12
7 Errar é humano – flutuar é divino OFEGANTE, LUTANDO PARA RESPIRAR, enquanto minha vida passava diante de meus olhos numa série de vinhetas me- lancólicas, me vi sufocado, alguns meses atrás, debaixo do tsunami de cartas de propaganda que jorrava em catadupas pela janelinha do correio na porta de minha casa todo dia pela manhã, depois de eu comer o meu arenque defumado. Foi preciso que a nossa faxineira wagneriana, Grendel, após ouvir um falsete abafado que veio de baixo de um mar de convites de exposição de arte, campanhas de caridade, avisos de que eu tinha sido contemplado em sorteios fajutos, viesse me desentranhar das profundezas, com a ajuda do nosso possante aspirador de pó. Enquanto eu estava arquivando meticulosamente, em ordem alfabética, no triturador de papéis, as novas correspondências recém-chegadas, percebi que, no meio da profusão de catálogos que apregoavam tudo, desde comedouros para gaiolas de passarinhos até entregas mensais de pêssegos secos e de laranjas-lima, havia uma revistinha que eu não tinha encomendado, Mistura Mágica, cujas letras do título imitavam luz neon. Obviamente dirigida ao público da Nova Era, seus artigos abrangiam

Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

  • Upload
    others

  • View
    12

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

7

Errar é humano – flutuar é divino

oFegante, lutando PaRa ResPiRaR, enquanto minha vida

passava diante de meus olhos numa série de vinhetas me-

lancólicas, me vi sufocado, alguns meses atrás, debaixo do

tsunami de cartas de propaganda que jorrava em catadupas

pela janelinha do correio na porta de minha casa todo dia

pela manhã, depois de eu comer o meu arenque defumado.

Foi preciso que a nossa faxineira wagneriana, Grendel, após

ouvir um falsete abafado que veio de baixo de um mar de

convites de exposição de arte, campanhas de caridade, avisos

de que eu tinha sido contemplado em sorteios fajutos, viesse

me desentranhar das profundezas, com a ajuda do nosso

possante aspirador de pó. Enquanto eu estava arquivando

meticulosamente, em ordem alfabética, no triturador de

papéis, as novas correspondências recém-chegadas, percebi

que, no meio da profusão de catálogos que apregoavam

tudo, desde comedouros para gaiolas de passarinhos até

entregas mensais de pêssegos secos e de laranjas-lima, havia

uma revistinha que eu não tinha encomendado, Mistura

Mágica, cujas letras do título imitavam luz neon. Obviamente

dirigida ao público da Nova Era, seus artigos abrangiam

Page 2: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

8 Woody Allen

desde o poder dos cristais até a cura holística e as vibrações

psíquicas, com dicas sobre a conquista da energia espiritual,

amor versus estresse, e exatamente aonde ir e que formulários

preencher para ser reencarnado. Os anúncios, que pareciam

escrupulosamente articulados para criar uma barreira prote-

tora contra a insensatez dos esquadrões especiais da polícia

cuja missão era perseguir vigaristas, apresentavam Desodo-

rizadores Terapêuticos, Energizadores de Redemoinho de

Água e um produto chamado Florais RoBustos, destinado

a incrementar o volume e a amplitude dos melões das ma-

dames. Não havia nem sombra de escassez de conselhos

parapsicológicos, oriundos de fontes como a “intuitiva espi-

ritual”, que conferia a validade dos seus estalos de gênio com

a ajuda de um “consórcio de anjos denominado Consórcio

dos Sete”, ou uma dançarina exótica, batizada com o nome

de Saleena, que se oferecia para “equilibrar a sua energia,

despertar o seu DNA e atrair a abundância”. Naturalmente,

no final de todas essas excursões em campo aberto rumo ao

centro da alma, um pequeno emolumento para cobrir os

gastos com os selos e quaisquer outras despesas que o guru

pudesse ter tido em uma outra vida deve ser solicitado. A

personagem mais espantosa de todas, no entanto, só pode

ser a “fundadora e líder divina do Movimento da Ascensão

da Deusa Hathor no Planeta Terra”. Conhecida pelos seus

adeptos como Gabrielle Hathor, uma deusa autoproclamada

que, segundo o seu assessor de imprensa, é “a plenitude da

fonte manifesta na forma humana”, essa eminência da Costa

Oeste nos diz: “Existe uma aceleração da reação cármica [...]

A Terra entrou num inverno espiritual que durará 426 mil

anos terrestres”. Ciente de que um inverno longo pode ser

Page 3: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

Errar é humano – flutuar é divino 9

bastante severo, a senhora Hathor iniciou um movimento

para ensinar os seres a ascender para “dimensões de frequên-

cia mais elevada”, onde supostamente podem sair mais de

casa e jogar um pouco de golfe.

“Levitação, translocação instantânea, onisciência,

capacidade de materializar e desmaterializar, e outras do

mesmo tipo tornam-se parte das capacidades normais da

pessoa.” Assim a conversa mole ataca a cabeça dura dos in-

cautos com uma britadeira e proclama que, “dessas dimen-

sões de frequência mais elevada, o ser que ascendeu pode

apreender as frequências mais baixas, enquanto aqueles que

estão nas frequências mais baixas não podem apreender as

dimensões mais elevadas”.

Há um fervoroso apoio da parte de alguém chamado

Plêiades LuaEstrela – nome que me causaria uma conster-

nação infinita caso me dissessem no último instante que

pertencia ao meu cirurgião cerebral ou ao meu piloto. Os

acólitos no movimento da senhora Hathor devem submeter-

-se a um “procedimento humilhante” como parte de uma

rotina destinada a dissolver seus egos e alçar suas frequências.

Pagamentos em dinheiro vivo são malvistos, mas um pouco

de lealdade abjeta e de trabalho produtivo pode render uma

cama e um prato de feijão-da-índia orgânico, enquanto a

pessoa ganha ou perde consciência.

Menciono tudo isso pois, por coincidência, mais tarde

naquele mesmo dia, eu estava saindo da loja Hammacher

Schlemmer, assolado por uma indecisão obsessiva entre

comprar um descaroçador de azeitona computadorizado

ou a guilhotina portátil mais bonita do mundo, quando,

como o Titanic, trombei com um velho iceberg que eu havia

Page 4: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

10 Woody Allen

conhecido na faculdade, Max Endorfina. Gorducho na sua meia-idade, com os olhos de um bacalhau e ostentando uma meia-peruca estofada com penugem suficiente para criar o trompe l’oeil de um topete, ele esmagou minha mão e desatou a contar casos da sua recente boa sorte.

– Só posso lhe dizer uma coisa, meu fedelho, tirei a sorte grande. Entrei em contato com o meu eu espiritual interior e, daí em diante, foi sopa no mel.

– Você pode elaborar um pouco mais isso? – indaguei, notando pela primeira vez sua indumentária elegante e bem cortada e o protuberante anel cor-de-rosa do tamanho de um tumor em estágio avançado.

– Creio que na verdade eu não deveria estar aqui batendo papo com alguém numa frequência inferior, mas como somos velhos conhecidos...

– Frequência?– Estou falando das dimensões. Nós que estamos

nas oitavas superiores aprendemos a não desperdiçar íons saudáveis com trogloditas mortais, entre os quais você se enquadra... sem querer ofender. Não que nós não estudemos e apreciemos as formas inferiores, graças a Leeuwenhoek, se você capta o que quero dizer. – De repente, com o instinto de um falcão para a sua presa, Endorfina virou a cabeça para uma loura de pernas compridas, numa microminissaia, que se empenhava em conseguir um táxi.

– Olha só que aparição, e com um beicinho de pri-meira qualidade – disse ele, enquanto as glândulas salivares engrenavam a terceira marcha.

– Podia estar numa foto de página dupla de revista masculina – suspirei, enquanto sentia um repentino ataque de insolação –, a julgar pela sua blusa transparente.

Page 5: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

Errar é humano – flutuar é divino 11

– Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego

profundo e começou a elevar-se do chão. Para assombro

meu e também da Miss Julho, ele estava levitando meio

metro acima da 57th Street, em frente à loja Hammacher

Schlemmer. Tentando ver onde estavam escondidos os

fios, a coisinha doce e jovem aproximou a sua bela figura.

– Ei, como é que você faz isso? – ronronou ela.

– Tome. Aqui tem o meu endereço – disse Endorfina.

– Vou estar em casa depois das oito horas. Dê um pulo lá.

Vou fazer você tirar os pés do chão num instante.

– Vou levar o Petrus comigo – arrulhou ela, introdu-

zindo a logística do rendez-vous de ambos no abismo do seu

entresseio, e afastou-se com um meneio do corpo, enquanto

Endorfina descia lentamente até o nível do chão.

– Como pode? – falei. – Você agora é o Houdini?

– Ah, bem – suspirou em tom benévolo –, uma vez

que me digno a travar conversa com um quase paramécio,

posso muito bem revelar a você todo o esquema. Vamos

nos encaminhar à Stage Deli e dizimar alguns docinhos,

enquanto eu me exibo em todo o meu esplendor. – Com

isso, houve um estalido bastante audível, e Endorfina de-

sapareceu. Inspirei fundo e espalmei a mão sobre a minha

boca aberta, como uma atriz de cinema mudo espantada.

Segundos depois, ele reapareceu, com ar pesaroso.

– Desculpe. Esqueci que vocês, gente do último es-

calão, não podem se desmaterializar nem teletransportar.

Falha minha. Vamos bater perna até lá. – Eu ainda estava

me beliscando quando Endorfina deu início à sua história.

– Muito bem – disse ele. – Recuemos seis meses,

quando o filho da senhora Endorfina, Max, encontrava-se

Page 6: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

12 Woody Allen

numa encrenca emocional e atolado num monte de atri-

bulações, as quais, se incluirmos a minha boina que eu não

sei onde meti, ultrapassavam as de Jó. Primeiro, aquele

biscoitinho da sorte de Taiwan a quem eu dava aulas par-

ticulares de hidráulica anatômica descartou-me em favor

de um aprendiz de confeiteiro; depois, fui processado no

montante de muitos presidentes mortos por ter entrado

de ré com o meu Jaguar num Salão de Leitura da Ciência

Cristã. Acrescente a isso o fato de meu filho único de um

holocausto conubial anterior ter desistido de sua lucrati-

va carreira advocatícia para tornar-se um ventríloquo. E

assim lá estava eu, triste e cabisbaixo, em busca de uma

raison d’être, um centro espiritual por assim dizer, quan-

do de súbito, caído do céu, topei com um anúncio num

número novo da revista Vibrações Ilustradas. Uma espécie

de spa que lipoaspira da gente o carma ruim, alça-nos para

uma frequência mais alta, onde podemos afinal tomar as

rédeas da natureza à la Fausto. Em geral, sou demasiado

sensato para morder uma isca desse tipo, mas, quando

saquei que a diretora executiva era uma autêntica deusa

em forma humana, me perguntei: que mal vai fazer? E não

havia nenhuma taxa. Eles não pegam em grana. O sistema

se baseia numa variante da escravidão, mas em troca a

gente ganha aqueles cristais, que nos dão mais força, e toda

a erva-de-são-joão que conseguir enfiar nos bolsos. Ah,

estou deixando de lado o fato de que ela nos humilha. Mas

faz parte da terapia. Assim, os sequazes dela colocavam

rabinho de burro nos fundilhos das minhas calças sem eu

saber e me pregavam todo tipo de peça. Claro que fui alvo

de risadas por um tempo, mas, digo-lhe uma coisa, isso

Page 7: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

Errar é humano – flutuar é divino 13

dissolveu o meu ego. De repente me dei conta de que eu

tinha vivido vidas anteriores, primeiro como um simples

burgomestre e depois como Lucas Cranach, o Velho... ou

não, esqueci, talvez tenha sido o Jovem. De qualquer ma-

neira, o que me lembro depois disso foi que um belo dia

acordei em meu catre tosco e minha frequência estava na

estratosfera. Eu tinha uma espécie de nuvem em volta do

meu occipúcio e estava onisciente. Na verdade, logo depois

eu estava ganhando tudo na roleta no Belmont e dali a uma

semana atraía multidões toda vez que ia ao Bellagio em Las

Vegas. Se alguma vez me sinto inseguro sobre um cavalo

ou se devo apostar ou passar numa partida de vinte e um,

existe aquele tal consórcio de anjos que então consulto.

Afinal, só porque alguém tem asas e é feito de ectoplasma

não quer dizer que não possa perder. Olha só esta bolada.

Endorfina retirou de todos os bolsos diversos maços

grossos como dicionários, feitos de notas de mil dólares.

– Opa, me desculpe – disse ele, enquanto se atrapa-

lhava no esforço de recuperar alguns rubis que caíram do

seu paletó, quando mostrou a cornucópia de verdinhas.

– E ela não pede nenhuma remuneração por esse

serviço? – indaguei, enquanto meu coração desdobrava as

asas como um falcão peregrino.

– Bem, você sabe como são os avatares. São todos

gente boa.

Naquela noite, apesar de um tumulto de impreca-

ções oriundo da ala feminina e de um rápido telefonema

da parte dela para a firma Shmeikl e Filhos para conferir

se o nosso acordo pré-nupcial dava cobertura no caso de

um repentino ataque de demência precoce, me vi voando

Page 8: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

14 Woody Allen

para o oeste, rumo ao Centro da Ascensão Sublime com

a sua divindade residente, uma aparição em peças de lin-

gerie chamada Insolação da Galáxia. Após me convidar a

penetrar no santuário que dominava o seu reduto, uma

fazenda abandonada, curiosamente semelhante ao rancho

de Charles Manson e seus adeptos, ela baixou a sua lixa de

unha e instalou-se confortavelmente num sofá.

– Tire um peso dos seus pés, meu bem – disse ela

num tom que tinha menos de Martha Graham do que de

Iris Adrian. – Quer dizer então que você deseja entrar em

contato com o seu centro espiritual?

– Sim. Gostaria de dar uma elevada na minha frequên-

cia, de adquirir a capacidade de levitar, de me teletransportar,

de me desmaterializar e ter onisciência suficiente para adi-

vinhar em tempo hábil os números selecionados aleatoria-

mente que compõem o resultado da Loteria de Nova York.

– O que faz para ganhar a vida? – indagou ela, estra-

nhamente destituída de onisciência para uma criatura da

sua reputada magnitude.

– Vigia noturno num museu de cera – repliquei –,

mas não é tão gratificante quanto parece.

Voltando-se para um dos núbios que a abanavam com

leques feitos de folhas de palmeira, ela disse:

– O que acham, rapazes? Parece que ele daria um

bom zelador. Talvez pudesse tomar conta da fossa séptica.

– Muito obrigado – falei, enquanto me punha de

joelhos e pressionava o rosto contra o chão, em submissão.

– Muito bem – disse ela, e estalou as mãos enquanto

um quincôncio de leais lacaios acudia às pressas, saindo de

Page 9: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

Errar é humano – flutuar é divino 15

trás de cortinas de contas. – Deem uma tigela de arroz para

ele e raspem sua cabeça. Até que vague um leito, ele pode

dormir junto com as galinhas.

– Ouço e obedeço – sussurrei, desviando meus olhos

a fim de evitar que um olhar direto para a senhora Insola-

ção pudesse distraí-la das palavras cruzadas que ela havia

começado. Com isso, fui levado embora rapidamente, um

pouco apreensivo com a ideia de que eu pudesse ser marcado

com um ferro em brasa.

Até onde pude discernir nos dias que se seguiram, o

estabelecimento estava apinhado de perdedores de todas

as qualidades: poltrões e bundões, atrizes que norteavam

todos os seus passos segundo os planetas, os que tinham

excesso de peso, um homem envolvido em algum tipo de

escândalo no campo da taxidermia, um anão não assumi-

do. Todos buscavam ascender a um plano mais elevado,

enquanto trabalhavam de sol a sol numa submissão lobo-

tomizada para a deusa suprema, que de vez em quando era

vista dançando como Isadora Duncan ou inalando num

cachimbo comprido e depois dando gargalhadas cheias de

dentes como um chipanzé de pôster. Em paga de alguns

encantamentos e passes, feitos de vez em quando pelo

xamã-chefe do estabelecimento – um ex-leão de chácara

que julguei reconhecer de um documentário sobre aquela

lei americana que obriga a divulgação pública da foto do

rosto de todos os pedófilos do país –, os fiéis tinham de

mourejar de doze a dezesseis horas por dia, colhendo frutas

e legumes para o consumo da equipe, e fabricando artigos

vendáveis sortidos, como baralhos eróticos, dados feitos de

Page 10: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

16 Woody Allen

espuma de borracha para pendurar no espelho retrovisor

interno dos carros, limpadores de migalhas de mesa para

restaurante. Além de minhas responsabilidades na manu-

tenção do sistema de drenagem, como zelador cabia a mim

coletar e ensacar as embalagens descartadas de barrinhas

de alfarroba e os papéis de cigarro que salpicavam a paisa-

gem. A ração diária, fortemente calcada em grãos de alfafa,

missô e água ionizada, era um pouco difícil para a pessoa

se acostumar, mas uma nota de dez dólares deslizada para

um dos lamas menos fervorosos, cujo irmão era o gerente

de uma cantina nas proximidades, assegurava uma remessa

intermitente de pasta de atum. A disciplina era frouxa, e

cabia a cada um agir de maneira responsável, se bem que

infringir as regras dietéticas ou furtar-se ao trabalho podia

levar a uma flagelação ou a ser pendurado num poste tele-

fônico. As humilhações se sucediam sem cessar como parte

de um ritual de purificação do ego e, por fim, quando foi

decretado que eu devia fazer amor com uma sacerdotisa

cármica que era igualzinha ao Bill Parcels, aquele famoso

treinador de futebol americano, resolvi que estava na hora

de dar um tempo. Encolhendo minhas costas por baixo da

cerca de arame farpado, escapuli na calada da noite e sacudi

as bandeirinhas na pista de pouso para poder pegar o último

747 para o Upper West Side.

– Então – disse minha mulher, com a benévola tole-

rância com que a gente se dirige a uma pessoa prematura-

mente senil –, você se desmaterializou e se teletransportou

para cá, ou é mesmo um guardanapo da Continental Airli-

nes o que estou vendo balançar no seu colarinho?

Page 11: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

Errar é humano – flutuar é divino 17

– Não fiquei lá o tempo suficiente para poder fazer

isso – esquivei-me, abespinhado com a sua afronta sutil. –

Mas suei o bastante para conseguir este pequenino tour de

force. – E com isso levitei a quinze centímetros do chão e

flutuei, enquanto a boca de minha mulher se escancarava

como a boca do tubarão no famoso filme de Spielberg.

– Vocês, sabidões de frequência mais baixa, não en-

tendem nada – falei, cortando as asas dela com um júbilo

incontido, embora disposto a perdoar. A mulher emitiu

um ganido penetrante, do tipo que serve de alerta de um

bombardeio inimigo e sugere que nossos filhos corram e

procurem abrigar-se daqueles vodus saídos de um pesadelo.

Foi nesse instante que comecei a me dar conta de que eu

não conseguia descer e, por mais que tentasse me deselevar,

descobria que a manobra era impossível. Seguiu-se um

pandemônio similar à cena no camarote de navio no filme

Uma noite na ópera, os filhos se sacudiam e se esgoelavam

histericamente, enquanto os vizinhos acudiam correndo

para salvar-nos daquilo que deve ter se anunciado como

um banho de sangue. Durante todo esse tempo, eu não

parava de tentar, com todas as minhas forças, baixar-me,

fazendo caretas e me contorcendo como um mímico. Por

fim, entrando em cena com decisão, a minha cara-metade

chamou para si a responsabilidade de subjugar aquela de-

formação da física convencional e apanhou o esqui de um

vizinho com o qual bateu com toda força na minha cabeça,

despachando-me para terra firme num piscar de olhos.

A última notícia que tive de Max Endorfina foi que

ele se desmaterializou para nunca mais se rematerializar.

Page 12: Errar é humano – flutuar é divino · Errar é humano – flutuar é divino 11 – Olhe só isto – disse Endorfina, que tomou um fôlego profundo e começou a elevar-se do chão

18 Woody Allen

Quanto a Insolação da Galáxia e o seu Centro da Sublime

Ascensão, corre o boato de que foram desmantelados por

fiscais da Receita Federal e reencarnaram, ou será reencar-

ceraram? Quanto a mim, jamais consegui ganhar as alturas

outra vez nem adivinhar o nome de um cavalo que no jóquei

chegue antes do sexto colocado.