatisfaoprodutosderegiesmais longnquasedosclimasmaisdiversos.Emlugardoantigoisolamentodas naesquesebastavamasiprprias,desenvolve-seumtrficouniversal,uma interdependncia das naes.O mesmo acontece com a produo intelectual.A produointelectualdeumanaotorna-sepropriedadecomumdetodas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada dia mais impossveis, e das numerosasliteraturasnacionaiselocaisforma-seumaliteraturauniversal. (MARX, 2001: 55) Dessemodo,asubsunoformal(restritaesferadacirculao)domodode produo perifrico ao sistema capitalista europeu, tende subsuno real.Nesse sentido, Lnin,referindo-seaosuldosEstadosUnidos,observouqueassobrevivncias econmicas do escravismo no se distinguem absolutamente em nada das do feudalismo18 e que encontra-se a a passagem da estrutura escravista ou feudal, o que d no mesmo daagriculturaparaaestruturamercantilecapitalista19Cabesublinharquea indiferenciao apontada se limita transio da subsuno formal real, mas no equipara escravismoafeudalismocomopoderiasugerirumaleituraapressada.Aesserespeito, PerryAnderson,entreoutros,registraoestmuloaoaumentodaprodutividadeno feudalismo, em contraste com o bloqueio tecnolgico do escravismo. ( Apud COUTINHO, 1980: 66)E Carlos NelsonCoutinho, por sua vez,vai insistir na marca escravista sobre a estrutura de classes, dizendo que a degradao do trabalho manual, que muito mais intensa no escravismo que no feudalismo, opera no sentido de criar faixas mdias marginalizadas pelo sistema (tantonascidadescomonocampo),quespodemsereproduziratravsdo favor dos poderosos (COUTINHO, 1980: 67) A abordagem do modo de produo nos remete a uma questo de escala.Qual seriaaescalaapropriadaanlise?AComunadeParispoderiasugerirumaescala municipal.O Manifesto Comunista poderia estar sugerindo uma escala internacional.Ao falarmosdesubsunoformalereal,escolhemosoreconhecimentodoterrenonacional como decisivo. 18 (...) les survivances conomiques de lesclavagisme ne se distinguent absolument en rien de celles du fodalisme (...) (LENIN, 1960: 21) 19 Nous y trouvons, dune part, le passage de la structure esclavagiste ou fodale, ce qui revient au mme en loccurrence de lagriculture la structure marchande et capitaliste (...) (LNIN, 1960:106) 31 nesse reconhecimento da escala nacional que ganha relevncia a questo das idiasforadelugaroudaideologiadesegundograu.Comosesabe,RobertoSchwarz apontou as idias fora de lugar como uma caracterstica da formao ideolgica em nosso pas.Mostroucomoonossoliberalismoeraumaideologiadesegundograu,retrica, enquantoomecanismodofavoroperavaasrelaesentreaclassedominanteeaclasse mdia na zona de hegemonia da formao social brasileira, ao passo que a dominao com base no assujeitamento pela fora, tpico da escravido, prescindia da mediao ideolgica nas relaes de produo.Essaquestodaideologiadesegundograudemandaumaexplicao.Como observaCarlosNelsonCoutinho,noBrasil,mesmonapocadasubordinaoformal, (quandoomododeproduointernoaindanoeracapitalista),asclassesdominantesde nossaformaosocialencontravamsuasexpressesideolgicaseculturaisnaEuropa burguesa. (COUTINHO, 1980: 67) nesse sentido que se pode dizer que as idias estavam foradelugareconstituamumaideologiadesegundograu.porquenoencontravam correspondncia nas relaes de produo escravistas ento dominantes na formao social brasileira.Adverte-seaumaincongrunciaconstitutivadaformaoideolgica.Essa incongrunciaentreabasematerial(escravista)easuperestrutura(liberal)deixasuas marcas na formao ideolgica mesmo depois de efetuada a transio da subsuno formal paraasubsunorealdomododeproduointerno.Essaincongrunciapodefavorecer uma espcie de hipocrisia ou at mesmo de cinismo.Talvez fosse essa a razo pela qual a opiniodequenohavianadamaisparecidocomumconservadordoqueumliberalno governo se tornara corrente na apreciao sobre os gabinetes do Imprio. Carlos Nelson Coutinho esclarece que Com o incio da industrializao, ou, mais precisamente, com a transio do modo de produo interno fase propriamente capitalista (o que j se verifica tambm emcertossetoresdaagriculturanapocadaaboliodaescravatura,aindaque issoseddemodoprussiano,ouseja,comaconservaodetraospr-capitalistas),asidiasimportadasvocadavezmaisentrandoemseulugar, tornando-semaisaderentessrealidades eaosinteressesdeclassequetentam expressar. Eissoporqueaestruturadeclassesdasociedadebrasileiravaise tornandoessencialmenteanlogaestruturadeclassesdasociedadecapitalista emgeral. Comisso,ascontradiesideolgicasquemarcamavidacultural brasileira do sculo XX aproximam-se cada vez mais ainda que sem jamais se igualareminteiramentedascontradiesideolgicasprpriasdacultura universal do perodo. (COUTINHO, 1980: ) 32 NelsonRodriguesnopadecedenenhumaambigidadeideolgica.Eleno disfaraoseuconservadorismosobumafachadaliberal;aocontrrio,umconservador assumido.Nessesentido,eleviveosseusvalorescomautenticidade.E,emsuaarte, criticaaincongrunciaideolgica,ahipocrisiaeocinismoprpriosdamentalidadede classe mdia entre ns. CarlosNelsonCoutinhoobservaque,nosculoXIX,porumlado,o liberalismo d expresso a interesses efetivos das camadas dominantes.Ele enumera entre essesinteresses:livre-cambismonocomrciointernacional,clculoracionalna comercializao dos produtos de exportao, garantia da igualdade jurdico-formal entre os membrosdaoligarquiaruralecomercial,etc.(COUTINHO,1980:69)Aideologia liberal convinha tambm camada intermediria dos homens livres mas no proprietrios, pois estes tinham no liberalismo a proclamao de seus direitos formais igualdade com ossenhoresesuadiferenaemfacedosescravos.Odesajusteseapresentadiantedo fenmenodaescravido,dadesigualdadeestabelecidacomofatonatural,dotrabalho fundadosobreacoaoextra-econmica.Essedesajustecontaminatambmarelao entre os grandes proprietrios e os homens livres sem propriedade:O favor, que marca tal relacionamento, consagra vnculos de dependncia pessoal, de tipo pr-capitalista; , por conseguinte,ummododerelacionamentoautoritrio(mesmoquandopaternalista)e antiliberal.(COUTINHO,1980:70).Eofavorconstituiumamarcaespecficada mentalidade de classe mdia na formao social brasileira. Aidiadeclassemdia,emqualquerformaosocial,implicauma conceituaotopolgica:todaclassemdiasitua-seentreosdecimaeosdebaixo.Comosesabe,anoodeclassemdia(middleclass)vemdaliteraturapolticainglesa paradesignarumaclasseque,numaestruturasocialhierarquizada,ocupaumaposio intermediriaentreaclassealta(hightclass)eaclassetrabalhadora(workingclass);vale dizer:aburguesiaascendente,quesesituariahierarquicamenteentreaaristocraciaeo proletariado,nosprimrdiosdarevoluoindustrialinglesa.Essaorigemdeixouoseu rastronaInglaterracontemporneaeparticularmentevisveleminstituiescomoa Cmara dos Lordes e a Coroa. 33 Aclassemdiabrasileiratemoutragnesehistrica:seusfundamentos remontam ao nosso passado colonial-escravista. Esquematizando,pode-sedizerqueacolonizaoproduziu,combaseno monopliodaterra,trsclassesdepopulao:olatifundirio,oescravoeo 'homemlivre',naverdadedependente.[...]Nemproprietriosnemproletrios, seu acesso vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto,deumgrande.[...]Ofavor,portanto,omecanismoatravsdoqualse reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo tambm outra, a dos quetm.Note-seaindaqueentreestasduasclassesqueiraconteceravida ideolgica,regida,emconseqncia,porestemesmomecanismo.Assim,com milformasenomes,ofavoratravessoueafetounoconjuntoaexistncia nacional,ressalvadasemprearelaoprodutivadebase,estaasseguradapela fora.[...] O favor a nossa mediao quase universal e sendo mais simptico doqueonexoescravista,aoutrarelaoqueacolnianoslegara, compreensvelqueosescritorestenhambaseadoneleasuainterpretaodo Brasil, involuntariamente disfarando a violncia, que sempre reinou na esfera da produo. (SCHWARZ, 1977, p. 16) D para perceber a abissal distncia que medeia entre a nossa classe mdia e a middleclassdosingleses.Sobreessaquesto,valesublinharqueanossaclassemdia constitui um entre-lugar que se cristaliza; ao passo que a middle class deles, ao se constituir como classe dominante, supera o seu.Mas, o mais decisivo, notar que a mentalidade de classe mdia, burocrtica, tributria do favor dos poderosos e vocacionada para o emprego pblico,toimportantenaformaoideolgicabrasileira,nemdelongeseassemelha mentalidadeburguesa,valedizer,empreendedora,capitalista,voltadaparaaorganizao dos fatores de produo, da middle class inglesa.Talvezsejaconvenienteesclareceralgunspontosdemodoadissiparpossveis mal-entendidos.Quando nos referimos constituio de uma mentalidade de classe mdia quecimentacamadasintermediriascujagnesehistrico-socialestenraizadano escravismo,noestamosapontandoparaaformaodaburguesiabrasileiraoudeuma pequena burguesia assentada na pequena produo mercantil, nem mesmo para um tipo de classefundamentaldequalquermodo de produo.A nossa mentalidade de classe mdia quevicejanascamadasintermediriasforjadasnaesferadofavor,tpicadeumsetor socialqueseconstituidefrenteparaoconsumoedecostasparaaproduodebens materiais. NelsonRodrigues,comoboapartedaintelectualidadebrasileiraqueno dispunha de fonte de renda prpria, caudatrio dessa mentalidade de classe mdia forjada 34 na esfera do favor.Vale sublinhar a propsito que s com a Constituio de 1988 se passou aexigirconcursopblicoparaingressarnoserviopblico,queeraomeiode sobrevivnciademuitosintelectuais(oprprioNelsonRodrigues,noconseguindoum empregopblicoparasi,reprovadonoexamedesade,conseguiu-oparaasuaprimeira mulher).Talvez,porisso,emborafascinadopelacompetnciadoburgusexitoso,ele refugue a moral burguesa quando a engrenagem do dinheiro e do interesse 'racional' faz o seutrabalho,annimoedeterminante,eimprimeoselocontemporneo.Insuportvel, paraNelson,soasconseqncias,naperspectivadoindividualismoburgus,da generalizadaprecednciadovalor-de-trocasobreovalor-de-usotambmchamada alienaoaqualsetransformaempedradetoqueparaainterpretaodostempos. (SCHWARZ, 1977, p. 41) 35 NELSON RODRIGUES E A MORTE NacrnicaAdevoluodaalmahumana,de5demaiode1973,Nelson Rodrigues evoca a idia da morte para abjurar o marxismo.. No estou sozinho no meu horror a Marx e repito: tenho a companhia do Otto Lara Resende [...] Em nossas conversas no terreno baldio, o Otto faz a Marx a seguinte objeo: a morte no citada em seus escritos. como se a morte no existisse. (Rodrigues, 1995: 282) NelsonRodrigueseraum obcecado pela morte, como o velho conservador Dr. Pereira, personagem de Antonio Tabucchi em Afirma Pereira. H um dilogo entre o Dr. Pereira e o jovem esquerdista Monteiro Rossi, outro personagem do livro, que revelador doetosesquerdizante..Aoserinterpeladoseestavainteressadonamorte,ojovem esquerdista acha graa e responde que est interessado na vida:Monteiro Rossi sorriu escancarado, e isso deixou-o constrangido, afirma Pereira.Mas o que isso, doutor Pereira, exclamou Monteiro Rossi em voz alta, eu estou interessadonavida.Edepoiscontinuouemvozmaisbaixa:oua,doutor Pereira, estou farto da morte, h dois anos morre minha me, que era portuguesa e eraprofessora,morreudeumdiaparaooutro,porcausadeumaneurisma cerebral, palavra complicada para dizer que uma veia estoura, enfim de um troo; o ano passado morreu meu pai, que era italiano e que trabalhava como engenheiro navalnasdocasdosportosdeLisboa,deixou-mealgo,masestealgojacabou, ainda tenho uma av que mora na Itlia, mas eu no a vejo desde que tinha doze anos e no tenho vontade de ir Itlia, parece-me que a situao l seja ainda pior doqueanossa,estoufartodamorte,doutorPereira,desculpe-meafranqueza, mas, afinal, por que esta pergunta?(TABUCCHI, 1995: 19) 36 A seu modo e at certo ponto, o marxista Leandro Konder, surpreendentemente, sobre essa questo, faz coro com Nelson Rodrigues. Primeiro, Leandro evoca a transcendncia como imortalidade. Os indivduos que conseguem se elevar a um ngulo mais universal e conseguem discernircomclarezaaslimitaesdoserparticulardeles,emprincpio,devem estar em condies menos ruins para se defrontar com a morte (j que so capazes dereconheceralgoahumanidade,Deusacimadesuasindividualidades;e esse algo no morre). Em seguida, recrimina os marxistas por no refletirem sobre a morte. osmarxistasnocostumamescreverarespeitodesseassunto[amorte](eh quemalegue,comalgumaligeireza,queaomissosedeveaofatodeelesse ocuparem,preferencialmente,dosproblemasdavida).Naverdade,a compreensodealgunsdosproblemasdavidassepodeaprofundarsenos dispusermos a refletir tambm sobre a morte.(KONDER, 1983: 129) Independentedequalqueroutraconsiderao,creioqueissomostraa necessidadedopensamentodeesquerdadarouvidoscriticaconservadora,nolugarde simplesmentedesqualific-la,poiselapodeserportadoradeestmulosinstigantesparao pensamento a que se ope. UmacidenteareonaCordilheiradosAndespropiciouaNelsonRodrigues outraoportunidadeparaaabordagemdotemadamorte.Oacidenteemquestolevantou polmica porque se ficou sabendo que os sobreviventes haviam sobrevivido graas prtica do canibalismo: eles se alimentaram com a carne dos sinistrados mortos.Em A hediondez caa-nqueis,crnicade17dejaneirode1973,NelsonRodriguessepronunciasobreo caso.Assumindoumaperspectivamoralextremamentergida,elecondenadeforma inapelvel os chamados canibais dos Andes. Para o arcebispo de Montevidu (um catlico progressista), a sobrevivncia est acima de tudo.Para uma legio de padres chilenos, idem.Argumenta-se com a morte.Dizia-me outro dia uma gr-fina: Eram mortos.Durante 2 mil anos reconheceu-seadignidadedamorte.Agora,no.Depoisdeaviltaravida, estamosaviltandoamorte.Chegaremosaumpontoemquenovalerapena viver nem valer a pena morrer. (RODRIGUES, 1995: 263) Para Nelson, o que est em jogo a sacralizao do corpo.E disso ele no abre moMas houve dois sobreviventes que no quiseram ser antropfagos.Era um casal.Maridoemulherforamtentadosatoltimomomento.Osoutrosqueriamque eles tambm comessem carne humana.Levaram para o casal bifes de ndega, de 37 barrigadeperna.Emaridoemulhersetorciamedestorciamemnuseas pavorosas.Seeraparasobrevivercomocanibais,preferiammorrer.Masa resistnciadocasalexasperavaosoutroscomoumcastigo.Aquelehomeme aquelamulhernocederam.Eoltimosuspirodeumeoutronofoiltimo suspiro, mas ltima nusea. (RODRIGUES, 1995: 263-264) Aessepropsito,hnoindianismodeJosdeAlencarumadistinoentre canibalismoeantropofagia.ParaAlencar,aantropofagiaentreosnossosindgenasera umaprticaritual,sacralizada.Segundoesseregistro,nosecomiaacarnehumanapara matar a fome, mas para enriquecer o esprito.Nesse sentido, vale recordar o paratexto de Alencar em Ubirajara. Osacrifciohumanosignificavaumaglriainsignereservadaaosguerreiros ilustresouvaresegrgiosquandocaiamprisioneiros.Parahonr-los,os matavamnomeiodafestaguerreira;ecomiamsuacarnequedeviatransmitir-lhes a pujana e valor do heri inimigo. (ALENCAR, 2002: 61) Em Viva o povo brasileiro, embora o narrador indique que o caboco Capiroba apreciavacomerholandeses,fazaressalvadequeistosaconteceudepoisdosmuitos estalidos, zumbidos e assovios que sua cabea comeou a dar (...) logo aps a chegada dos padres.Almdomais,deixaclaroquesetratavadofilhodeumandiacomumpreto fugidoqueaaldeiaacolheu.Hindciodeumadegenerescnciaenodeumatradio indgena:queocabococomegente,svezesengordandoumououtronocercado,por demais sabido, tendo isto, contudo, principiado por acaso. (RIBEIRO, 1984: 37-38) H tambm a "antropofagia" de Oswald de Andrade20.Trata-se de uma utopia.Utopia que, no dizer de Ernest Bloch, tem um sentido inteiramente voltado para o mundo: o sentido de ultrapassar o curso natural dos acontecimentos. (BLOCH, 2005: 22) Estaantropofagiaseespelhanono"bomselvagem",masno"mau"(oque deglute o colonizador com o propsito de incorporar a si as qualidades positivas do outro).Prope-se, desse modo, uma descolonizao que afirma o autctone como ponto de partida do nacional em construo, mas sem rejeitar em bloco tudo o que estrangeiro. 20 Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituies e sem penitencirias do matriarcado de Pindorama.Discurso visionrio de Oswald de Andrade, pronunciado em Piratininga, no ano 374 da deglutio do Bispo Sardinha: delrio que aponta para alm da realidade imediata e finca o marco inaugural da antropofagia nas letras nacionais. [Revista de Antropofagia, Ano I, No 1, maio de 1928] (CANDIDO, 2001: 83-89) 38 Oreconhecimentodo"valordooutro",odiferente,podeserencontrado tambmemMriodeAndrade.Nessesentido,ambospodemserconsiderados "antropofgicos".Masse,emOswald,a"antropofagia"avanaemdireoaumasntese que o projeto redentor da nao em construo; em Mrio, notadamente em Macunama (ANDRADE,1993),asntesecedeopassoaosincretismoqueresultano"herisem nenhumcarter",valedizer,noqueassumeascaractersticasmaiscontraditriasese adapta a todas as vicissitudes, sem crise de identidade. Adiferenasutil,massignificativa.EmOswald,a"antropofagia"sugado estrangeiro(ocolonizador)oqueeletemdemelhorparaserreprocessadopelonacional.Assim, o carter brasileiro se enriqueceria sem se descaracterizar.Ao passo que, em Mrio, a coexistncia de caractersticas dspares brota um brasileiro que se caracteriza justamente pornoterumacaractersticabemdefinida,isto,porconstituirumaidentidadecujo diferencialaausnciadecarter,poispodeassumirqualquerum,conformeas convenincias momentneas. OcanibalismodosAndestinhaosentidoabsolutamentediferentedesalvara prpria pele. O psicanalista foi consultado sobre os canibais.Hoje, os analistas falam de tudo.At, se for o caso de palpites, da Loteria Esportiva. Eonossohomemachaperfeitoquetenhamcomidobifesdecompanheiros,de amigos.Estavamcomfomeepronto.Evidentequeelesvinstintosnasua frente.Jamaislhepassoupelacabeaqueohomemscomeaaserhomem depois dos instintos e contra os instintos.At um cachorro morre pelo seu dono, apesar do seu instinto de conservao.Mas o psicanalista acha que o importante o homem no se deixar morrer, seja qual for o motivo.Suas declaraes mostram que o nosso mundo no est interessado na conscincia humana. Por isso mesmo, comojulgaele,psicanalista,ocasalqueserecusouaserantropfago?Nasua opinio, ambos, marido e mulher, eram neurticos.Ao passo que os canibais so exemplos de sanidade. (RODRIGUES, 1995, p. 264) ParaNelson,ocanibalismodosAndeseraaexpressodadesumanizaodo homem. Oanalistaemapreono,realmente,umanalista,masumveterinrio.Nada maisqueumveterinrioquevoserhumanocomosefosseumbezerro,um zebu,umapre,umazebra,cujavidaumjogodeinstintos.(RODRIGUES, 1995: 265) 39 Emsualongaargumentao,emque,deumatacada,aproveitapara desqualificar o clero progressista e os psicanalistas, Nelson expe o que talvez seja o cerne da sua concepo moral do homem: o homem s comea a ser homem depois dos instintos e contra os instintos.Por um lado, a humanizao do homem vista como uma conquista quesubjugaasuanaturezaanimal.umapostulaorazovel.Afinal,oshbitos alimentareseocomportamentosexualdohomemsoformassociaisenonaturaisde satisfazernecessidadesbiolgicas.MasNelsonparecequereriralmdorazovele simplesmentenegarasnecessidadescorporais,anul-lasemfunodevaloresmorais eternos e perfeitos. Adriana Facina considera que, nas memrias de infncia de Nelson Rodrigues, o subrbio carioca figura como palco de valores tradicionais em extino.L, esses valores aindaresistemaoprocessodedeterioraoquenazonasuldacidadejseconsumou.Facina aponta que um dos sinais que marcam essa transio, na viso de nosso autor, a relaoestabelecidacomamorte.Poisabanalizaodamorte,uma certafriezadiante do encerramento da vida de um ente querido, separa a experincia urbana moderna de um passado no qual o morto era chorado com mais intensidade e o ritual de despedida tinha um significado mais bem definido. (FACINA, 2004: 163) Sobre esse ponto, Nelson Rodrigues e o alemo de descendncia judaica Walter Benjamin (1892-1940) partilham pontos de vista muito prximos. Num ensaio de 1936, em que tece consideraes sobre as narrativas do literato russoNikolaiLeskov(1831-1895),Benjaminobservaqueaidiadeeternidadesempre tevenamortesuafontemaisricaeque,seessaidiaestseatrofiando,temosque concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto.Ele acrescenta que essa transformaoamesmaquereduziuacomunicabilidadedaexperinciamedidaquea artedenarrarseextinguia.Temosaumprocessocujagneseestimbricada emergnciadomundoburgus.ComolembraBenjamin,duranteosculoXIX,a sociedade burguesa produziu, com as instituies higinicas e sociais, privadas ou pblicas, umefeitocolateralqueinconscientementetalveztivessesidoseuobjetivoprincipal: permitir aos homens evitarem o espetculo da morte. (BENJAMIN, 1994: 207) 40 Amorteassomavarevestidadeumvalordeculto.Morrereraantesum episdiopbliconavidadoindivduo,afirmaBenjamin,eseucartereraaltamente exemplarParailustrar,evocaoimaginriodomedievo:recordem-seasimagensda IdadeMdia,nasquaisoleitodemortesetransformanumtronoemdireoaoqualse precipita o povo, atravs das portas escancaradas.No sem uma certa melancolia, quase como um lamento, que ele diz que hoje, a morte cada vez mais expulsa do universo dos vivos.Esuaobservaosoacomoumareprovao:hoje,osburguesesvivemem espaos depurados de qualquer morte e, quando chegar sua hora, sero depositados por seus herdeiros em sanatrios e hospitais. (BENJAMIN, 1994: 207) Benjaminvnamorteomomentodeumatransferncia,instantenoqualo indivduo transmite a sabedoria da sua existncia para a comunidade.Por isso, ele afirma: ora,nomomentodamortequeosabereasabedoriadohomemesobretudosua existncia vivida e dessa substncia que so feitas as histrias assumem pela primeira vezumaformatransmissvel.Porque,assim,comonointeriordoagonizantedesfilam inmerasimagensvisesdesimesmo,nasquaiselesehaviaencontradosemsedar conta disso , assim o inesquecvel aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, paraosvivosemseuredor.Benjamindizquenaorigemdanarrativaestessa autoridade.(BENJAMIN,1994:207-208)Porqueamorteasanodetudooqueo narradorpodecontaredamortequeelederivasuaautoridade.(BENJAMIN,1994: 208) Emsuascrnicas,NelsonRodriguesabundaemrefernciasmorte.Amorte de Pinheiro Machado uma de suas obsesses. Para o menino que fui, Pinheiro Machado umdessesmortosfundamentais,escreveuelenacrnicaEm1915erabonitoser histrica (O Globo, 4/12/1967): Ah, em 1915, as mulheres tinham um repertrio de gritos que as novas geraes nousam,nemconhecem.Erabonitoserhistrica.Muitassimulavamseus ataques,comoodostoievskianoSmerdiakov.Mas,quandoPinheirocaiu,as damaspresentesnofingiamnada.Elasseesganiavam,erolavampelas cadeiras,ousapateavamcomoespanholas.Naquelapoca,umanotcialevava meia hora para ir de uma esquina outra esquina.Mas toda a cidade ou, mais do que isso, o Brasil soube do assassinato, com uma instantneidade brutalssima.E 41 ningumpercebeuque,comPinheiroMachado,morriatambmofraque. (RODRIGUES, 2007a:18) ComamortedePinheiroMachado,Nelsonsinalizaquefindaraumapoca,o queoautorizava,nacrnicadodiaseguinte,evocao:notempodofraqueedo espartilho, a cidade expectorava muito mais.O marco divisrio ele fixara em 1915, o ano do assassinato de Pinheiro Machado.A crnica Matava e morria na Guerra do Paraguai (OGlobo,5/12/1967),quandoelelembraquenassalasdabellepoqueeraobrigatria esta figura ornamental: a escarradeira de loua, com flores desenhadas em relevo (e ptalas coloridas).E,combasenisso,eleaproveitaparaironizaraartificialidadedodiscurso literrio de Machado de Assis. O curioso que a fico brasileira da poca no tenha notado o detalhe.No h, emtodoMachado, umavagaeescassa referncia,erepito: aescarradeirano existiaparaoautor,paraospersonagens,nemparaodcordosambiente.Mas em 1915, quando assassinaram Pinheiro Machado, ou em 1916, quando vim para o Rio, as famlias tinham pigarros, tosses, que as novas geraes no conhecem.Dosmeusamigosatuais,onicoquecostumatossiroJooSaldanha. (RODRIGUES, 2007a:22) curiosoqueoamigocitadoporNelson,ardorosoanticomunista,sejaoJoo Saldanha, um notrio comunista.Mas o que importa aqui que, contrapondo-se esttica asspticadaliteraturadeMachadodeAssis,Nelsonvaidesenvolverasuaconcepode teatrodesagradvel,naqualodesagradvelresultadofocodeluzlanadosobreaszonas sombrias.Procedimento,emcertamedida,opostoaodeMachadoque,comosesabe, considerava de mal gosto tratar de certos assuntos, os quais no se prestariam ao tratamento literrio. assim que Machado de Assis, fazendo a crtica de Ea de Queirs, faz restries ao Primo Baslio por causa de linguagem, aluses, episdios que seriam menos prprias dodecoroliterrio.(ASSIS,1997:144)Machadorecriminaoautorlusitanoporque, usandoalisderelativadecncianaspalavras,acumulaemesclatodasortedeidiase sensaeslascivas.Lamenta,poisEa,nodesenhoecoloridodeumamulher,por exemplo,vaidireitosindicaessexuais.OqueMachadonoaceitaavivapintura dosfatosviciosos.Eaponta:essapintura,essearomadealcova,essadiscrio minuciosa, quase tcnica, das relaes adlteras, eis o mal. (ASSIS,1997: 146) MasNelsonevocaumapocaquepassouedaqualsenteafalta:Partoem casa,velrioemcasa,bronquitedastiastodoesseconjuntoderelaeseraoRiode 42 MachadodeAssis,dePinheiroMachado,deRuiBarbosa.(RODRIGUES,2007a:24)Sobretudo o velrio em casa sem dvida a marca muito significativa de uma poca em que a morte ainda no fora desterrada do mundo dos vivos. Curiosa a nostalgia declarada de Nelson por um passado que ele no viveu, que no conheceu em sua vida, mas que de alguma forma o marcou.Isso d o que pensar. A tradio legada pelas geraes mortas pesa como um pesadelo na conscincia dos vivos.Marx o disse no Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte.21Victor Hugo tambm o disse,comoumareclamao,noseuPrefcioaCrommwell.22AntonioGramsci(1891- 1937)diriaqueopresenteumacrticadopassado,equenossaadernciaaopresente dependedanossa"conscinciadopassadoeseuperpetuar-se(ereviver)"23.Bakhtindir que"ognerosempreconservaoselementosimorredourosdaarchaica",ouseja,"uma archaica com capacidade de renovar-se" (BAKHTIN, 2005:106).Para ele, no h limites paraocontextodialgico,oqualseestendeaopassadosemlimiteseaofuturosem limites.24Presenteepassadoseinterpenetrameseamalgamam;nadadefinitivamente, pois os sentidos revivem e se renovam. 21 "Les hommes font leur propre histoire, mais ils ne la font pas arbitrairement, dans les condicions choisis par eux, mais dans des conditions directement donnes et herites du pass.La tradition de toutes les gnrations mortes pse d'un poids trs lourd sur le cerveau des vivants.Et mme quand ils semblent occups se transform, eux et les choses, crer quelque chose de tout fait nouveau, c'est prcisment ces poques de crise rvolutionnaire qu'ils voquent craintivement les esprits du pass, qu'ils leur empruntent leurs noms, leurs mots d'ordre, leurs costumes, pour apparatre sur la novelle scne de l'histoire sous ce dguisement respectable et avec ce langage emprunt." (MARX, 1965: 219) 22 O ltimo sculo pesa ainda quase inteiramente sobre o novo. (HUGO, 2004: 95-96) 23 "[Critica del passato.]Come e perch il presente sia una critica del passato, oltre che un suo 'superamento'. Ma il passato perci da gettar via? da gerttar via ci che il presente ha criticato 'intrinsecamente' e quella parte di noi stessi che a ci corrisponde.Cosa significa ci?Che noi dobbiamo aver coscienza esatta di questa critica reale e darle un'espressione non solo teorica, ma politica.Cio dobbiamo essere pi aderenti al presente, che noi stessi abbiamo contribuito a creare, avendo coscienza del passato e del suo continuarsi (e rivivere)." (GRAMSCI, 1977: 5). 24 No existe a primeira nem a ltima palavra, e no h limites para o contexto dialgico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites).Nem os sentidos do passado, isto , nascidos no dilogo dos sculos passados, podem jamais ser estveis (concludos, acabados de uma vez para todas): eles sempre iro mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subseqente, futuro do dilogo.Em qualquer momento do desenvolvimento do dilogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do dilogo, em seu curso, tais sentidos sero relembrados e revivero em forma renovada (em novo contexto).No existe nada absolutamente morto:cada sentido ter sua festa de renovao.Questo do grande tempo. (BAKHTIN, 2003a: 410) 43 Em Bakhtin ganha relevo a questo do "grande tempo": o passado remoto, nem esse est morto.E mais: ele determinante na literatura.Essa concepo, que Bakhtin traz deFadeiF.Zielnski25,umdostraosmaisoriginaisdasuaconcepodoromance,e dissidenosdateoriadoromanceemLuckcs,masdopensamentoestabelecidoentre historidadores e tericos da literatura.26 O"grandetempo"achavedopensamentobakhtinianoquerompe simultaneamente com o formalismo e com o determinismo mecanicista. BakhtincoincidindocomseucontemporneoVigotski27articulauma ontologia do ser social na qual a linguagem ocupa o proscnio do processo histrico-social em que o homem se faz homem: o trabalho a mediao determinante em ltima instncia (esferadainfra-estrutura),masalinguagem umamediaoqueparticipatantodaesfera dainfra-estrutra(enquantoinstrumentodacomunicaoutilitria)quantodaesferadas superestruturascomplexas(enquantoinstrumentodaexpressodasubjetividadeeda criao simblica). Se a mediao central a lngua, e as camadas culturais arcaicas persistem nela muitomaisdoquenasrelaeseconmicas,entoaliteraturanoumreflexodas condiessociaispresentes,nemdaquelasherdadasdeumpretritoprximo,masuma refraodopassadomaisremotoimbricadoaopassadocercanoeaopresente.Daquea 25 Bakhtin estudou no Departamento de Estudos Clssicos da Faculdade Filolgico-Histrica da Universidade de So Petersburg, na capital do Imprio Tsarista, de 1914 a 1918.Na Faculdade, a grande influncia intelectual exercida sobre o estudante Bakhtin foi a do professor Fadei F. Zielnski, catedrtico de Filologia Clssica. O professor Zielnski defendia idias originais e fascinantes.Entre elas, merecem destaque as seguintes teses: (1) os gneros e tipos literrios j existiriam desde a Antigidade Clssica, inclusive o romance;(2) no curso da histria literria, a prosa teria sobrepujado a poesia;(3) o dilogo seria a expresso literria da liberdade filosfica, por expor a troca de argumentos considerao do leitor;(4) haveria uma oposio entre cultura oficial e no-oficial na sociedade, e a cultura popular teria potencial para abalar o pedantismo e o dogmatismo da alta cultura;(5) no haveria uma oposio hostil entre o divino e os desejos humanos, nem uma separao absoluta entre o sagrado e os prazeres profanos;(6) o humor exerceria uma funo revitalizante na obra satrica.Essas idias seriam retomadas e desenvolvidas por Bakhtin ao longo de sua obra. [Ver CLARK, 1998: 56-57] 26 Ver (LUKCS, 2000). Para uma comparao entre as concepes de Bakhtin e as de Lukcs, a partir de um ponto de vista lukacsiano, ver (KONDER, 2005).Para uma introduo geral, ver (SCHLER, 2000).27"A relao entre o homem e o mundo passa pela mediao do discurso, pela formao de idias e pensamentos atravs dos quais o homem apreende o mundo e atua sobre ele, recebe a palavra do mundo sobre si mesmo e sobre ele-homem e funda a sua prpria palavra sobre esse mundo." (BEZERRA, Paulo.Prefcio.In VIGOTSKI, 1999b:XII) 44 origemdoromancenodevaserbuscadaapenasnascondiescoetneasepretritas recentes, mas fundamentalmente na gnese da literatura ocidental, ou seja, na Antigidade clssica.No caso, o que valido para o romance, com mais forte razo o ser para o teatro. "Senosepodeestudaraliteraturaisoladadetodaaculturadeumapoca", concede Bakhtin, " ainda mais nocivo fechar o fenmeno literrio apenas na poca de sua criao", porque "uma obra remonta com suas razes a um passado distante".Para ele, "as grandes obras da literatura so preparadas por sculos".Isso quer dizer que, "na poca de suacriao,colhem-seapenasosfrutosmadurosdolongoecomplexoprocessode amadurecimento" (BAKHTIN, 2003a: 362).WalterBenjamin(1892-1940)observouque"Lukcspensaemperodos histricos, Kafka em perodos csmicos" (BENJAMIN, 1994: 138-139)Poderamos dizer, pegandocaronanametforabenjaminiana,quetambmBakhtinpensaem"perodos csmicos". ParaBakhtin,agrandeobraaque"dissolveasfronteiras"dasuaatualidade para"entrarnograndetempo",jque"tudooquepertenceapenasaopresentemorre juntamente com ele". (BAKHTIN, 2003a: 362-363) Nelson um autor nostlgico e sua obra est profundamente marcada pelo seu passado, tanto na crnica como no teatro.Nesse sentido, um autor confessional. Amorte,comoapartaodosqueficam,suscitasentimentoscomplexos.Nelson confessa a inveja que tinha do gnio literrio de Guimares Rosa. Certavez,ouvioOttoLaraResendedizer,naTVGlobo:OgenialJoo GuimaresRosa.Almdecham-logenial,aindalhepunha,porextenso,o nome.Euestavaemcasa.DetesteioOttoepensei,desfeiteado: Umabesta esseOtto.Nodiaseguinte,estavaeudizendo,noseiaquem,queoGrande Sertotinhamuitodegratuito,deincomunicvel;ealinguagemdoautor,que ningum entendia, era uma audio para surdos.Fiquei uns dias ressentido com o Otto:Nuncamechamoudegnio,eraomeulamento.(RODRIGUES, 2007a: 30) Sendoassim,ficaexplicadoporqueNelsonexperimentouumalvio,uma brusca e vil euforia com a notcia da morte de Guimares Rosa.. 45 fciladmirar,semressentimento,umgniomorto.JtnhamosumMachado deAssis.GuimaresRosaseriaoutroMachadodeAssis.Claroqueosdemais continuavam vivssimos, atropelando.Mas esses no fundaram uma lngua, nem escreveram A terceira margem (que o Hlio Peregrino declamou para mim, ao telefone). (RODRIGUES, 2007a: 30) A morte promovia sbitas revises crticas. O Hlio Peregrino, na vspera, restritivo, realizou uma fulminante reviso crtica.ReliaoGuimaresRosaetremiadebeleza.LigouparaoMrioPedrosapara arrast-lonamesmaadmirao.MasoMrioresmungou:onovoCoelho Neto!MuitoanteseuouviradoCarlosHeitorConyomesmoberro:o novoCoelho Neto!Quantoamim,fuiaovelrio naAcademia.Entroeparo ante a indignidade dos crios eltricos. (RODRIGUES, 2007a: 30-31) semdvidaextraordinrioque,enquantoosoutrosseocupamcomrevises crticasdaobradomorto,Nelsonsechoquecomaindignidadedoscrioseltricos.Aparentemente, o fato dos crios serem eltricos apenas um detalhe, mas um detalhe que mexe com o valor de culto da morte, um detalhe que permite concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto, como diria Benjamin. Mas,se,comoadventodamodernidade,amortefoiexpatriadadoslares,era ressurgiuvistadetodosnomeiodarua.Vive-seumanovapoca:apocados atropelamentos no trnsito. L estava ele, o cadver.De cor parda, diria o reprter de polcia.Acabara de ser atropelado e era um defunto desfolhado, despetalado ou que outro nome tenha.E, ao lado, algum acendera uma vela.Disse algum e j retifico: ningum.Eis o mistrio dos nossos atropelados.Sem que ningum a ponha sempre aparece umachamaquenenhumachuva,nenhumvento,consegueapagar.(RODRIGUES, 2007a: 33-34) AobsessodeNelsoncomoscrioseltricoschamaaatenoparaum velrio que mero ritual sem emoo. Eis o que eu queria dizer: quando entrei na Academia, e vi a misria dos crios eltricos, comecei a pensar no morto da Praa Onze.Eu teria preferido em vez de quatro lmpadas estpidas, a vela solitria do atropelado.No me demorei.Eis a verdadetenhomedodomortoilustre.Avisitao,quenopra,tosem amor!Olhoacuriosidadefrvoladosquevoespiaromorto.(RODRIGUES, 2007a: 34) Parece que, em relao morte, da mesma forma que na esfera artstica como o demonstrou Benjamin em A obra de arte na poca da sua reprodutibilidade tcnica , o valor de exposio se ope ao valor de culto. 46 Os dois plos [na arte] so o valor de culto da obra e seu valor de exposio. (...) Aproduoartsticacomeacomimagensaserviodamagia.Oqueimporta, nessas imagens, que elas existam, e no que sejam vistas. (...)O valor de culto, como tal, quase obriga a manter secretas as obras de arte (...) medidaqueasobrasdearteseemancipamdoseuusoritual,aumentamas ocasies para que elas sejam expostas. (...) Comefeito,assimcomonapr-histriaaprepondernciaabsolutadovalorde cultoconferidoobralevou-aaserconcebidaemprimeirolugarcomo instrumentomgico,esmaistardecomoobradearte,domesmomodoa prepondernciaabsolutaconferidahojeaseuvalordeexposioatribui-lhe funesinteiramentenovas,entreasquaisa'artstica',anicadequetemos conscincia, talvez se revele mais tarde como secundria." (...) "Os temas dessa arte [pr-histrica] eram o homem e seu meio, copiados segundo as exigncias de uma sociedade cuja tcnica se fundia inteiramente com o ritual.Essa sociedade a anttese da nossa, cuja tcnica a mais emancipada que jamais existiu.Mas essa tcnica emancipada se confronta com a sociedade moderna sob aformadeumasegundanatureza,nomenoselementarqueadasociedade primitiva, como provam as guerras e as crises econmicas." (BENJAMIN, 1994: 173-174) Etemosa,comJooGuimaresRosa,umtipodevelriocaracterizadopela curiosidade frvola.Esta a marca distintiva dos velrios ilustres: to sem amor!, que dava medo do morto ilustre. E to diferente do velrio do Lemos, o vizinho dos tempos de infncia do Nelson na Aldeia Campista.Um patusco e pior: homem de vir, para o meio-fio, de pijama, aparar os calos comgilete.Efaziaissocomumdeleite,umrequinte,umlavor,inexcedveis.Outro dado biogrfico: mal sabia assinar o nome. (RODRIGUES, 2007a: 38) PoisumdiaoLemosmorreu,contaNelson.AldeiaCampistaparoupor causadoLemos.Nuncaviningumtochorado.EovelriodoLemos,emtudoepor tudo,contrastacomaformalidadedovelriodeGuimaresRosa.Aspessoasquel entravam comeavam a estrebuchar, a bater com os ps, como em transe medinico.E, na hora de fechar o caixo, a viva, uma senhora gorda, pulou em cima do caixo, gritando quequeriaserenterradacomoLemos,pedindoparaoLemoslev-lacomeleparaa sepultura. Conto o fato para concluir: por que todo esse elenco de uivos?Explico: porque morreraoantignio,oantigrandehomem.fcilamarechoraropobre-diabo.Aindaporcima,aos17anos,tiveravarola.ErachamadodeLemosBexiga.Aopassoquesomosressentidoscontraosujeitoquefundaumalngua,inventa umBrasiletiraumsertoinditodaprpriacabeacomodeumacartola. (RODRIGUES, 2007a: 39) 47 Nelson Rodrigues aponta aqui para o contraste entre a morte no seio de relaes comunitrias(familiares,devizinhana,deamizade)eamortecercadaderelaessem afetividade,impessoais,relaestpicasdasociedademoldadapelomercadocapitalista.Noprimeirocasotemosamortepranteada; no segundo, a morte espetacularizada.Vai-se aovelriodacelebridadecomosevaiaumespetculo.Opesarcedeavezao entretenimento. 48 NELSON RODRIGUES E O NEGRO NumacrnicacujottuloOndeestoosnegrosbrasileirosjdizmuito, NelsonrelataavisitadeJeanPaulSartreaoRiodeJaneiro,naqualofilsofofrancs execrado por haver dito que o marxismo inultrapassvel. Alieudescobriaquehadmiraesabjetas.Masessemarxismo inultrapassvelumaopiniodetorcedordoBonsucesso.Nadaimpedeque dentrode15minutosomarxismosejavilmenteultrapassado,Seriainquofalar emPacheco,emAccio.TorcedordoBonsucessooumais:Luvizaro.Eiso nome certo, o nvel exato: Luvizaro.Naquele momento, a maior inteligncia do sculo era um Luvizaro. (RODRIGUES, 2007a: 64-65) Mas, no caso, o antimarxismo do Nelson era apenas um pretexto para introduzir outra questo: a do racismo brasileira.E, assim, Nelson toma carona na visita de Sartre para,deumpulo,introduziroproblemadoescamoteamentodasrelaesraciaisna sociedade brasileira.NelsoncontaqueSartreeSimonedeBeauvoirforamrecepcionadosnum apartamento em que a dona da casa ofereceu-lhes uma tigela de jabuticabas e que o filsofo as comia demonstrando um certo tdio.Olhava para os presentes como quem diz: Que cretinos!Que imbecis!Em dado momento vem a dona da casa oferecer-lhe uma tigelinha de jabuticabas.O Sartre ps-se a com-las.Mas, coisa curiosa.Ele as comia com certo tdio (no estavalongedeach-lastambmcretinas,tambmimbecis).Atque,na 49 vigsimajabuticaba,praummomentoefaz,comcertairritao,apergunta: E os negros?Onde esto os negros?(RODRIGUES, 2007a: 65) Aperguntasejustificavaporqueofrancsfalaraatentoparaumpblico formado por descendentes de europeus. OGnionovira,nassuasconferncias,ummserocrioulo.Slouro,solho azule,namelhordashipteses,morenodepraia.EisSartrepost