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Escutem o Louco _ Opinião _ Edição Brasil No EL PAÍS

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OPINIÃO

ELIANE BRUM 3 MAR 2014 - 10:09 BRT

O louco não

expressa apenas a

sua loucura. Ele

também denuncia

a insanidade dasociedade em que

 vive

COLUNA

 Escutem o louco

O homem que empurrou uma passageira nos trilhos do metrô desnuda o momento perturbador vividopelo Brasil

 Arquivado em:   Opinião    Viol ência   Protestos sociais   Mal-estar social   Brasil   Problemas sociais    América do Sul    América Latina    Aconteci mentos    América   Sociedade

De repente, o taxista aumentou o som da pequena TV acoplada no console do carro. Nobanco de trás, eu parei de ler e afinei os ouvidos. Era meio-dia da sexta-feira de Carnaval(28/2). O homem que, dias antes, havia empurrado uma passageira nos trilhos do metrô deSão Paulo tinha sido preso. A mulher teve o braço amputado. O agressor sofre de

esquizofrenia, destacou o apresentador de TV. “Louco”, decodificou de imediato o taxista.Doença triste, disse o apresentador na TV. Ao ser preso, continuou o apresentador, oagressor afirmou que a empurrou porque sentiu raiva. Essa parte o taxista não escutou. Algolá fora o havia perturbado. Colou a mão na buzina, abriu a janela do carro e xingou omotorista ao lado, que tentava mudar de pista. Perdigotos saltavam da sua boca enquanto eleempunhava o dedo médio com uma mão que deveria estar no volante. Fechou a janela, paranão perder a temperatura do ar-condicionado, e voltou a falar comigo. “A polícia tem de tirar os loucos da rua”. A quem ele se refere, pensei eu, confusa, olhando para fora, para dentro.Era ao louco do metrô.

Há algo de trágico nos loucos. E não apenas o que é definido como loucura nessa épocahistórica. Há uma outra tragédia, que é a de não ser escutado. Sempre que alguém com umdiagnóstico de doença mental comete um crime, a patologia é usada para anular asinterrogações e esvaziar o discurso de sentido. A pessoa não é mais uma pessoa, comhistória e circunstâncias, na qual a doença é uma circunstância e uma parte da história,

 jamais o todo. A pessoa deixa de ser uma pessoa para ser uma doença. Se há um histórico, éo de sua ficha médica, marcada por internações e medicamentos – ou a falta de um e deoutro. Esvaziada de sua humanidade, o que diz é automaticamente descartado como semsubstância. A doença mental, ao substituir a pessoa, explica também o crime. E, se não hásujeito, não é preciso nem pensar sobre os significados do crime, nem sobre o que diz aqueleque o cometeu.

Mas o que essa escolha – a de reduzir uma pessoa a uma patologia e a de anular os sentidos

do seu discurso – diz da sociedade na qual foi forjado esse modo de olhar? Se Alessandro deSouza Xavier, 33 anos, o homem que na terça-feira (25/2) empurrou Maria da ConceiçãoOliveira, 28, no metrô, for escutado, há algo de particularmente perturbador na justificativaque confere ao seu ato. Alessandro diz: “Fizeram um mal pra mim, e eu descontei. Fiz porqueestava nervoso com o pessoal do mundo.”

O que há de particularmente perturbador nessa fala é que, quandoescutada, ela desnuda o atual momento do Brasil. Vale a penalembrar que o louco é também aquele que diz explicitamente do seumundo. Sem mediações, ao dizê-lo ele pode sacrificar a vida deoutros, assim como a sua. Vale a pena lembrar ainda que o louco

não expressa apenas a sua loucura. Ele denuncia também ainsanidade da sociedade em que vive.

 Ao interrogar sobre os sentidos do que Alessandro diz, quandoexplica por que empurrou Maria, é necessário olhar para os outroscrimes que viraram notícia nos últimos dias. Nenhum deles, até

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 A lucidez do louco é a de não

 vestir como razão a nudez doseu ódio – ou do seu medo

O outro, qualquer

outro, tornou-se

inimigo e

competidor por

um lugar no tremque nos engole e

nos cospe em seu

 vaivém automático

agora, relacionado a doenças mentais. Torcedores do São Paulo bateram com barras de ferroem um torcedor do Santos que esperava o ônibus. Bateram nele até matá-lo. Ao deparar-secom blocos de Carnaval interrompendo o trânsito, na Vila Madalena, bairro de classe médiade São Paulo, um homem acelerou o carro e feriu dez pessoas. Quem estava perto oarrancou do veículo e passou a agredi-lo. Quando ele conseguiu fugir, destruíram o carro. Umcasal de lésbicas foi espancado ao sair de um bloco de Carnaval, no Rio. Uma delas teve aroupa arrancada. Apenas uma pessoa na multidão ao redor tentou ajudá-las. Em Franca, nointerior de São Paulo, um adolescente correu atrás de um suspeito de assalto e lhe aplicou

um golpe chamado de “mata-leão” (estrangulamento). O suspeito, de 22 anos, teve um infartoapós ser imobilizado e morreu no hospital. Um morador de rua foi linchado em Sorocaba (SP)por ter pegado um xampu de um supermercado. Teve afundamento do crânio. No Rio, maisum adolescente foi amarrado e agredido depois de furtar um celular. Linchamentos eclodiramem todo o país depois do caso do garoto acorrentado com uma trava de bicicleta noFlamengo. Nas semanas anteriores, dois manifestantes acenderam um rojão num protesto noRio, matando um cinegrafista. Na Baixada Fluminense, um homem executou um suspeito deassalto com três tiros, em plena rua, durante o dia, assistido por vários. Mais de 40 ônibusforam incendiados em São Paulo em 2014.

O discurso do louco é encarado como uma afirmação (econfirmação) da sua loucura, o que é outra forma de não escutá-lo.No caso de Alessandro, uma das provas da loucura do louco teriasido ele dizer que jogou Maria nos trilhos do metrô por raiva etambém por vingança. Explícito assim. Outra prova da loucura do

louco revelou-se ao afirmar que não a conhecia, que a escolheu de forma aleatória.“Desconexo” – foi o adjetivo usado para definir o discurso de Alessandro. Sua vítima não eratorcedora do Santos, não era lésbica, não tinha furtado um celular ou um xampu, asdesrazões interpretadas como razões. Por que, então? O louco confessou: Maria não eraMaria, já que não a conhecia nem sabia o seu nome, mas o “pessoal do mundo”. A lucidez dolouco talvez seja a de não vestir como razão a nudez do seu ódio – ou a nudez do seu medo.Por isso também é louco.

Diante da violência que irrompe no Brasil em todos os espaços, talvez seja a hora de escutar o louco. Talvez o fato de ele atacar no metrô não seja um detalhe descartável, umacoincidência destituída de significado. No mesmo dia em que Alessandro foi preso, morreu nohospital Nivanilde de Silva Souza, aos 38 anos. No mesmo dia em que, na Estação da Sé,

 Alessandro empurrou Maria, na Estação da Luz um trem atingiu a cabeça de Nivanilde. Elatinha dito a um estagiário da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) que estavagrávida, o que lhe assegurava o direito a entrar no vagão especial. O estagiário disse a elaque teria de apresentar um documento comprovando a gestação. Os dois teriam seempurrado, seguranças deram voz de prisão à Nivanilde. Na confusão, ela teria caído naplataforma. O trem bateu na sua cabeça.

No início de fevereiro, a linha-3 vermelha do metrô parou por cinco horas depois da falha emuma porta na estação da Sé, a mesma em que Alessandro empurrou Maria. No verãopaulistano mais quente desde 1943, o ar-condicionado foi desligado. Pessoas vagavam pelostúneis, algumas desmaiaram, grávidas e velhos esperaram dentro de vagões abafados por horas. Pelo menos 19 dos 40 trens que circulavam na linha foram depredados.

Os protestos de junho de 2013 começaram por causa das tarifas dotransporte público, em São Paulo os 20 centavos de aumento dapassagem. Naquele momento, milhares romperam o imobilismo, noconcreto e no simbólico, e passaram a andar por cidades em quenão se andava, vidas consumidas em ônibus e metrôs superlotados.

O aumento de 20 centavos foi cancelado, mas o péssimo transportepúblico continuou mastigando o tempo, desumanizando gente. Bastaparar para esperar o trem nos horários de pico para ser empurrado,xingado, odiado. O outro, qualquer outro, tornou-se nosso inimigo enosso competidor por um lugar no trem que nos engole e nos cospe

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7/26/2019 Escutem o Louco _ Opinião _ Edição Brasil No EL PAÍS

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Reprimir os protestos é uma

forma brutal de não escutar

o que dizem aqueles que

ainda se preocupam emdizer

em seu vaivém automático. Somos passageiros que não passam, ea tensão dessa impossibilidade cotidiana pode ser apalpada. A violência é gestada como umapromessa para o segundo seguinte.

Então o louco vai lá e empurra a mulher sobre os trilhos. Rompe o imobilismo e empurraaquela que espera. Porque é louco. Caso isolado, nenhuma conexão com nada, desconexo éo seu discurso, fora da história é o seu gesto, a insanidade é só dele. Basta eliminá-lo, tirá-lode circulação, para que a sociedade brasileira volte a ser sã. E o metrô de São Paulo umespaço de convivência agradável e pacífico, marcado pela cordialidade.

Talvez estejamos todos não loucos, mas no lugar do louco. Já não nos subjetivamos, tudo éliteral. Nos mínimos atos do cotidiano nos falta a palavra que pode mediar a ação, interromper o gesto de violência antes que se complete. Mas talvez estejamos no lugar do loucoespecialmente porque nem escutamos, nem somos escutados. E quem não é escutado vaiperdendo a capacidade de dizer. Só resta então a violência.

Os protestos iniciados em junho pelos 20 centavos e agoracentrados na Copa do Mundo são um dizer. Responder a eles comrepressão – seja da polícia no espaço público, seja em projetos delei que transformam manifestantes em terroristas, seja anunciando

que o Exército vai para as ruas em tempos de democracia – é umaforma brutal de não escutar aqueles que ainda se preocupam emdizer. É talvez a maior violência de todas.

É preciso ser muito surdo para acreditar que prender todos, “deter para averiguação”,criminalizar manifestantes é suficiente para voltarmos a ser o Brasil cordial e contente quenunca existiu, 200 milhões em ação torcendo pela seleção canarinha. Que o dizer de quemdeseja um Brasil diferente seja hoje expressado no campo simbólico do futebol é mais umarazão para escutá-lo, ao mostrar que estamos diante de novas construções do imaginário.

Escutem o louco. Para não colocar aqueles que protestam no lugar do louco, no lugar daqueleque não é escutado porque não teria nada a dizer. E depois surpreenderem-se com a

resposta violenta, convencendo-se de que não têm nada a ver com isso.Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes, o Avesso da Lend a, A Vida Que Nin guém vê, O

Olho da Rua e A Menina Quebrada  e do romance Uma Duas. Email: [email protected]. Twitter: @brumelianebrum

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