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1 E E s s c c r r i i t t o o s s E E s s p p i i r r i i t t u u a a i i s s A A U U G G U U S S T T O O D D E E F F R R A A N N C C O O 2 0 1 3

Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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Estes Escritos Espirituais de Augusto de Franco recolhem textos publicados no Facebook e na Escola-de-Redes no ano de 2013,

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Page 1: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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EEssccrriittooss EEssppiirriittuuaaiiss

AAUUGGUUSSTTOO DDEE FFRRAANNCCOO

2 0 1 3

Page 2: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

2

Escritos Espirituais

Augusto de Franco, 2013.

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

Escritos Espirituais / Augusto de Franco. – São Paulo: 2013.

68 p. A4 – (Augusto de Franco 1)

1. Redes sociais. 2. Espiritualidade. 3. Augusto de Franco. I. Título.

http://www.augustodefranco.org

Page 3: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

3

PPOORR QQUUEE EESSCCRRIITTOOSS EESSPPIIRRIITTUUAAIISS

Estes escritos espirituais recolhem quinze textos publicados por mim no

Facebook e na Escola-de-Redes no ano de 2013, que já vai acabando.

É preciso entender o sentido em que emprego a palavra "espiritual". Não

é na acepção religiosa de algo sagrado por oposição a profano, muito

menos na concepção espiritualista de folhetim de algo sutil em

contraposição ao denso, nem no sentido moral derivado de algo

necessariamente bom. Via de regra, o que se diz que é espiritual é ruim

mesmo e é, ademais, uma perversão, quando expressa o domínio de um

programa sacerdotal - e, portanto, de um poder hierárquico - sobre a vida

material dos seres humanos comuns: corpóreos, imperfeitos, que não

querem escapar da humanidade pela via do heroísmo ou da santidade.

Espiritualidade para mim é tudo que nos conecta à nossa humanidade,

que nos torna mais-humanos e não mais-que-humanos.

Dito isto...

São Paulo, 13-20 de novembro de 2013

Page 4: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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SSUUMMÁÁRRIIOO

Por que a hierarquia é espiritual (13--16/02/2013)

Se eu fundasse uma religião (12/03/2013)

Nós somos as pessoas comuns (09/06/2013)

Reaprender a brincar (19/06/2013)

O barulho do sapo pulando na água (15/08/2013)

Varrendo para dentro? (28/08/2013)

Eu, caçador de mim (22/09/2013)

Imaginando o simbionte social (26/09/2013)

Passado, futuro, presente (27/09/2013)

Aviso (17/10/2013)

Empowerfulness (31/10/2013)

Rede não é religião (11/11/2013)

Méfiez-vous l'ironie (12/11/2013)

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O que morre em nós enquanto vivemos (12/11/2013)

A bolha (13/11/2013)

P. S. Epigramas para um não-credo (14-20/11/2013)

Page 6: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

6

PPOORR QQUUEE AA HHIIEERRAARRQQUUIIAA ÉÉ EESSPPIIRRIITTUUAALL

Recuperando trechos de comentários em conversações sobre hierarquia no

Facebook e na Escola-de-Redes de 13 a 16 de fevereiro de 2013

1 - Post de Augusto de Franco no Facebook replicado na Escola-de-Redes

Algumas pessoas não entenderam por que escrevi no livro Hierarquia

(2012):

"O processo chegará ao paroxismo quando, ao lado da igreja e de outras

organizações confessionais ou devocionais (seitas, associações religiosas,

sociedades, irmandades, fraternidades), entrarem em cena as

organizações esotéricas (como as maçonarias realmente clandestinas e as

organizações secretas de cunho iniciático, em especial as ordens religioso-

militares que ecoam tradições templárias, por meio das quais o programa

será instalado então na sua versão hard, quer dizer, na sua versão

profissional, para desenvolvedores)"

Mas nas recorrentes conversações sobre redes e hierarquias que ocorrem

aqui no Face, no Twitter e na Escola-de-Redes, isso tem ficado cada vez

mais claro. Há sempre uma metafísica influente orientando aquelas

Page 7: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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pessoas que querem salvar a hierarquia de qualquer jeito. Quando a

conversação se adensa e quando esprememos os argumentos, não tardam

a surgir hipóteses sobre o caráter divino, sagrado, cosmogônico, da

hierarquia. Segundo tais alegações, a hierarquia entre os humanos seria,

no fundo, um "reflexo" (nas versões mais benevolentes, um reflexo

degenerado) de uma hierarquia "pura" (um poder sagrado, um princípio

sagrado) inerente à organização oculta do cosmos e da vida. Seria algo

assim "espiritual" (e os que dizem isso entendem que, por alguma razão, o

espiritual é superior ao material, et pour cause).

Outro dia fiz aqui um comentário jocoso sobre aquelas pessoas que

ficaram surpresas com o estupro coletivo na Índia. Elas estavam surpresas

porque não conseguiam entender como em um país com cultura tão

espiritualizada podia ocorrer tal barbaridade). Disse, provocativamente,

que foi por isso mesmo, porque a cultura era espiritualizada. Muita gente

não entendeu. E não entendeu porque fomos impregnados pela

mistificação de que o espiritual seria o bom e o material o mal, que o

espiritual, o sutil, o elevado, seria evolutivamente mais avançado do que o

material, o denso, o rebaixado. Ora, tudo isso faz parte da mesma

perversão do programa de controle daquilo que, metaforicamente,

chamei de "Matrix realmente existente". Sim, a hierarquia é espiritual

mesmo (para além de um sentido hegeliano do termo), e justamente por

isso é problema!

Aplicado assim, o conceito de evolução é também uma perversão

hierárquica. O mundo todo estaria organizado em uma escada (a Escada

de Jacob): nos degraus superiores (do mundo da emanação) teríamos

Page 8: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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deus (ou as diversas qualidades do divino), nos degraus intermediários (do

mundo da criação) teríamos toda a hierarquia angélica (serafins,

querubins, tronos, dominações, potestades, virtudes, principados,

arcanjos e anjos) e também os seres humanos que se elevaram, que

evoluíram mais do que os outros. Em um mundo mais abaixo (o mundo da

formação) teríamos ainda parte dessa hierarquia angélica se manifestando

ocultamente na esfera da psique, no mundo dos sonhos e da magia. E

abaixo de tudo (no mundo do produzir) teríamos os miseráveis seres

humanos (também dispostos nos degraus da grande escada por graus

evolutivos: os mais espiritualizados acima dos mais materializados). O

esquema descrito acima (da Kabbalah, essa ideologia de professores

judaicos) é basicamente o mesmo em outras tradições espirituais,

espiritualistas e ocultistas. Alguns são mais refinados (mais "sutis", como

eles gostam de dizer), mas, em última instância, expressam o mesmíssimo

padrão.

Há sempre algum fragmento desse "DNA de desenvolvedor" nos

defensores da hierarquia. Mesmo quando essas pessoas nada têm de

religiosas (ou "espiritualistas"), elas precisam acreditar que existe uma

ordem pré-existente. Não suportam a ideia de que o universo seja criativo

e se crie à medida que avance. Não! Tem que haver uma ordem oculta,

primordial, primeva, que tudo organiza. É uma resposta conveniente à

desesperança diante da finitude da vida humana tomada como um

atributo individual.

A crença fica mais grave quando essas pessoas acreditam que existem

seres vivos que são "mais evoluídos" do que outros. Numa clara agressão

Page 9: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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à biologia da evolução, pensam que um ser humano (como espécie

biológica) é mais evoluído do que uma bactéria. Claro que isso é um

absurdo de vez que todos os seres vivos são igualmente evoluídos na

medida em que todos os seres vivos descendem da primeira célula viva

surgida há 3,9 bilhões de anos. Mas a crença assume o caráter de

abominação quando algumas dessas pessoas começam a acreditar que

mesmo entre os seres humanos uns seriam mais evoluídos do que outros

(em geral dizem que uns são mais "espiritualizados", estão mais acima na

escada da evolução).

Percebam que há aqui um padrão.

Tenho concluído que não adianta esgrimir argumentos com essas pessoas.

Não adianta também apresentar evidências que corroborem hipóteses

aceitas pela ciência. Não adianta dizer que os pássaros que voam em

bandos não são liderados pelo que vai na frente. Não adianta dizer que as

colmeias não têm rainhas (no sentido sociológico-político do termo). Não

adianta dizer que os formigueiros não têm qualquer coisa que se possa

chamar de administração. Não adianta dizer que a incidência do macho-

alfa entre canídeos e primatas não significa hierarquia (porque hierarquia

é descentralização e não mando centralizado). Elas não querem saber de

ciência. Não se trata disso. Elas precisam acreditar.

Então os caminhos devem ser outros. Há tempos tenho tentado resolver

essas controvérsias propondo um acordo prático. Digo assim: você pode

acreditar no que quiser. Basta, para nos sintonizarmos na conversação,

que você concorde em não reproduzir comportamentos que impliquem

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mandar nos outros (ou obedecer a alguém). Tudo bem? Do outro lado

ouço geralmente um silêncio que significa: espanto!

Sim, porque, no final é isso que importa. Ideias não mudam

comportamentos: só comportamentos mudam comportamentos. Se,

acreditando no que quiser, alguém concorda em não reproduzir

comportamentos para comandar e controlar os semelhantes (e de não se

sujeitar à obediência), beleza! Beleza?

2 - Comentário do Marcelo Maceo (que originou este post)

Beleza de texto Augusto de Franco! Gostaria de aprofundar com quatro

coisas.

1) Ao citar os tipos de organizações que gerariam um paroxismo ao tema,

você fala da maçonaria, mas parece se referir somente às "realmente

clandestinas". Discordo. A meu ver, isso ocorre com toda maçonaria, de

qualquer tipo e origem, que ainda teima existir nos dias de hoje. Por que

não ocorreria? A farinha é do mesmo saco, a estrutura de pensamento é a

mesma, e sua política de ação também.

2) Concordo com seu texto, o achei muito esclarecedor, mas sendo eu

uma pessoa que teve um "DNA de Desenvolvedor" (talvez com alguns

resquícios ainda, rsrsr), me pergunto qual foi o lado positivo de termos

mais de 5 mil anos de história e civilização baseada neste pensamento.

Houve algum aprendizado? Qual o valor deste passado para com o que

estamos falando hoje?

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3) Pedir ao outro que não replique comportamentos de comando-controle

é eficiente? Não é mais fácil simplesmente agirmos dessa forma e esperar

que o nosso comportamento influencie a um, a outro, e logo todos

estamos "replicando" comportamento de redes mais distribuídas?

4) Ao citar a questão do macho-alfa, temos "porque hierarquia é

descentralização e não mando centralizado". O mando centralizado,

mesmo não constituindo hierarquia, não geraria comportamento e

replicações de comando-controle, ou poderíamos ter um mando

centralizado que, mesmo funcionando nesta topologia, não gerasse o

exercício de poder como descrito? O ponto em questão é a constituição

de uma topologia na forma de hierarquia ou as relações de poder

constituídas?

Valeu Augusto!

3 - Comentário de Carlos Boyle

Augusto, en todos estos textos tuyos sobre jerarquía parecería que están

escritos del lado bueno de algo malo, oscuro, oculto.

He estado investigando sobre servicios secretos, servicios de inteligencia y

llegé a esta página http://www.rand.org/pubs/monographs/MG126.html

(recomiendo bajar el sum resumen).

Page 12: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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En esas páginas se explica cómo surgen los patrones en el caos de

información. Es como si esa desorganización estuviese organizada de

alguna forma y es preciso saber cómo interpretarla.

Finding the dots, linking the dots y understanding the dots, son los tres

procesos esenciales para entender como funciona cualquier cosa.

Lo interesante de esto es lo de secret, o secreto, poder leer los datos y

después apropiárselos esconderlos, hacerlos secretos, ese es el único

problema, hegemonizarlos.

Los puntos allí dispersos se gobiernan solos. ellos no son culpables.

4 - Resposta de Augusto de Franco a Marcelo Maceo

Marcelo Maceo, indo por partes, hehehe:

1) Você tem razão. Toda maçonaria é templária e, assim, é um servidor de

programas verticalizadores. No livro (lembre que esse trecho é uma

citação do livro) quis enfatizar que existem versões do programa ainda

mais "profissionais" (hehe, se se pode falar assim). Nas maçonarias mais

"profanas" (olha eu reincidindo também), estão disponíveis executáveis

com versões básicas. Nas outras, às quais me referi, você pode também

programar: o código é open (para os "aceitos", êpa!). Acho que você

entendeu.

2) Não sei qual o "valor" desse passado. Valor é o que valorizado por

alguém, certo? Por outro lado, como você também sabe, esse passado

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ainda não passou (do contrário não estaríamos conversando sobre isso

aqui). A tradição é composta por ondas temporais que nos atingem

intermitentemente. É replicação de padrões para outras regiões de

tempo, não um conjunto de eventos pretéritos... Aprendizado, a meu ver,

com certeza está havendo (do contrário - novamente - não estaríamos

conversando sobre isso aqui). Do ponto de vista da hierarquia houve

ensinagem (reprodução) e por isso houve o que houve e continua

havendo! Lado positivo, entretanto, é uma pergunta que não cabe do

ponto de vista da aprendizagem (só da ensinagem): é como imaginar que

a experiência tenha servido a um propósito pré-existente, entendeu?

3) Pedir ao outro que não replique comportamentos de comando-e-

controle não é eficiente. Oferecer o próprio exemplo individual, a rigor,

também não é muito eficiente (a palavra "eficiente" é ruim, mas vá-lá).

Eficiente é gerar ambientes onde tais comportamentos não incidam. Esses

ambientes são redes (mais distribuídas do que centralizadas), quer dizer,

são emaranhados pessoais.

4) Sim, hierarquia é descentralização. Por isso postei lá no Face, no

domingo, o seguinte: "Por que hierarquia = centralização. Quando falamos

de rede genericamente fica implícito que estamos tratando de topologias

mais distribuídas do que centralizadas: mais próximas do diagrama (C). O

diagrama (B) - desenhado a mão pelo próprio Baran (1964), no famoso

texto "On distributed communications" se referia a uma topologia com

alto grau de centralização. Por definição hierarquias são estruturas

descentralizadas (quer dizer, multicentralizadas). O diagrama (A) se refere

a uma estrutura com 100% de centralização mas não configura uma

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hierarquia porque todos os nodos têm acesso direto ao centro. Para haver

hierarquia é necessário que haja intermediação. Hierarquia é o poder da

obstrução de fluxos, é a escassez de caminhos artificialmente gerada pelo

padrão de organização..." Você tem razão quando afirma que o mando

centralizado gera comando-e-controle, mas se trata de uma forma

instável, na qual os papéis podem ser trocados a qualquer momento e por

isso não gera um padrão-replicante. É como o "poder" do cacique

Yanomami: tem que ser negociado e renegociado a cada momento porque

como todos os membros da tribo têm acesso ao cacique, o chefe (o centro

da rede centralizada) está permanentemente vulnerável à interação,

entendeu? Isso não gera poder institucionalizado, pode gerar no máximo

influência culturalmente aceita. Além disso, se você observar atentamente

verá que o chefe em questão não costuma mandar os outros fazer coisas

contra sua vontade. Caciques e pajés, no nosso exemplo, são espécies de

referências sócio-culturais (alguns diriam espirituais), não comandantes

stricto sensu. Ainda que possam exercer funções de comando em conflitos

eventuais, aqueles cosmos sociais onde exprimem a função

empowelfulness não está organizado em função da guerra como

instituição permanente (tal como nas civilizações patriarcais e guerreiras

derivadas do que chamei de protótipo sumeriano). Então, para concluir,

estou tratando mesmo da hierarquia (sacerdotal-militar em sua origem) e

não de uma ou outra forma de mando implicada na influência eventual de

um ator particular em uma topologia fortemente centralizada.

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5 - Resposta de Augusto de Franco a Carlos Boyle

Sim, oculto é o que foi ocultado. Esse é o único problema, como você diz.

Mas por que foi ocultado? Qual a topologia que permite a prorrogação da

ocultação? Quem faz isso, caro Boyle, são estruturas descentralizadas,

quer dizer, hierarquias! Não é bom nem mau quem faz isso. Na tentativa

de separar o bem do mal, a tentativa é, em si, o mal: a separação :)

6 - Comentário de Marcelo Maceo

1) Capisco!

2) Muito legal isso aí. Ao dizer que "A tradição é composta por ondas

temporais que nos atingem intermitentemente. É replicação de padrões

para outras regiões de tempo, não um conjunto de eventos pretéritos..."

me veio a idéia (to viajando aqui) de que passado na verdade não existe,

ou melhor, existe somente a idéia que fazemos dele. O mesmo vale ao

futuro. O que passou, só é real através do que mantemos em nossas

cabeças. Seria o mesmo que dizer que história (no seu sentido factual) não

é o que passou, mas somente o que estamos fazendo aqui e agora, e que

a memória (a experiência, o sentimento que guardamos) seria o que

chamamos de passado. Então, o que é o passado? Se meu

comportamento hoje mudar minha visão de mundo (e

consequentemente, recontextualizar toda minha memória), naturalmente

não estaria alterando todo o passado? Os fatos são os fatos, mas creio que

90% da interpretação que damos a eles decorrem de como nos

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comportamos, de como enxergamos a Matrix. Sinceramente, me parece

que a transformação que eu mesmo passo entre o DNA da Tradição e o

que articulamos aqui, tem me feito descobrir uma história completamente

diferente em minha memória... E quantas realidades diferentes do que foi

e será não existem simultaneamente neste multiverso?

Destaco também a idéia de que em ambientes de aprendizagem não

existe lado positivo ou negativo, não se espera resultado, aprende-se com

o que é vivido no momento, seja como for (ZEN?).

3) Ao gerar tais ambientes, como eles ocorrem? Uma pessoa pode querer

começar a fazer algo assim, e observar se possui e o quanto possui seu

comportamento replicado? Ou se for assim, não vai rolar (parece uma

hierarquia, uma direção dada ao que não tem direção). Ou seja, isso só

ocorre se for espontâneo, nos pegar de surpresa, e por isso mesmo, pode

ocorrer de forma coletiva, simultaneamente com várias pessoas? Talvez

devamos pensar não em gerar tais ambientes ou comportamentos, mas

em como não-manter qualquer inércia que iniba a formação de redes em

qualquer ambiente. Como permitir ambiência, abertura, ao fluzz?

Ambientes de cocriação?

4) Augusto, ótima analogia aos caciques e pajés, me lembrou muita a

experiência que tive com eles no Xingu e com Xavantes (sim, ainda há

quem se salve, não infectado pelo vírus da Matrix, mas sim, a hierarquix já

avança por lá), nestes últimos 5 anos em que estive pelo MT. Poderíamos

dizer que tais centralizações (como a citada) são fenômenos naturais das

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redes (e não interferências culturais que deformam a dinâmica, como as

redes descentralizadas)?

E gostaria de trazer algo, resgatando um pouco a questão de que "acredite

no que quiser, não importa", ou seja, hoje existem múltiplos mundos, faça

o seu. Mas, faça desde que você não replique comportamentos

hierárquicos? Eu me pergunto (e estendo a todos nós), se quero mudar

isso, ou se não me importo e "cada um no seu quadrado". Está feliz

obedecendo ao papa? Seja feliz? Ou não? Você está se enganando, veja

aqui... Em outras palavras Augusto e demais membros da E=R, onde está a

linha que separa a liberdade de cada um viver como preferir e uma

interferência nossa (ainda que apenas comportamental, "passiva") sobre a

escolha de cada um? (Libertá-los do vírus da Matrix?). São perguntas que

me faço, não tenho resposta, mas compartilho com todos.

7 - Comentário de Nilton Lessa

Marcelo,

Não sei se entendi muito bem o que você escreveu aqui: "Ou seja, isso só

ocorre se for espontâneo, nos pegar de surpresa, e por isso mesmo, pode

ocorrer de forma coletiva, simultaneamente com várias pessoas?"; vou

escrever sobre o que acho que entendi.

Ninguém é uma "ilha isolada" de quereres e desejos; então o

"espontâneo" para mim só faz sentido para mim se entendido como

"Ninguém te obrigou" a fazer/querer. Mas isto não significa que não

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houve "influências" (por definição, para mim, sempre as há, o ser humano

como "pessoa" é, de certo modo, um coletivo (estou falando aqui como

"mente humana" mesmo). Esta é uma grande confusão que existe: entre

influência e poder (no sentido clássico que a sociologia define; por

exemplo, qualquer tentativa de conversa entre A e B implica que um está

influenciando o outro; porque quando dois conversam, a conversa só é

possível se A fizer o movimento de, ao ouvir o que B diz, se colocar na

posição de B; e vice-versa; fazendo uso daquela capacidade empática e

simpática "entranhada" na biologia da maioria dos seres vivos e, em

especial, dos mamíferos). Obviamente quando biologicamente um ser

constrói sua nuvem de pensamentos "se colocando na posição de outro"

está sendo "influenciado"; isto é, há relações intrínsecas, emaranhadas,

entre a mente de A e B. Mas o problema conceitual é a confusão entre

influência e poder (um alguém que tem capacidade de obrigar outro a

fazer ou não-fazer algo. Do ponto de vista da interação isto é equivalente,

sempre, a alguém que pode obstruir fluxos interacionais. Mas alguém que

pode obstruir fluxos interacionais só existe em ambientes sociais regidos

de modo hierárquico.) E como a sociologia parece só tratar e estudar

ambientes sociais hierárquicos, fica tentando "mapear" automaticamente

"influência" para seu significado. Mas isto é errado, pois trata-se de dois

conceitos bem diferentes. O interessante é: do ponto de vista da ciência

das redes consegue-se deduzir o conceito "poder que a sociologia trata";

mas o contrário parece não ser verdade.

Então, conviver, trabalhar e produzir em ambientes não-hierárquicos não

significa o ser humano não poder fazer planos, não tecer metas etc;

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significa o ser humano não tecer metas para o outro; não fazer planos

para outros.

É simples assim.

8 - Resposta de Marcelo Maceo a Nilton Lessa

Grande Nilton, desculpe o texto confuso, vou escrevendo na correria por

aqui, mas também gero a possibilidade de vocês exercitarem a imaginação

ao tentar adivinhar o que quis dizer, kkkkk.

Muito bem esclarecido, realmente, confundo estes conceitos, e

esclarecendo aqui fica mais fácil de prosearmos. Sendo assim, aproveito

para perguntar se uma influência que seja dirigida intencionalmente para

um fim específico (para vender uma idéia ou converter alguém) não seria

um tipo de exercício de poder (a política também não teria relação com

isso? Quem sabe a publicidade também?).

9 - Resposta de Augusto de Franco a Marcelo Maceo

Acho que não, Marcelo. Concordo com o que disse Nilton no texto acima.

Um dos problemas da análise sociológica do poder é que ela introduz uma

apreciação equívoca e, com isso, desviriliza (essa palavra, sei, vai me dar

problema então vou trocá-la pela expressão) ou 'torna impotente' o

conceito de poder quando este se refere ao poder de mandar alguém

fazer alguma coisa contra sua vontade. E esse equívoco é introduzido toda

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vez que se desliza o conceito de poder para significar "influência" ou

mesmo quando se fala de um "poder simbólico", de um "poder cultural"

(como se todo poder não o fosse), de um poder das lideranças

emergentes ou, ainda, quando se aplica o conceito de poder a interações

não-humanas (poder chimpanzé, por exemplo).

A conversa é particularmente difícil porque usamos no cotidiano a palavra

poder para designar a capacidade de fazer qualquer coisa: poder de

realizar, poder de juntar pessoas e por aí vai.

Somente com a ciência das redes o termo poder ganhou a acepção

inequívoca de obstrução de fluxos, eliminação de atalhos ou exclusão de

nodos (que são, ao fim e ao cabo, a mesma coisa: condicionamentos

impostos à livre interação, que então deixa de ser livre). Nesse sentido

Marcelo, não há um "bom poder", um poder exercido para divulgar boas

ideias... Não cabe nem julgar se é do bem ou do mal. Simplesmente é

assim. É um fenômeno da interação, não uma intenção do sujeito que se

possa avaliar eticamente.

Agora, se tomarmos como referencial do desejável tudo que aumenta os

graus de liberdade (como tomam os democratas) e a cooperação (como

tomam os que ensaiam redes distribuídas), então o poder (no sentido da

ciência das redes, tal como alguns de nós a apreendem) é sempre

indesejável. Porque liberdade é não poder e poder é uma medida de não-

rede (distribuída), quer dizer, de não cooperação. Ambos - liberdade e

cooperação - são atributos da forma como nos organizamos e nada mais

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(Arendt já havia dito isto sobre a liberdade e eu acrescentei a

cooperação).

Mas noto, Marcelo, que esta mesma questão já foi trazida à conversação

por você, pelo menos mais de duas vezes. O que é sinal, interpreto, de que

a questão não foi esgotada e que você continua com uma inquietação.

Se você influencia uma pessoa com suas ideias ou seu comportamento

mas não move uma palha para restringir os caminhos dessa pessoa, então

no sentido acima você não exerce poder sobre ela. Se você não verticaliza

(ou deforma anisotropicamente) o campo em que ela se move, você não

exerce poder sobre ela. Este é o sentido de poder como poder de mandar.

É claro que se pode sempre argumentar que quem faz isso também

conduz as pessoas usando outros instrumentos coercitivos ou restritivos

(por exemplo, permitindo que apenas circule um jornal, um canal de TV

etc). Neste caso, quem faz isso desse modo está exercendo poder, não

porque está influenciando com suas ideias e sim porque está restringindo

caminhos (proibindo, por exemplo, que o influenciado também influencie

outras pessoas e até mesmo o influenciador).

Desgraçadamente a confusão entre influência e poder (e os outros

deslizamentos do conceito mencionados no início deste comentário) é

urdida por alguns, conscientemente, para dizer que todos os líderes

exercem poder, que os hubs são uma função de poder, que os

articuladores e animadores de redes têm mais poder do que os outros.

Tudo isso, quando é feito assim, como um expediente instrumental, serve

ao propósito de validar hierarquias, dizer que elas são naturais, que elas

Page 22: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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emergem da interação, que elas são uma fenomenologia social,

automática, ou que tudo obedece a uma lei cósmica.

13-16/02/2013

Page 23: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

23

SSEE EEUU FFUUNNDDAASSSSEE UUMMAA RREELLIIGGIIÃÃOO

Se eu fundasse uma religião ela não exigiria a inclusão das pessoas em

clusters fechados dos que professam a mesma fé. E nem invalidaria todas

as conversações místicas diferentes das suas. Não se declararia como

único caminho verdadeiro, apavorando os outros com a sentença de que

fora dela não há salvação.

Se eu fundasse uma religião ela não teria doutrina oficial, dogma ou

símbolo. Não erigiria igrejas e, assim, não separaria uma igreja docente

(um corpo sacerdotal) de uma igreja discente (composta pelo rebanho de

fiéis, os leigos). Porque ela não teria sacerdotes, nem qualquer burocracia

de intermediários.

Se eu fundasse uma religião, ela não pavimentaria com a crença um

caminho para o futuro alheio. Nem se constituiria como um artifício para

proteger as pessoas da experiência de deus.

Sim, se eu fundasse uma religião haveria deuses, claro, qual o problema?

Mas seriam mais ou menos assim, mal comparando, como aqueles deuses

da democracia grega, deuses da conversação, quer dizer, deuses-fluzz,

deuses da interação, como talvez tenha sido prefigurado pelo Zeus

Page 24: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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Agoraios (divindade tutelar que protegia as conversações na praça do

mercado de Atenas) e a deusa Peitho (a persuasão deificada).

Que fique bem claro! Minha religião inventada não teria deuses pré-

patriarcais (naturais) e muitos menos deuses patriarcais (sobrenaturais)

mas, quem sabe, poderia ter deuses pós-patriarcais (sociais), desde que

incapazes de exigir culto dos humanos e, sobretudo de escravizá-los ou

submetê-los à servidão. Seriam deuses humanizados, mais-humanos

porque sociais e não mais-que-humanos, super-humanos, extra-humanos,

antissociais. Não seriam tais deuses potestades unitárias criadoras de

qualquer ordem pré-existente e sim entidades compostas pela interação,

simbiontes constelados fractalmente por nós.

Se eu fundasse uma religião um cara como Paulo de Tarso estaria fora.

Nada de codificadores de doutrina. E um cara como Inácio de Antioquia

estaria fora: nada de supervisores (ou episcopos). E nada de padres: todos

seriam diáconos. Seria uma religião de garçons: uns servindo aos outros

animados pelo espírito santo (que seria santo a não ser enquanto

estivesse expressando essa emoção amorosa).

Se eu fundasse uma religião ela não teria templos, nem ritos, rituais,

liturgias... e também nada de muros, escadas, portas, colunas, altares,

lugares mais sagrados e outros símbolos templários. Não teria cerimônias

de iniciação, ordenação, sagração, consagração ou qualquer outro script

maligno que pudesse programar as pessoas lesionando suas almas.

Mas uma coisa exigiria minha religião: que as pessoas que a ela se

conectassem apostassem na democracia como movimento de

Page 25: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

25

desconstituição de autocracia. Sim, seria uma religião para quem não

aceita a autocracia, para quem está disposto a desobedecer e, portanto,

para quem não acata nem reproduz hierarquia de nenhum tipo, sobretudo

espiritual. Uma religião para quem não segue líderes, não se deixa

arrebanhar em massas de filiados, nem compõe quadros de sequazes ou

militantes de uma causa. Sim, é isto mesmo: uma religião para quem não

quer ser cavalgado.

É claro que você já percebeu que minha religião inventada seria uma não-

religião. Seria uma simples rede aberta de pessoas dispostas a polinizar

mutuamente os modos pelos quais experimentam sua mística ou sua

espiritualidade, compartilhando as formas semelhantes como vivem um

domínio mais amplo de relações de existência e celebrando suas

afinidades e amorosidades mutuas.

Se eu fundasse uma religião... 'Se' é uma hipótese especulativa, não um

projeto. Como não vou mesmo fundar uma religião e nem uma não-

religião, não serei fundador de nada.

Mas ninguém me impeça de provocar.

12/03/2013

Page 26: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

26

NNÓÓSS SSOOMMOOSS AASS PPEESSSSOOAASS CCOOMMUUNNSS

Nós não somos os anônimos. Somos aqueles que têm muitos nomes. E

temos nossos próprios rostos. Não somos mais um indivíduo numa massa

uniforme de mascarados com a mesma máscara. Não queremos ser mais

uma parte em qualquer coletivo: queremos ser o todo naquela parte que

somos porque cada um de nós é unique.

Não queremos substituir o velho mundo por outro que também seja

único. Sabemos que muitos mundos são possíveis, desde que consigamos

construí-los em nossa convivência.

Somos muitos, sim, mas um-a-um: nada de rebanho, nada de seguimento

de lideranças, nada de caminhos pré-traçados para um porvir radiante,

nada de revoluções épicas, nada de transformações cósmicas capazes de

produzir um novo céu e uma nova terra. O novo céu será a composição

fractal de muitas terras, de muitas redes tecidas por nós: liricamente!

Nós somos os que desobedecem, no dia a dia, nos pequenos gestos,

salvando os mundos em que interagimos um instante de cada vez e não

em formidáveis batalhas episódicas. Nós não achamos que todo mal que

nos assola será redimido quando vencermos algum grande inimigo.

Page 27: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

27

Sabemos que o único inimigo que existe é aquele que constrói inimigos

para lutar contra eles.

Não somos nem queremos ser heróis ou santos, que fugiram da

humanidade porque não se achavam bons o bastante. Heroísmo ou

santidade não convêm a seres humanos.

Não temos mais raízes: temos antenas. Não pertencemos a grupos e não

erigimos organizações, não construímos diques e não lançamos âncoras

para nos proteger da correnteza, para escapar do fluxo caudaloso... Não

temos medo do abismo da interação. Quando o abismo nos olha, pulamos

nele.

Nós somos as pessoas comuns.

09/06/2013

Page 28: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

28

RREEAAPPRREENNDDEERR AA BBRRIINNCCAARR

Sobre a alegria da convivência na Avenida Paulista na noite de 18/06/2013

Vocês já viram crianças brincando? Pois é. Elas não ficam calculando para

quê servem suas brincadeiras. Simplesmente fluem, se comprazendo na

fruição da convivência.

Não há um objeto oculto, externo, urdido, planejado, uma engenharia,

uma instrumentalização do tipo: estou fazendo isso para alcançar aquilo.

Quando brincam, estão se apossando do presente, vivendo-o em

plenitude. E se alegram (porque - como cantou o Vinicius no Samba da

Bênção - é melhor ser alegre que ser triste, alegria é a melhor coisa que

existe, ela é assim como a luz no coração).

Bem... depois as crianças são ensinadas de que isso não leva à nada, que

pessoas responsáveis, sérias, não devem brincar, desperdiçar seu tempo

com bobagens. E aí viramos adultos e não brincamos mais, perdemos a

capacidade de fazer alguma coisa pelo que ela é e nos pomos então a

organizar a nossa vida para alcançar objetivos imaginários e abstratos que

não estão contidos no ato em si.

Page 29: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

29

Quando acontece alguma coisa boa, inédita, nem percebemos o potencial

transformador da novidade que se constelou porque ficamos logo

pensando para onde aquilo vai nos levar, como vai ser o amanhã e o

depois de amanhã. Essa alienação do presente acomete, sobretudo, os

que querem organizar os outros, conduzi-los para algum lugar (que, na

verdade, eles não sabem onde é).

Na Paulista, ontem a noite (18/06/2013), me contou a Guta de Franco,

configurou-se um ambiente parecido com uma TAZ (Zona Autônoma

Temporária do Hakim Bey), mas creio que muitos não perceberam o

potencial revolucionário do que se constelou ali. Em virtude da termos

sido infectados, desde a primeira infância, com a ideia instrumental de

alcançar objetivos (e de organizar os outros), não nos permitimos viver o

que de fato pode mudar o firmware da sociedade de controle. É quase

uma tara, muito comum em militantes (esses seres deformados que

querem conduzir os outros para algum lugar no futuro: que não existe e

não pode existir na medida em que só temos o presente).

Refletindo sobre isso, acho que devemos prestar atenção ao que dizia

aquele judeu marginal de Nazaré e nos tornar crianças outra vez.

Reaprender a brincar.

19/06/2013

Page 30: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

30

OO BBAARRUULLHHOO DDOO SSAAPPOO PPUULLAANNDDOO NNAA ÁÁGGUUAA

Um post dedicado aos meus amigos

O algoritmo do Facebook calculou que sou uma Figura Pública. Não sou.

Sou ainda uma pessoa privada tentando ser uma pessoa comum. Nesse

caminho fico meio atordoado e, às vezes, desolado.

Acontece o seguinte. Querendo ou não a gente vai se conectando a mais

gente diretamente, com 1 grau de separação (mais amigos). Quando isso

acontece também aumentam os nodos do nosso emaranhado em 2 graus

de separação (os amigos dos amigos), em 3 graus de separação (os amigos

dos amigos dos amigos) e assim por diante. Todo esse campo mais

próximo a nós (em especial até 3 graus de separação) começa então a

interagir com a gente. Bem... aí muda muito a nossa vida.

Como sou um cara aberto à interação com quem não conheço (do

contrário não estaria tentando ser uma pessoa comum, no sentido de

commons), minha timeline deu para ficar cada vez mais caudalosa. Então,

para conversar com todo mundo, gasto horas aqui no Face, no Twitter, na

Escola-de-Redes e em outras plataformas, no Gmail etc. Sem falar dos

Page 31: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

31

contatos e conversas pessoais que mantenho diariamente com cada vez

mais gente também, aqui no LABE=R e em todo lugar onde vou. E por

telefone, skype, hangout...

É claro que se eu quisesse continuar sendo uma pessoa privada, incomum,

eu selecionaria as minhas interações, usaria as mídias sociais para fazer

broadcasting e auto-propaganda. Não responderia a todo mundo. Não

entraria em bola dividida, iria só na boa, publicaria só coisas que não

despertassem contrariedade, falaria do bem, do belo, do verdadeiro.

Espalharia boas vibrações... Falaria, quem sabe, de coisas como o Dharma

de Buddah (sem responder como aquela velha pessoa-zen: "Dharma-

Buddah? Não passa de esterco seco"). Mas, incorrigível que sou, quando

alguém me pergunta coisas assim, retruco como Yun-men: "Bosta". Os

caras podem achar que estou xingando, mas não estou: é apenas o

barulho da pedra caindo no rio ou do sapo pulando na água...

Enfim - não é assim que as figuras públicas fazem? - construiria uma

persona (sobretudo aqui neste Personabook) para vender geral, calcularia

o que pode me dar mais popularidade, aumentar o meu prestígio e

influência, eventualmente conquistar mais pessoas dispostas a me seguir

ou a me contratar para palestras e consultorias.

Porque, afinal, é disso que eu vivo.

Aí seria só beleza! Uma pessoa que construiu uma persona tão lhana, tão

bacana, tem pouco risco de nos trazer problemas (é o que deve pensar,

imagino, a média dos contratadores).

Page 32: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

32

Entretanto, não consigo fazer isso. Ou melhor (ou pior): faço exatamente

o contrário. Entro em todo tipo de disputa (de ideias) quando acho que é

relevante, enfrento os grandes preconceitos e invisto contra tabus: critico

a família monogâmica, a escola, a igreja, os sindicatos, os partidos, as

empresas-pirâmides, o Estado-nação e as organizações hierárquicas em

geral.

Porque, afinal, é disso que eu sou.

"Pô cara! Mas você critica tudo? Assim você vai acabar sozinho". Mas o

diabo é que não acabo e cada vez aumenta mais o número de pessoas que

interagem comigo.

No entanto, meu tempo para trabalhar (no sentido de ganhar dinheiro

para sobreviver) está cada vez mais reduzido. Como prezo demais a

interação e mantenho firmemente a decisão de interagir com qualquer

pessoa (conhecida ou não) que comenta ou propõe qualquer coisa, a

porcentagem da minha atividade pro bono (faço cada vez mais isso

também) e das atividades sem perspectiva de lucro (como interagir aqui,

por exemplo) tem aumentado bastante. Se já era 90% agora deve estar

beirando os 95%. Sim, somente 5% (mais ou menos) do meu tempo é

gasto em atividades cujo retorno financeiro me permite pagar as contas.

Até aí tudo bem (ou não, mas vou levando: pelo menos enquanto estiver

respirando). O problema é a desolação que surge quando nos desiludimos

ao ver que nem todo mundo está mais ou menos sintonizado com a gente.

Não está mesmo. Nem era para estar. Mas sempre nos iludimos (e por

isso nos desiludimos). Aumentos bruscos do raio da "mancha interativa"

Page 33: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

33

que nos afeta (porque nela estamos imersos e somos - o que somos e

como somos), acarretam, não raro, desacoplamentos estruturais. Ou seja,

um número crescente de pessoas não se comunica propriamente com a

gente mas interage adversarialmente, às vezes para provocar ou para

assacar falsas acusações e alegações infundadas.

A porcentagem dos que fazem isso, felizmente, ainda é bem pequena.

Mas, repito, é crescente. A maior parte desses provocadores é composta

por militantes partidários. Não conseguem entender que possa haver

alguém que não pratique a política como arte da guerra ou como questão

de lado. Então eles dizem:

"De que lado você está afinal? Se não está do nosso lado deve estar do

lado dos inimigos (dos exploradores, dos capitalistas, dos neoliberais). Se

não é do PT (ou dos partidos de esquerda aliados e subordinados ao PT)

deve ser um tucano. Ah! Já sei: você é um tucano disfarçado; se finge de

neutro mas é também um militante igualzinho a nós". Como argumentar

com essa gente?

Mas o mais angustiante são aquelas pessoas que interagem de boa-

vontade, levantando questões que estamos investigando e sobre as quais

estamos conversando há anos, quem sabe há décadas. A maneira como os

investigadores tradicionais se livravam dessas dificuldades era simples:

eles simplesmente não respondiam. Aliás, eles nem tomavam ciência das

perguntas. Se você é Carnap no Círculo de Viena só conversa com Tarski,

com Quine, com Ayer, com Gödel, com Hempel (vá-lá). As pessoas que

não são do seu inner circle nem sabem o seu telefone, seu endereço, seu

Page 34: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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e-mail (porque você não divulga geral, porque você é um cara

diferenciado, porque você não pode perder tempo com qualquer um do

povo).

E isso vale para todo mundo que se diferenciou, que alcançou o que

chamam de sucesso porque fez seu próprio açude para acumular poder,

riqueza, conhecimento atestado por títulos e fama. Não, eles não podem

se misturar, não podem se aproximar dos outros depois de todo esforço

que fizeram para se diferenciar, para não-ser pessoas comuns.

Mas para quem quer pular no abismo do fluxo interativo, tal fórmula não

funciona. Se você quiser viver no fluxo, não lhe resta alternativa senão

tentar ser uma pessoa comum. E aí não pode se fechar ao outro-

imprevisível.

Mas permanecer aberto ao outro-imprevisível incomoda quando o outro

incomoda.

Posso dar alguns exemplos, diretamente ligados aos meus principais

temas de interesse nas duas últimas décadas mais ou menos: rede

(distribuída) como movimento de desconstituição de hierarquia e

democracia como processo de desconstituição de autocracia. Sim, tudo

que penso, estudo, investigo, falo e experimento é sobre isso.

É disso, afinal, que eu trato. Nesta altura da minha trajetória de

adaptações (ou da minha história fenotípica) este é o resultado da minha

alostase cultural: é isso que eu sou agora.

Page 35: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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Primeiro exemplo. Há 5 anos venho tentando refutar a visão (generalizada

ou quase) da hierarquia ser uma coisa que advém da natureza ou que

sobrevém de alguma instância super-humana (divina, angélica), a

hierarquia como algo imanente ou transcendente. A conversa não tem

fim. Você acaba de argumentar com um e vem outro em seguida expondo

as mesmas alegações do primeiro, as mesmas concepções primárias, as

mesmas crenças, os mesmos exemplos furados, as mesmas hipóteses que

a ciência já desmascarou... dizendo que se a hierarquia não fosse natural

as abelhas não tinham rainha e outras tolices (como a daqueles caras que

acham que o pássaro que vai na frente num voo em formação delta está

liderando o conjunto). Não tem fim.

Como o programa (da Matrix realmente existente) foi carregado em todo

mundo (o mesmo programa, ressalto), a rigor você teria que argumentar

durante milênios, com 1000000 de pessoas (para ficar ainda nos três graus

de separação).

Outro exemplo é o da democracia. Chega a ser cruel. Noventa por cento

(ou mais) das pessoas parecem estar convencidas de que democracia é

sinônimo de eleição ou que democracia é a prevalência da vontade da

maioria. E quando você mostra que não é, com argumentos racionais,

pouco importa. Para cada pessoa que é capaz de refletir sobre os

argumentos e evidências que você apresentou aparecem centenas,

milhares, que voltam com as mesmas e surradas questões.

Sei que é assim mesmo. A gente não sentia tanto quando nosso

emaranhado era menor porque o mundo era menos distribuído, menos

Page 36: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

36

conectado e menos interativo. Mas agora, que aquele manso córrego

virou uma enxurrada avassaladora, faz muito barulho. Chega a ser

ensurdecedor.

A solução que encontrei - quando a conversação racional não tem mais

chances de progredir - foi a seguinte. Digo: não importa o que você pense,

no que você acredita, não importam os seus valores. Estaremos de acordo

se você se recusar a estruturar ou a operar ambientes configurados para

mandar nos outros (ou para obedecer a alguém). Você concorda?

Sim, como ideias não mudam comportamentos (só comportamentos

mudam comportamentos), isso para mim - que estou dedicado a

desconstituir hierarquias e autocracias - é o fundamental: deixar de

mandar nos outros e não obedecer a ninguém.

Em geral, porém, quando faço tal proposta, "ouço" do outro lado apenas o

silêncio. Um silêncio desolador.

15/08/2013

Page 37: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

37

VVAARRRREENNDDOO PPAARRAA DDEENNTTRROO??

Sobre as circularidades da corrente interativa que não queremos deixar

escapar

Há três anos alguns amigos estamos repetindo uma frase que à primeira

vista pode parecer surpreendente: nós já descobrimos a "fórmula" e a

"fórmula" é a rede. Esta frase quer dizer que não há caminho para a rede,

pois a rede é o caminho; ou seja: que para chegar a novas formas de

convivência e de organização mais distribuídas do que centralizadas, não

há alternativa senão começar a praticar - hoje, não amanhã - formas de

convivência e de organização mais distribuídas do que centralizadas.

Isto é a transição para a rede. Não há como adotar formas de convivência

e de organização mais centralizadas do que distribuídas como estratégia

para se chegar a formas de convivência e de organização mais distribuídas

do que centralizadas. Não há como usar uma organização fechada como

meio para se chegar a uma organização aberta.

Apesar disso, mesmo os que afirmamos essas coisas, somos

surpreendidos, não raro, fazendo o oposto do que apregoamos. Sob o

Page 38: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

38

pretexto de que a cultura de determinado ambiente não está ainda

preparada para a rede, adotamos modos de relacionamento e padrões de

organização que fecham em vez de abrir.

E aí, mesmo protestando o contrário, fazemos grupos proprietários, com

marcas distintivas e tentamos capturar fluxos para ficar rodando dentro

dos ambientes que estruturamos.

O que é mais incrível é que fazemos isso declarando o oposto: que

estamos estruturando ambientes abertos à interação ou em rede. Ser

aberto, ser em rede mais distribuída do que centralizada, acaba virando

marketing, no melhor dos casos branding - mas tudo como elementos de

uma estratégia. O que revela que há uma estratégia na cabeça dos que

fazemos isso. E enquanto houver uma estratégia, uma maneira - por mais

doce, suave e gentil que seja - de ganhar os outros, seduzir os outros,

utilizar os outros para atingir um objetivo urdido por nós antes da

interação, estaremos caminhando na contra-mão do que divulgamos.

Só há uma maneira de resistir à tentação de formar um grupo ou

pertencer a um grupo: pertencer a vários grupos simultaneamente. Então,

se alguém frequenta sempre o mesmo lugar, conversa sempre com as

mesmas pessoas ou até conversa com todas as pessoas que chegam (ou se

conectam) mas sempre a partir de um núcleo recorrente de pessoas - as

mesmas - formando um inner circle (conquanto informal e não-

intencional), pode-se apostar sem grande risco de errar: quem faz isso

está formando um grupo mais estratégico do que os demais grupos, está

selecionando fluxos e valorizando um fluir interno de modo aumentativo

Page 39: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

39

em relação aos outros fluxos que ocorrem no seu ecossistema mais

ampliado (o que fecha em vez de abrir). E o mais curioso, repito, é que

quem faz isso, o faz proclamando o contrário. Fica até parecido com

aqueles militantes de organizações autocráticas que vivem fazendo

discursos elogiando a democracia.

Isso acontece nas mais diversas atividades. Pessoas que defendem a livre-

aprendizagem acabam estruturando algum tipo de escola. Pessoas que

vivem propagandeando (e tentando vender) propostas de rede adotam

ferramentas fechadas aos outros, com níveis baixos de interatividade

(basta espiar seus sites para constatar o óbvio). Pessoas que fazem

propostas de empreender em rede e de viver no fluxo do rio interativo

sobrevivem, na verdade, dos açudes que construíram. Pessoas que

pregam a democratização da democracia, organizam grupos de militantes

em prol de uma causa exercitando modos de regulação que produzem

artificialmente escassez.

Mas o pior de tudo é que essas pessoas, mesmo quando proferindo

discursos que exalçam a colaboração, acabam adotando uma prática

competitiva. E elas competem, sobretudo, com quem está mais próximo,

porque avaliam que quem está mais próximo pode ameaçar mais a sua

estratégia, as suas iniciativas, a sua liderança (sim, quando há competição,

sempre há competição pela liderança, pela influência sobre as pessoas

que são usadas pelo líder para implantar a sua estratégia ou levar ao

sucesso suas iniciativas).

Page 40: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

40

A competição, por certo, não é um objetivo, não é nem mesmo uma

escolha racional: é apenas a consequência do modo como nos

relacionamos. Se você faz um grupo (mesmo dizendo que não é um grupo

fechado, mesmo dizendo que é uma rede aberta, mesmo jurando por

deus que não está fazendo isso e que não quer fazer isso), a competição

surgirá.

Mas a competição não é natural. Não é um defeito nem uma característica

intrínseca à natureza humana. Não emerge da livre interação. Ela só brota

quando se captura fluxos para fazê-los rodar em um mesmo ambiente. É

um atributo do fluir recorrente, em looping, daquelas circularidades da

corrente interativa que, por algum motivo, não queremos deixar escapar!

E aí... bem, aí começamos a ficar preocupados com outros fluxos que

ocorrem em nossa vizinhança. Queremos trazê-los para dentro do nosso

ambiente. Com a melhor das boas intenções, tudo parece fazer sentido:

afinal, queremos atrair mais pessoas, adensar o fluxo daquilo que estamos

empreendendo com tanto amor no coração, muitas vezes com sacrifício,

frequentemente colocando nossos próprios recursos para configurar o

ambiente ideal inicial que, então, poderá (como ansiamos) gerar

iniciativas mais autônomas, capazes de andar com suas próprias pernas.

Então, começamos a avaliar outras iniciativas como riscos "externos",

como algo que pode drenar energias que julgamos necessárias para a

consecução da nossa estratégia.

Minha experiência e minhas reflexões indicam que tudo isso acontece

quando não conseguimos resistir à tentação de pertencer a um grupo. E

Page 41: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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indica também que - quando isso acontece - é sinal de que não estamos

adotando a "fórmula" que já descobrimos: fazer redes, sem a

preocupação de capturar ou direcionar fluxos para um objetivo pré-fixado,

não importa se tal objetivo só é conhecido inicialmente por nós,

intimamente. Dá no mesmo. Quando só nós temos claro um objetivo pré-

fixado, não conseguimos evitar que se formem - a partir de nós ou até

independentemente de nós - círculos mais fechados com seus próprios

objetivos pré-fixados. A onda se propaga a partir da direção imprimida

pelo movimento inicial. É assim que uma coisa projetada para ser fora do

eixo acaba dentro do eixo.

A solução, portanto, não é nos isolarmos dos outros. Pelo contrário, a

solução é interagir mais, não menos. Mas interagir em vários ambientes,

interagir com vários grupos, sem eleger um deles como mais estratégico

do que os demais. Evitar, a todo custo, ser alguém identificado com uma

única iniciativa, com um único nome, com uma única marca. Não capturar

pessoas e não capturar fluxos (em certo sentido, é a mesma coisa). Não se

deixar capturar por pessoas e não se deixar capturar em fluxos já

condicionados a percorrer determinadas trajetórias. Não tratar os outros

como objetos, como se fossem peças importantes de nossa estratégia ou

do nosso empreendimento. Não querer ganhar, não seduzir, não "varrer

para dentro"; enfim: não usar o outro. Para concluir. Há espaço de sobra -

e haverá cada vez mais numa sociedade-em-rede - para várias iniciativas,

para vários empreendimentos, inclusive conexos, conectados,

interligados, interagentes. Não é como no filme Highlander: "Só pode

Page 42: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

42

haver um". Não é necessário disputar nada com ninguém. Só fazer ou não-

fazer (percebendo o fluxo e o refluxo). E se alegrar.

28/08/2013

Page 43: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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EEUU,, CCAAÇÇAADDOORR DDEE MMIIMM

1 - Defendo em qualquer circunstância a democracia. Tomo a democracia

no sentido "forte" do conceito, como movimento de desconstituição de

autocracia. Por isso, não sou marxista ou liberal, não sou de esquerda nem

de direita (acho tal divisão uma besteira e um anacronismo), não sou

aderente ao politicamente correto e odeio ditaduras, protoditaduras e

"manipuladuras" (democracias formais parasitadas por governos

neopopulistas manipuladores).

2 - Creio que somente a paz é revolucionária. Entendo a paz como

pazeamento das relações, como modo de caminhar (e não como objetivo

final da caminhada). Por isso, sou contra qualquer tipo de ação violenta,

de luta ou de guerra (penso que não existe o bom combate ou a guerra

justa porque avalio que a guerra, em quaisquer de suas formas - quente,

fria ou continuada como política adversarial - é, em si, o mal) e acho que

só existe um inimigo: o fazedor de inimigos.

3 - Há dez anos meu objetivo e minha ocupação principal tem sido o

netweaving, quer dizer, a articulação e animação de redes (mais

distribuídas do que centralizadas). Entendo as redes como movimentos de

desconstituição de hierarquia.

Page 44: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

44

4 - Não pertenço a nenhum grupo, nem sou subordinado a qualquer

organização hierárquica (seja empresarial, governamental ou social -

incluindo partidos, corporações, igrejas, seitas ou ordens de qualquer

tipo).

5 - Não tenho nenhum mestre, líder ou chefe. Não sou nem serei mestre

de alguém e não quero liderar ou chefiar ninguém. Não obedeço nem

exijo ou aceito obediência.

6 - Não tenho emprego, salário, aposentadoria, pensão ou qualquer

propriedade (ou açude) que me permita viver (fora do fluxo) sem

trabalhar. Vivo do que ganho como palestrante e consultor.

7 - Não coleciono diplomas, não apresento certificados, não pertenço a

qualquer escola (universidade ou academia) e nunca fundei uma escola

(stricto ou lato sensu: no sentido de escola de pensamento). A Escola-de-

Redes - da qual sou um dos cocriadores - é uma não-escola (e seu lema é

"A escola é a rede").

8 - Meu desejo é ser uma pessoa comum (mas sei que posso estar ainda

bem longe disso).

Em 15 de agosto de 2013 publiquei um artigo mais detalhado sobre os

dramas vividos por quem, como eu, quer ficar aberto à interação com o

outro-imprevisível: "O barulho do sapo pulando na água".

22/09/2013

Page 45: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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IIMMAAGGIINNAANNDDOO OO SSIIMMBBIIOONNTTEE SSOOCCIIAALL

Imagine que as outras pessoas fazem parte de você; ou seja, que você e as

outras pessoas fazem parte de um mesmo organismo.

Cada pessoa, por certo, é diferente das demais, é sempre unique, inclusive

porque desempenha, a cada momento, uma função particular nesse

organismo, ainda que não determinada pela sua posição no organismo.

Assim, as funções particulares de cada pessoa não são fixas, mas variam

com o fluxo interativo que rege o metabolismo do organismo e que, em

certo sentido, é o próprio organismo.

O organismo em questão não é uma hierarquia, mas uma rede. O

organismo é composto por pessoas, não por indivíduos. Isso significa que

o organismo é social, não biológico.

O organismo é fractal, não unitário: cada pessoa faz parte do organismo,

mas também é o próprio organismo, em prefiguração. Ou seja, as pessoas

só existem como tais enquanto estão prefigurando o organismo.

O organismo não existe, porém existirá. Não porque só possamos

percebê-lo movendo-se solidariamente, dançando como um corpo, como

um organismo mesmo, a partir de níveis altíssimos de interatividade que

Page 46: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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ainda não foram alcançados, mas porque seu tempo ou modo-de-ser é o

futuro. No presente, porém, existem as pessoas.

Escrevi este texto em 25 minutos, na primeira parte de um voo Congonhas-

Confins no dia 25 de setembro de 2013, manhã bem cedo. Usei as páginas

finais da revista da TAM e uma caneta ecco pigment (sucedânea da velha

nanquim). Naqueles 25 minutos fluíram 25 anos... Daqui pode sair uma

espécie de continuidade do meu livro Fluzz (2011). Cada frase, um capítulo.

26/09/2013

Page 47: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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PPAASSSSAADDOO,, FFUUTTUURROO,, PPRREESSEENNTTEE

Só o presente existe (passado e futuro são modos de narrá-lo). No modo

futuro existe o simbionte social, mas no presente só as pessoas. Quando o

futuro da não-hierarquia chegar, será presente. O presente das pessoas.

27/09/2013

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48

AAVVIISSOO

Aee, sou apenas uma pessoa interagindo. Não sou mestre nem modelo de

ninguém. Ninguém deve me seguir ou seguir minhas ideias e depois ficar

espreitando para ver se sou coerente com o modelo que idealizou de

mim. Só há desilusão quando há ilusão.

Quando um repórter perguntou a K (Krishnamurti) quantos seguidores

tinha, ele respondeu: "Não me preocupo com isso... ainda que apenas

haja um homem tornado livre, isto será o bastante". E em outra ocasião

acrescentou:

"Por que você precisa de um guru? Queira você me fazer ou não de guru,

que me importa, eu não estou me fazendo de guru para você nem para

ninguém. É por isso que o seguidor é o destruidor, o seguidor é o

explorador".

Quando uma pessoa começa a me chamar de mestre, ou de chefe, ou a

dizer que segue minhas ideias, ligo logo o alerta vermelho. Sei que boa

coisa não virá por aí. Mais cedo ou mais tarde se quebrará dentro dela a

imagem que construiu de mim e ficará ressentida quando constatar que a

pessoa real que sou não corresponde ao que foi imaginado. Não raro

Page 49: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

49

voltará às suas convicções anteriores (como alguém que lança âncoras por

não saber para onde ir no mar revolto).

Por isso, meu conselho é: não siga! Pense com sua própria cabeça e

caminhe no seu próprio passo. Não há ninguém mais importante do que

você.

(17/10/2013)

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EEMMPPOOWWEERRFFUULLNNEESSSS

Estava conversando outro dia com o Mario Salimon. Minha neta e sua

filha (ou filho, talvez me engane) se dedicam ao mesmo mister: ficam

digitando direto no WhatsApp desde que levantam até a hora de deitar.

Seria relevante o conteúdo que trocam? Cremos que não. A mensagem

não está no conteúdo e sim no padrão de interação (frequência,

recursividade, responsividade etc). Estão adensando o fluxo, entretecendo

o emaranhado, não importa se estão reclamando da diretora da escola, do

pênalti não marcado no jogo do Flamengo, da saia justa da colega, da

piada sem graça do véi ou dizendo apenas um para o outro algo como

"cola com nóis, mano, que tu brilha!". O que resultará daí? Em termos de

produto, provavelmente nada. Em termos de processo, muito. Algo está

sendo alterado no tecido e isso está mudando não apenas a

fenomenologia mas a própria natureza do que chamamos de sociedade. A

singularidade (no campo ou tecido) que chamamos de pessoa

("remoinhos num rio de água sempre a correr", para usar a bela expressão

de Norbert Wiener) está cada vez mais social (e quando digo 'social' não

estou me referindo, é claro, à coleções de indivíduos da espécie Homo e

sim ao que está entre eles, dentro deles e ao que propriamente os

constitui como tais: pessoas-que-já-são-rede). Se há alguma coisa como a

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51

que chamamos (inadequadamente) de inteligência coletiva, é essa coisa

que está sendo gestada com o aumento de Fluzz (conceito que criei para

designar o fluxo interativo da convivência social). O resultado que é o

processo se chama empowerfulness (outro neologismo que cometi para

tentar designar o que está dito acima).

31/10/2013

Page 52: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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RREEDDEE NNÃÃOO ÉÉ RREELLIIGGIIÃÃOO

Uma coisa que penso que não se deve fazer (porque entra naquela

categoria de conversação decaída em estado de não-verdade) é falsificar

teorias da nova ciência das redes para agradar o interlocutor, conquistar o

cliente ou capturar o seguidor. Uma das falsificações que tem aparecido é

dizer que uma rede é ao mesmo tempo centralizada, descentralizada e

distribuída. Para justificar tal visão já ouvi gente apelando para razões

metafísicas do tipo: "O universo respira e, assim, ora se contrai, ora se

expande; quando se contrai a rede se centraliza, quando se expande ela se

distribui". Ora, isso é uma falsificação grosseira (como se o grau de

distribuição não dependesse da interatividade fortuita mas já estivesse

determinado por leis, como se o que acontecerá obedecesse a um ritmo

cósmico já estabelecido). É possível aferir - dentro de certos limites: por

exemplo, em um cluster delimitado por grau de separação

arbitrariamente escolhido - o grau de distribuição de uma rede (e esse

grau - entre outras coisas - depende do número de nodos, do número de

nodos desconectados com a eliminação do nodo mais conectado e do

número de conexões idem). Uma rede centralizada (ou mais centralizada

do que distribuída) não passa a ser distribuída (ou mais distribuída do que

centralizada) em virtude de alguma imanência da estrutura ou da

Page 53: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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dinâmica do "universo" (seja lá o que isso for) e nem por razões

transcendentes, cósmicas, espirituais ou o que o valha. Isto não é ciência:

falta, para tanto, atender ao critério epistemológico da verificabilidade. É

mais ou menos como inventar uma teoria para a gravitação universal

dizendo que existem partículas indetectáveis, emitidas pelos quasars

(quasi-stellar radio sources), que empurram todos os objetos para baixo

(ou para o centro de gravidade de um corpo celeste).

Outra falsificação, mais frequente - há cinco anos me debato com isso

quase diariamente -, é afirmar que a hierarquia é natural, que é um

princípio sagrado (numa interpretação forçada e conveniente da

etimologia da palavra: hierarquia = hieros + arché), que existe uma

hierarquia no cosmos organizando os seres em ordens progressivas, do

plano mais denso (da matéria) aos planos mais sutis (do espírito). Acredite

nisso quem quiser, não tem a menor importância. Todo mundo tem o

direito de ter suas crenças religiosas, místicas, espirituais (ainda que essa

interpretação de denso x sutil seja própria de um espiritualismo de

folhetim: os velhos alquimistas da família (hehehe) morreriam de dar

risadas quando se lhes fosse explicar que uma pedra é menos "espiritual"

do que um anjo). Mas tudo bem... Entretanto, quando se usa tal

argumento para convencer um hierarca de que ele não deve se preocupar

com a deformação acarretada na rede pela hierarquia que ele mesmo

mantém ou reproduz, de que a hierarquia que ele montou para mandar

nos outros ou na qual se inseriu para obedecer a alguém é natural e não

será abalada em sua essência ou de que ele pode ficar tranquilo na sua

condição pois só terá a ganhar se também puder chegar diretamente à

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mais gente ao adotar, adicionalmente, uma estrutura mais distribuída... aí

é mais grave! É melhor dizer a verdade: hierarquias são necessárias, sim,

para as organizações hierárquicas. Mas hierarquias não são redes.

Hierarquias não convivem harmonicamente com redes. Hierarquias não

podem gerar redes (semente de rede é rede). Hierarquias não podem

comandar e controlar e, nem mesmo, monitorar redes. É sempre

preferível dizer a verdade do que urdir uma metafísica para satisfazer

clientes e atrair seguidores.

Rede não pode gerar uma religião substituta. Não podemos inventar uma

grande narrativa baseada numa meta-explicação coerente (segundo nossa

conveniência) para o mundo, na qual no lugar do velho deus colocamos

agora a rede. Qualquer pessoa pode devanear com hipóteses como estas.

Isso é válido no campo da livre especulação e pode ter até um importante

papel heurístico, mas se usamos esse tipo de truque para não assustar

clientes ou admiradores que não aceitariam bem a ideia de ter que deixar

de mandar nos outros a partir da ocupação de posições de poder numa

estrutura centralizada (ou hierárquica), aí então já é enganação deliberada

ou fraude.

11/11/2013

Page 55: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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MMÉÉFFIIEEZZ--VVOOUUSS LL''IIRROONNIIEE

Caminha a passos largos aqui no Facebook a fundação da nova religião das

pessoas comuns do último dia depois do fim do mundo e a ereção da

igreja universal da rede-mãe...

12/11/2013

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OO QQUUEE MMOORRRREE EEMM NNÓÓSS EENNQQUUAANNTTOO VVIIVVEEMMOOSS

Terceira idade? Como na piada do chifre, isso foi uma coisa ruim que

botaram na sua cabeça. Não existe, simplesmente não existe terceira

idade, assim como não existem primeira e segunda idades.

Quando descobrimos que uma geração não é uma faixa etária e sim o que

ela gera, descobrimos que pessoas consideradas da terceira idade podem

pertencer à nova geração. Para ser da nova geração basta gerar novas

coisas. Não adianta ser jovem: enquanto um jovem não gera novas coisas

então ele é da - porque repete a - velha geração.

A ideologia produtivista que considera (pejorativamente) velha uma

pessoa com mais idade (porque não está mais em condições de produzir)

leva ao ageísmo dos jovens-velhos tolos que acham que a época de quem

viveu mais já passou. Mas uma época não passa para quem não passa.

Enquanto uma pessoa está viva, sua época não passou.

Se a idade muda a pessoa, isso é bom (não é ruim): mais idade significa

mais tempo de vida, mais tempo de vida significa mais chances de

pessoalização. Sim, a pessoa é uma construção realizada ao longo da vida,

ou melhor, é uma trajetória fenotípica de adaptações no fluxo da

convivência social.

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Ninguém nasce pessoa, se torna. Começa a se tornar pessoa no exato

momento em que mergulha no fluxo da convivência social. O indivíduo

biológico da espécie Homo (portador do genoma humano) é apenas

humanizável. Mas a consumação do humano é o processo de tornar-se

pessoa. Um indivíduo da espécie humana se torna pessoa (ou seja, ser

humano propriamente dito: como complexo biológico-cultural) quando é

humanizado por outros seres humanos. Somente seres humanos (em

consumação) podem humanizar seres humanos (em prefiguração).

Mesmo em termos biológicos, se estamos inseridos na holarquia fractal de

seres interdependentes que chamamos de vida, então não há perda de

vida com a morte e sim mais vida: a autorregulação - o metabolismo do

simbionte natural - continua gloriosamente se realizando e isso é motivo

para alegria e celebração e não para tristeza e revolta.

Em termos sociais, se estamos inseridos em outra holarquia, prefigurada

pelas redes de seres humanos, então também não há perda humana com

a morte e sim mais convivência social (haverá mais com a nossa partida do

que havia antes da nossa chegada): a autorregulação - o metabolismo do

simbionte social - continua gloriosamente se prefigurando. E quanto mais

vivermos a nossa convivência mais fluxo haverá e mais vida propriamente

humana, quer dizer, social, haverá.

Portanto, os conceitos (quer dizer, os preconceitos) e as medidas voltadas

à chamada terceira idade são, em geral, inadequados e prejudiciais ao

processo de humanização. Eles são remanescências da velha ideia mítico-

sacerdotal-hierárquico-autocrática da civilização patriarcal de que a vida é

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o contrário da morte. Não é. Morte e vida fazem parte de um mesmo

processo.

Desse ponto de vista, bem mais inteligente (e de uma inteligência

tipicamente humana), a morte é uma realização suprema da vida, não

uma falência da vida. O problema não é a morte e sim - como disse certa

vez Albert Schweitzer - "o que morre dentro do homem enquanto ele

vive".

Deveríamos nos preocupar com isso: com o que pode morrer em nós

enquanto vivemos. Assim uma pessoa jovem pode carregar - por falta de

amor - muitas mortes dentro de si. Ela é jovem, mas está mais morta, bem

mais morta, do que outra pessoa considerada velha. Daquela morte que

ela teme, não se escapa com a vida e sim com o amor.

12/11/2013

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AA BBOOLLHHAA

A metáfora da bomba e da bolha foi um recurso que empreguei em meu

livro Small Bangs (2012) para mostrar que o mundo é uma totalidade de

fatos, não de coisas (a subproposição 1.1. do Tractatus Logico-

Philosophicus de Ludwig Wittgenstein (1918): “O mundo é a totalidade dos

fatos, não das coisas”). Assim, o mundo é determinado pelos eventos

(Idem, 1.11: “O mundo é determinado pelos fatos, e por serem todos os

fatos”). A bomba-fluzz é uma bomba de eventos que ocorrerão em uma

bolha. A bolha fornece a imagem de uma coisa fugaz, temporária, delicada

e frágil, que pode desaparecer a qualquer momento. Foi uma maneira de

dizer que não se deve ter a expectativa de duração indeterminada, de

continuidade, de construção que se aperfeiçoa com o tempo, de evolução

ou de transformação conduzida por vontade do sujeito ou por algum fator

imanente à história. Os mundos têm, por outro lado, certa autonomia:

abrem e fecham em função de vários fatores. Podem ressurgir, mas não

como desdobramento e sim como reflorescimento, em outras regiões do

tempo, quando uma configuração particularíssima (não necessariamente

semelhante, mas com algum fator com poder de evocá-los – ou de invocá-

los) torna a se constelar. Na verdade, tudo isso foi uma metáfora para o

netweaving, descrita assim:

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"Uma bomba criativa (ou bomba-fluzz) produz uma singularidade no

campo social deformado pela hierarquia tornando possível o nascimento

de um mundo mais distribuído do que centralizado.

Quando a bomba-fluzz explode abre uma bolha no espaço-tempo dos

fluxos permitindo que se configure um Highly Connected World. Esse

mundo altamente conectado é um Small World: um mundo-bebê em

gestação.

É uma bomba porque essa irrupção criativa ocorre de uma vez, como uma

explosão, um bang. Mas uma explosão que não pode ser tão grande a

ponto de provocar a readequação do sistema hierárquico como um todo

impedindo a formação da bolha. Tem que ser uma pequena explosão, ou

melhor, várias pequenas explosões que vão se irradiando a partir de

pontos distintos, de localização imprevisível, sobretudo nas bordas dos

sistemas hierárquicos. Sim, são perturbações na periferia dos campos

deformados, não ataques aos seus centros. Por isso que não é um (único)

Big Bang e sim vários Small Bangs, gerando uma diversidade de mundos-

bebês.

Cada mundo-bebê que vem à luz é sempre temporário e localizado; ou

melhor, glocalizado. A bolha se desfaz quando o seu metabolismo não

consegue mais sustentá-la: se desconstitui quando seus próprios

“habitantes” adotam comportamentos que geram escassez, centralizando

a rede ou verticalizando o campo social no seu interior ou é destruída de

fora para dentro se não consegue continuar resistindo à pressão

ambiental do mundo hierárquico. De qualquer modo, mais cedo ou mais

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tarde, o novo mundo se desconstituirá. Outra bomba criativa deverá

então ser construída. A intermitência é da natureza do processo...

A explosão é criativa, não destrutiva. Para que possa abrir uma

singularidade no campo social deformado pela hierarquia, permitindo o

surgimento e a expansão da bolha, o processo – além de imprevisível e

intermitente – deve ser aberto, distribuído e interativo (não participativo).

Se tais requisitos forem atendidos, pronto! Está feita a bomba criativa.

Quando a primeira criação for realizada a bomba explodirá abrindo a

bolha. Outras pessoas poderão entrar na bolha, conectando-se à rede de

modo distribuído. Os desejos dessas novas pessoas suscitarão novas

criações.

Enquanto novas criações estiverem surgindo a bolha existirá. Enquanto a

bolha durar você poderá com-viver nela. Mas as regras são bem diferentes

daquelas que lhe ensinaram para viver no mundo hierárquico. Se você

insistir nas velhas maneiras de interagir poderá destruir a bolha

prematuramente.

A bolha pode murchar, desaparecer, se extinguir, se autodestruir,

implodir, se desintegrar, se cristalizar e quebrar ou inflar e romper sua fina

película se surgirem no seu interior deformações próprias de mundos

hierárquicos: caminhos pré-traçados, mestres para transmitir

ensinamentos, exigência de obediência, luta contra inimigos,

direcionamento de esforços para alcançar sucesso, tentativas de

transformar pessoas no que elas não são, conduzi-las ou organizá-las top

down e propaganda".

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Pois bem. Desde que essa imagem (da bolha) passou a ser utilizada por

várias pessoas, começamos a descobrir que seu potencial heurístico era

maior do que pensávamos inicialmente. Nas conversações em que nos

envolvemos nos últimos dois anos, foi ficando cada vez mais evidente que

a metáfora se aplica bem a muitas e variadas situações.

Por exemplo, a bolha serve para mostrar que teremos múltiplos mundos.

Toda vez que criticamos uma instituição do mundo hierárquico - seja a

escola, a igreja, a corporação, o partido, o quartel, a empresa hierárquica

ou o Estado - as pessoas invariavelmente retrucam: "Mas como será

então, o que vamos colocar no lugar?" É uma pergunta automática.

Ora, não sabemos como será. Podemos, no máximo, abrir bolhas nessas

instituições, mas não sabemos o que vai ser gerado a partir das interações

que nelas ocorrerão. Além disso - eis o ponto - é importante que não

saibamos. Só precisa saber (de antemão) como será quem quer

predeterminar como será, quem quer cavar um sulco para fazer escorrer

por ele as coisas que ainda virão. Isso era importante para o mundo único

hierárquico - estabelecido em termos locais ou globais (ou seja, como se

diz, "universalizado") - mas não para múltiplos mundos glocais

emergentes em uma sociedade-em-rede. Não há mais um modelo a ser

imposto, uma experiência fundante a ser generalizada: com o

estilhaçamento do mundo único, miríades de experiências florescerão.

Então alguém pergunta: "É fato que a escola está ultrapassada e coisa e

tal, mas o que colocaremos no seu lugar?" Ora, é uma pergunta sem

sentido. Primeiro porque não vamos substituir a escola por outra coisa.

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Isso é impossível. Escolas, mesmo se tornando, em grande parte,

obsoletas (em razão da multiplicação de processos de aprendizagem

acessíveis a todos) remanescerão por muito tempo. Não serão

substituídas, mesmo porque não há uma autoridade central (do mundo)

capaz de ordenar tal substituição (mesmo porque não há mais um mundo:

é a replicação dessas instituições hierárquicas que constitui o mundo

único hierárquico). Em segundo lugar, porque não queremos - os que já

vivemos nos múltiplos mundos altamente conectados - colocar nada no

lugar (da escola, no caso). Colocar alguma coisa no lugar, se fosse possível,

significaria reconstruir o mundo velho único a partir de um modelo

centralizado (ou seja, hierárquico). Então vão coexistir e, em alguns casos,

conviver, várias experiências: a velha escola heterodidata baseada em

adesão, as novas escolas baseadas em adesão e participação (em variadas

combinações), os processos não-escolares mais ou menos baseados em

participação e interação (idem), os velhos e os novos processos

autodidáticos e os novíssimos processos alterdidáticos de aprendizagem

baseados em interação.

O mesmo vale para as demais instituições atuais que constituem e

reproduzem o mundo único hierárquico. Não há novos modelos para

colocar no lugar dos velhos, simplesmente porque replicar modelos

significaria manter um mundo hierárquico. Isso não ocorrerá somente

com estruturas, mas também com dinâmicas ou "metabolismos"

associados à padrões de organização; por exemplo, ocorrerá com modos

de regulação como a democracia. Ao que tudo indica uma terceira

invenção da democracia (depois da invenção dos atenienses e da

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reinvenção dos modernos), será glocal: ela terá diversas "fórmulas" glocais

e não mais uma única fórmula pretensamente global (ou internacional,

como ocorreu com a segunda democracia, a democracia representativa,

inventada pela segunda vez pelos modernos). Ou seja, serão zilhões de

sociosferas democráticas: uma terceira democracia será realizada em

miríades de sociosferas e não em apenas menos de duas centenas de

unidades político-territoriais centralizadas (chamadas de países ou

Estados-nações, que seguem o modelo único do Estado-nação europeu

que foi fruto da guerra, da paz de Westfália). Serão ilhas democráticas na

rede: a democracia que vem coexistirá marginalmente e por tempo

indeterminado com as democracias realmente existentes (incluindo as

democracias plenas, as democracias parasitadas por regimes

manipuladores e as democracias em processo de autocratização) e

também com protoditaduras florescentes e ditaduras remanescentes.

Uma segunda evidência do potencial heurístico da metáfora da bolha é a

compreensão - cada vez mais corroborada pela observação das dinâmicas

organizacionais em ambientes de alta interatividade - de que mundos são

eventos. O conceito de evento evoca uma certa impermanência, uma

noção de contingência da durabilidade temporária. Claro, tudo é

temporário mesmo, mas a expectativa de quem ordena é a de que as

coisas ordenadas durem (como foram ordenadas) para sempre ou

indefinidamente. A partir daí começamos a pensar que o que dá certo é o

que dura. A imagem da bolha ajuda a entender que as coisas que dão

certo não duram; é aceitar, como diz um dos princípios do Open Space,

que "quando uma coisa termina, ela termina". Querer esticar a duração do

Page 65: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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que não deve durar mais do que deve - pois perdurar é sempre conservar -

é como antepor obstáculos ao fluxo interativo, colocando-se contra a

mudança.

A compreensão de que os mundos são bolhas de eventos é uma

compreensão propriamente revolucionária porque vai à raiz do conceito.

Revolução não é substituição de uma ordem por outra ordem (top down)

e sim abertura para novas ordens emergentes (bottom up).

Uma terceira evidência do potencial heurístico da imagem da bolha tem a

ver, exatamente, com essa ideia de ordem emergente. É uma nova

compreensão da ideia de ordem que afeta diretamente as concepções

místicas ou espirituais que têm se replicado há seis milênios, desde que se

configurou um ambiente hierárquico-autocrático com o início da chamada

civilização patriarcal. Todas as concepções espirituais, sobretudo as

classificadas como espiritualistas, baseiam-se na ideia de que existe uma

ordem preexistente e que a jornada do buscador é (re)sintonizar-se com

essa Unimatrix One. Ora, uma nova espiritualidade não previamente

ordenada (por deus ou algum ser superior e por sua burocracia sacerdotal

que é, na verdade, a hierarquia), começa com a descoberta de que não

existe nada disso, de que o universo (também uma bolha) é criativo e se

cria à medida que avança. Que não há uma ordem preexistente porque a

ordem está sempre sendo criada no presente da interação.

Que, como escrevi em Fluzz (2011), "em mundos altamente conectados a

busca não existe sem a polinização. Não há um mainframe (como se fosse

um diretório de registros akashikos) onde você possa buscar respostas

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para suas perguntas. Se houver, tais respostas não lhe servirão. Serão

respostas do passado que foi arquivado. Revelarão ordens pregressas.

Conhecimento morto. A busca, qualquer busca, inclusive a busca

espiritual, é sempre uma interação. Nos Highly Connected Worlds toda

busca é P2P: no seu mundo e nos interworlds pelos quais você está

navegando. A mesma busca, quando repetida, fornece respostas

necessariamente diferentes. E deixa o rastro da pergunta. De sorte que as

respostas são, no limite, combinações das perguntas que estão sendo

feitas. Perguntas interagindo e se polinizando mutuamente para criar

ordens inéditas.

O buscador é um polinizador. É um criador de mundos. O buscador-

polinizador é uma pessoa-fluzz. Uma pessoa-fluzz é mais ou menos o que

deveria ser uma pessoa-zen nas condições de um mundo de alta

interatividade.

Mas enquanto víamos a pessoa-zen como um indivíduo-no-caminho

(conquanto ela não fosse isso realmente, posto que a descoberta-zen é a

descoberta do ‘não-caminho’), a pessoa-fluzz não pode ser vista assim: ela

é enxame. O enxame muda continuamente sua configuração, o que

significa que os caminhos também mudam continuamente com a

interação: o que era caminho em um momento já não é mais no momento

seguinte. A pessoa, como disse Protágoras (c. 430 a. E. C.) – ou a ele se

atribui – “é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são,

das coisas que não são, enquanto não são”. Assim seja (ou não-seja). Let it

be (ou not to be – o que é a mesma coisa)".

Page 67: Escritos Espirituais de Augusto de Franco

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Novas formas pós-religiosas e pós-espiritualistas de espiritualidade vão

surgindo nas bolhas que se formam quando jogamos nossas bombas-fluzz.

13/11/2013

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EEPPIIGGRRAAMMAASS PPAARRAA UUMM NNÃÃOO--CCRREEDDOO

- Mas como será então? O que colocaremos no lugar de...?

- Não sabemos como será (será o que será). E não podemos colocar nada

no lugar de... antes de ser o que será (porque senão não será o que será).

- Onde isso deu certo? E se deu certo por que não durou?

- Deu certo onde deu (em outro lugar não daria, como deu). E não durou

porque deu certo (no tempo em que deu, deu; em outro tempo não daria,

como deu).

- Mas qual foi o resultado concreto? Houve mudança?

- O resultado foi um novo processo (não a coisa concreta produzida). A

mudança é sempre um novo processo que pode mudar as coisas

produzidas (para que as coisas novas não fiquem velhas).

14-20/11/2013