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http://www.hottopos.com/collat6/milton1.htm acesso 21 de abril de 2010 Entrevista – Milton Hatoum (*) Milton Hatoum vem merecendo extraordinário reconhecimento por parte da crítica brasileira e internacional, a partir de seu Relato de um certo Oriente (S. Paulo, Cia. das Letras, 1989). Traduzido para diversas línguas, mais recentemente para o francês (Récit d'un certain Orient, Paris, Seuil, 1993), o Relato recupera, a partir da implícita subjetividade do autor, inesperadas dimensões de um Oriente, sempre instigante. Arquiteto e mestre em Letras pela Universidade de São Paulo, Milton Hatoum é professor de Língua e Literatura Francesa da Universidade do Amazonas. Aida Hanania: Você nasceu no Brasil, mas até que ponto é brasileiro...? Milton Hatoum: Antes de mais nada, a noção de pátria está relacionada com a língua e também com a infância. O que mais marca na vida de um escritor, talvez seja a paisagem da infância e a língua que ele fala. Eu me lembro - a propósito do dilema: falar árabe ou falar português - de que minha mãe dizia que eu deveria falar português, porque a língua é a pátria. A brasilidade está presente na língua, mas não sei até que ponto está presente numa paisagem brasileira: porque não sei se se pode definir exatamente "paisagem brasileira" para quem é da Amazônia. A Amazônia não tem fronteiras; sim há uma delimitação de "fronteiras", mas para nós não

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Crítica literária

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http://www.hottopos.com/collat6/milton1.htmacesso 21 de abril de 2010Entrevista Milton Hatoum (*)Milton Hatoum vem merecendo extraordinrio reconhecimento por parte da crtica brasileira e internacional, a partir de seu Relato de um certo Oriente (S. Paulo, Cia. das Letras, 1989). Traduzido para diversas lnguas, mais recentemente para o francs (Rcit d'un certain Orient, Paris, Seuil, 1993), o Relato recupera, a partir da implcita subjetividade do autor, inesperadas dimenses de um Oriente, sempre instigante. Arquiteto e mestre em Letras pela Universidade de So Paulo, Milton Hatoum professor de Lngua e Literatura Francesa da Universidade do Amazonas.Aida Hanania: Voc nasceu no Brasil, mas at que ponto brasileiro...?Milton Hatoum: Antes de mais nada, a noo de ptria est relacionada com a lngua e tambm com a infncia. O que mais marca na vida de um escritor, talvez seja a paisagem da infncia e a lngua que ele fala.Eu me lembro - a propsito do dilema: falar rabe ou falar portugus - de que minha me dizia que eu deveria falar portugus, porque a lngua a ptria. A brasilidade est presente na lngua, mas no sei at que ponto est presente numa paisagem brasileira: porque no sei se se pode definir exatamente "paisagem brasileira" para quem da Amaznia. A Amaznia no tem fronteiras; sim h uma delimitao de "fronteiras", mas para ns no passam de fronteiras imaginrias. Que importa, para os ndios yanomamis, por exemplo, se eles foram assassinados na Venezuela ou no lado brasileiro? Para os ndios, o territrio, a terra deles no tem fronteiras...E para todos ns, nascidos na Amaznia, a noo de terra sem fronteiras est muito presente... Porque um horizonte vastssimo, em que as lnguas portuguesa e espanhola se interpenetram em algumas regies, onde as naes indgenas tambm so bilnges, s vezes poliglotas (ndios que falam tucano, espanhol, portugus...). H um mosaico de grandes naes, de tribos dispersas; na verdade, cada vez mais dispersas...Uma dessas pequenas tribos dispersas a dos orientais; dos imigrantes que chegaram no incio do sculo e que participaram da vida econmica da regio. Alis, os primeiros imigrantes foram para o Acre, para uma terra que no era ainda brasileira. Eu tenho pesquisado documentos sobre a Revoluo Acreana e notei que alguns oficiais do exrcito brasileiro que combateram pela independncia do Acre so de origem libanesa: h um Capito Alexandre Farhat, um Cel. Joo Turco, personagens que pertencem histria do Acre e esto j presentes tambm na historiografia.AH: Ainda pouco estudada a presena rabe no Norte do Brasil; conhece-se mais o caso do Sul...MH: Sim, porque o Norte uma regio muito isolada do Brasil: a selva nos separa; e essa sensao de isolamento radical muito forte para quem nasceu e mora na Amaznia. Mas. ao mesmo tempo, a integrao desses imigrantes com os brasileiros foi muito rpida; na minha famlia, por exemplo, a segunda gerao j se casou com brasileiros. No h uma comunidade rabe fechada.AH: numerosa a colnia rabe l?MH: uma colnia bastante expressiva; por exemplo, no Acre, a rua principal de Rio Branco toda ela habitada por rabes: da Sria, do Lbano... Eles vieram no incio do sculo e l permaneceram, no s na capital, mas em todo o Acre: Xapuri, Brasilia, Porto Acre (que um vilarejo de algumas centenas de habitantes, onde se deu o combate final entre bolivianos e brasileiros)... Em Porto Acre, ouvi um relato de um filho de srio, Muhammad Mamede Haruta, que contava interessantes histrias da famlia... So os turcos de Manaus. Contrariamente, os judeus - porque h muitos judeus da frica do Norte, do Magreb, particularmente do Marrocos - ficaram nas grandes capitais.AH: Como voc classificaria, em parmetros tradicionais, um livro to original como o Relato? Memrias ou fico? E, em que medida personagens e temtica so reais?MH: No Relato h um tom de confisso, um texto de memria sem ser memorialstico, sem ser auto-biogrfico; h, como natural, elementos de minha vida e da vida familiar. Porque minha inteno, do ponto de vista da escritura, ligar a histria pessoal histria familiar: este o meu projeto. Num certo momento de nossa vida, nossa histria tambm a histria de nossa famlia e a de nosso pas (com todas as limitaes e delimitaes que essa histria suscite).Memria? Com relao ao Relato, percebi que causou, talvez, para alguns leitores, uma certa estranheza, a estrutura de encaixes em que est vazado: vozes narrativas que se alternam... Mas, se a prpria memria tambm desse mesmo modo... O tempo narrativo, no livro, um tempo fragmentrio, que reproduz, de certa forma, a estrutura de funcionamento da memria: essa espcie de vertiginoso vaivm no tempo e no espao. precisamente essa correspondncia que eu procurei imprimir narrativa.Uma auto-biografia nunca verossmil, nunca verdadeira... ela no uma confisso de verdade. Todo relato auto-biogrfico entre aspas, que se pretende auto-biogrfico, tem uma dose de mentira, tem seu lado ficcional. como se a linguagem friccionasse essa suposta verdade e da surgisse a fico, essa mentira que a fico... Tanto assim que, para minha famlia, para pessoas prximas famlia, o Relato um texto de fico: eles no se reconhecem; reconhecem-se em partes, sempre falta algo: o fio que conduz verdade. H, pois, essa fluidez, essa vontade de mentir: o menti vrai de que fala Vargas Llosa em seus ensaios.O mesmo se d em relatos de viagens que, na verdade, tm um elemento ficcional muito forte. , por exemplo, o caso de Voyage en Orient de Nerval: muitas passagens so inventadas; outras, ele fisgou de textos de outros viajantes... Assim, uma certa dose de fico est presente at mesmo num relato de viagens, que se pretende relato de uma experincia pessoal, de encontro com uma sociedade, com uma cultura outra...Ainda quanto a aspectos estruturais, devo dizer que pensei muito na estrutura das Mil e Uma Noites; pensei numa narradora, numa personagem feminina que contasse essa histria... E isso, por vrias razes - por razes de ordem meta-lingstica, a referncia a Sheharzade; e tambm pelo fato de a mulher na famlia rabe ser submissa (aparentemente...), mas, ao mesmo tempo, ser a detentora do segredo, de certos segredos da famlia...AH: Seria esta a razo do ttulo da edio alem, Emilie oder Tod in Manaus (Emilie ou morte em Manaus), destacar a personagem feminina?MH: De fato, os editores alemes decidiram destacar o nome da protagonista, tambm porque Relato de um certo Oriente no um ttulo sugestivo para o leitor alemo, como no o para o leitor de lngua inglesa: um ttulo como Account on a certain Easterner, mais pareceria um relatrio de viajante, de algum vendedor ambulante. Assim, a edio americana intitula-se The Tree of the Seventh Heaven, que recolhe uma frase do livro: a rvore do stimo cu.AH: Como surgiu em voc o Relato?MH: Por que um escritor escreve? Porque tem vontade de escrever, desejo de escrever. Uma necessidade de escrever que surge de uma falta, de uma ausncia, como muitos autores j declararam... Para mim, a arte no exatamente a vida, mas tambm no exatamente a sua negao: isto , ficamos num limbo. Eu, quando estava na Espanha, recebi uma notcia que me chocou - acentuada pelo drama da distncia (eu j estava h quinze anos longe de Manaus) - a notcia da morte de meu av, que era o narrador, oral, da minha infncia. E isso provocou em mim o desejo de escrever sobre esse homem, cuja voz no mais existia; algo assim como a recuperao de uma voz que se foi...Alm disso, as outras lembranas da infncia, os relatos dos mais velhos... Eu misturei vozes da famlia e vozes de outras pessoas, de libaneses, de judeus, amigos que moravam na Espanha e na Frana, que me contavam histrias do Marrocos, da Sria... muito curioso: h vozes que no so da minha famlia, mas de outras tribos, de outros cls.A distncia tambm me ajudou muito a escrever; o fato de estar longe do Brasil, muito longe de Manaus, permitiu-me escrever com mais liberdade. claro que voc pode escrever em qualquer lugar. Eu me lembro de um texto de Thomas Bernhard, que trata de um personagem que escreve na priso e conta suas histrias para os amigos presidirios e, quando ele sai da priso, no consegue mais escrever...ARH: Tive o privilgio de acompanhar, em Paris, o lanamento do Rcit e, ao mesmo tempo em que constatava a extraordinria receptividade da crtica e do pblico, perguntava-me at que ponto um europeu capaz de compreender a peculiar realidade de um certo Brasil: imigrantes libaneses em Manaus...!MH: Para o leitor europeu, o Relato faz o cruzamento do Oriente e Amazonas, dois mundos imaginveis e desejados, um pouco na perspectiva de Edward Said... Como os europeus no Sculo XVIII andavam em busca de suas origens, em busca do outro..., aquela sede do outro. Nessa linha, "conhecem" o Amazonas ou dele j ouviram falar...Lembro-me de que era escritor residente numa cidade, na Frana, St. Nazaire (no Loire) e vi uma senhora que me reconheceu e comeou a falar do Lbano e de Manaus (falava at da pera de Manaus...). Perguntei-lhe ento, como conhecia tanto a respeito do Lbano!? Ao que ela me respondeu: "A colonizao nos ajudou a conhecer o mundo". E, de fato, a colonizao deu aos franceses ao menos a viso da geografia; j o americano, por exemplo, sequer sabia (como se constatou por ocasio da Guerra do Golfo) onde ficava o Iraque.Por outro lado, enfrentamos uma pr-concepo do que seja Literatura Latinoamericana: os europeus tem um clich espera de um texto vindo da Amrica Latina: como se qualquer livro latinoamericano tivesse que ter os mesmos ingredientes. E como fica ento uma Clarice Lispector ou um Joo Cabral !?Deve-se fazer um esforo para quebrar a correspondncia que se estabelece entre Literatura e a imagem que se faz de um pas.ARH: Sei que voc esteve no Lbano recentemente. E, nessa visita, teve a oportunidade de re-conhecer o Lbano das histrias da infncia? Que impresso o pas lhe causou?M.H: Reconheci muito pouco. Em Beirute, hoje to devastada, nada. S reconheci a famlia, ao mesmo tempo triste e nostlgica de seu pas. Mas foi importante ter conversado com os parentes. Conheci cinqenta e dois parentes...! Soube que meu pai, na dcada de 20 ou 30, foi um dos trs muulmanos que estudaram no Collge de la Sagesse, graas ao Monsenhor Houaiss (parente de Antonio Houaiss), que da mesma cidade de meu pai, Burj al Barajne (Torre das Torres). Essas conexes, esses laos foram muito significativos.J o interior do Lbano permanece mais ou menos intacto...Depois de Beirute, fui a St. Nazaire. uma cidade que foi inteiramente destruda na segunda guerra mundial. Ento sa de uma cidade devastada para outra que tinha sido devastada tambm... Foi muito impressionante tanto Beirute como St. Nazaire: porque a linguagem da guerra comum s duas cidades e o impacto sobre mim foi to forte, que durante um tempo no consegui escrever...http://www.hottopos.com/ Collatio 6 Univ. Autnoma de Madrid Univ. de So Paulo - 2001 Escrever Margem da Histria (*)Milton HatoumPara um escritor que mora longe dos centros irradiadores de cultura, mas perto de uma das regies mais exticas do mundo, cabe-lhe responder a uma pergunta: como povoar de signos este espao branco (a folha de papel), tendo como referncia simblica um outro espao em branco, konradiano, lugar longnquo, territrio perdido "num recanto da floresta e num desvo obscurecido da histria"?(1).Ao invs de discorrer sobre esse dilema, prefiro fazer um breve comentrio sobre uma experincia pessoal; ou seja, falar de uma dupla viagem. A primeira, imaginria. O viajante imvel que durante a sua infncia em Manaus, imagina mundos distantes. A segunda, uma viagem real rumo ao sul do Brasil e ao outro hemisfrio: deslocamento da periferia para vrios centros (o centro sempre plural), desejo de deixar a margem e navegar no rio de uma outra cultura ou sociedade.Na minha infncia, a convivncia com o Outro exterior aconteceu na prpria casa paterna. Filho de um imigrante oriental com uma brasileira de origem tambm oriental, eu pude descobrir, quando criana, os outros em mim mesmo. Ou, como afirma Todorov: "Uma pessoa pode dar-se conta de que no uma substncia homognea e radicalmente estrangeira a tudo que no ela prpria".(2)A presena e a passagem de estrangeiros na casa da infncia contribuiram para ampliar um horizonte multicultural. Minha lngua materna o portugus, mas o convvio com rabes do Oriente Mdio e judeus do norte da frica me permitiu assimilar um pouco de sua cultura e religio. De forma semelhante, a cultura indgena se impunha com a presena de nativos que moravam na minha casa e freqentavam o bairro de imigrantes orientais da capital do Amazonas. Esse aprendizado foi lento, como sempre acontece quando assimilamos uma outra cultura. Nos primeiros anos da minha infncia, eu escutava os mais velhos conversarem em rabe, a ponto de pensar que esta lngua era falada pelos adultos e o portugus pelas crianas. Aos poucos, a lngua rabe, a histria, as paisagens e os costumes de um pas longnquo tornaram-se familiares para mim. Os laos sangneos contribuiram para isso, mas o pequeno Oriente que me cercava (e do qual emanavam vrios cdigos visveis e invisveis) foi decisivo. Perscrutar um homem ajoelhado no seu quarto, a rezar com o corpo voltado para Meca, era violar um momento de sua intimidade, mas tambm descobrir o fervor religioso do meu pai. Outros parentes prximos eram catlicos ou cristos maronitas, mas nenhuma religio me foi imposta: era mais importante tomar conhecimento do texto bblico ou cornico do que optar por uma religio. Afinal, diziam os mais velhos, somos todos descendentes de Abrao.Alm da religio, da lngua e dos costumes, a cultura do Outro estava delineando-se por um outro caminho, talvez o mais fecundo para mim: o da narrao oral. Essa forma de discurso era usada por exmios contadores de histrias que freqentavam a Penso Fencia, lugar da minha infncia. Hoje, passados trinta anos, a imagem que fao desses narradores tem alguma semelhana com "o observador errante que percorre a bacia amaznica" e o "homem sedentrio", postado na margem do rio, citados por Euclides da Cunha(3).. Imagem ainda mais prxima da figura do narrador evocada por Walter Benjamin. O filsofo alemo, nas observaes preambulares de um belo estudo sobre a obra de Nikolai Leskov, ressalta "entre os inmeros narradores annimos, dois grupos que se interpenetram de mltiplas maneiras": o do viajante ou marinheiro comerciante, ou seja, algum "que vem de longe" e, por isso, tem muito que contar. Ao outro grupo, pertence o campons sedentrio, o homem fixado terra, que passou a vida sem sair do pas e que "conhece suas histrias e tradies" (4).. Ainda segundo Benjamin, esses dois grupos, atravs de seus representantes arcaicos, configuram "dois estilos de vida que produziram de certo modo suas respectivas famlias de narradores".Um resqucio desses estilos de vida, aludido por Benjamin existia no espao que freqentei quando criana. Por um lado, alguns parentes mais velhos que pertenciam a essa famlia de comerciantes-viajantes eram, na verdade, narradores em trnsito. Contavam histrias que diziam respeito experincia recente de suas viagens aos povoados mais longnquos do Amazonas, lugares sem nome, espalhados no labirinto fluvial. Nas pausas do comrcio ambulante, exercitavam a arte narrativa(5).. Esses orientais, rudes ou letrados, narravam tambm episdios do passado, ocorridos em diversos lugares do Oriente Mdio, antes da longa travessia para o hemisfrio sul. Por outro lado, os amazonenses que haviam migrado para a capital, traziam no imaginrio as lendas e os mitos indgenas. Na Penso Fencia, as vozes desses nativos faziam contraponto s dos imigrantes orientais: vozes dissonantes, que narravam histrias muito diferentes, mas que pareciam homenagear um tipo de saber citado por Benjamin: "o saber que vinha de longe - do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradio" (6).Ouvir essas histrias, ver os narradores com seus gestos e expresses foi uma das experincias mais fecundas da minha infncia e adolescncia. De certa forma, tambm eu viajei aos lugares mais recnditos do Amazonas e ao longnquo Oriente. Para o ouvinte, aquelas histrias narradas assumiam um carter ao mesmo tempo familiar e estranho. Aqueles mundos, reais ou fictcios, passaram a fazer parte da minha vida. O viajante imvel experimenta, assim, a percpeo do Outro atravs do convvio e da palavra oral.No incio dos anos 60, Manaus conservava ainda um ar "caipira e cosmopolita" de que fala Euclides da Cunha. O traado urbano que remontava "belle poque" cabocla pouco mudara. Na fisionomia urbana, conviviam a arquitetura popular formada de palafitas (casas de madeira sobre pilotis beira dos igaraps) e os sobrados de estilo neoclssico construdos nos anos mais prsperos da economia da borracha. Algumas dessas casas freqentei, na minha adolescncia, como aluno de cursos de lnguas estrangeiras. O ambiente austero em que moravam os europeus contrastava com a azfama da Penso Fencia e das outras casas de imigrantes orientais onde eu passava uma parte do dia. Mas foi durante essas aulas, entremeadas de prosa sobre as capitais e a cultura europias, que tomei conscincia da necessidade de navegar em outras latitudes. Durante aqueles anos, ouvir dos mais velhos um conto das Mil e uma Noites ou uma passagem da vida do califa Harum ar-Rashid era to fascinante quanto ouvir de uma professora francesa um poema de Baudelaire ou contemplar, com um desejo extico, um mapa de Paris. Reprodues de pinturas europias, poemas e histrias de um "oriente-amaznico", tudo isso fazia parte de um pndulo mgico que aludia a um outro tempo e a um outro espao. E desta forma que se configura o desenho de uma prtica extica: o desejo de saber tambm desejo de viajar. Ou, como afirma um filsofo da alteridade: "O prprio desejo viagem, expatriao, sada do meu lugar"(7).."Para conhecermos nossa prpria comunidade, devemos primeiro conhecer o mundo inteiro", observa Todorov, num belo ensaio sobre a diversidade humana(8).. Essa viagem real tem sido uma experincia de vida e de leitura: uma peregrinao pelo sul do Brasil e por vrias cidades europias que comeou h mais de vinte anos. De certa maneira, essa viagem-leitura tem amplificado as vozes e as vises que passaram pela minha infncia. como se o viajante se distanciasse da "margem da Histria", a fim de assimilar outras culturas, sem no entanto perder a bssola que aponta para o seu Norte. O Norte, depois da errncia e do exlio, menos uma geografia do que um lugar que se busca. Lugar que j no mais existe, ou lugar utpico que s existe na memria. Em outras palavras: essa tentativa de um retorno terra natal s possvel atravs da linguagem: "instncia potica da recordao que comemora"(9).."A lembrana, afirma o filsofo Benedito Nunes, cria a proximidade com as coisas, chamando-as presena, desvelando-as na linguagem"(10)..Creio ser esta a viagem mais fecunda: movimento da palavra potica rumo origem.Dois Irmos novo livro de Milton HatoumMilton Hatoum volta ao romance com um drama familiar em cujo centro esto dois filhos de imigrantes libaneses: os gmeos Yaqub e Omar.

No incio do sculo xx, Manaus, a capital da borracha, recebeu estrangeiros como o jovem Halim, aprendiz de mascate, e Zana, uma menina que chegou sob a asa do pai, o vivo Galib, dono de um restaurante perto do porto. Halim e Zana vo gerar trs filhos: Rnia, que no vai casar nunca, e os gmeos Yaqub e Omar, permanentemente em conflito. O casaro que habitam servido por Domingas, a empregada ndia, e mais tarde tambm pelo filho de pai desconhecido que ela ter. Esse menino o filho da empregada ser o narrador. Trinta anos depois dos acontecimentos, ele conta os dramas que testemunhou calado. Dois irmos a histria de como se faz e se desfaz a casa de Halim e Zana. Apaixonado pela mulher, depois do nascimento dos filhos Halim se condena nostalgia dos tempos em que no era pai, em que no precisava disputar o amor de Zana, em que os dois tinham todo o tempo do mundo para deitar na rede do alpendre e se entregar aos prazeres sensuais. Pelo que nos conta o narrador, Halim estar sempre espera da deciso mais acertada diante dos abismos familiares: a desmedida dedicao de Zana a Omar, seu filho preferido; o trauma de Yaqub, o filho que, adolescente, foi separado da famlia supostamente para amenizar os conflitos com Omar; a relao amorosa entre os gmeos e a irm, Rnia. De Domingas, com quem compartilhava o quartinho nos fundos do quintal, o narrador nos diz que esta uma mulher que no fez escolhas. Aparentemente, no escolheu nem mesmo o pai de seu filho.Milton Hatoum faz os dramas da casa estenderem-se cidade e ao rio: Manaus e o Negro transformam-se em smbolos das runas e da passagem do tempo. E, pela voz de um narrador solitrio, revive tambm os tempos sombrios em que as praas manauaras foram ocupadas por tanques e homens de verde. Esses tempos foram responsveis pelo destino trgico de um grande personagem do livro: o professor Antenor Laval.Milton Hautom nasceu em Manaus, em 1952. professor de literatura na Universidade Federal do Amazonas e professor convidado na Universidade da Califrnia, em Berkeley. Relato de um certo Oriente, seu primeiro romance (Prmio Jabuti 1990), foi publicado nos Estados Unidos, na Frana, na Itlia, na Alemanha, em Portugal e na Sua; entre outros pases.

* Entrevista concedida a Aida Ramez Hanania em 5-11-93. Transcrita e editada por ARH.(*) Texto da participao do autor em 4-11-1993 no seminrio de escritores brasileiros e alemes, realizado no Instituto Goethe, So Paulo.(1) Euclides da Cunha, Obras Completas, Vol.I. Rio de Janeiro, Companhia Jos Aguilar Editora, 1966, p.245.(2) Cf. Tzvetan Todorov, La Conqute de l'Amrique, La question de l'Autre, Paris, Seuil, 1982.(3) Cf. Euclides da Cunha, op. cit., vol.I. p.231.(4) Cf. Walter Benjamin, "O Narrador. Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov". In: Magia e Tcnica, arte e poltica. Ensaios sobre literatura e histria da cultura. Trad. Srgio Paulo Rouanet. S.Paulo, Brasiliense, 1985.(5) Cf. Idem, ibidem, p.214.(6) op. cit. p.202.(7) Cf. Francis Affergan, Exotisme et Altrit, Paris, PUF, 1987.(8) Cf. Tzevetan Todorov, Nous et les Autres. La rflexion franaise sur la diversit humaine, Paris, Seuil, 1989.(9) Cf. Benedito Nunes Passagem para o Potico. Filosofia e Poesia em Heidegger. S.Paulo, tica, 1992, 2a. edio, p.275.(10) op. cit. p.275.