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POL ÍTICA ESTADO DE MINAS D O M I N G O , 1 7 D E J U N H O D E 2 0 1 2 4 FUGA PELA RUA GOIÁS “Eu comecei a ser procurada em Minas nos dias seguintes à prisão de Ângelo Pezzuti. Eu morava no Edifício Solar, com meu marido, Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, e numa noite, no fim de dezembro de 1968, o apartamento foi cercado e conseguimos fugir, na madrugada. O porteiro disse aos policiais do Dops de Minas que não estávamos em casa. Fugimos pela garagem que dá para a rua do fundo, a Rua Goiás.” LIGAÇÕES COM ÂNGELO “Fui interrogada dentro da Operação Bandeirantes (Oban) por policiais mineiros que interrogavam sobre processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito interessados em saber meus contatos com Ângelo Pezzuti, que, segundo eles, já preso, mantinha comigo um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua fuga. Eu não tinha a menor ideia do que se tratava, pois tinha saído de BH no início de 69 e isso era no início de 70. Desconhecia as tentativas de fuga de Pezzuti, mas eles supuseram que se tratava de uma mentira. Talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata.” DENTE PODRE “Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para o lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz completou o serviço com um soco, arrancando o dente.” PAU DE ARARA “...algumas características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque. Começava assim: ‘Em 1968 o que você estava fazendo?’ e acabava no Ângelo Pezzuti e sua fuga, ganhando intensidade, com sessões de pau de arara, o que a gente não aguenta muito tempo.” PALMATÓRIA “Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador ‘experiente’, ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim muita palmatória. Em São Paulo usaram pouco esse ‘método’. No fim, quando estava para ir embora, começou uma rotina. No início, não tinha hora. Era de dia e de noite. Emagreci muito, pois não me alimentava direito.” LOCAL DA TORTURA “Acredito hoje ter sido por isso que fui levada no dia 18 de maio de 1970 para Minas Gerais, especificamente para Juiz de Fora, sob a alegação de que ia prestar esclarecimentos no processo que ocorria na 4ª CJM. Mas, depois do depoimento, eu fui levada (ou melhor, teria de ser levada para São Paulo), mas fui colocada num local (encapuzada) que sobre ele tinha várias suposições: ou era uma instalação do Exército ou Delegacia de Polícia. Mas acho que não era do Exército, pois depois estive no QG do Exército e não era lá.” “Nesse lugar fiquei sendo interrogada sistematicamente. Não era sobretudo sobre minha militância em Minas. Supuseram que, tendo apreendido documentos do Ângelo (Pezzutti) que integram o processo, achavam que nossa organização tinha contatos com as polícias Militar ou Civil mineiras que possibilitassem fugas de presos. Acredito ter sido por isso que a tortura foi muito intensa, pois não era presa recente; não tinha ‘pontos’ e ‘aparelhos’ para entregar.” SANDRA KIEFER ilma chorou. Essa é uma das lembranças mais vivas na memória do filósofo Rob- son Sávio, que, ao lado de outra voluntá- ria do Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), foi ao Rio Grande do Sul coletar o testemunho da então secretária das Minas e Energia da- quele estado sobre a tortura que sofrera nos anos de chumbo. Com fama de duro- na, a então moradora do Bairro da Triste- za, em Porto Alegre, tirou a máscara e vol- tou a ter 22 anos. Revelou, em primeira mão, que as torturas físicas em Juiz de Fo- ra foram acrescidas de ameaças de dano físico deformador: “Geralmente me ameaçavam de ferimentos na face”. Não eram somente ameaças. Segundo fez constar no depoimento pessoal, Dilma revelou, pela primeira vez, ter levado so- cos no maxilar, que podem explicar o mo- tivo de a presidente ter os dentes leve- mente projetados para fora. “Minha arca- da girou para o lado, me causando proble- mas até hoje, problemas no osso do su- porte do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu”, disse. Pa- ra passar a dor de dente, ela tomava No- valgina em gotas, de vez em quando, na prisão. “Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz (o implacável capi- tão Alberto Albernaz, do DOI-Codi de São Paulo) completou o serviço com um soco, arrancando o dente”, completou. Mais tarde, durante a campanha presi- dencial, em 2010, Dilma faria pelo menos três correções de ordem estética, que in- cluíram uma plástica facial, a troca dos óculos por lentes de contato e a chance de, finalmente, realinhar a arcada dentária. Na mesma época, Dilma combateu e ven- ceu um câncer no sistema linfático. Guer- reira, a presidente suavizou as marcas dei- xadas pelo passado na pele. Não tocou, po- rém, nas marcas impressas na alma. “As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim”, definiu Dilma em 2001, no depoi- mento emocionado à comissão mineira, 11 anos antes de ser criada a Comissão Na- cional da Verdade, no mês passado. Leia a seguir trechos do depoimento de Dilma. ARTE: JANEY COSTA Sede do Quartel General de Juiz de Fora, onde teriam ocorrido as sessões de tortura ROBERTO FULGÊNCIO/TRIBUNA DE MINAS - 29/7/91

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E S T A D O D E M I N A S ● D O M I N G O , 1 7 D E J U N H O D E 2 0 1 2

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FUGA PELA RUA GOIÁS“Eu comecei a ser procurada em Minasnos dias seguintes à prisão de ÂngeloPezzuti. Eu morava no Edifício Solar, commeu marido, Cláudio Galeno deMagalhães Linhares, e numa noite, nofim de dezembro de 1968, o apartamentofoi cercado e conseguimos fugir, namadrugada. O porteiro disse aos policiaisdo Dops de Minas que não estávamosem casa. Fugimos pela garagem que dápara a rua do fundo, a Rua Goiás.”

LIGAÇÕES COM ÂNGELO“Fui interrogada dentro da OperaçãoBandeirantes (Oban) por policiaismineiros que interrogavam sobreprocesso na auditoria de Juiz de Fora eestavam muito interessados em sabermeus contatos com Ângelo Pezzuti, que,segundo eles, já preso, mantinha comigoum conjunto de contatos para que euviabilizasse sua fuga. Eu não tinha amenor ideia do que se tratava, pois tinhasaído de BH no início de 69 e isso era noinício de 70. Desconhecia as tentativas defuga de Pezzuti, mas eles supuseram quese tratava de uma mentira. Talvez umadas coisas mais difíceis de você ser nointerrogatório é inocente. Você não sabenem do que se trata.”

DENTE PODRE“Uma das coisas que me aconteceunaquela época é que meu dente começoua cair e só foi derrubado posteriormentepela Oban. Minha arcada girou para olado, me causando problemas até hoje,problemas no osso do suporte do dente.Me deram um soco e o dente se deslocoue apodreceu. Tomava de vez em quandoNovalgina em gotas para passar a dor. Sómais tarde, quando voltei para São Paulo,o Albernaz completou o serviço com umsoco, arrancando o dente.”

PAU DE ARARA“...algumas características da tortura. Noinício, não tinha rotina. Não se distinguiase era dia ou noite. O interrogatóriocomeçava. Geralmente, o básico erachoque. Começava assim: ‘Em 1968 o quevocê estava fazendo?’ e acabava noÂngelo Pezzuti e sua fuga, ganhandointensidade, com sessões de pau de arara,o que a gente não aguenta muito tempo.”

PALMATÓRIA“Se o interrogatório é de longa duração,com interrogador ‘experiente’, ele tebota no pau de arara alguns momentose depois leva para o choque, uma dorque não deixa rastro, só te mina. Muitasvezes também usava palmatória; usavaem mim muita palmatória. Em SãoPaulo usaram pouco esse ‘método’. Nofim, quando estava para ir embora,começou uma rotina. No início, nãotinha hora. Era de dia e de noite.Emagreci muito, pois não mealimentava direito.”

LOCAL DA TORTURA“Acredito hoje ter sido por isso que fuilevada no dia 18 de maio de 1970 paraMinas Gerais, especificamente para Juizde Fora, sob a alegação de que ia prestaresclarecimentos no processo queocorria na 4ª CJM. Mas, depois dodepoimento, eu fui levada (ou melhor,teria de ser levada para São Paulo), masfui colocada num local (encapuzada)que sobre ele tinha várias suposições:ou era uma instalação do Exército ouDelegacia de Polícia. Mas acho que nãoera do Exército, pois depois estive noQG do Exército e não era lá.”

“Nesse lugar fiquei sendo interrogadasistematicamente. Não era sobretudosobre minha militância em Minas.Supuseram que, tendo apreendidodocumentos do Ângelo (Pezzutti) queintegram o processo, achavam quenossa organização tinha contatos comas polícias Militar ou Civil mineiras quepossibilitassem fugas de presos.Acredito ter sido por isso que a torturafoi muito intensa, pois não era presarecente; não tinha ‘pontos’ e ‘aparelhos’para entregar.”

SANDRA KIEFER

ilma chorou. Essa é uma das lembrançasmais vivas na memória do filósofo Rob-son Sávio, que, ao lado de outra voluntá-ria do Conselho de Direitos Humanos deMinas Gerais (Conedh-MG), foi ao RioGrande do Sul coletar o testemunho daentão secretária das Minas e Energia da-quele estado sobre a tortura que sofreranos anos de chumbo. Com fama de duro-na, a então moradora do Bairro da Triste-za, em Porto Alegre, tirou a máscara e vol-tou a ter 22 anos. Revelou, em primeiramão, que as torturas físicas em Juiz de Fo-ra foram acrescidas de ameaças de danofísico deformador: “Geralmente meameaçavam de ferimentos na face”.

Não eram somente ameaças. Segundofez constar no depoimento pessoal, Dilmarevelou, pela primeira vez, ter levado so-cos no maxilar, que podem explicar o mo-tivo de a presidente ter os dentes leve-mente projetados para fora. “Minha arca-dagirouparaolado,mecausandoproble-mas até hoje, problemas no osso do su-porte do dente. Me deram um soco e odente se deslocou e apodreceu”, disse. Pa-ra passar a dor de dente, ela tomava No-valgina em gotas, de vez em quando, naprisão. “Só mais tarde, quando voltei paraSão Paulo, o Albernaz (o implacável capi-tão Alberto Albernaz, do DOI-Codi de SãoPaulo) completou o serviço com um soco,arrancando o dente”, completou.

Maistarde,duranteacampanhapresi-dencial, em 2010, Dilma faria pelo menostrês correções de ordem estética, que in-cluíram uma plástica facial, a troca dosóculos por lentes de contato e a chance de,finalmente, realinhar a arcada dentária.Namesmaépoca,Dilmacombateueven-ceu um câncer no sistema linfático. Guer-reira,apresidentesuavizouasmarcasdei-xadaspelopassadonapele.Nãotocou,po-rém, nas marcas impressas na alma. “Asmarcas da tortura sou eu. Fazem parte demim”, definiu Dilma em 2001, no depoi-mento emocionado à comissão mineira,11anosantesdesercriadaaComissãoNa-cionaldaVerdade,nomêspassado.Leia aseguir trechos do depoimento de Dilma.

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Sede do Quartel General de Juiz de Fora,onde teriam ocorrido as sessões de tortura

ROBERTO FULGÊNCIO/TRIBUNA DE MINAS - 29/7/91