136

Escrevendo Com a Alma - Natalie Goldeberg

Embed Size (px)

Citation preview

  • Escrevendo sob a perspectiva tanto de um experiente professor de redao como de um praticante do Zen, Goldberg estimula escritores a confiar em si mesmos e prega uma atitude complacente e generosa para com o ofcio, ao mesmo tempo conferindo disciplina seu devido papel. Este livro deveria estar na estante de todos os escritores.

  • PrefcioUManoatrs,numanoitededezembroemSantaF,NovoMxico,fui

    festadeaniversriodeumjovemcineastaqueeuconheciadevista.Durantecercademeiahora,fiqueiempaoladodobufconversandocomumrapazdetrintaepoucosanos,queeuacabaradeencontrar.Eleera,evidentemente,umpoeta convicto.Contei-lheque eu tambm fora poeta antes de escrevermeuprimeirolivro.Rimosumdooutro.Euestavamedivertindomuito.

    De repente, com uma expresso zombeteira no rosto, ele perguntou:"Ento,quelivrosvocescreveu?"

    "Bem,escrevivrios",respondi."MasomaisconhecidoWritingDowntheBones[Escrevendocomaalma]."

    "Nome diga!", exclamou ele, com os olhos arregalados. "Achei quevoctivessemorrido."

    Sem piscar, retruquei: "No, ainda no. Continuo a na luta, gastandotintaepapel."

    Erimososdois.Elenoprecisoudizermaisnada.Entenditudo:elehavialidomeulivro

    nocolgio.Todososlivrosquelemosnessapocaspodemserdeautores,ouautoras,jfalecidos.impossvelquealgumescritorestudadonoensinomdioaindaestejavivo.

    Escrevendocomaalmasaiuem1986.Sempredigoameusleitoresque,se tivessesidopublicadonosanoscinquenta,o livro teriasidoumfracasso.Mas ele chegou na hora certa, num momento em que multides deamericanos sentiam necessidade de se expressar. Escrever democrtico;transcendefronteirasgeogrficas,declasse,raa,sexo.Recebicartasdetodotipode fs:vice-presidentedecompanhiadesegurodaFlrida;operriodeNebraska;metalrgicodoMissouri;presidiriodoTexas;advogado,mdico,ativista pelos direitos dos homossexuais, dona de casa, bibliotecrio,professor, religioso, poltico. Deflagrou-se uma verdadeira revoluo naliteraturapoucodepoisdo lanamentodo livro.Surgiramsees reservadaspara os livros de redao nas livrarias. Um aluno meu disse o seguinte:"Entendi!Escreveranovareligio."

    "Mas por que todo o mundo quer escrever?", as pessoas meperguntavam.

    Noachoquetodostenhamapretensodeescreveromaiorromancedo

  • sculo, mas todos sonhamos poder contar as nossas histrias descobrirnossamaneiradepensar,sentireverascoisasantesqueamortenosleve.Aescrita um caminho para nos encontrarmos e nos aproximarmos de nsmesmos. Pense comigo: as formigas no sabem escrever, nem as rvores,nem os cavalos puros-sangues, nem os alces selvagens, nem os gatos deestimao, nem a grama, nem as pedras. Escrever uma atividadeexclusivamentehumana.PodeatestargravadaemnossoDNA.EladeveriaserincludanaDeclaraodeIndependncia,juntamentecomoutrosdireitosinalienveis: "direito vida, liberdade, busca da felicidade e aescrever".

    Eumaatividadebarata.Tudooquevocprecisa papel, caneta (oucomputador, se faz tanta questo) e a mente humana. Que lacunas dapercepoinexploradavocdesejapesquisar?Emqueoutonoaluaentrounasuavida?Quandofoiquevoccolheufrutassilvestresemseumomentomaisquintessencial? Quanto tempo demorou para voc ganhar a sua primeirabicicletadeverdade?Quemsoosseusanjos?Emquevocestpensando?Emquevocnoestpensando?

    Oquevocestolhando?Oquevocnoestolhando?Escrever trazmaisconfiana,ensinaadespertar.

    WritingDown the Bones est alicerado em dois mil anos de estudossobre amente humana.No foi somente uma ideia criativa daNatalie. Euquisfundamentarestaobra,apoi-lasobreumabaseslida.Napocaemqueaescrevi,estudavameditaohaviadezanos,seisdosquaissobaorientaoestrita de um mestre do Zen japons. De onde vm os pensamentos?Aslembranas,asideias,atmesmoosartigosdefinidos?Aprticadameditaoeaprticadacriao literriasoanlogas.Quantomaiscompreendemosamentehumana,nossaprincipalferramentadetrabalho,melhorescrevemosecommaissegurana.

    Quandolanceiestelivro,aspessoasmechamavamdegnio.Agradeciaoelogio, mas no fundo sabia que no tinha nada de genial. Talvez o nicomomentorealmentebrilhantetenhasidoadecisodedeixaroZenconduziroprocessodeescrever.Tinhaumavontaderealesinceradecompreenderessavida de escritora. Queria muito escrever, mas no sabia como. A escolapblica no me ensinara. Quando cheguei universidade, j tinhapraticamente desistido da ideia. Mas tinha um desejo profundamentearraigadodentrodemim,umanseioqueeuprpriaignoravapossuir.Estavaapaixonadapeloslivros.

    Certashistrias,somenteeuasconhecia:casosdaminhafamlia,omeuprimeirobeijo,omeultimocortedecabelo,ocheirodeslviaespalhando-se

  • pelos planaltos escarpados, osmeus laos de amizade com as plancies deNebraska.Precisariaficarlerdaemuda(semfazerqualquersuposio)paraentoobservarevercomotudoseconecta,comovocentraemcontatocomseuspensamentoseosexpressanopapel.

    Quisera eu ter a chancede escrever novamente aquela redao escolar,

    "Minhas Frias". Quando a escrevi, na quinta srie, era muito medrosa elimitei-me a dizer: "Foi interessante. Foi bom. Meu vero foi divertido."Passei com um B.Mas eu ainda me perguntava: "Qual o jeito certo defazer?"Hoje isso est bvio.Vocdiz a verdade e descreve a verdade emdetalhes: minhame tingiu o cabelo de ruivo e pintou as unhas do p deesmalteprata.Eusqueriasaberdejogarludo, tomarbanhodemangueira,prenderbesourosnovidrodemaioneseealiment-loscomgrama.Meupaiestava sempre sentadomesadacozinha,olhandoparaa frente, semdizerpalavra,comaBudweisernamo.

    Que oportunidade para contar da paixonite que tive pelo loirinho quemoravapertodecasa,daminhaperplexidadeetristezadiantedasnotciasdediscriminao racial quevi naTV,domeumedodequeminha irm fossemaisbonitadoqueeu,dasaladaderepolhoquepreparavacomminhaav.Masnosabiacomonarrartudoisso.

    Nestelivro,ensinoatodoscomofazeraosvelhosejovensalunos.Espero sinceramente que este livro seja adotado em todas as escolas

    pblicas e privadas, que os alunos aprendam a praticar a escrita, quedescubramasimesmos,quesintamprazeremexpressar-se,queconfiememsuasprpriasideias.Aoentraremcontatocomasuamente,vocpassaaservocmesmoeseliberta.

    Fazmuitotempo,lialistadeelementosessenciaisdaprosaelaboradaporJack Kerouac. Quatro itens, em especial, serviram-me de inspirao paraseguirminhajornada:

    AceiteaperdairremedivelSejasubmissoatudo,receptivo,atentoNohoquetemeroudoqueseenvergonharna dignidade de sua experincia, sua lngua, seuconhecimento,Sejaapaixonadopelavida

    Acredite, voc tambm pode encontrar seu lugar nesse imenso terreno

  • queaescrita.Ningumtodesajustadoquenopossaseadaptarali.Agorav,porfavor.Acabe-sedetantoescrever.

    dezembrode2004.

  • AgradecimentosQuero agradecer aWendy Feldman a digitao do manuscrito; a Rob

    StrellporseuapoioconstanteeporabrirespaoparaaredaonoInstituto;aCecile Moochnek, que est comigo desde meu primeiro grupo de criaoliterria;aMiriamSaganpelaleituradaobra;aBeverlyBaranowskiporterpegado um avio para passar um nico dia comigo, quando terminei omanuscrito; aKatagiriRoshi por suaprtica contnua e por tudooquemeensinou;eaEmilyHilburnSell,minhapreparadoradeoriginais.

    Escrevendocomaalma

    IntroduoFuialunacertinhadurantetodoomeutempodeescola.Queriaquemeus

    professoresgostassemdemim.Aprendiausarvrgula,dois-pontos,ponto-e-vrgula. Fazia redaes com frases claras, mas completamente insossas edesenxabidas.Nelas no havia nenhum pensamento original ou sentimento

  • genuno. Esforava-me para dar aos professores aquilo que, na minhaopinio,elesesperavamdemim.

    Na faculdade ca de amores pela literatura. Enlouqueci mesmo.DatilografavaospoemasdeGerardManleyHopkinsvriasvezesseguidas,natentativadedecor-los.LiaJohnMilton,ShelleyeKeatsemvozalta,atdesmaiar de cansao na caminha estreita do alojamento em que morava.Comouniversitrianosanossessenta, liaexclusivamenteescritoreshomens,quase sempre falecidos, ingleses e europeus em geral. Estavam muitodistantes da minha vida cotidiana e, apesar de am-los, nenhum deles eracapaz de refletir minha experincia de vida. Inconscientemente, passei aacreditarqueoofciodeescrevernoestavaaomeualcance.Nuncapenseiemtornar-meescritora,emborasonhasseemcasar-mecomumpoeta.

    Depois de me formar e constatar que ningumme contrataria para lerromancesedelirarcompoesia,abri,numaespciedecooperativacommaistrsamigos,umrestaurantedecomidanaturalnoporodoNewmanCenter,emAnnArbor,Michigan.Eraoinciodosanossetenta.Sfuiprovarabacatepelaprimeiravezumanoantesda inauguraodorestaurante.BatizamosolugardeNakedLunch, emhomenagemao romancedeWilliamBurroughs"uminstantesuspensonoqualtodosveemoquehnapontadetodososgarfos". De manh eu assavamuffins com passas emuffins com frutassilvestresou,setivessevontade,atcompastadeamendoim.Naturalmente,euqueriaagradarosfregueses,massabiaque,seosfizessecomcuidado,osmuffinseramquasesempresaborosos.Havamoscriadoorestaurante,eagoranohaviamaisnenhumagranderespostaexteriorcapazdenosgarantirnotadeznaescola.Foibemaliquecomeceiaaprenderaconfiarnaminhaprpriacabea.

    Certa tera-feira, estava eu preparandoratatouille para o almoo. Parafazeressareceitanumrestaurante,vocnocortaapenasumacebolaeumaberinjela.Obalcoestavarepletodecebolas,berinjelas,abobrinhas,tomatesecabeasdealho.Passeihoraspicandoefatiandooslegumes.Naquelanoite,ao voltar para casa, passei na livraria Centicore, na State Street, e fiqueicirculandoentreasestantes.Encontreiumlivrodepoesia,fininho,intituladoFruits and Vegetables [Frutas e verduras], de Erica Jong. (A autora eradesconhecida na poca e ainda no havia lanado seu romanceMedo devoar.)Oprimeiropoemaqueabrierasobrecomocozinharberinjela!Fiqueiestupefata: "Ento quer dizer que possvel escrever sobre um assuntodesses?"Algo to trivial?Algo que eu fazia no dia a dia?Aconteceu umasinapsenomeucrebro.Fuiparacasadecididaaescreversobrecoisasqueeuconhecia,aconfiarnasminhas ideiasenosmeussentimentoseanoolhar

  • paraforademim.Noestavamaisnaescola:podiadizeroqueeuquisesse.Comeceiaescreversobreminhafamlia,porqueningumjamaisdiriaqueeuestavaenganada.Euaconheciamaisdoqueningum.

    Fazquinzeanosquetudoissoaconteceu.Umamigomedissecertavez:"Confie no amor, e o amor a levar aonde for preciso." Permito-mecomplementar: "Confienaquilo que voc ama, continue amando, e o amorlevarvocaonde forpreciso."Enosepreocupemuitocomasegurana.Vocalcanarumaseguranaprofundaquandocomearafazeroquegosta.Poisquemdens,mesmocomnossosaltossalrios,estrealmenteseguro?

    Nosltimosonzeanos, realizeioficinasde redaonaUniversidadedoNovo Mxico; na Fundao Lama; para oshippies em Taos, no NovoMxico;para freiras emAlbuquerque;paramenores infratores emBoulder;naUniversidadedeMinnesota;noNortheastCollege,umaescolatcnicadeNorfolk, Nebraska; como integrante do programa Poet-in-the-Schools deMinnesota;paragruposderedaonaminhacasanodomingonoite;paragruposdehomossexuais.Ensinoosmesmosmtodosemtodososcasos.Soinformaes to essenciais sobre como acreditar no seu intelecto e ganharconfiana na sua experincia que nunca me canso de ensin-las. Pelocontrrio:minhaperceposeaprofundacadavezmais.

    Em1974,comeceiapraticarmeditaosentada.De1978a1984,estudeio zen-budismo demaneira formal comDaininKatagiriRoshi (Roshi umttulo atribudo aos mestres do Zen), no Centro Zen de Minnesota, emMinneapolis.Semprequemedirigiaaeleelhefaziaalgumaperguntasobreobudismo, eu tinha certa dificuldade para entender a resposta.At que eledizia:"Porexemplo,quandovocestescrevendoumtexto..."Quandoelesereferiaescrita,eucompreendia.Cercadetrsanosatrs,elemefalou:"Porquevocpraticameditao?Porquenofazdaescritaasuaprtica?Sevocrealmenteseaprofundarnoofciodeescrever,eleolevaraqualquerlugar."

    Estelivrosobreaescrita.tambmsobrecomofazerdaescritaasuaprtica, umamaneira de ajud-lo a compreender sua vida e tornar-semaisequilibrado.Tudooquesedizaquiarespeitodaescritapodeseraplicadocorrida, pintura, a qualquer coisa que voc ame e com a qual tenhaescolhidotrabalharemsuavida.Depoisdemeouvirlervrioscaptulosdestelivro,meu amigo JohnRollwagen, presidente daCrayResearch, observou:"Puxa,Natalie,vocestfalandodenegcios.exatamenteassimnomundodosnegcios.Noexistediferenaalguma."

    Aprenderaescrevernoumprocessolinear.Noexisteumasequncialgica de etapas, um abec para se tornar um bom escritor. Nenhumaverdade,pormelhorqueseja,capazde respondera tudo.Existemmuitas

  • verdades.Escreversignifica lidarcomtodaasuavida.Sevocrecebeumasrie de instrues sobre como imobilizar um osso quebrado no tornozelo,nopodeusaressemesmoconhecimentoparafazerumaobturaodentria.Numa seodeste livrovoc ser orientado a ser especfico e preciso. Issoservepara curar o hbito de escrever demaneira excessivamente abstrata esinuosa.Masento,emumoutrocaptulo,serchamadoasoltarocontrole,aescrever no ritmo da emoo. Isso serve para estimul-lo a expressar, comprofundidade, o que voc precisa dizer. J outro captulo recomendar quevoctenhaumescritrio,quearranjeumlugarsseuparaescrever,enquantoocaptuloseguintedir:"Saiadecasa,fujadalouasujanapia.Vescrevernumcaf."Cadatcnicaapropriadaparaumadeterminadasituao.Cadamomentonico.Vriascoisasdiferentespodemfuncionar.Noexistecertoeerrado.

    Quando dou uma aula, meu desejo que os alunos "registrem aessncia", o discurso elementar e vivo damente.Mas tambm sei que noposso simplesmente dizer: "Pois bem, escrevam com clareza e muitasinceridade."Nasaulas,experimentamosdiferentestcnicasemtodos.Maiscedooumais tarde,osalunosatingemseuobjetivoedescobremaquiloquedevemdizerecomodevemdiz-lo.Masraramenteumaquestode:"Ento,naterceiraaula,depoisqueaprendermosissoeaquilo,vocssaberoescreverbem."

    Omesmoocorrecoma leituradeste livro.L-lodocomeoao fim,nasequncia, pode funcionar muito bem na primeira vez. Mas voc podetambm abrir em um captulo qualquer e comear da. Cada captulo foielaborado como uma unidade independente. Relaxe e tente absorver asinformaescomocorpoecomamente,comoseporosmose.Enofiqueapenasna leitura.Escreva.Confieemsimesmo.Descubraas suasprpriasnecessidades.Useestelivro.

    Papel,canetaeamentedoiniciantetimodaraulasparaquemestcomeando.Voltarapensarcomoum

    iniciante, relembrar minhas primeiras impresses sobre a escrita. De certamaneira,devemossemprevoltarapensarcomouminiciantetodavezquenossentamos para escrever.No h comoprever nemgarantir que, por termosproduzidoumtextobomdoismesesatrs,seremossemprecapazesderepetirofeito.Naverdade,semprequecomeamosumnovoprojeto,perguntamo-nos como foi que conseguimos fazer aquilo antes.Cada incio umanova

  • jornadaparaaqualnoexistemmapas.Ento,quandodouaulasderedao, tenhodecontarahistriadesdeo

    princpio, sem me esquecer de que aqueles alunos a esto ouvindo pelaprimeiravez.Tenhodecomearbemdocomeo.

    Emprimeirolugar,pensenacanetaquevocusaparaescrever.Eladeveproporcionar uma escrita rpida, pois seu pensamento sempremuitssimomais veloz do que suamo.Voc no quer uma caneta que faa suamodemorar ainda mais. Esferogrficas, hidrogrficas e lpis so, certamente,opes mais lentas. V at uma papelaria e experimente vrios tipos, atencontraroquemaislheagradar.Noescolhanadamuitochiquenemmuitocaro.Particularmente,sempreusoummodelobaratinho,umacaneta-tinteiroda Sheaffer que custa menos de dois dlares e tem cartucho recarregvel.Comprei centenas ao longo dos anos. J usei vrias cores diferentes. Elassemprevazam,massorpidas.Essasnovascanetas tiporollerball tambmsobemvelozes,masvocperdeumpoucodocontrole.interessantesentirocontatoeatexturadacanetasobreopapel.

    Pensetambmnocaderno.importante.Eleoinstrumentodetrabalhodoescritor,assimcomoomarteloeopregosoasferramentasdocarpinteiro.(Vejaquesorte:comuminvestimentobaixssimovocjabreseunegcio!)Algumaspessoasoptamporcadernoscarosdecapadura,maisvolumososepesadosetoelegantesquevocsesenteobrigadoaescreveralgobom.Masoimportantequevocsesintalivreparaescreverasmaioresbobagenssem nenhum constrangimento. D-se o espao necessrio para explorar otexto.Umcadernoespiral,daquelesbaratos,proporcionaasensaodequelogopoderemoscomplet-loecompraroutroemseguida.E tambm fcilde carregar. Sempre compro bolsas com o tamanho apropriado paraacomod-lo.

    Garfield, Muppets, Mickey Mouse, Guerra nas Estrelas. Gosto decadernoscomcapasdivertidas.Nuncafaltamlanamentosnapocadevoltasaulas.Custamumpoucomaisdoqueoscadernosespirais,maseuprefiro.NopossomelevarmuitoasrioescrevendonumcadernodoSnoopy.Issotambmmeajudaalocaliz-loscommaisfacilidade:"Ah,sim,naqueleverouseicadernoscommotivosdecowboy."Experimentevrios tiposdiferentescompautaousempauta,decapaduraoucapamole.Oimportantequevocseadaptebem.

    O tamanhodocaderno tambm relevante.Umcadernopequenocabeno seu bolso, mas seus pensamentos tambm sero pequenos. Isso no problema. William Carlos Williams, famoso poeta americano e tambmpediatra, escreveu vrios poemas no seu receiturio, nos intervalos das

  • consultas.

    DetalheSeudoutor,andeiteprocurandoTedevodoispaus.Comoquevai?Bem.QuandoarranjaragaitaTetrago.*

    *William Carlos Williams, "Detail", em The Collected Earlier Poems (Nova York: New Directions,1938).

    Hmuitospoemasdotamanhodereceitanasobrasreunidasdoautor.Em alguns momentos, em vez de escrever mo, voc talvez queira

    digitar seu texto.Oatodeescrever fsicoediretamente influenciadopeloequipamentoqueseutiliza.Aodatilografar,osdedospressionamasteclaseproduzemumasequnciadeletrasdefrma,todaspretaseuniformes:umaspecto diferente de voc que semanifesta.Descobri que, quando escrevoalgoqueenvolvesentimentos,precisoprimeiroescrevermo,diretamentesobreopapel.Aescritamoestmaisligadaaomovimentodocorao.Poroutrolado,quandoescrevocontos,partologoparaamquinadeescrever.

    Outracoisaquevocpodefazerditaro textoparaumgravadorevercomo se sente dando voz a seus pensamentos. Essa forma pode serconvenientesvezes:digamosquevocestejafazendoabarradeumvestidoede repentecomecea lembrardecomofoiahistriacomseuex-maridoedecidaescreversobreoassunto.Suasmosestoocupadasnacostura,masvocpodeditarotextoparaogravador.

    Tenhopoucaexperinciacomocomputador,masconsigome imaginarusandoumMacintosh,comotecladonocolo,deolhosfechados,digitandosem parar.O computadormuda de linha automaticamente. Esse recurso sechamawraparound.Vocpodeescreveratcansar.Esemsepreocuparcomotilintardamquinadeescreversemprequeseaproximadofinaldalinha.

    Experimente. Tente tambm escrever num daqueles grandes blocos dedesenho. verdade que o mundo interior cria o mundo exterior, mas omundo exterior e as ferramentas que usamos tambm influenciam a forma

  • tomadapornossasideias.Quetalescrevernocu?Escolha seus instrumentos com cuidado, mas no a ponto de se sentir

    intimidadoporeles,ougastarmaistemponapapelariadoquetrabalhandonaescrivaninha.

    PrimeirasimpressesO elemento bsico da prtica de escrever o exerccio com tempo

    determinado.Vocpodeestabelecerseulimiteemdezminutos,vinteminutosouumahora.Aescolhasua.possvelcomearcompoucoeaumentarotempo depois de uma semana, ou se jogar de cabea por uma hora j naprimeiravez.Nofazdiferena.Oimportantequevoccumpraolimitedetempoestipuladoparaaquelasesso:

    1.Mantenhaamoemmovimento.Noparepararelera linhaqueacaboudeescrever.Issoseretardaretentarcontrolaroquevocestdizendo.

    2 .No rasure. Isso editar enquanto escreve.Mesmo que escrevaalgoquenopretendiaescrever,deixecomoest.

    3.Noseprendaaortografia,pontuao,gramtica.Tampoucoseprendasmargensouslinhasdapgina.

    4.Solteocontrole.

    5.Nopense.Notenteserlgico.

    6.Peguenaveia.Sesurgiralgomuitoforteoumuitochocantenoseutexto,mergulhefundo.provvelquealiexistaumagrandefontedeenergia.

  • Essas so as regras. importante respeit-las, pois o objetivo aqui justamenteconseguirchegarataquelasprimeirasimpresses;voltarquelemomento longnquonoqual aenergiaaindanohavia sidoobstrudapelasboasmaneirasoupelocensorinterior;retornarqueleinstanteemquevocescreveexatamenteaquiloqueasuamentevesente,noaquiloqueamentepensa que v e sente. uma tima oportunidade para captar todas asestranhezas da sua mente. Explore o lado mais spero do pensamento. comoralarumacenoura:daopapelaslascascoloridasdasuaconscincia.

    Essas ideias iniciais guardam uma energia tremenda. So as primeirasimpresses que a mente produz a respeito das coisas. O censor internogeralmenteasreprimee,poressarazo,permanecemosnonveldassegundase das terceiras impresses, impresses de impresses, distantes duas, trsvezesdaquelaprimeiraimagemoriginal.Digamos,porexemplo,queafrase"Arranquei amargaridadagarganta" tenha surgido emminhamente.Numsegundomomento,meucrebrocuidadosamentecondicionadopelalgicaquedizque1+1=2,pelapolidez,pelomedoepelatimidezdiantedoquenaturalresponder:"Issoridculo.Vocpareceumasuicida.Noretratea si mesma tentando cortar a garganta. Pensaro que voc maluca." Sedermos ouvidos ao nosso censor interior, escreveremos: "Minha gargantaestavaumpoucoinflamada,porissonodissenada."Certinhoesemgraa.

    Almdisso,asprimeiras impressesnosotolhidaspeloego,poressemecanismo em ns que tenta exercer o controle, tentando provar que omundo permanente e slido, constante e lgico. O mundo no permanente:mutanteeestrepletodesofrimento.Assim,sevocexpressaalgosema influnciadoego,oresultado tambmestar repletodeenergia,poisexpressarascoisastalcomosodeverdade.Emvezdecarregaropesodoegoemsuaexpresso,estarvelejandonasondasdaconscinciahumanaeusandoseuarsenaldeparticularidadespararetrataraviagem.

    Na meditao zen, costumamos sentar numa almofada chamada zafu,com as pernas cruzadas, coluna ereta, mos nos joelhos ou na frente docorpo, numa posio denominada mudra. Posicionamo-nos diante de umaparede branca e observamos nossa respirao. Independentemente dosentimentoqueestamosexperimentandonomomentotempestadesdedioe resistncia, furaces de alegria e de tristeza, permanecemos sentados,colunaereta,pernascruzadas,olhandoparaaparede.Aprendemosanonosdeixarabalarpelaemoooupelopensamento,pormaisintensosquesejam.Adisciplinaesta:permanecersentado.

    Omesmo ocorre com a escrita. Voc precisa ser um grande guerreiro

  • quando toma contato com as suas primeiras impresses e escreve a partirdelas.Sobretudonoincio,provvelquevocsejaarrebatadoporumaforteemooou energia,masnopare de escrever.Continueusando a caneta eregistrandoosdetalhesdasuavidaatchegaraocerne.Nasaulasiniciais,comum os alunos chorarem ao ler seus textos. Isso normal. s vezes,choram at quando esto escrevendo. Estimulo-os a continuar lendo ouescrevendomesmoentrelgrimas.Dessemodo,completamatarefaenosedeixam desconcentrar pela emoo. No se deixe interromper pelo choro;prossigaatencontraraverdade.Disciplinaisso.

    Acimadetudo,sabeporqueasprimeirasimpressessotopoderosas?Porque so sinnimos de frescor e inspirao. Inspirao vem de inspirar,inalar. InalarDeus.Naverdade,vocse tornamaiordoquesimesmoeasprimeirasimpressessefazempresentes.Elasnosoumsimulacrodaquiloqueestrealmenteacontecendooudaquiloqueestamossentindo.Opresenteestimbudodeumaenergiaextraordinria.Ascoisassooqueso.Aosairdeumretirodemeditao,umaamigabudistacomentou:"Ascoresficarammuito mais vibrantes."Ao que seu instrutor respondeu: "Quando estamospresentes,omundosetornaverdadeiramentevivo."

    AprticadeescreverAprender a escrever requer prtica. como correr: quanto mais

    treinamos,melhoronossodesempenho.Emcertosdias,estamossemvontadedecorrerecadapassoumalutanaquelescincoquilmetros.Mascorremosmesmoassim.Querendoouno,treinamos.Ningumficaesperandoporumainspirao ou por um desejo repentino de correr. Isso nunca acontecer,principalmenteseestivermosforadeformaouevitandooexerccio.Mas,secorremos com frequncia, treinamos a mente para vencer ou ignorar aresistncia. Simplesmente corremos. Na metade do caminho, estamosadorando.No final, noqueremosparar.E, quandoparamos, novemos ahoradecomeardenovo.

    Comescrevertambmassim.Umavezenvolvidosdecorpoealmanaatividade, sempre nos perguntamos por que demoramos tanto tempo parasentar e comear a trabalhar. A prtica realmente leva perfeio. Vocaprende a termais confiana no seu "eu" interior e a no ceder voz quetenta desestimul-lo a escrever.Achamos normal que um time de futeboltreineportantashorasseguidasantesdeumjogo;entretanto,quandosetrata

  • deescrever,raramentenosdamosaoportunidadedepraticar.Quando for escrever, no diga: "Agora vou escrever umpoema."Essa

    atitude o paralisar imediatamente. Evite aomximo as expectativas.Diga:"Soulivreparaescreverasmaioresbobagensdomundo."Permita-seescreversem destino. Tive alunos que afirmaram ter decidido escrever o maiorromanceamericanoe,desdeento,nopassaramdaprimeiralinha.Setivermuitas expectativas toda vez que se sentar escrivaninha, o processo deescrever ser sempre muito frustrante. Sem falar que toda essa ansiedadepoderafast-loaindamaisdoexercciodeescrever.

    Minha regracompletarumcadernoporms. (Volta emeiacrioessasregrinhas para mim mesma.) Simplesmente preench-lo. assim o treino.Meu ideal escrever todos os dias. Repito: trata-se de um ideal. Tomocuidadoparanomecriticarnemficaransiosasenoconsigocumpri-lo.Nosepodeviverpresoaideais.

    Nosmeuscadernos,nomepreocupocomasmargenslateraisoucomamargemsuperior:usoapginatoda.Noestoumaisnaescola.Noescrevomaisparaoprofessorler.Escrevoparamimmesmae,portanto,noprecisoater-me a limites, muitomenos amargens. Issome proporciona uma certaliberdade,umacertalicenapsicolgica.Equandoestouescrevendo,comamo namassa, poucome importa a ortografia ou a pontuao.Atminhacaligrafiamuda.Elasetornamaioremaissolta.

    Muitas vezes, ao observar os alunos escrevendo na sala de aula, soucapaz de distinguir quais deles esto realmente presentes, de corpo e alma,naquelemomento.Elessemostrammaisintensamenteenvolvidosnatarefaeexibemumaposturacorporalmaisrelaxada.Maisumavezcomonacorrida.Hpoucaresistnciaquandooexercciobenfeito.Todooseuserestemmovimento: o "eu" no se separa do corredor. Quando estamos realmentepresentes ao escrever, no existe escritor, papel, caneta, pensamento. S oescreveracontecetodoorestodesaparece.

    Umdosprincipaisobjetivosdaprticadeescreveraprenderaconfiarnasua mente e no seu corpo; tornar-se a cada dia mais paciente e menosagressivo.Aartepertenceaummundomaior.Seumpoemaouumconto,no faz lmuita diferena.O importante o processo de escrever e viver.Muitos autores escreveram livros fantsticos e acabaram loucos, alcolicos,suicidas. Essa prtica nos ensina a sanidade. Tentamos ser sos enquantoescrevemosnossospoemasecontos.

    ChgyamTrungpaRinpoche,mestrebudistatibetano,diziaoseguinte:"precisoabrir-semesmoemfacedaoposiomaishostil.Aindaquenadanos

  • motive,devemossempredesfolharasptalasdocorao."Omesmoocorrecomaprticadeescrever.precisocontinuaraseabrireconfiarnasuavozenoprocessoemsi.Nofinal,seoprocessoforbom,oresultadotambmserbom.Seutextoserbom.

    Certavez,umaamigamecontouque,semprequefaziaumbomdesenhoem preto e branco e decidia colori-lo, treinava antes com outras figuras dequalidadeinferior,comoumaespciedeaquecimento.Praticartambmumaquecimentoparaqualquercoisaquevocseproponhaescrever.opontapinicial, amaneiramais primitiva e original de comear.A confiana quevocadquireemsuavozinteriorpodeserdirecionadaaumacartacomercial,umromance,umatesededoutorado,umapea,umlivrodememrias.Masissoalgoaquevocdevevoltarsempreesempre.Nopense:"Agorasim!J sei escrever. Confio naminha voz. Estou pronto para escrever omaiorromance do sculo." Estar pronto para escrever um romance timo,masnuncadeixedesededicaraotreino.issoqueomantmafinado,comoumbailarino que faz aquecimento antes de danar ou um atleta que fazalongamentoantesdecorrer.Oscorredoresnodizem:"Corriontem,entojestoupreparado."Elesseaquecemesealongamtodososdias.

    Aprticade escrever se estende a todosos aspectosda suavida enoimpe nenhuma sequncia lgica: no h nenhum captulo 19 dandosequnciaaodocaptulo18.omomentodesesoltar,deserlivreparamisturaralembranadasopaquesuaavfaziacomaimagemdeslumbrantedasnuvensvistasdasua janela.Nohumadireoaseguiredizrespeitosomenteavoceaotempopresente.Imaginequeaprticadeescreverumespao que sempre o acolher de braos abertos, sem lhe exigir nenhumalgicaoucoerncia.anossaflorestaselvagem,ondereunimosenergiaparairapararonossojardim,escrevernossosbelospoemaseromances.prticacontnua.

    Agorasente-se.D-meestemomento.Escrevaoqueestiverpassandoporsuacabea.Vocpodecomearcom"nestemomento"eacabarescrevendosobreagardniaqueusounoseucasamento,seteanosatrs.Tudobem.Notentecontrolarnada.Estejaatentoatudooquesurgiremantenhaamoemmovimento.

    CompostagemA conscincia leva um certo tempo para filtrar as experincias. Por

    exemplo, difcil escrever sobre o amor quando estamos envolvidos numapaixo arrebatadora. No temos o distanciamento necessrio. Tudo o que

  • conseguimos dizer "Estou loucamente apaixonado", centenas de vezes.Tambmcomplicadoescreversobreumacidadeparaaqualacabamosdenosmudar;elaaindanoseincorporouans.Noconhecemosbemanossanova casa,mal sabemos chegar at a farmcia sem nos perder.Ainda nopassamos ali trs invernos nem vimos os patos migrarem no outono eretornarem aos lagos na primavera. Hemingway escreveu sobre MichiganenquantoestavasentadonumcafemParis."Quandoestiverlonge,talvezeupossa escrever sobre Paris assim como em Paris pude escrever sobreMichigan.Nosabiaqueaindaeramuitocedopara isso,porqueaindanoconheciaParisosuficiente."*

    *ErnestHemingway,AMoveableFeast(NovaYork:CharlesScribner'sSons,1964).

    Os nossos sentidos, por si ss, no tm inteligncia. Eles absorvem as

    sensaes,masprecisamdaquelafertilidadequesurgequandosofremaaoprolongada de nossa conscincia e de todo o nosso corpo. Chamo esseprocesso de "compostagem". Imagine que o corpo um depsito de lixo:acumulamos experincia e, a partir da decomposio das cascas de ovo,folhas de espinafre, p de caf e sobras de carne, descartados pelamente,surgem nitrognio, calor e adubo. desse solo frtil que brotam nossospoemas e histrias. Mas isso no acontece de uma hora para outra. Levatempo.Continuesemprerevirandoosdetalhesorgnicosdasuavidaatque,infiltrando-se pelo lixo dos pensamentos discursivos, eles possam chegar ricacamadadehmus.

    Quandoumalunoescrevevriaspginasdetextoeaslemvozaltaemsaladeaula,aindaqueo resultadonosejanecessariamenteexcelente, ficocontentedeperceberqueeleestexplorandosuamenteembuscadematerial.Seiqueelevaicontinuar,quenoestobcecadocomotexto"perfeito",queest no processo de treinar. Est arando o solo de sua mente, remexendoaqueles pensamentos ainda incipientes. Se continuarmos trabalhando essamatria-prima,elavainosaproximarcadavezmaisdensmesmos,masnodemaneiraneurtica.Comearemosaveroricojardimqueexistedentrodenseaus-loparaescrever.

    svezesprecisomartelarseguidamentenomesmoassunto.Porexemplo,seexaminarmeuscadernosdeagostoadezembrode1983,vocverqueeu

  • tentei, vrias vezes por ms, escrever sobre a morte de meu pai. Estavaexplorando e revirando omaterial.At que num dia de dezembro, no seiexplicarcomo,sentei-mecompletamentetransfiguradanoCroissantExpress,emMinneapolis,eumlongopoemajorroudemim.Instantaneamente,todasaquelas coisas disparatadas que eu queria dizer fundiram-se com energia eharmoniaumatulipa,deumvermelhointenso,brotoudaquelecomposto.Katagiri Roshi dizia o seguinte: "Sua pequena vontade no faz nada. precisoumaGrandeDeterminao.Nosetrataapenasdeesforo.Significaque todo o universo est com voc e por trs de voc os pssaros, asrvores,ocu,aluaeasdezdirees."Derepente,depoisdemuitotrabalharo solo, voc se v em alinhamento com as estrelas, ou com o momentopresente,oucomolustredasaladejantarsobresuacabea,eseucorpotodoseabreefala.

    Quando entendemos esse processo, cultivamos a pacincia, geramosmenos ansiedade. No precisamos administrar tudo, nem mesmo o queescrevemos.Poroutrolado,devemospraticarsempre.Nohdesculpaparaparar de escrever e ficar no sof comendo bombons. Devemos sempretrabalharonossosolo,enriquecendoefertilizandoanossaterraparaquedalibrote algo belo, para que osmsculos que usamos ao escrever estejam emformaparaconduzirouniversoquandoestepassaratravsdens.

    Essacompreenso tambmnosajudaaaceitarosucessodosoutroseanosertoambiciosos.Cadaumtemoseumomento.Onossochegarnestavidaounaprxima.Nofazdiferena.Continuepraticando.

    EstabilidadeartsticaTenho uma pilha de ummetro emeio de altura de cadernos que vm

    desde1977,aproximadamente,quandocomeceiaescrever,emTaos,NovoMxico.Minha vontade jogar tudo fora quem que suporta reler asbesteiras que saem da cabea enquanto praticamos escrever? Tenho umamigo no Novo Mxico que constri casas ecolgicas com latinhas dealumnio e pneus velhos. Acho que vou tentar construir uma casa comcadernos espirais usados. Minha vizinha de cima pediu: "No se desfaadeles."Respondique,sequisesse,poderiaficarcomtudo.

    Empilheioscadernosnaescadaquelevaaoapartamentodelaefuipassarquatro dias em Norfolk, Nebraska, para conduzir uma oficina literria.Quandovoltei,elaolhouparamimcomumacaraesquisitae,aboletando-sena velha poltrona cor-de-rosa do meu quarto, disse: "Fiquei lendo seuscadernosdurantetodoofimdesemana.Sotextostontimos,muitasvezes

  • toacanhadosehesitantes!Masde repentevocsaidecenaeoque ficaumaenergiacrua,umpensamentoselvagem.Eagoraaquiestvoc,Natalie,simplesmenteumapessoadecarneeosso.toestranho!"Gosteideouvirseucomentrioporquenotenhovergonhadeservistacomorealmentesou.Fiquei feliz.Queroquealgummeconhea.Convivemoscomtantosmitossobreosoutrosensmesmosquenossentimosgratosquandoalgumnosveaceitatalcomosomos.

    Ela disse que lermeus textos foi uma experincia transformadora, poispercebeuque,defato,euescreviamuita"abobrinha",svezesao longodeumcadernointeiro.Sempredigoaosmeusalunos:"Vejam,jescrevievoucontinuar escrevendo, pgina aps pgina, as coisas mais terrveis que aautopiedadepodeproduzir."Elesnoacreditamemmim.Meuscadernossoaprovavivadisso.Minhavizinhacomentou:"Comparandoolixoquevocescrevianopassadocomistoquevocescrevehoje,perceboquepossofazerqualquercoisa.Nossamentetopoderosa!Sabe-seloquesoucapazdefazer!"Eladissequeacoisamais importantequeviunaquelescadernosrecheados de lamrias, descries montonas e raiva exacerbada era aminhaplenaconfiananoprocesso."ViquevocnodesistiamesmoquandoescreviaDevosermalucaparaescreverumacoisadessas."

    Euacreditavamesmonoprocesso.EstavaimersanamesmicedelongosesecosdiasnascolinasdoNovoMxico,numacidadeondeTubaroficouemcartaz por seis meses seguidos no nico cinema existente. Tinha f napossibilidadedealgoverdadeirosobasuperfciedavida,outalvezemmeioprpriavida.Masmeuspensamentosquasesempremefaziamdormiroumedistraam.Poroutro lado,meuspensamentoseminhavidaeramtudooqueeutinha.Eentopasseiaescreverapartirdeles."Conformeavanonaleituradeseuscadernos,vejoqueessamaneiradeescreverfezdevocquemvoc.Elacomprovaquevocrealmentehumana."

    Quandocomeamosaescreverdessaformaapartirdenossasprpriasideias,devemosestardispostosaproduzirmuitasbobagensporanosafio,pois passamos um tempo muito maior acumulando e, inconscientemente,ignorandoessasbobagensdentrodens.Devemosolharparanossaprpriainrcia,nossasinseguranas,nossodesprezopornsmesmos,nossomedodeque,naverdade,notenhamosnadadevalorparadizer.Onovosemprenosdespertaresistncia.Agoratemosaoportunidadedenofugiroudenonosdeixar abalar,mas de pr o preto no branco, de olhar para tudo aquilo nopapel e entender o que aquelas vozes tolas querem dizer. Quando nossaproduobrotadessetipodesolo,oresultadoumtextomuitoestvel.Noestamosfugindodenada.Passamosadesfrutarumacertaseguranaartstica.

  • Quando deixamos de temer nossas vozes interiores, tambm deixamos detemer nossos crticos exteriores.Almdisso, essas vozes nadamais so doqueguardiesedemniosaprotegernossoverdadeirotesouro,osprimeirospensamentosdamente.

    Naverdade,quandoolhoparameusvelhoscadernos,tenhoaimpressodetersidoumtantoindulgentecomigomesma,determepermitidodivagarpor tempo demais em pensamentos discursivos. Deveria ter ido maisdiretamenteaoponto.Dequalquermaneira,bomconhecernossosdefeitos,no para glorific-los ou critic-los, mas simplesmente para reconhec-los.Assim,depossedesseconhecimento,estaremosaptosparaescolherabeleza,a gentileza, a verdade inegvel. Fazemos essa escolha com os dois psfincadosnocho.Nopodemoscorreratrsdabelezacomomedoemnossoencalo.

    Listadetpicosparaaprticadeescrevers vezes nos sentamos para escrever e no conseguimos pensar em

    absolutamentenadaparadizer.Opapelembranconosintimida.Almdisso,ficar escrevendo "No sei o que dizer; no sei o que dizer" durante dezminutos deprtica muitomaante. interessante reservar umapginadocaderno para anotar, assim que surgirem em sua cabea, ideias de tpicossobre os quais escrever. Pode ser uma frase que voc ouviu. Por exemplo,certa vez, num restaurante, reclamei de um garom a seu colega e ouvi aseguinteresposta:"Eleesquisito,eusei.Mas,sealgumdanaemumritmodiferente, ento que dance." Pode ser uma lembrana: a dentadura do seuav;operfumedoslilasesquevocnosentiuemjunhopassado;quemvocera de sapatilhas aos oito anos. Pode ser qualquer coisa. Sempre que lheocorreralgo,acrescente-osualista.Assim,quandosesentarparaescrever,vocsprecisarescolherumtpicoeiremfrente.

    timocomporlistas.Assimpercebemosadiversidadedematria-primapresente em nosso dia a dia. Comeamos ento a escrever a partir dessainteraocomavidaecomsuatextura.Dessaforma,inicia-seoprocessodecompostagem. Nosso corpo comea a digerir e a processar o material, demodo que, mesmo quando no estamos fisicamente sentados mesaescrevendo,certaspartesdensestoarando,adubando,expondo-seaosol,preparando-separaqueasviosasplantasdoescreverpossamcrescer.

    Se gastar muito tempo pensando em como comear, a sua "mente

  • macaca" capaz de ficar pulando de tpico em tpico e nunca pr umapalavrasequernopapel.Poressemotivo,alistatambmpodeajud-loadarlogoapartidaevencera resistncia.Depoisquecomeaaescrever,muitasvezesvocsesurpreendeaovercomoseuintelectodesenvolveudeterminadaideia.Issobom.Significaquevocnoesttentandocontrolarotexto.Estdeixandoocaminholivre.Mantenhaamoemmovimento.

    Mas,atquevoccriesuaprprialista,aquivoalgumasideias:

    1.Falesobreotipodeluzqueentrapelasuajanela.Vfundoeescreva.Nosepreocupesenoiteeacortinaestfechada,ouseseriamelhorescreversobre a luz na regio norte simplesmente escreva. Prossiga por dez,quinze,trintaminutos.

    2.Comececom"Eume lembro".Enumerevriaspequenas lembranas.Seaparecer alguma lembrana importante, escreva sobre ela. Mantenha otexto fluindo.No importa seo fato aconteceucinco segundosou cincoanos atrs. Tudo o que no fizer parte desse momento presente umalembrana que vem tona enquanto voc escreve. Se a coisa emperrar,apenasrepitaafrase"Eumelembro"econtinuedeondeparou.

    3.Pense emalgoquedesperte emvoc sentimentos fortes, tantopositivosquantonegativos.Primeiro,escrevasobreissocomoseoadorasse.Vatondeder.Depois,vireapginaeescrevacomoseoodiasse.Emseguida,escrevaumtextoemtomabsolutamenteneutro.

    4.Escolhaumacorrosa,porexemploefaaumacaminhadadequinzeminutos.Enquantocaminha,repareemtudooqueforcor-de-rosa.Volteparaocadernoeescrevaduranteoutrosquinzeminutos.

    5.Procurelugaresdiferentesparaescrever.Vocpodeiratumalavanderiaeescrevernoritmodasmquinasdelavar.Ouentosentar-senumpontodenibus,numcaf.Relateoqueestacontecendosuavolta.

  • 6.Descrevacomoasuamanh.Tomarcaf,acordar,caminharatopontode nibus. Seja o mais especfico possvel. Desacelere o pensamento erepassetodososdetalhesdamanh.

    7.Visualizeumlugardoqualvocrealmentegoste,imagine-sel,observeosdetalhes.Agoraescrevasobreesselugar.Podeserumcantodoseuquarto,umarvore antiga sobaqualvoc se sentoudurante todoovero, umamesadoMcDonald'spertodasuacasa,algumlugarsmargensdeumrio.Quaissoascores,ossons,oscheiros?Diantedeseutexto,oleitordeversaber como estar l. Dever perceber que voc adora esse lugar, noporquedissequeoadora,maspelotratamentoquedeuaosdetalhes.

    8.Escrevasobredespedidas.Abordeoassuntodamaneiraquequiser.Falesobre seu divrcio, sobre como foi sair de casa hoje demanh, sobre amortedeumamigo.

    9.Qualasualembranamaisantiga?

    10.Quepessoasvocamouumdia?

    11.Escrevasobreasruasdesuacidade.

    12.Descrevaumdeseusavs.

    13.Escrevasobre:

    nataoasestrelasomaiormedoquevocjsentiureasverdescomovocficousabendodesexo

  • suaprimeiraexperinciasexualquandovocsesentiumaisprximodeDeusoudanaturezaasleituraseoslivrosquemudaramasuavidaresistnciafsicaumprofessorquevocteve

    Nosejaabstrato.Escrevacomveracidade.Sejasinceroedetalhista.

    14. Pegue um livro de poesia. Abra numa pgina qualquer. Escolha umverso,transcreva-onopapeleprossigaapartirdali.Umamigomeuchamaissode"extrapolarapgina".Avantagemque,seescolhemosumbomverso, j temos meio caminho andado. "Morrerei em Paris, num diachuvoso.(...).Sernumaquinta-feira",dopoetaCesarVallejo*:"Morrereinuma segunda-feira s onze horas; numa sexta-feira s trs da tarde,dirigindoumtratoremDakotadoSul;numadelicatessennoBrooklyn",eassimpordiante.Semprequesesentirtravado,reescrevaaprimeirafraseesigaemfrente.Issolhedachancedecomeardenovoetomarumanovadireo"NoqueromorrerenoimportaseforemParis,MoscououYoungstown,Ohio".

    15.Quetipodeanimalvoce?Serquedentrodevocexisteumavaca,umesquilo,umaraposa,umcavalo?

    *CesarVallejo,"BlackStoneLyingonaWhiteStone",emNerudaandVallejo,ed.RobertBly(Boston:BeaconPress,1971).

    Aprendaagerarseusprpriostpicosetemas.umtreinoexcelente.

  • Brigandocomotofu

    Disciplina sempre foi uma palavra cruel. Sempre me faz pensar queprecisosubjugaromeuladopreguioso,oquenuncafunciona.Nessabatalhacontnua,umapartedemimordenaeaoutraresiste:

    "Noestoucomvontadedeescrever."

    "Masvocvai."

    "Maistarde.Agoraestoucansada."

    "Vaiescreverj."

    Nesse nterim,meu caderno continua em branco. mais umamaneiraque o ego encontra para continuar brigando. Katagiri Roshi tem umaexpresso fabulosa: "brigarcomo tofu".Tofuumqueijo feitode sojabranco, denso e sem gosto. intil lutar contra ele.No se chega a lugaralgum.

    Se esses seus personagens interiores querem brigar, deixe-os brigar.Enquanto isso, aquela sua poro mais sensata dever silenciosamentelevantar-se, pegar o caderno e comear a escrever, agora a partir de umaperspectivamaisprofundaemaisserena.Infelizmente,essesdoisbriguentoscontinuaroalicomvoc, jqueestodentrodesuacabea.Nosemprequepodemoslarg-losnoquintal,noporoounacreche.Oquevocpodefazer,ento,permitirqueelessemanifestemporcincooudezminutosnoseu caderno.Deixe-os conduzir o texto. impressionante ver que, quandoabrimos espao para essas vozes, suas reclamaes se tornam repetitivas elogonoscansamosdelas.

    Aquestoaresistncia.Oegopodesermuitocriativoeengendrarasmais incrveis tticas de oposio. Uma amiga minha, quando estavacomeando a escrever seu primeiro romance, contava que, no incio, elapassava dezminutos frente damquina de escrever e s conseguia falarsobre a pssima escritora que era, sobre a estupidez de querer escrever umromance.Emseguida,arrancavaaquelapgina,rasgavaeentocomeavaatarefadodiaescrevermaisumcaptulodeseulivro.

    fundamentalpensarantecipadamentenumamaneiradedaroprimeiro

  • passo. Caso contrrio, lavar a loua acabar se tornando a coisa maisimportantedomundo,assimcomo tudooquepuderdistra-lodeseu texto.Nofimdascontas,oque temosa fazercalaraboca,sentareescrever.Eisso doloroso. Escrever uma tarefa extremamente simples, bsica epenosa.Noexistemengenhocasmodernasemirabolantescapazesdetorn-lamaisatraente.Inquietacomo,nossa"mentemacaca"certamentepreferirdiscutir essa nossa resistncia com um amigo, sentados num agradvelrestaurante, ou procurar um terapeuta para tratar dos nossos bloqueioscriativos.Gostamos de complicar as tarefasmais fceis.H um ditado zenque diz: "Ao falar, fale; ao caminhar, caminhe; ao morrer, morra." Aoescrever,escreva.Paredesedebatercomaculpa,asacusaes,asameaascoercitivas.

    Ditoisso,descrevereiagoraalgunstruquesqueuseinopassadoparame

    estimularaescrever.

    1. H tempos no escrevo nada. Ento ligo para uma amiga escritora ecombino de encontrar-me com ela dali a uma semana, para revisarmosnosso trabalho.Assim, serei obrigada a escrever alguma coisa para lhemostrar.

    2.Comodouaulasde redao, tenhode fazeros exercciosque aplico emsala de aula. No esperei at ganhar vasta experincia para comear alecionar. Dez anos atrs, havia poucos escritores em Taos, onde eumorava.E eu precisava de amigos que escrevessem. Foi quando organizei umgrupo de redao s de mulheres. Fui aprendendo a escrever enquantoensinava. BabaHari Dass, um iogue indiano, disse o seguinte: "Ensineparaaprender."

    3.Acordodemanhedigoparamimmesma:"Tudobem,Natalie,voctematasdezhorasparafazeroquequiser.sdezvocdeverestarcomacanetaemmos."Abroumespaoparamim,mas tambmme imponhoumlimite.

  • 4. De manh, levanto da cama, vou direto para minha mesa e comeo aescreversempensar,semlavarorosto,semfalarcomningum.

    5.Fazdoismesesquedouaulasodiainteiro,cincovezesporsemana.Chegoemcasamuitocansadaesemvontadedeescrever.A trs quarteires daminha casa, tem uma padariamaravilhosa que fazdeliciososbiscoitoscaseirosdechocolate,portrintacentavos.Ltambmpermitemquevocfiquesentadoescrevendootempoquequiser.Cercadeumahoradepoisdeeuchegaremcasadotrabalho,digoparamimmesma:"Pois bem,Natalie, se voc for aoCroissantExpress e escrever duranteumahora,terdireitoacomerdoisbiscoitos."Emquinzeminutosjestoucom o p na rua, pois chocolate uma dasminhas forasmotrizes. Shouve um problema: na sexta-feira tive a desfaatez de comer quatrobiscoitos em vez dos dois permitidos. Mas o importante escrever.Quandoestourealmentemergulhadanisso,essaamaiorrecompensa.

    6.Tentopreencherumcadernoporms.Nohnenhumaexignciaquantoqualidade, apenas quantidade completar um caderno inteiro, noimporta quanta porcaria eu escreva. Se hoje dia 25, s escrevi cincopginasetenhomaissetentaparapreencheratofimdoms,tereimuitoqueescrevernosprximoscincodias.

    Voc pode inventar os truques que desejar.Apenas tome cuidado paranoembarcarnocrculoviciosodeculpa,fugaecoao.Quandoforahoradeescrever,escreva.

    ProblemascomoeditorQuandoescrevemos,essencialsepararnossoladocriadordenossolado

    editor, ou censor, para que o primeiro possa respirar, experimentar eexpressar-se livremente. Se o editor for muito insistente e voc tiverdificuldadededistingui-lodesuavozcriativa,sente-seeponhanopapeltudooqueeleestiverdizendo,comtodasaspalavras:"Vocumaidiota,quemdissequevocsabiaescrever,odieiseutrabalho,vocpssima,vocmedvergonha,vocnotemnadadebomparadizere,parapiorar,nosabeusaragramtica",eassimpordiante.Soafamiliar?

    Quantomais a fundo voc conhecer o editor,mais fcil ser ignor-lo.

  • Depoisdeumcerto tempo,essavoz torna-seummerorudodefundo, tipopapo-furadodebbado.Nodouvidosaessaspalavrasvazias, senoelasganharofora.Seavozdiz"Vocchata"evocparaparaouvir,suamotambmparadeescrever.Eissoreforaedmaisconfianaaseueditor.Avozsabequeotermochatavaiparalisarvocimediatamente,eentovriasvezesvocsepegarutilizandoessapalavraparasereferiraoqueescreveu.Quandoouvir"Vocchata", imaginequeestouvindoosomdistantederoupabalanandonovaral.Logoaroupasecarealgum,ldelonge,virrecolh-la.Enquantoissovoccontinuaescrevendo.

    Elkton,Minnesota:tudooqueestivernasuafrente

    Entrona saladeaulaemElkton,Minnesota. Inciodeabril, os camposemvoltadaescolaestomolhados,noforamaradosainda,noreceberamasprimeirassementes.Ocudeumcinzaprofundo.Reveloaosvinteecincoalunosdaquelaoitavasriequesou judiaaosaberqueapalavrarabino fazpartedoexercciodeortografia.Nenhumdelesjamaisviuumjudeudeperto.Percebo que, nos prximos sessenta minutos, tudo o que eu fizer sersinnimo de "judeu". Entrei comendo uma ma: todos os judeus agoracomeroma.Contoquenuncamorei emcidadepequena: nenhum judeuagora jamaisviveunocampo.Umalunoperguntou se eu conhecia algumquetivesseestadonumcampodeconcentrao.Eentofalamosdosalemes.Muitosdelessodeorigemgermnica.

    Todos somuito receptivos e huma certa vulnerabilidade, profunda ecativante,emseumododeser.Sabemdequepoovemaguaquebebem;sabem que o seu gato de estimao fugido h dois anos nomais voltar;sabem como correr com o vento batendo no rosto. No preciso dar-lhesnenhuma regra de poesia. Eles j moram nesse lugar. To prximos dascoisas. Ento pergunto: "De onde vocs vm? Quem so? Qual a suaessncia?" Digo-lhes que venho da cidade, mas tambm conheo aquelescampos.Qualquerumpodeestaraquie,aomesmotempo,conhecerasruasdeNovaYork.Podemosacolherpedaosdeoutrosseresdentrodens:"Souaasadocorvoquepartiuenovoltamais."

    Essa , portanto, mais uma maneira de produzir um texto. No tinhanenhum planejamento antes da aula.Apenas tentei estar presente naquelemomento,disposta,semnadaa temer,eaprpriasituaogerouoassunto.

  • Isso sempre acontece comigo. O truque manter o corao aberto. Numaescola bem localizada, no centro de Manhattan, por exemplo, talvez euchegasse armada commil exerccios de redaonaponta da lngua, pois omedoseriamaior.FuicriadaemNovaYorkejouvidiversashistrias.Seriaumagrandeperdapara todos,principalmenteparamim.Quandoestoucommedo,meutextotorna-sefalsoenorefletearealidade."Masalihmotivosparatemer!"Noverdade.apenasumaideiapreconcebida.

    Aps terminar minha primeira faculdade, em 1970, trabalhei comoprofessorasubstitutanaredepblicadeDetroit.Foilogodepoisdosviolentosconflitosraciaisde1967,eacentelhadomovimentoblackpower inflamavafortemente o nimo dos alunos. Recm-chegada cidade, eu era tambmmuitoingnua.Tudoeranovidadeparamim,eestavaabertaatudo.Lembro-medetersidoconvocadaparasubstituirumprofessordeinglsnumaescolasecundriasparaestudantesnegros."timo",pensei.Acabarademeformarem Letras. Peguei meu j pudo exemplar deThe Norton Anthology ofEnglishLiterature e fuidarminhaaula.Aosoaro sinal, todosentraramnaclasse."Ea,garota?Quevocqueraqui?"Obviamente,aquelesalunosnoficariamobedientementesentadosemseuslugares,maseunomeimportava.Era aula de ingls e eu era apaixonada por literatura. "Agora me ouam.Querocompartilharunspoemascomvocsqueeuadoro."Liomeupoemafavorito, "God'sGrandeur",deGerardManleyHopkins,queeucostumavadeclamar em voz alta na faculdade, para desespero dasminhas colegas dequarto.EfoicomamesmaintensidadequeoliparaminhaclasseemDetroit.No final da leitura, eles estavam completamente mudos. Em seguida, umalunome jogouum livro de poesia deLangstonHughes e pediu que eu olesse tambm. E assim passamos cinquenta minutos lendo em voz alta ospoetasnegrosqueosalunostantoqueriamouvir.

    Os escritores, quando escrevem, tm de olhar para as coisas como sefossesempreaprimeiravezqueasvissem.Certodia,umoutroprofessordeElktonchamou-mede ladoedisse: "Repare embaixodas carteiras.Ochoest sujo de barro trazido pelos sapatos dos alunos. Isso um bom sinal.Significaqueaprimaverachegou."Eeu,maravilhada,enxergueiaquilopelaprimeiravez.

    Como podemos gerar ideias e assuntos para nossos textos? Qualquercoisaqueestiversuafrentejserumbomcomeo.Depoissaiapelasruas.Vocpode ir aqualquer lugar.Conte-me tudooque sabe.No importa sevocnoestudou,ousenopodeprovaroquesabe.ConheooscamposdeElktonporqueassimestouafirmandoeporquequeroen-veredar-meporelesparasempre.Se"parasempre"significaaquelasemanaemquevocestiver

  • porlnacondiodepoetaresidente,ouvendedordetratores,ouviajanteacaminhodooeste,noimporta.Aproprie-sedoquevocquiseraoescrevere,depois,deixeparal.

    Conectando-seaomanancialNo se preocupe com talento ou capacidade: eles viro com a prtica.

    KatagiriRoshidizia: "Acapacidadecomoummanancial soba superfciedo solo." Ele no pertence a ningum,mas todos podem captar sua gua.Comesforo,vocchegaratagua.Porisso,continuesemprepraticandoe, quando aprender a confiar em sua voz, direcione-a. Se tem vontade deescreverum romance, escrevaum romance.Seprefere escreverumensaio,ou contos, escreva-os.Voc saber como faz-lo no decorrer do processo.Poucoapouco,vocvaiadquirindoatcnicaeomtodonecessrios.Podeconfiar.

    Quando comeam a escrever, as pessoas, de maneira geral, partem de

    umacarnciamental.Estovaziasecorrematrsdecursoseprofessoresnansiadeaprenderaescrever.Sseaprendeaescreverescrevendo.Simplesassim.No adianta recorrer a pessoas experientes, achandoque elas sabemcomo fazer isso. Tenho um amigo querido que, por ser obeso, certa vezdecidiucomearafazerexerccios.Eoqueelefez?Foiatumalivrariaparaver se encontravaum livro sobreginstica!Ningumemagrece lendo.Paraperderpesovoctemqueseexercitar.

    Umadaspiorescoisasdoensinopblicoqueelepegaascrianas,que

    sopoetasecontistasnatos,easobrigaalerliteraturaparadepoisseafastardelaeento"coment-la".

    Ocarrinhodemovermelho

  • DEWILLIAMCARLOSWILLIAMS

    tantacoisadependedeumcarrinhodemovermelho

    esmaltadodeguadechuva

    aoladodasgalinhasbrancas*

    * William Carlos Williams, "O carrinho de mo vermelho", em Poemas, seleo, traduo e estudocriticodeJosPauloPaes(SoPaulo:CompanhiadasLetras,1987,p.77).

    "Oqueopoetaquisdizercom'carrinhodemovermelho'?Seriaopr

    do sol? Seria uma carruagem? E por que ele era 'esmaltado de gua dechuva'?"Sotantasperguntas.Opoetasquisdizerqueeraumcarrinhodemo, que era vermelho porque era vermelho e que tinha chovido. Tudodepende dele porque o poema nada mais do que um instante fugaz deiluminao.Naquelemomento, o carrinho demo vermelho, tal como era,despertouWilliamsetomoucontadetudo.

    Ospoemassoensinadoscomoseopoeta tivesseguardadoumachave

    secretaemsuaspalavrasefossetrabalhodoleitorencontr-la.Ospoemasnoso histrias de detetive. Devemos nos aproximar mais e mais da obra.Aprendaaevocarcadaimagemecadaversodamesmaexatamaneiraqueopoeta as empregou. No abra mo desse calor e dessa energia para falar"sobre" o poema.Aconchegue-sedele. assimque se aprende a escrever.Fique comaobraoriginal. Fique com seupensamentooriginal e escreva apartirdele.

  • NosomosopoemaOproblema pensar que existimos.Achamos que nossas palavras so

    permanentes,slidas,capazesdenosrepresentarparatodoosempre.Issonoverdade.Escrevemosnomomento.Muitasvezes,quandoleiomeuspoemasduranteumaapresentao,perceboqueaspessoasachamqueospoemassoueu. E no so, mesmo quando falo em primeira pessoa. So meuspensamentos, minha mo, meu espao e minhas emoes naqueledeterminado momento em que os escrevi. Observe-se. Mudamos a cadaminuto. E isso uma ddiva. A qualquer momento podemos abandonarnossossentimentose ideiascristalizadasecomear tudodenovo.Aartedeescreverassim.Emvezdelimitar,liberta.

    Nomomentoemquecolocamosalgonopapelemqueexpomosoquesentimospelomaridodetantosanos,pelosapatovelhodebaixodamesa,pelomisto-quente que saboreamos numamanh nublada emMiami, estamosfinalmente alinhando nossas emoes e nossas palavras. um momentolibertador,poisnotemosmaisquelutarcontraaquiloqueestdentrodens.J aceitamos nossos sentimentos e, juntos, agora formamos uma coisa s.Tenhoumpoema,bemlongoalis, intitulado"NoHope"[Semesperana].Sempremelembrodelecomalegria,pois,aomevercapazdeescreversobretemascomodesesperoevaziointerior,senti-menovamentecheiadevidaedecoragem. Porm, os outros sempre acham que um poema triste. Tentoexplicar,masningummeouve.

    fundamental compreender que ns no somos o poema.As pessoaspodem ter asmaisdiversas reaes.Ouento reaonenhuma,no casodepoesia. No faz mal. O poder est no ato de escrever. Jamais se esqueadisso.Nopercatempoadmirandoseuspoemas.Nocaianessaarmadilha.divertido,masvoclogosecansardeler,milhesdevezes,aquelesmesmospoemas que o pblico sempre pede. Escreva bons poemas e desapegue-sedeles.Publique-os,leia-osecontinuecriando.

    Lembro-me de Galway Kinnell, na ocasio do lanamento de seumaravilhosoBookofNightmares [O livrodospesadelos],Foinumaquinta-feiratarde,emAnnArbor.Nuncatinhaouvidofalardele,tampoucosabiapronunciar seu nome. Durante a leitura, ele praticamente cantou aquelespoemas.Eramnovidadeparaele;estavaempolgadoerealizadocomsuaobra.Seisanosdepois,novamenteassisti auma leiturado livronaSt. Johns, emSantaF,NovoMxico.Oautor j estavaenjoadode tanto lerosmesmostextosduranteseisanosconsecutivos.Semdisfararapressa,leuumououtropoema,fechouolivroeperguntou:"Ondeafesta?"Aquilonolheoferecia

  • maisperigo.Nohaviamaiseletricidadenoar. muito doloroso acabar engessado por seus poemas, ganhar muita

    notoriedadeporumaobraespecfica.Avidarealestemescrever,noemlerosmesmos textos vrias vezes seguidas.necessrio semprebuscar novasideias, novas imagens. No temos uma forma slida e definida. No hnenhumaverdadepermanentequevocpossaencurralaremumpoemaquesejacapazdelhesatisfazerparasempre.Noseidentifiquedemaiscomoquevocescreve.Mantenha-sefluidoportrsdaspalavrasescritas.Elasnosovoc.Soarepresentaodeummomentoespecialquepassouporvoc.Ummomentoquevocestevedespertoobastantepararegistrarecapturar.

    HomemcomecarroMuitos anos atrs, soubeque sara uma reportagemno jornal sobreum

    iogueindianoquecomeraumcarro.Notododeumavez,masdepouquinhoem pouquinho ao longo de um ano.Adoro histrias assim. Ser que eleengordoumuito?Quantosanoseletinha?Serquetinhatodososdentesdaboca?Serquecomeutudo,ocarburador,ovolante,ordio?Dequemarcaeraocarro?Eoleo,elebebeutambm?

    Contei essa histria para uma turma de terceira srie em Owatonna,Minnesota. As crianas, esparramadas num tapete azul minha frente,ficaram um pouco confusas eme fizeram a perguntamais bvia de todas:"Porqueelecomeuocarro?",ecompletaram:"Argh!"Masummeninodeolhos castanhos e inquietos, que estar sempre em meu corao,simplesmenteolhouparamimecaiunagargalhada.Ecomeceiarirtambm.Que coisa genial!Umhomemcomeuumcarro!Desde o incio aquilo notinhaamenorlgica.Eraabsurdodemais.

    De certa maneira, exatamente assim que devemos escrever. Semperguntar por qu, sem selecionar delicadamente as guloseimas (ou osparafusos), mas devorando tudo com avidez, deixando a mente engolir edepois regurgitar tudonopapelcomgrandeenergia.Nadadepensar"devofalarsobre isso,nodevofalarsobreaquilo".Oatodeescreverabsoluto,incondicional. No h limites entre o texto, a vida e amente. Se tivermosimaginao suficiente para aceitar que uma pessoa pode comer um carro,descobriremosqueasformigassoelefantesequeoshomenssomulheres.

    Veremos que todas as formas so transparentes, sobrepostas, e que,assim,noexisteseparaoentreelas.

  • Metforaisso.Nodizerqueumaformigacomoumelefante.Podeat ser, j que os dois so seres vivos. Mas no bem assim. Metforasignificadizerqueaformigaumelefante.Claroque,logicamentefalando,seiquehumadiferena.Sealgumcolocarumelefanteeumaformiganaminha frente, provavelmente saberei distinguir entre os dois. A metfora,portanto,notemorigemnamentelgica,inteligente.Elasurgedacoragem,davontadedeabandonarmosoolharpreconcebidosobreascoisas,deabrir-nosapontodefinalmenteenxergaraunidadedaformigaedoelefante.

    Mas no se preocupe com as metforas. No pense: "Tenho que usarmetforasparaparecerpotico."Antesdemaisnada,notenteserpotico.Asmetforasnonascemfora.Sevocnoacreditar,comtodooseuser,queaformigaeoelefantesoumacoisas,seutextosoarfalso.Se,poroutrolado, voc acreditar nisso com todo o seu ser, algumas pessoas o julgarolouco.Ainda assim, melhor louco do que falso. Mas como fazer a menteacreditarecriarumametfora?

    Emprimeirolugar,no"faa"amentefazernada.Simplesmentesaiadocaminho e registre os pensamentos que surgirem. A prtica de escreveracalmaocoraoeamente,ajuda-nosamanteraflexibilidadeparavermosdesapareceraquelasrgidasdistinesentreamaeoleite,otigreeosalso.Podemos passear por luas e dar de cara comursos.Voc dar esses saltosnaturalmenteseacompanharseuspensamentos,poisespontneodamentesaltargrandesdistncias.Vocsabecomo.Poracasojconseguiualgumavezseguirummesmopensamentopormuitotempo?Sempresurgeumnovo.

    Suamenteest saltando, seu texto tambmsaltar,masnodemaneiraartificial.Elerefletiranaturezadasprimeirasimpresses,nossamaneiradever o mundo quando estamos livres de preconceitos e enxergamos osprincpiosqueexistempor trsde tudo.Estamos todos ligados.Ametforasabedissoe,poressarazo,temumcarterreligioso.Nohseparaoentreas formigas e os elefantes. Todas as fronteiras se dissolvem, como seestivssemosolhandoatravsdachuvaoucontraindoosolhosaobrilhodasluzesdacidade.

    EscrevernoprepararumhambrguerdoMcDonald's

    svezes,algunsalunossedestacam,desdeo incio,dorestoda turma.Lembro-me de um em especial. Quando lia seus textos, estava sempretremendo, e uma certa tensopairavano ambiente.Oprocessode escrever

  • rasgou-lheaalma:eleconseguiuescreversobresuainternaonumhospitalpsiquitricoaoscatorzeanos,suasperambulaespelasruasdeMinneapolissoboefeitodoLSD,aexperinciadesentar-seaoladodocadverdoirmoemSoFrancisco.Haviaanoselealimentavaodesejodeserescritor.Vriaspessoas o incentivavam, mas, sempre que se sentava para escrever, noconseguialigaraspalavrasnopapelaosacontecimentosoussuasemoes.

    Isso ocorria porque, antes de pegar a caneta, ele j trazia uma ideiadaquiloquepretendiadizer.claroquevocpodesesentarparaescreverjcom uma ideia em mente. Mas ento voc deve deixar que a forma deexpress-la nasa em voc e flua para o papel. No tente controlar esseprocesso.Deixequesaiadamaneiraque temdesair.evidenteque todasessasexperincias,lembranaseemoesjexistemdentrodens.Contudo,no podemos transp-las diretamente para o papel da maneira como umpizzaiolotiraumapizzadofornodiretamenteparaamesa.

    Desapegue-se de tudo enquanto estiver escrevendo. Tente comear deformasimples,escolhendopalavrassimplesparaexpressaroquehdentrodevoc. Comear nunca fcil. Permita-se essa estranheza. Voc est sedesnudando. Est expondo sua vida, no como seu ego gostaria de v-lorepresentado,mascomovoccomoserhumano.por issoqueescrever,para mim, um ato religioso. Ele o deixa em carne viva e enternece seucoraoparaomundodasimplicidade.

    Quando me sinto ranzinza, triste, insatisfeita, pessimista, negativa,desanimada,vejoissocomoumestadodeesprito.Seiqueesseestadopodemudar. Sei que isso energia tentando encontrar um lugar no mundo equerendoamigos.

    Sim, voc pode querer escrever sobre determinado assunto, como umirmoquemorreuemSoFrancisco,masdeveabord-lonocomamenteesuas ideias,mascomocorpo inteiroocorao,asentranhas,osbraos.Comece a escrever como um animal que urra de dor, de maneira rude edesajeitada.Sentovocencontrarsuainteligncia,suaspalavras,suavoz.

    Aspessoascostumamdizer:"Euestavanarua[ounotrnsito,nafeira,naacademia de ginstica] e de repente me veio um poema inteiro cabea;porm, quando me sentei e tentei escrev-lo, no saiu como eu queria."Comigotambmassim.Sentar-separaescreverumaoutraao.Esqueaaquelemomento na rua ou na feira, esquea o poema que nasceu em suamentenaquela ocasio.Agora outromomento.Escrevaumoutropoema.No fundo, voc pode at desejar que um resqucio daquele poema anteriorvenhatonanovamente,masdeixequeelevenhacomotiverdevir.Nooforce.

  • Aquele mesmo aluno que mencionei no incio do captulo estava toentusiasmado que logo tentou escrever um livro inteiro.Aconselhei-o: "Vcom calma. Escreva sem compromisso. Aprenda do que se trata isso."Escrevercoisaparaavidainteiraeenvolvemuitaprtica.Eucompreendiaaurgnciadele.Precisamosacreditarqueestamosfazendoalgotil,chegandoaalgumlugar,alcanandoumobjetivo"Estouescrevendoumlivro".

    D-seumtempoantesdepartirparaescreverlivrosvolumosos.Aprendaaconfiarnopoderdasuaprpriavoz.Poucoapouco,brotaranecessidadededaraelaumadireo,masvirdeumlugardiferentedanecessidadedequerer conquistar algo a qualquer custo. Escrever no preparar umhambrguer do McDonald's. O cozimento lento.Alm disso, no incio,vocnosabeaocertoseoresultadoserumacarneassada,umbanqueteouumacosteladecarneiro.

    ObsessesDe tempos em tempos, fao uma lista dasminhas obsesses.Algumas

    mudam.Novasseagregamsantigas.Outrasfelizmentedesaparecem.Osescritoresacabaminvariavelmentefalandodesuasobsesses.Coisas

    queosassombram,quenoconseguemesquecer.Histriasquetrazemdentrodesinaesperanadeumdiarevel-lasaomundo.

    Nasminhas oficinas de redao, peo aos participantes que organizemuma lista de suas obsesses, para quepossamdescobrir emquais assuntos,conscienteouinconscientemente,passamhoraspensando.Depoisdecoloc-losnopapel, finalmentepodemosdar-lhesumaboautilidadetemosumalista de temas para usar em nossos textos. Essas obsesses so realmentemuitopoderosas.Sohistriassquaisrecorreremosaindainfinitasvezes.Apartirdessasimagens,criaremosoutraseoutraseoutras.Portanto,oquenosresta a fazer aceit-las.Querendoouno, elas jdominamnossavida.Omelhorentofaz-lastrabalharanossofavor.

    Uma dasminhas obsesses minha famlia judia. De vez em quando,resolvoque j falei tudooque tinhade falarsobreeles.Noqueroparecerumafilhinhadamame.Houtrosassuntosnomundoalmdesse.evidenteque h outros tpicos e que estes surgiro naturalmente, mas, sempre quetomoadecisodenomaisescreversobreaminhafamlia,osimplesfatodereprimirissodentrodemimmefazreprimirtodooresto.Eissoocorreporqueestougastandoenergiademaistentandoevitaralgo.

  • Quando decido fazer dieta, exatamente igual. To logo tomo essadeciso,acomida torna-semeunicoobjetivonomundo.Passeardecarro,darumavoltanoquarteiro,escreveremmeudiriotodasessasatividadespassamasersubterfgiosparaevitaraquiloque,repentinamente,meumaiorobjeto de desejo. Prefiro reservar um espao comida e fome naminhavida, mas de maneira amigvel, para que eu no sinta aquela vontadedestrutivadedevorarumadziadebiscoitosdeumavezs.

    a mesma coisa quando escrevo sobre a minha famlia. Se lhes doualgumaspginas, eles logo se recolhema seus lugaresnomeuPanteodasObsessesedeixam-melivreparaescreversobreoutrosassuntos.Mas,seosignoro,aparecemdesurpresaemtodopoemasobretodacidadezinhaperdidaque eu escrevo at a dona de casa numa fazenda de Iowa comea aparecer que est prestes a fazerblinis para os filhos. Certa vez, um ex-alcolicomedisse que, nas festas, os alcolicos sempre sabemonde est abebidaeaquantidadedebebidadisponvel,sabemquantojbeberamecomoconseguiroprximodrinque.Nuncagosteimuitodebeber,massemprefuiviciadaemchocolate.Depoisdeconhecerocomportamentodosalcolicos,comeceiameobservar.Nodiaseguintefuivisitarumamigo.Oseucolegadequarto estava fazendobrownies. Havamos combinado de ir ao cinema eteramosdesairantesdeaprimeirafornadaficarpronta.Noteiquepasseiasesso inteira sutilmente pensando naquelesbrownies. No via a hora devoltarparacasadelesparacomeraquelesbenditosbiscoitos.Nasadadocinema, encontramos uns amigos que nos convidaram para bater papo emalgum lugar. Percebi que estava entrando em pnico: queria aquelesbrownies!Namesmahora,inventeiumadesculpaparapassarmosnacasadomeuamigoantesdecontinuarmosnossoprograma.

    Somos dominados por nossas compulses. Talvez seja s comigo,mastenhoaimpressodequeasobsessestmmuitopoder.Tireproveitodessepoder.Seiquemuitosdemeusamigosescritoressoobcecadosporescrever. semelhante ao chocolate.Quando estamos fazendo qualquer outra coisa,sempre achamos que devamos estar escrevendo. No h graa nenhumanisso.Vidadeartistanofcil.Vocssesenteverdadeiramentelivrenomomentoemqueestexercitandosuaarte.Aindaassim,acreditoque fazerartemelhordoqueencheracaraouseempanturrardechocolate.Sempreacheiqueosescritoresalcolatrasbebemtanto justamenteporquenoestoescrevendo ou tm dificuldade para escrever. No bebem porque soescritores,masporquesoescritoresquenoestoescrevendo.

    Hliberdadeemserescritorepoderescrever.Issocumprirsuafuno.Antigamenteeupensavaqueliberdadeerapoderfazeroqueeuqueria.Hoje

  • seique liberdadeconhecerasimesmo,saberoseupapelaquinaTerraerealiz-lo.Enoseperdernocaminho,achandoquenodevemaisescreversobre sua famlia judia quando este exatamente o seu papel: registrar ahistriadeseusfamiliares;suapassagempeloBrooklyn,porLongIsland,porMiamiBeach;aprimeirageraodosGoldbergsnascidanaAmerica.Antesquetudoseacabe.

    KatagiriRoshi diz: "Os artistas sofremmuito, coitados.Terminamumaobra-prima emesmo assimno esto satisfeitos.Querem logo fazer outra."Concordo,masmelhorpartirlogoparaoutra,sevoctemessanecessidade,doquecomearabebereviraralcolatra,oucomermeioquilodechocolateevirarumelefante.

    Talveznemtodasasobsessessejamnegativas.Serobcecadopelapazmaravilhoso. Mas ento seja realmente pacfico. Aja em vez de apenaspensar.timoserobcecadoporescrever.Masentoescrevaalgumacoisa.No deixe esse impulso desviar-se para a bebida. Obsesso por chocolatetambmnobom.Euseidisso.Nosaudvele,aocontrriodoanseiodepazedeescrever,nocontribuiparaummundomelhor.

    CarolynForch-ganhadoradoPrmioLamontdepoesiapelolivroTheCountry between Us [O pas entre ns], sobre El Salvador disse oseguinte:"Paraescreversobrepoltica,precisomudarsuasobsessesmaisrecnditas."Faz sentido.No escreva sobrepoltica sporquepensa que sobreissoquevocdeveriaescrever.Asrimasassimseropobres.precisointeressar-seporpoltica,lersobrepoltica,falardepoltica,semsepreocuparcom os benefcios disso para o escrever. Por fim, quando esse assunto setornarumaobsesso,vocnaturalmenteescreversobreele.

    Detalheoriginal

    Apesardecurto,esteumcaptuloimportante.Usedetalhesoriginaisemseu texto.A vida to rica. Se conseguir registrar como as coisas so ouforamcomdetalhesreais,quasenadamaisfaltar.Mesmoquetransplanteovitrbisotado,oannciodecervejagiratrio,aprateleiradesalgadinhoseasbanquetas vermelhas de um determinado bar em Nova York para outrocenrio, numa outra cidade e num outro tempo, a histria ainda terfundamento e autenticidade. "Mas aquele bar ficava em Long Island, nopossocoloc-loemNovaYork."Pode,sim.Noprecisamossertorgidoscomrelaoaosdetalhesoriginais.Porm,emboraa imaginaosejacapazdefazerastransposiesnecessrias,sempreinteressanteusardetalhesque

  • realmente conhecemos ou vimos, para garantir mais credibilidade everossimilhanaaotexto.Temosassimumabaseslidasobreaqualconstruirahistria.

    Evidentemente, se voc acabou de voltar do vero calorento de NovaOrleans onde saboreou uma suculenta lagosta no BarMagnolia, na St.CharlesAvenue,nopoderutilizaressesmesmosdetalhesparadescreveraquele marmanjo bronco que est bebendo num bar em Cleveland, numanoite de inverno. No vai funcionar, exceto se pretende introduzir umaatmosferadesurrealismo,ondeoslimitesdeixamdeserdefinidos.

    Estejaatentoaosdetalhessuavolta,masnofiquemuitoansioso."Poisbem,estouaquinocasamento.Anoivaestusandoumvestidoazul.Onoivotemumcravovermelhonalapela.Estoservindofgadofatiadodeaperitivo."Relaxeeaproveiteafesta.Estejaalidecoraoaberto.Poucoapouco,vocregistrarascaractersticasdaqueleambientee,mais tarde, j sentado suaescrivaninha,selembrardomomentoemquedanoucomamedanoiva,deseucabeloruivo,dodenteborradodebatomqueelamostravaaosorrir,doseucheirodeperfumemisturadocomsuor.

    OpoderdodetalheEstou na Costa's Chocolate Shop, em Owatonna, Minnesota. Minha

    amigaestsentadaminhafrente.Acabamosdecomerumasalada.Fazmeiahoraqueestamosescrevendoemnossoscadernos,emmeioacoposdegua,umaCoca-Colapelametadeeumaxcaradecafcomleite.Osmveissocor de laranja.Nobalco central, h umavitrine com fileiras de carameloscobertos com chocolate. Do outro lado da rua fica o Owatonna Bank,projetadoporLouisSullivan,professordeFrankLloydWright.No interiordobanco,humimensomuralcomumavacaestampada,almdebelssimosvitrais.

    Nossa vida , aomesmo tempo, banal emtica. Vivemos emorremos,envelhecemoscomapelebonitaoucheiaderugas.Levantamospelamanh,compramosqueijo e esperamos terdinheiroparapagar a conta.Aomesmo

  • tempo, somos dotados de um corao maravilhoso, que insiste em batermesmo diante de todo o sofrimento e de toda a penria que enfrentamosdurantenossajornadanaTerra.Somosimportantes,nossavidaimportante.Magnfica, eu diria. E todos os detalhes de nossa existncia merecem serregistrados.assimqueosescritoresdevempensar,eessepensamentoquedevemos ter em mente quando pegamos papel e caneta para escrever.Estamos aqui. Somos seres humanos. assim que vivemos. Externemosessasimpresses;mostremosasmarcasqueomundodeixaemns.Nossosdetalhes tm importncia. Caso contrrio, podemos soltar uma bomba quenofarnenhumadiferena.

    OYadVashem,museuconstrudoemmemriaaoHolocausto, ficaemJerusalm. Ele abriga uma biblioteca completa com os nomes dos seismilhes de mrtires judeus. O acervo no cataloga apenas os nomes, mastambm relaciona onde cada um nasceu, onde morou, tudo o que seconseguiusabersobreeles.Aquelaspessoasexistiram,esuaexistnciateveimportncia.YadVashem, na verdade, significa "memorial ao nome". Asvtimasdogenocdionoforamumamassaindistintaeannima.Foramsereshumanos.

    Domesmomodo,emWashington,hoMemorialdoVietn.Eleregistracinquenta mil nomes e sobrenomes de soldados americanos quepereceramnoVietn.Pessoasdecarneeosso,comseusnomesesuahistria,foram mortas naquela guerra. No respiram mais o mesmo ar que ns.Naquela lista encontrei o nome de DonaldMiller, que estudou comigo nasegunda srie e gostava de desenhar, nas margens de seu caderno dematemtica,tanques,soldadosenavios.Osnomestrazemlembranas.Nossonomenosacompanhaduranteavidainteira.elequeouvimosnachamadadaescola,naentregadosdiplomasna formatura,numsussurronomeiodanoite.

    importantedizeronomedequemsomos,onomedos locais emquevivemos,eregistrarosdetalhesdenossavida."EumoravanaCoalStreet,emAlbuquerque, ao lado de uma oficinamecnica, e estava caminhando pelaLeadAvenuecomsacolasdepapelcheiasdecomprasnosbraos.Noinciodaquelaprimavera,algumhaviaplantadobeterrabaporali,eeugostavadeobservaraquelasfolhasverde-avermelhadas,crescendodiaapsdia."

    Temosumavida;osmomentosquevivemossoimportantes.Serescritorseroportadordosdetalhesquefazempartedanossahistria,repararnamobliacordelaranjadalanchoneteemOwatonna.

    Registrarosdetalhesdenossavidaumamaneiradeprotestarcontraopoderdedestruioemmassadasbombas,contraapressa,contraaexigncia

  • daeficinciaemtudo.Oescritordevedizer"sim"vidaeatudooqueavidatem:oscoposd'gua,oaucareirosemtampa,oketchupemcimadobalco.Notarefadoescritordizer:"Achoburricemorarnumacidadepequena,oucomerqualquercoisanumcafquandosepodecomercomidamacrobiticaemcasa."Nossamissodizerum"sim" sagradosverdadeiras coisasdavida, verdadequenos rodeia:osquilosamais;oclima frioecinzento lfora;avitrineenfeitadaparaoNatal; aescritora judiana lanchonetecordelaranja, com sua amiga loira que me de filhos negros. Como escritores,devemos ser capazes de aceitar as coisas como elas so, amar os detalhes,trazersempreum"sim"noslbios,paraquenohajamaistantos"nos"nomundoaatalharnossavidaeaimpediraexistnciadosdetalhes.

    AssandooboloQuando preparamos um bolo, temos uma lista de ingredientes: acar,

    farinha,manteiga,fermento,ovos,leite.Podemosmisturartudonabatedeira,masaindanoumbolo.sumamassa.precisocoloc-lanofornoparaque,comocalor,amassasetransformeembolo.Quandoesteficarpronto,no conseguiremos distinguir cada ingrediente separadamente. muitosemelhanteaoqueaconteceucomaquelespaisemesdosanossessenta,quenoreconheciammaisseusfilhosnaquelesjovenshippies.Oleiteeafarinhaolhamparaabroaedizem:"Nonossa."Nonemleitenemfarinha:umamoa,comttulodePh.D.,filhadepaisrefugiados,estrangeiraemsuaprpriacasa.

    Decertomodo,escrevertambmassim.Osingredientesestotodosa,soosdetalhesdenossavida,masnobasta list-los:"NascinoBrooklyn.Tenhoumpaieumame.Soumulher."Temosdeadicionaraelesocaloreaenergiadenosso corao.Aquelenoumpaiqualquer; o seupai.Umhomemquefumavacharutosecobriaobifedeketchup.Aqueleaquemvocamavaeodiava.Nopodemossimplesmentemisturaros ingredientesnumatigelaelesnotmvida.Devemosnosuniraosdetalhes,noamorounodio.Fazerdelesumaextensodenossocorpo.Nabokovdiz:"Acaricieosdetalhes divinos." Ele no diz "pegue-os de qualquer jeito".Acaricie os,toque-os com delicadeza. Importe-se com o que est a seu redor. Se estescrevendo sobre um rio, deixe que todo o seu corpo toque aquele rio, demodoque,seodescrevercomoumrioamarelo,umrioidiota,umriocalmo,todo o seu ser esteja sentindo a mesma coisa. Quando estamosverdadeiramente envolvidos, nosso ser no se divide. Katagiri Roshi dizia:"Quandopraticazazen[meditaosentada],vocdeveestarausente.Assim,

  • quempraticaozazenozazen.NooSteveouaBarbara."exatamenteassimquedevemospensar com relaoescrita:quemescreveo textootexto.Nsdesaparecemos.Estamosaliapenaspararegistrarospensamentosquepassamatravsdens.

    O bolo est assando no forno. Todo aquele calor se direciona para apreparao do bolo.O calor no se distrai, pensando: "Mas eu queria quefosse um bolo de chocolate, no uma broa." O mesmo ocorre conosco.Quandoescrevemos,nopensamos:"Ah,nogostodaminhavida.QueriaternascidoemIllinois."Simplesmentenopensamos.Aceitamosarealidadeeassimacolocamosnopapel.SegundoKatagiriRoshi:"Aliteraturamostracomoavida,masnomostracomosairdela."

    svezes,ofornopodenoquerercolaborar.Poressarazo,talvezsejapreciso descobrirmaneiras alternativas para acend-lo. Estabelecer horriospodecriarumacertapresso,oqueajudaa aquecer as coisas e adriblarocensor interno.Alm disso, manter a mo em constante movimento faz ocalor aumentar, e um delicioso bolo pode sair dessa mistura dos detalhescotidianosdasuavida.Seficarolhandoparaorelgiootempotodoenquantoescreve,digaasimesmoquevaicontinuarescrevendoatpreenchertrs(ouquatro,oucinco)pginas,frenteeverso,ouatqueobolofiquepronto,noimporta quanto tempo demore. E, quando o calor comea, no possvelsaberseoresultadoserummanjardosdeusesouumagororobadosdiabos.Nohnenhumagarantia.Masnosepreocupe;asduascoisassoboasdecomer.

    H pessoas que tentam fazer bolo somente com o calor do forno, semnenhum ingrediente. O calor acolhedor e prazeroso, mas, no final, nohaver nada para comer. assim tambm com o texto abstrato: temos asensaodequehmuitocalorali,masnoconseguimosabocanharnada.Seusamososdetalhes,conseguimostransmitirmelhoranossaalegriaouonossosofrimento. Portanto, enquanto espera o forno aquecer, despeje amassa naassadeira, para que saibamos exatamente quais sentimentos serviram deingrediente e, assim, possamos apreci-los com antecipao: "Ah, umabroa, umbrownie, um delicado sufl de limo." Descobriremos quais soseus sentimentos. No vale dizer apenas: "Foi maravilhoso!" Sim, masmaravilhoso como? Deixe-nos provar esse sabor. Em outras palavras, usedetalhes.Elessoaunidadebsicadotexto.

    Quandousaosdetalhes,vocnoestsassandobolosezanzandoemvolta do forno. Est olhando o mundo de frente. E esse um atoprofundamentepoltico, pois vocno est apenasbuscando se aquecer nocalordesuasprpriasemoes.Estoferecendoumponutritivoesaboroso

  • aquemtemfome.

    ViverduasvezesOsescritoresvivemduasvezes.Porumlado,tmumavidanormal:so

    to apressados quanto qualquer outra pessoa na fila do supermercado, aoatravessar a rua, ao se arrumar para o trabalho. Por outro lado, tambmexercitamumaoutrapartedeles:apartequeosfazvivertudoduasvezes;queosfazparar,olhardenovoparasuavidaerepens-la;queosfazcontemplarastexturaseosdetalhes.

    Durante uma tempestade, todos saem correndo pela rua, cobrindo acabeacomoguarda-chuva,acapaimpermevelouojornal.Josescritoressaem na chuva de caderno e caneta na mo. Observam as poas d'gua,veem-nasseencheremdegua,veemasgotasdechuvarespingandonelas.Podemosdizerqueosescritorestreinamparaserbobos.Sumbobosairianachuvaparaobservarumapoad'gua.Osespertosseprotegemdachuvaparano se resfriar e tmplanode sadepara o casode ficaremdoentes. J osbobosestomaisinteressadosnapoad'guadoquenasegurana,noplanodesadeounohorriodetrabalho.

    Estomaisinteressados,enfim,emreviveravidaaoescreveremdoqueem ganhar dinheiro. Vamos esclarecer o seguinte: os escritores gostam dedinheiro,sim;aocontrriodoquedizacrenapopular,osartistasgostamdecomer.Squeodinheirono aprincipalmotivao.Sinto-me riqussimaquandotenhotempoparaescreverepauprrimaquandoreceboregularmentemeucontrachequemasno tenho tempodemeocupardomeu trabalhodeverdade.Pensenisso.Osempregadorespagamsalriosemtrocadetempo.esseobemmaisvaliosoqueoserhumanopodenegociar.Trocamosnossotempopordinheiro.Osescritorespreferemficarcomoprimeirootempo e reconhecem seu valor mesmo antes de receber dinheiro em troca.Agarram-seaseutempoenotmpressadevend-lo.comoreceberterrasem herana.A vida inteira elas pertenceram sua famlia, at que chegaalgum interessado em compr-las. Os escritores, se usarem a cabea, novendero toda a propriedade. Sabem que, com o dinheiro, at poderocomprarumsegundocarro,masnoteromaisumlugarparair,sentar-seemsilncio,sonhar.

    Porisso,sevocquiserserescritor,bomserumpoucobobo.Dentrodevoc,temalgumvagarosoqueprecisadetempoeoimpedirdevend-lotododeumavez.Essealgumquerumlugarparaficar;querolharaspoasd'guanachuva(geralmentesemchapu)equersentirasgotasmolhandosua

  • cabea.

    EscreverparamanteraformaO que as pessoas no percebem que escrever um ato fsico. No

    envolveapenasopensamento.Trabalhaviso,olfato,paladar,sensaestudooqueestvivoeativo.Aregrade"manteramoemmovimento",semparar,,naverdade,umamaneiradevenceratravsdocorpoasresistnciasmentais e romper o conceito de que escrever uma tarefa puramenteintelectual.Oescritormantmcontatofsicocomacaneta,esuamo,ligadaaobrao,registraasimpressesfornecidaspelossentidos.Nohseparaoentre mente e corpo; assim, atravs do prprio ato fsico de escrever, possvelderrubarosobstculosmentaisquedificultamoatodeescrever.Domesmo modo que possvel fazer a mente acreditar que sua mo no sedeteraotocaramadeiraevocconseguirquebraratbuacomumgolpedecarat.

    Depoisdeumaauladeredao,umalunomeuexclamou,maravilhado:"Agoraentendi!Aescrita umaartevisual!"Sim,e tambmcinestsica,visceral.Certavez,disseameusalunosdaquartasriequeminhamoqueescrevepoderiaderrubaroMuhammadAli.Eelesacreditaram,porquesabemque verdade. J os da sexta srie so mais velhos e mais cticos. Paraconvenc-los,tivedeamassar,comumsoco,umdessesarmriosdeao.

    Aoobservaraspessoasescrevendo,soucapazdedistinguir,pelaposturafsica, se conseguiram ou no vencer as barreiras da resistncia. Quandoconseguem, o maxilar fica solto, distenso; e o corao bate acelerado oudolorido.Arespiraoprofunda.Acaligrafiatorna-semaisexpansiva,maisgenerosa.Ocorpo,detorelaxado,poderiacorrerdezenasdequilmetros.por isso que digo que, independentemente de serem gordos, magros ouflcidos, os escritores esto sempre em forma, pois esto sempre seexercitando.Lembre-sedisso.Elesestosempresintonizados,tonificados,emritmocomascolinaseestradas,prontosapercorrerlongasdistnciasemilhasemilhasdepapel.Circulamporvriosmundosdiferentescomamesmagraademovimentos.

    Na verdade, o que os escritores transmitem no so exatamente suaspalavras. Eles nos oferecem o flego de seus momentos de inspirao.Quando lemos um grande poema em voz alta por exemplo, "A umaCotovia", de PercyByssheShelley e, durante a leitura, obedecemos aoritmoepontuaodadospelopoeta,estamosabsorvendooalentoinspirado

  • pelo autor nomomento em que escreveu o poema. De to poderoso, essealento ainda pode ser revivido em ns, mais de 150 anos depois. maravilhosaasensaoderespir-lo.Porisso,semprebomlembrar:paraseembriagar, no beba usque. Leia Shakespeare, Tennyson, Keats, Neruda,HopkinsouWhitmanemvozaltaedeixeocorpocantar.

    OuvirAosseisanosdeidade,estavaeusentadaaopianonacasademeustios,

    noBrooklyn,brincandodepianistaecantarolando:"Inthegloaming,ohmydarling(...)."Minhaprima,queeranoveanosmaisvelha,sentou-seaomeulado na banqueta e berrou minha me: "Tia Sylvia, a Natalie no temouvido musical. Ela no sabe cantar!" Desde ento, nunca mais cantei equase nunca ouvi msica. Quando escutava as canes dos musicais daBroadwaynordio,apenasdecoravaaspalavras,semjamais tentar imitaramelodia.Quandocresciumpoucomais,minhasamigaseeucostumvamosbrincarde"qualamsica".Eucomeavaamurmuraralgumasnotaseelaslogo caam na risada, incapazes de acreditar que eu realmente estivessecantarolando "Younger than Springtime", do musicalSouth Pacific. Eraminhamaneiradechamaraatenodaspessoas,emborameujovemcoraosecretamentealimentasseosonhodeserGypsyRoseLee.Afinal,eusabiaaletrade todasascanes.Para todososefeitos,porm,omundodamsicanoeraparamim.Eunotinhaouvidomusical:tinhaumaespciededefeitofsico,comosefossealeijadadeumpoudeumdedo.

    Muitosanosatrs,participeideumaauladecantocomummestre sufi,quemedissequeadesafinaonoexiste."Cantarnoventaporcentoouvir.Voc temdeaprender aouvir."Quandoouvimosalgocomateno,nossocorpo invadido pela msica; assim, ao abrirmos a boca, a melodia saiautomaticamente.Algumassemanasdepois,pelaprimeiraveznavida,canteijunto com um amigo em completa afinao e tive certeza de que estavailuminada.Minhavozindividualdesapareceraenossasduasvozesfundiram-seemunssono.

    Escrevertambmnoventaporcentoouvir.Ouvimosomundoaonossoredor com tanta intensidade que somos tomados por ele; ento, quandoescrevemos, ele jorra de ns. Se voc for capaz de capturar a realidade lfora,seutextonoprecisardemaisnada.Nosetrataapenasdeescutarointerlocutor do outro lado damesa,mas sim de ouvir, aomesmo tempo, osom do ar, da cadeira, da porta. E ir alm da porta. Absorva a voz dasestaesdoano,avozdascoresentrandopelas janelas.Ouaopassado,o

  • futuroeopresentenolugarondevocest.Faaissocomocorpotodo,nosomentecomosouvidos.Ouacomasmos,comorosto.Ouacomanuca.

    Audioreceptividade.Quantomaisprofundamentevocouvir,melhorvoc vai escrever. Quando assimilamos as coisas como so, sem julg-las,podemos,nodiaseguinte,escreversobrecomoelassodeverdade.Aolistaros elementos essenciais da prosa, Jack Kerouac incluiu: "Seja submisso atudo, receptivo, atento."E tambm: "O tempodapoesiano outro senoagora."Sevoccaptaramaneiradeserdascoisas,tertodaapoesiadequeprecisa.

    Certa vez, durante uma reunio na Fundao Lama, o rabino ZalmanSchachter contou a um grupo de pessoas que, na escola rabnica quefrequentou,osalunoseramproibidosdetomarnotas.Spodiamouvir;e,nofinaldaaula,deveriamsabertodaamatria.Aideiadequesomoscapazesdenoslembrardetudo.Poropoprpria,treinamosamenteparasuprimircertascoisas.

    Depoisdeumaleituraemsaladeaula,costumosugerirameusalunosumexercciode"recapitulao": "Repitam,omaisprximopossveldasexataspalavrasescritasourecitadas,ostrechosquemaislheschamaramaateno.No tentem se afastar, dizendo: 'Gostei quando ela falou dos campos dafazenda.'Apresentemosdetalhesexatos:'Nomeiodaplantao,estavamaissolitria que umcorvo.'"Almde criar abertura e receptividade ao que foidito,esseexercciodeouvir,quandorealizadodeformaprofundaeisentadejulgamento,despertaimagensehistriasadormecidasdentrodens.Ouvindodessamaneira,vocsetornaumespelhocapazderefletirarealidadeasuarealidadeearealidadeaoseuredor.

    Sevocpretendeserumbomescritor,devefazerbasicamentetrscoisas:ler bastante, ouvir com ateno e profundidade e escrever bastante. E nopensedemais.Apenassedeixeenvolverpelocalordaspalavrasedossonsepelassensaesmulticoloridasenquantoacanetaziguezagueiapelopapel.

    Se lermos bons livros, bons livros sairo de ns quando escrevermos.Talvez no seja assim to fcil; porm, quem quer aprender alguma coisadeve ir at a fonte.deBasho, ilustremestre dohaikudo sculoXVII, aseguinte afirmao: "Se quiser conhecer uma rvore, v at a rvore." Sequiserconhecerpoesia, leiapoesia,ouapoesia.Deixequeessespadreseformas se imprimam em seu ser.No se afaste da poesia para analisar umpoemacomespritolgico.Entrenapoesiadecorpointeiro.Dogen,grandemestre do Zen, disse: "Se andar no nevoeiro, voc vai ficar molhado."Portanto, simplesmente oua, leia e escreva. Pouco a pouco, voc h deaproximar-sedoquelhecompetedizereserentocapazdeexpress-locom

  • suaprpriavoz.Sejapacienteenosepreocupe.Sigacantandoeescrevendosemperder

    otom.

    NosecasecomamoscaPreste ateno na prxima vez em que ouvir a leitura de algum texto.

    Haver instantes em que sua mente devanear. Muitas vezes, ao final daleitura, respondemos com comentrios do tipo "No sei, acho que seaprofundou demais" ou "Acabei me perdendo com tantas descries".Geralmente,oproblemanoestnoleitor,masnotexto.

    Oqueocorrenessesmomentosqueoescritorsevoltaparasimesmo,sedeixaabsorverpeloprazerdeseusprpriospensamentos,perdendoo rumoda histria. Ele est discorrendo, por exemplo, sobre uma situao numrestaurante e fica obcecado pelamosca que pousou no guardanapo.Ento,passa a descrever, com todas asmincias possveis, o dorso damosca, ossonhos damosca, a sua infncia, a sua tcnica para atravessar as telas dasjanelas. O ouvinte ou leitor fica confuso, pois, logo antes disso, o garomhaviasedirigidomesaetodosestoesperandoqueelesirvaacomida.Podeser tambm que o autor no tenha clareza quanto direo que pretendeseguirounoestejaemcontatodiretocomseumaterial.Issocriaumborrono texto. Essa zona nebulosa distrai a ateno do leitor, pois cria umapequenalacuna,fazendocomquesuamentevagueieparalonge.

    Um dos propsitos da literatura manter as pessoas despertas,conscientes, vivas. Se o autor divaga, consequentemente o leitor tambmdivagar. A mosca na mesa pode ser um componente necessrio para adescriodorestaurantecomoumtodo.Talvezsejainteressanteretratar,comcertaexatido,osanduchesobreoqualoinsetopousou,mashumalinhatnueentreaprecisoeoexagero.

    Fique,pois,doladodapreciso.Estejacientedeseusobjetivosenoseafaste deles. Se suamente ou seu texto divagarem, traga-os gentilmente devolta.Quandoescrevemos,vrioscaminhosseabremdentrodens.Noseembrenhemuitoafundo.Cuidedosdetalhesemantenhasuadireo.Nosepermita ficar absorto, pois isso acaba rendendo um texto vago, obscuro.Podemos at chegar a conhecer a mosca, mas no nos esquecer de onde

  • estamos: o restaurante, a chuva l fora, o amigodo outro lado damesa.Amosca importante,masela temseu lugar.Noa ignore,mas tambmnofique obcecado por ela. No prefcio da coletneaJewishAmerican Stories[Histriasjudaico-americanas],IrvingHoweafirmouqueaarte,paraserboa,deveapenasbeirarasentimentalidade,semnelacair.Aceiteamosca,ame-atalvez,masnosecasecomela.

    NoescrevaemtrocadeafetoCercadecincoanosatrs,umaamigaminha foi assaltadana regiodo

    Lower East Side, em Manhattan. Mais tarde, ela contou-me que, naquelemomento,suareaoimediatafoilevantarosbraosegritar:"Nomemate,souescritora!""Queestranho",penseieu."Porqueserqueelaachouqueissopoderiasalv-la?"

    Osescritoresseconfundem.Acreditamosqueescreverumajustificativapara nossa existncia. Esquecemos que viver algo incondicional e que avidaeaatividadedeescreversoduasentidadesdistintas.Frequentemente,usamosoqueescrevemosparaangariarnotoriedade,ateno,afeto."Olhaso que eu escrevi. Devo ser uma boa pessoa." Todossomos pessoas boasmesmoantesdeescreverqualquercoisa.

    Algunsanosatrs,sempredepoisdealgumaleiturapblica,eumesentiamuito mal e muito sozinha, por mais que as pessoas demonstrassem tergostadodemeutrabalho.Euculpavaotexto.Masoproblemanoeraesse.Euestavaenfrentandoumprocessodedivrcio,comaautoestimaembaixa.Quemprecisavadeapoioeraeunoosmeuspoemas.Confundiasduascoisas.Esqueciqueeunosouopoema.Ospoemasestavamcomasadeemdia,euno.Quemprecisavadecuidadoeraeu.Daliemdiante,passeiaconvidar um amigo para ser meu "acompanhante" durante esses eventos.Pedia a ele que, assim que eu acabasse a leitura, viesse at mim, meabraasse, dissesseque eu estava linda e era umapessoamaravilhosa.Nointeressava se a apresentao havia sido um fracasso completo. S queriaouvirumelogio.Passadauma semana, eu analisariameudesempenhocomateno.Mas,naquelanoite,"digaquesouincrvel".

    Ns, escritores, estamos sempre buscando apoio. Em primeiro lugar,devemosperceberque j temosesseapoioem todososmomentosdavida.Temosaterraquesustentanossosps;temo