Espaço Público e Vida Privada — Moisés de Lemos Martins

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  • 8/3/2019 Espao Pblico e Vida Privada Moiss de Lemos Martins

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    ESPAO PBLICO E VIDA PRIVADAMOISS DE LEMOS MARTINS*

    1 . O espao pblico como lugar incertoAo estabelecer o princpio de publicidade, ou s e j a , de transparncia,argumentao e a b e r t u r a , como dimenso constitutiva da sociedadeburguesa, Habermas f a z decorrer do mesmo princpio a noo de espaopblico: a co-presena dos homens l i v r e s a condio da sua deliberaoem comum e a participao na deliberao colectiva mediada pela

    palavra (Habermas, 1962).Tomada conta da t e o r i a p o l t i c a e associada l e i t u r a f e i t a porHabermas da distino e n t r e Estado e sociedade c i v i l , a noo de espaopblico extravasa, largamente, a mera a n l i s e dos e f e i t o s dos media sobrea s i n s t i t u i e s e a s p r t i c a s . Em termos p o l t i c o s , o espao pblico designao conjunto de l u g a r e s , mais ou menos i n s t i t u c i o n a l i z a d o s , em que soexpostas, justificadas e decididas a s aces concertadas e destinadaspoliticamente. Orientada para a participao na deliberao c o l e c t i v a , aaco em comum regida pelas modalidades do agenciamento entreespao s o c i a l e espao p o l t i c o , e portanto pelas formas da comunicaop o l t i c a . Em termos s o c i a i s , t o d a v i a , o espao pblico designa a cons-t i t u i o de uma intersubjectividade p r t i c a , do reconhecimento recprococomo s u j e i t o s , da ligao das pessoas e do encadeamento das suas acesna cooperao s o c i a l .

    . todavia problemtica a noo de espao p b l i c o . Ela recobre simul-taneamente lugares ou espaos f s i c o s ( p r a a s , s a l e s , c a f s , assembleias,t r i b u n a i s ) e o princpio c o n s t i t u t i v o de uma aco p o l t i c a que neles s edesenrola ou pode desenrolar. Reconhecemos e s t a aco como demo-c r t i c a : r e c a i sobre a deliberao em comum e ope-se ao segredo, razode Estado e representao a b s o l u t i s t a da causa p b l i c a , que enuncia

    * I n s t i t u t o de C i n c i a s S o c i a i s da Universidade do Minho. [email protected]

    Revista Filosfica de Coimbra -n . 2 7 (2005) p p . 157-172

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    " l ' t a t c ' e s t moi". O c a r c t e r problemtico da noo de espao pblicor e s i d e tambm no f a c t o de e s t a noo designar ao mesmo tempo realidadesempricas, como o caso da sociabilidade burguesa do sculo XVIII, euma norma que s e sobrepe a e s t a s singularidades h i s t r i c a s e tende acombater o princpio de autoridade em todas a s i n s t i t u i e s : " v e r i t a s nona u c t o r i t a s f a c i t legem". Finalmente, a noo de espao pblico pro-blemtica por denotar uma realidade mediadora e n t r e a sociedade c i v i l eo Estado, a s o c i a b i l i d a d e e a c i d a d a n i a , o s costumes e a p o l t i c a , o privadoe o p b l i c o .

    Na sua caracterizao p b l i c a , o espao pblico tambm s e mantmproblemtico. A distino pblico v s . privado definida mu it as v ez es ap a r t i r de dois c r i t r i o s , que s e recobrem parcialmente, o c r i t r i o materiale o c r i t r i o i n s t i t u c i o n a l . Em sentido m a t e r i a l , a natureza das actividades( f r u i o privada v s . participao p o l t i c a ) que prevalece, assim como n ocaso da oposio e n t r e a privacy e o s problemas p o l t i c o s . Este t i p o dec r i t r i o que u t i l i z a d o para t r a a r a f r o n t e i r a e n t r e e s t a s duas esferas dea c t i v i d a d e , a pblica e a privada, t em o inconveniente de substancializara noo de espao pblico. O impasse a que e s t e t i p o de c r i t r i o conduzcomprovamo-lo com o l i b e r a l i s m o , que s e mostra in capaz d e estabeleceraquilo que releva do privado e escapa desse modo interveno e v i s i b i l i d a d e p b l i c a s .Por sua v e z , pelo c r i t r i o i n s t i t u c i o n a l ou j u r d i c o , so qualificadoscomo pblicos o s lugares ou o s problemas que relevam de uma i n s t i t u i opblica. Neste caso, o privado ope-se ao pblico e o segredo ou ainacessibilidade constituem a condio da sua proteco. Podemos f a l a rento do domiclio ou da empresa, que relevam de uma autoridade p r i v a d a ,e das ruas ou das p r a a s , que relevam da ordem p b l i c a .

    Dada e s t a i n c e r t e z a , f i c a c l a r o que no e x i s t e um espao pblico natu-r a l e que a nossa ateno deve r e c a i r no apenas na evoluo e naporosidade da f r o n t e i r a e n t r e pblico e privado, mas tambm n a ev o lu odas s i g n i f i c a e s que e s t a s noes revestem, por exemplo, nas deslocaesentre uma acepo f s i c a concreta e uma acepo imaterial do espaopblico. Resumindo, a nossa ateno deve r e c a i r nos processos de cons-truo dos problemas pblicos.

    Esta questo da fronteira entre espao pblico e espao privadoabre caminho reflexo sobre a mediao t c n i c a , sobre o modo comoa s novas tecnologias da informao, que incluem os media, p a r t i c i -pam da redefinio da f r o n t e i r a entre pblico e privado, ao misturaremem permanncia lugares e actividades pblicas e privadas. O exem-plo-tipo d esta reali dade a publicitao da intimidade n os mediaaudiovisuais e na I n t e r n e t , assim como, de um modo g e r a l , a comuni-cao e l e c t r n i c a .p p . 1 57 - 172 Revista Filosfica de Coimbra -a . 2 7 (2005)

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    Espao p b l i c o e v i d a p r i v a d a 1 592 . O espao pblico e a questo da tcnicaEsta i d e i a de que a s novas tecnologias da informao participam daredefinio da f r o n t e i r a e n t r e pblico e privado argumentada com atecnologizao das r e l a e s , a mercantilizao da comunicao, a fragmen-tao dos pblicos, e a i n d a , com a mundializao dos fluxos de i n f o r -mao. I n t e r a c t i v i d a d e , conexo em rede e convergncia do audiovisual,das telecomunicaes e da informtica so-nos apresentados como carac-

    t e r s t i c a s tcnicas qu e d ist in guem dos media a s novas tecnologias dainformao. Mas, fundamentalmente, a s novas tecnologias da informaoso apresentadas, na "transparncia" das suas r e d e s , como um possvelremdio para a c r i s e da representao p o l t i c a .A tradio democrtica sempre a t r i b u i u aos media um papel p o l t i c oi n a l i e n v e l , mas a t r i b u i - l h e s igualmente uma pesada responsabilidade noprogressivo empobrecimento, e mesmo desnaturao, d o espao pblico.Por um l a d o , os media transformam a democracia representativa emdemocracia aclamativa. E , por outro l a d o , o prprio aparelho da i n f o r -

    mao denota um evidente fechamento, que s e sobrepe exigncia dasua abertura. No apenas pululam nos media os "crculos v i c i o s o s , a sconivncias f a t a i s e uma desen freada procura de consensos", designa-damente "a con iv n cia d os tcnicos de sondagens, dos homens mediticose dos p o l t i c o s " (Bougnoux: 2 0 0 2 : 277), como tambm cresce neles avedetizao dos opinionistas e dos profissionais d a i nf ormao, querarefazem a opinio.

    So e s t a s a s r a z e s , a l i s , que levam Jean-Marc F e r r y , e n t r e o u t r o s , aapresentar a s novas tecnologias da informao, na t r a d i o habermasianada emancipao h i s t r i c a , como um remdio para a c r i s e da representaop o l t i c a . Jean-Marc Ferry (1989: 15-26) f a l a de um espao pblico cons-t i t u d o por objectos p r i v a d o s , que a p r e s e n t a r i a , graas s novas tecnologiasda informao e da comunicao, o s t r a o s "de uma comunicao p o l t i c amediatizada de vasta amplitude, mas que no passaria j pela repre-sentao". E r e f e r e como exemplos de comunicaes i n t e r - i n d i v i d u a i s acomunicao em rede dos investigadores e a s mensagens e l e c t r n i c a s .Mais comedido, Louis Qur (1992: 2 9 - 4 9 ) a s s o c i a , t o d a v i a , a s d i s t i n t a stecnologias de informao aos seus d i s t i n t o s modos de difuso, sendoe s t e s , a l i s , que l h e s emprestam i d e n t i d a d e . Assim a t e l e v i s o , por exem-p l o , difundiu-se como um equipamento para uso domstico e distracofamiliar e e s t associado a representaes de passividade, f a s c n i o pelaimagem e consumo popular d e massas. Por sua v e z , a s novas tecnologiasda informao, mobilizadas pela ideologia da comunicao, veiculam umbem diferente imaginrio de actividade e de autonomia i n d i v i d u a l . Estasrepresentaes colectivas esto por regra associadas a c a r a c t e r s t i c a sR e v i s t a F i l o s fi c a d e Coimbra -n . 27 ( 2 0 0 5 ) p p . 1 5 7 - 1 7 2

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    tcnicas e a performances ( por exemplo , televiso unidireccional v s .i n t e r a c t i v i d a d e das novas tecnologias da informao).

    Autores h , no entanto , que entendem c o n s t i t u i r hoje a tcnica "onovum da experincia contempornea " ( Miranda : 2002: 3 5 ) , a pontode colocarem mesmo , por seu v i s , a hiptese do "f im da mediao"(Miranda , 1999). Insistindo n a n ec essi dad e de pensar politicamente at c n i c a , entende Bragana de Miranda (2 002 : 39 ) que "num momento emque s e f a l a de clonagem , de r e p l i c a n t e s e de c v b o r g s , de ps-orgnico ede t r a n s - humano", a t c n i c a e s t a escapar sua t r a d i c i o n a l " determinaoantropolgica " e abandona a i d e i a de uma simples construo humana,"apesar de o s objectos tcnicos serem o produto da 'inventividade'humana".

    Pairando acima de outros pensadores da tcnica , penso, e n t r e o u t r o s ,em Jnger , Ortega y Gasset , Dessauer , Borkenau , Simondon, Spengler,Habermas e Latour . Heidegger ( 1 954) en ten de a tcnica no como umprod ut o d a actividade n a t u r a l do homem que s e exprimiria na h i s t r i a , mascomo um problema que s e coloca ao humano e de que depende a prpriapossibilidade de o delimitar . a f i g u r a da instrumental idade que, destemodo , aqui posta em causa . Com a s novas tecnologias da informao,aquilo a que Lyotard chama " logotcnicas " , com a crescente minia-turizao da tcnica e a "imaterializao " do d i g i t a l , d-se uma completaimerso da tcnica na h i s t r i a e nos corpos, o que sobretudo tomadoevidente com a s biotecnologias , os implantes , a s prteses , a engenhariagentica . A bios e a techne f u n d e m - s e . E com a c r i s e da palavra comologos humano , bem patente na sua manifesta incapacidade para controlara tcnica , a prpria f i g u r a do homem que e n t r a em c r i s e .

    3 . A estetizao d o espao pblico e da vida privadaA conjuno d a met f ora tecnolgica com a metfora biolgica, que

    f a z funcionar num mesmo plano razo e emoo, tcnica e e s t t i c a , pelomenos desde os anos s e s s e n t a , o objecto de uma r a d i c a l interrogao f e i t apor vrios autores c u l t u r a . N est e en t en di men t o, os media, e funda-mentalmente a s novas tecnologias da informao, n o s realizam a razocomo c o n t r o l o , como simultaneamente modelam a nossa sensibilidade eemotividade, produzindo o e f e i t o cada v ez mais alargado de uma e s t e -tizao do quotidiano (Miranda, 1 9 9 8 e 1999).Se bem observarmos, vemos e s t a t e s e declinada por i n t e i r o em de LaM o n n a i e levante de Klossovski (1970): " d e s e j o , valor e simulacro, - otringulo que nos domina e nos c o n s t i t u i u na nossa h i s t r i a , sem dvidadesde h sculos", como bem a s s i n a l a Foucault na c a r t a que precede ap p . 157-172 Revista Filosfica de Coimbra-. ' 2 7 (2005)

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    obra. As novas tecnologias da comunicao e da informao, e s p e c i f i -camente a f o t o g r a f i a , o cinema, a t e l e v i s o , o multimdia, a s redescibernticas e o s ambientes v i r t u a i s , funcionam para ns como prtesesde produo de emoes, como maquinetas que modelam em ns umasensibilidade puxada manivela (Martins, 2 0 0 2 b : 181-186).A l i s , j era c l a r o para Walter Benjamin (1 9 3 6- 1 9 3 9 ) , na primeirametade do sculo XX, que o s d i s p o s i t i v o s de imagens causavam comooe impacto generalizado, e que, portanto, como bem o assinalou TeresaCruz ( s . d . : 1 1 2 ) a nossa sensibilidade estava a s e r penetrada pelaaparelhagem t c n i c a , de um modo simultaneamente ptico e t c t i l . Masf o i nos anos sessenta que McLuhan (1968: 37) i n s i s t i u n e s t e ponto: no ao n v e l das i d e i a s e dos conceitos que a tecnologia t em o s seus e f e i t o s ;so a s relaes dos s e n t i d o s e o s modelos de percepo que e l a transformaa pouco e pouco, e sem encontrar a menor r e s i s t n c i a . E foram G i l l e sDeleuze e F l i x G u a t t a r i quem, j nos anos s e t e n t a , f e z o diagnstico maiscompleto desta s i t u a o , em que a tcnica e a e s t t i c a fazem bloco, um"bloco a l u c i n a t r i o " , como escreve, a propsito, Bragana de Miranda( s . d . : 1 0 1 ) . No Anti-Oedipe, Deleuze e Guattari propem a equivalnciaentre corpo, mquina e desejo. Sendo a mquina desejante e o desejomaquinado, i d e i a de ambos que existem " t a n t o s s e r e s vivos na mquinacomo mquinas nos s e r e s vivos" (Deleuze e G u a t t a r i , 1972: 2 3 0 ) .A tecnologia i n s c r e v e - s e , d e s t e modo, no movimento daquilo a queBragana de Miranda chama "razo medial", ou s e j a , uma razo que noc o n s t i t u i n d o a razo dos media, s e r i a o s u p o r t e da r a z o que produz e c o n t r o l aa e x i s t n c i a . Neste entendimento, a tecnologia v i s t a como um " d i s p o s i t i v o "( F o u c a u l t ) e t em o c a r c t e r de uma maquinao: com a t e c n o l o g i a maquina-sea e s t t i c a , compe-se uma s e n s i b i l i d a d e a r t i f i c i a l , "uma s n t e s e a r t i f i c i a l noi n t e r i o r da q u a l s e desintegram a s s e n s a e s , a s emoes e o s desejos" ( C r u z ,s . d . : 1 1 1 - 1 1 2 ) Num processo de "crescente anestesiamento da v ida nassociedades modernas", Teresa Cruz ( s . d . : 111-112) r e f e r e a produo quo-t i d i a n a nos media de " t e r r o r sem h o r r o r , comoo sem emoo, compaixosem paixo. Guy Debord (1991: 1 6 ) f a l a r a n t e s de uma congelaodissimulada do mundo: " a sociedade moderna acorrentada [ . . . 1 no exprimeseno o seu desejo de d o r m i r . O espectculo o guardio d e s t e sono". Vertambm Moiss Martins (2002 a , 2 0 0 2 b e 2003), Mrio Perniola (1 9 90 e1 9 9 1 ) , e a i n d a , Steven Shaviro ( 2 0 0 0 ) .

    4 . Crise do existente e mediaA questo que eu g o s t a r i a de formular agora a s e g u i n t e : quando nos

    nossos d i a s o tempo perdeu, por acelerao t e c n o l g i c a , o s v r i o s acentosRevista Filosfica de Coimbra -n. 2 7 (2005) p p . 157-172

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    que l h e servem , " o agudo da actualidade, o grave da historicidade e ocircunflexo da eternidade " ( Celan , 1 9 9 6 : 46 ) , como fazer do quotidianouma i d e i a que impea a reduo do presente a uma pura forma de ondes e ausentou toda a potncia? Como afirmar " a profundidade do que s u p e r f i c i a l " ( Blanchot , 1 9 6 9 : 3 5 7 ) , ou s e j a , como franquear o acesso temporalidade e desse modo recuperar o quotidiano?

    Comeo por c on v oc ar Al ex a nd re O'Neill. De um poema i n t i t u l a d o"Amanh aconteceu " , respigo a s seguintes e s t r o f e s :

    "Que n o t c i a ?Um hoje que nunca h o j e ,um amanh que j ontem[ . . . ]

    Que n o t c i a ?Amanh acontecido,n o t c i a sempre um depois, um viver v i v i d o . . .

    Que n o t c i a ?Notcia devorao!A v a i e l a pela goelaque h-de engolir tudo e t o d o s !A v a i e l a , l f o i e l a !Nem trabalho de moelaretm n o t c i a . . .Notcia sem corao!Que n o t c i a ?Co perdeu-se! Por que no?Co achou-se! Ainda bem!Ainda melhor, por s i n a l ,s e o co perdido e o achadoforem um s e o mesmo" l i d o s " no mesmo j o r n a l !

    p p . 157-172 Revista Filosfica de Coimbra -n . 2 7 (2005)

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    E s p a o p b l i c o e v i d a p r i v a d a

    Mas t e r sido n o t c i a ?Que notcia?"( O ' N e i l l , 1 9 9 9 : 1 3 - 1 5 ) .

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    Este poema sugere-me t r s c o i s a s . Em primeiro l u g a r , lembra aimpossibilidade em que nos encontramos hoje de apreender o mundo comoexperincia. Investido pela t c n i c a , o tempo acelerou e , nestas circuns-t n c i a s , sentimos uma r e a l impossibilidade de nos apropriarmos da n ossacondio propriamente h i s t r i c a . Em relao ao tempo, encontramo-nossempre da p a r t e de f o r a dele - encontramo-nos no e x t e r i o r :

    "Que n o t c i a ?Um h o j e que nunca h o j e ,um amanh que j ontem[ . . . ]Amanh acontecido,n o t c i a sempre um depois, um viver v i v i d o . . . " .Em segundo l u g a r , o poema i l u s t r a a a c t u a l "fantasmagoria" do novo,

    do i n d i t o , do que n un ca aconteceu a n t e s . O t r a b a l h o dos media e s c l a r e c e ,com e f e i t o , a i r o n i a de Botho S t r a u s s , convocada por Antnio Guerreiro(2000: 8 7 ) , de que "nenhuma outra poca produziu em t o pouco tempot a n t o passado como a nossa":

    "Notcia devorao!A v a i e l a pela goelaque h-de engolir tudoA v a i e l a , l f o i e l a !Nem trabalho de moelaretm n o t c i a . . .Notcia sem corao!"

    e todos!

    Em t e r c e i r o e ltimo l u g a r , o poema sugere a h a b i t u a l transformaodo quotidiano na presa f c i l de uma transcrio ruidosa e i n c e s s a n t e , queo nega enquanto quotidiano em que arriscamos a p e l e :

    "Co perdeu-se! Porque no?Co achou-se! Ai nd a b em!Ainda melhor, por s i n a l

    R e v i s t a F i l o s f i c a d e Coimbra -n . 2 7 ( 2 0 0 5 ) p p . 157-172

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    s e o co perdido e o achadoforem um s e o mesmo' l i d o s ' no mesmo j o r n a l ! "

    Concluo, e n t o , o meu ponto de v i s t a : n o t c i a a s u p e r f c i e infecundado novo, a novidade, um movimento sem nenhuma espcie de com-promisso com a poca e com a s i d e i a s da poca. Da a dvida que a s s a l t aAlexandre O'Neill: "Mas t e r s i d o n o t c i a ' ? "

    Diz Paul Celan em O Meridiano que possvel l e r a palavra" meridiano" de v r i a s maneiras, uma v ez que v r i o s acentos l h e servem.O meridiano o tempo e ao tempo convm - l h e t r s acentos como r e f e r i ,convocando Paul Celan : " o agudo da actualidade , o grave da h i s t o r i c i d a d e[ . . . ] o circunflexo - um s i n a l em expanso - do eterno" ( Celan, 1 9 9 6 : 4 6 ) .

    Ora, ao que penso , o tempo perdeu nos nossos d i a s todos os seusacentos. A historicidade , o acento grave do tempo, o acento da nossaresponsabilidade pelo nosso estado e pelo estado do mundo, tornou-se uma"doena " , como d i z Nietzsche na sua Segunda I ntempestiva . A razoh i s t r i c a , n os t ermos em que f o i elaborada pelo Iluminismo , assente nasi d e i a s de continuidade , causalidade e progresso i n i n t e r r u p t o , uma"doena" que nos impede o acesso verdadeira temporalidade , ou s e j a ,que nos impede a apreeenso do mundo como experincia A modernidadeque Nietzsche configura como "doena h i s t r i c a " e como poca em quen ada chega "maturidade " , i n s p i r a o tema de Benjamin sobre amodernidade como poca do declnio da experincia . Veja-se, porexemplo, Benjamin ( 1 9 9 2 : 2 8 ) : " a experincia e s t em c r i s e e assimcontinuar indefinidamente " . Nestas circunstncias , a actualidade, o quee s t " i n a c t u " , o acento agudo do tempo, - nos confiscado . E o e t e r n o , oacento circunflexo que expande o tempo, apenas mais um fragmento naenxurrada em que v o r i o abaixo todos os nomes que nos falavam dainvarincia de uma presena plena ( de um f u n damento ) : essncia,substncia , s u j e i t o , conscincia , e x i s t n c i a , Deus, homem , t r a n s c e n d n c i a . . .Esta f r a s e uma glosa a um excerto do t e x t o de Derrida , L'criture de l adiffrence (1967: 410-411).

    Digo, ento , c r i s e da razo h i s t r i c a , " doena" da h i s t o r i c i d a d e , e emconcomitncia , c r i s e do s u j e i t o e c r i s e dos v a l o r e s , eroso contemporneada fundao de normas u n i v e r s a i s , ou s e j a , eroso de tudo aquilo que s edava como fundamento e nos permitia f a l a r de acordo com o verdadeiro ea g i r segundo o bem e o j u s t o . e s t a " doena" da h i s t o r i c i d a d e que nosimpede de v i v e r o tempo de acordo com o s v r i o s acentos que l h e servem:o agudo da a c t u a l i d a d e ; o grave da h i s t o r i c i d a d e e o circunflexo da e t e r n i -dade . Numa p a l a v r a , que nos impede a apreenso do mundo como e x p e r i n c i a .p p . 157-172 Revista Filosfica de Coimbra -n . 2 7 (2005)

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    Penso que legtimo f a l a r de c a t s t r o f e c u l t u r a l neste contexto deimpossibilidade de apreenso das coisas e dos acontecimentos comoexperincias. A baixa da "cota da experincia" por exemplo c a t a s t r f i c apara a f i g u r a do narrador (Benjamin: 1992). E o problema r e s i d e n o f a c t od e , tradicionalmente, a prpria i d e i a de transmisso c u l t u r a l assentar nestaf i g u r a . No admira assim, n e s t e contexto, a frmula de Ly ot ard (1 9 79 )sobre o f im das n a r r a t i v a s . Ele falava do f im das grandes narrativas(ideologias r e l i g i o s a s e p o l t i c a s ) , mas eu formulo a hiptese do f im detoda a n a r r a t i v a , uma v ez que a nossa situao a de nos encontrarmos`alienados' da nossa temporalidade. O tempo acelerou sem p a r a r , eacelerou sobretudo com o d esen volv imento d a t c n i c a , de maneira que nssentimo-nos hoje incapazes de n os apr opr iar mos da nossa condiopropriamente h i s t r i c a .

    Esta nossa "doena", para v olt armos ao conceito nietzscheano, diag-nosticou-a bem Musil em O homem sem qualidades. Se repararmos no queacontece personagem Ulrich, verificamos que muito cedo Ulrichcompreendeu que a poca em que v i v e , apesar de possuir um saberimenso, i n i g u a l v e l em nenhuma outra poca, "parece incapaz de i n t e r f e r i rno curso da h i s t r i a " (Bachmann, apud Guerreiro, 2000: 1 0 9 ) . E paraUlrich a razo e s t no f a c t o de apenas uma nfima p a r t e da realidade s e rproduzida, h o j e , pelo homem (/bidem). Naquilo a que Michel Maffesoli(1998: 1 2 9 ) chama "afrontamento do destino" o que e s t em jogo " def a c t o uma sequ n cia d e s i t u a e s e de acontecimentos que t m uma l g i c aprpria de encadeamentos [ . . . ] que s e desenrolam de uma maneira quaseautnoma sem que s e j a p o s s v e l i n t e r v i r " . O s homens j no so c r i a t i v o s ,no so mais uma unidade e a s suas experincias de vida obedecem a umesquematismo herdado. No entendimento que fao das c o i s a s , d i r e i mesmoque a s nossas experincias de vida obedecem hoje a um esquematismo deproduo crescentemente tecnolgica.Nas circunstncias a c t u a i s , o s homens j n o so capaz es d e viver a ssuas prprias experincias. A Cacnia de Musil a prefigurao de ummundo com qu e est amos hoje totalmente f a m i l i a r i z a d o s : um mundo ondej no h acontecimentos, mas apenas n o t c i a s ; um mundo onde j s e nov i v e , mas tudo s e exibe ( G u e r r e i r o , 2000: 109) Nas palavras de Benjamin,"quase nada do que acontece favorvel n a r r a t i v a e quase t udo o informao" (Benjamin, 1 9 9 2 : 3 4 ) . O out-put da gigantesca mquina datecnologia informativa e s s e : n o t c i a s , no o novo mas a sua f a n t a s -magoria, no o n o v o mas a novidade.

    e s t e , a l i s , o papel que, a meu v e r , a t e l e v i s o desempenha hoje n asnossas v i d a s : o papel de um esquematismo que determina a s nossasexperincias de v i d a . No modo como vejo a s c o i s a s , a programaoinformativa o sintoma desta impossibilidade em que nos encontramosRevista Filosfica de Coimbra -n . 27 (2005) p p . 157-172

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    de viver a s nossas experincias. Cercados que estamos por e s t e mundoinformativo, j no vivemos acontecimentos, mas apenas exibimos n o t -c i a s . A l i s , sucumbimos mesmo i l u s o de que viver a nossa vida fazeruma qualquer experincia t e l e v i s i v a , sucumbimos i l u s o de que viver anossa vida exibirmo-nos como uma qualquer n o t c i a , darmo-nos emespectculo como qualquer n o t c i a .

    De um modo cada v ez mais acentuado, o esquematismo que s e nosimpe p e l a t e l e v i s o o de uma privacidade para s e r comercializada comoespectculo, debaixo da permanente espionagem das cmaras t e l e v i s i v a s ,connosco a t e r que ' i n v e n t a r ' um quotidiano adequado expectativa dosespectadores em que todos nos convertemos. Levando a Cacnia de Musilao paroxismo, e cruzando-se na passagem com o 1 9 8 4 de Orwell, at e l e v i s o metaforiza h o j e , caricaturalmente, a sociedade contempornea.A t e l e v i s o consagra a omnipresena e a omnipotncia das cmaras dev i g i l n c i a ; o apelo ao exibicionismo; a concorrncia feroz e n t r e o s impro-visados ' a c t o r e s ' em que potencialmente todos fomos convertidos; apreponderncia de lgicas de rentabilidade e de mxima audincia.Portanto, um mundo em que j no vi vemos a s nossas experincias: ummundo sem acontecimentos e s com n o t c i a s ; um mundo em que j s eno v i v e , mas tudo s e e x i b e .

    5 . Espao pblico, quotidiano e mediaEm L'entretien i n f i n i , num captulo i n t i t u l a d o " La parole quoti-

    dienne", Blanchot prope que s e faa do quotidiano uma c a t e g o r i a , umau t o p i a , uma i d e i a , sem a s quais o presente uma pura forma de onde s eausentou toda a potncia. Inesgotvel, o quotidiano escapa-nos exacta-mente porque o i n d i f e r e n t e , sem verdade nem segredo ( , a l i s , esse oseu enigma). O quotidiano a evidncia em que estamos de t a l modomergulhados que nem o vemos, como tambm costuma dizer MichelMaffesoli.

    Do quotidiano s e ocupam o s media. Mas como esto longe o s mediade nos devolverem o quotidiano, de nos devolverem a matria de quefomos a l i e n a d o s , de nos devolverem a nossa h i s t o r i c i d a d e , a possibilidadede vivermos a s nossas experincias! Como esto longe o s media deafirmarem "a profundidade do que s u p e r f i c i a l , a tragdia da nulidade",para continuarmos a u t i l i z a r a s palavras de Blanchot (1969: 357).Os media que salv am o quotidiano constituem h o j e , de f a c t o , umenorme desafio e uma enorme responsabilidade, uma v ez que contrariamum movimento generalizado ( e generalizado exactamente pelos media) de"nenhuma espcie de compromisso com a poca e com a s i d e i a s que ap p . 157-172 Revista Filosfica de Coimbra- . 2 7 (2005)

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    motivam" (Benjamin, 1 9 9 3 : 590). Os media que salv am o quotidianobatem-se pelas suas p a l a v r a s . E a l e v a r a s r i o o que d i z i a Max S t i r n e r ,fazem-no como s e n e l a s arriscssemos a prpria p e l e . O que no dizerpouco: a pele o que em ns e s t s u p e r f c i e ; mas tambm, como d i z i aV a l r y , o que h em ns de mais profundo, exactamente pela razo queS t i r n e r apontava: porque na pele arriscamos a prpria v i d a . A "palavraquotidiana", de que f a l a Blanchot, d e s t e modo a palavra onde arriscamosa p e l e , a que s e r e f e r e S t i r n e r : ope-se, no h dvida, ao reino dat a u t o l o g i a , onde tudo s e e x i b e , e nada s e v i v e .O quotidiano, t o d a v i a , quase nunca t em "a profundidade do que s u p e r f i c i a l " . O que h a b i t u a l vermos o quotidiano transformado na presaf c i l de uma transcrio ruidosa e incessante , que o nega enquantoquotidiano em que arriscamos a p e l e . O que h a b i t u a l vermo-lo t r a n s -formado pelos media em f a i t - d i v e r s , que a e s t r i l s u p e r f c i e do no v o(Benjamin, 1982: 1 7 3 ) , uma s u p e r f c i e que define a actualidade d e acord ocom a i l u s o h i s t o r i c i s t a que f a z da h i s t r i a uma perptua actualizao,para a qual h cada v ez menos tempo.

    No an n cio da r e v i s t a Angelus Novus, Walter Benjamin r e i v i n d i c a ,como primeiro c r i t r i o a s e g u i r , "uma verdadeira actualidade", e noaquela que s e forma "na s u p e r f c i e infecunda dessa novidade" que deverias e r deixada para o s j o r n a i s ( I b i d e m ) . Em Benjamin, h , de f a c t o , e s t a i d e i ade os media esgotarem a actualidade na novidade, um simulacro do novo.Mas eu no penso que o s media tenham que e s t a r condenados a e s t airremvel f a t a l i d a d e .Aqui chegado, g o s t a r i a de c r i a r um ponto de f r i c o com o propsitog e r a l da obra de Michel Maffesoli. Desde La conqute du prsent. Pourune sociologie de l a v i e quotidienne, l i v r o que escreveu em 1979, e quereeditou em 1 9 98, a t L'instant t e r n e l . Le retour du tragique dans l e ssocits postmodernes, e s c r i t o em 2000, do que s e t r a t a sempre deestetizao e de despolitizao, ou s e j a , nas prprias palavras deMaffesoli (1992), de "transfigurao do p o l t i c o " , com o espao pblicocaricaturado em espao da t r i b o . Para Maffesoli, a s sociedades t r a d i -cionais privilegiam o passado. A modernidade, de modo semelhante aoque s e passa com todas a s pocas progressistas, priv ilegia o futuro.Outras c i v i l i z a e s , como o perodo da decadncia romana ou o renas-cimento, acentuam an tes o presen te. A ps-modernidade, que a nossapoca, i n s i s t e tambm n o presente. E o presente o mundo "no estadoem que est" (Maffesoli, 1 9 98: 4 1 ) . Dizer sim vida (Maffesoli, 2000:234), "afirmar a existncia" ( I b i d . : 5 0 ) , consiste em celebrar o tempopresente, em "canonizar o que existe" ( I b i d . : 1 0 0 ) , em fazer uma fuso,natural e m a t r i c i a l , com o mundo, reconhecendo o sentido trgico dav i d a . Nestas condies, no h que superar o mundo nem que o estigma-Revista Filosfica de Coimbra -n . 2 7 (2005) p p . 157-172

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    t i z a r . O mundo h que am-lo, sem p a r t i l h a , "por aquilo que e l e e f e c t i -vamente " ( I b i d . : 214).Eu d i r i a ento que em Michel Maffesoli o acento agudo do presente

    no t r a z qualquer responsabilidade acrescida sobre o estado do mundo,o que e l e nos impe o " ret orno ao a n t i g o , ao arcasmo" ( I b i d . : 3 5 ) .O arcasmo, que paradoxalmente f a z par com o desenvolvimento tecno-l g i c o . A ps-modernidade no , a l i s , outra coisa para Maffesoli: aconjuno do arcasmo e d o d esen v ol v imen to tecnolgico (Ibidem).A tecnologia e s t a b i l i z a r i a a e x i s t n c i a , integrando o seu c o n t r r i o , mesmoo seu oposto, um pouco maneira do pensamento i n i c i t i c o . Mas essas e r i a a marca, ao que d i z , do sen timen to trgico da v i d a , a marca do"reconhecimento de uma l g i c a da conjuno" ( I b i d . : 1 4 ) .

    A propsito do p r e s e n t e , a propsito daquilo que e x i s t e , f a l a ento de"tempo mstico", de tempo da repetio/tempo c c l i c o ( I b i d . : 1 8 ) , dei n s t a n t e eterno ( I b i d . : 104, 1 0 5 ) , de paganismo eterno ( I b i d . : 3 4 ) , de"messianismo sem t e l o s " ( I b i d . : 5 4 ) , de "eternidade efmera" ( I b i d . : 1 2 8 ) .Diante do mundo, nenhuma l u t a , p o i s . Nenhum p r o t e s t o . Apenas aquies-c n c i a , a c e i t a o , adeso. Aban d o n a n d o o r e g i s t o c r t i c o , epistemolgicoe p o l t i c o , a estetizao ps-moderna corresponde em Michel Maffesoli propost a de um r e g i s t o de pensamento ontolgico e despolitizado, comuma caricatura t r i b a l de espao pblico, que configura uma espcie de"situacionismo, disposto a f r u i r daquilo que s e apresenta, daquilo que s ed a v e r , daquilo que s e d a viver" ( I b i d . : 1 0 0 ) .

    Por sua v ez a tecnologia t em o c a r c t e r de um estabilizador eufrico:a tecnologia o instrumento que reencanta o mundo. Nenhuma questo , de f a c t o , colocada t e c n o l o g i a . Para Maffesoli, e l a do domnio dof e s t i v o , da intensidade e da j u b i l a o . Diz assim: "O imaginrio, a f a n t a -s i a , o desejo de comunho, a s formas de solidariedade, a s diversas e n t r e -ajudas c a r i t a t i v a s (no f im de contas o s valores proxmicos, domsticos,b a n a i s , da vida quotidiana) encontram na I n t e r n e t e na ` c i b e r c u l t u r a ' emg e r a l vectores particularmente performantes" ( I b i d . : 188/189).Salvar o quotidiano. Salvar a possibilidade de vivermos a s nossasv i d a s . Salvar a nossa h i s t o r i c i d a d e . E essa a minha proposta. A i d e i a deque s assim, salvando o quotidiano, s e pode dar uma vida autntica f o ia p i s t a que Joyce seguiu paradigmaticamente no U l i s s e s . Digo bem, Joyce,n o U l i s s e s . Ulisses "o homem i n s i g n i f i c a n t e n o absoluto", a iden-t i f i c a o "do an n imo e do divino"; Odisseus outis-Zeus, n i n -gum-Deus, a redeno da banalidade quotidiana, como em temposescreveu Hen ri Lef bv r e (1969: 1 2 ) .

    curioso que um t e x t o do i n c i o do sculo XX, como o U l i s s e s , nospossa dar o s "estados de alma" desse sculo e no-los d de um modo queo no do obras mais r e c e n t e s . Giorgio Agamben (1 99 8: 74) f e z - s e ecop p . 1 57 - 1 72 Revista Filosfica de Coimbra-. 2 7 (2005)

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    Espao p b l i c o e v i d a p r i v a d a 1 6 9deste espan to ao v e r i f i c a r que "a ltima descrio convincente dos nossosestados de alma e d os n ossos sentimentos remonta, em suma, a mais decinquenta anos a t r s " . , com e f e i t o , um punhado de obras f i l o s f i c a s el i t e r r i a s , e s c r i t a s entre 1 9 1 5 e 1 930, que detm " a s chaves da s e n s i -bilidade da poca" (Ibidem). No U l i s s e s , Joyce d-nos o modelo de umaobra enraizada no seu tempo, e de t a l modo enraizada que, com e l a ,aprendemos a t o t a l i d a d e concreta da "vida quotidiana universal da poca"como do Ulisses d i s s e Hermann Broch (1966: 1 8 8 ) . De f a c t o , para Broch,uma grande obra como Ulisses capaz de configurar uma poca, capazde engendrar, por assim d i z e r , o prprio presente de uma poca. Quer i s t odizer que a o b r a , na sua capacidade de ordenar, de dar sentido s forasannimas e dispersas de uma poca, c r i a a "expresso da poca", no s elimitando a s e r o seu r e f l e x o . A obra a t i n g e ento a "verdadeira realidadeh i s t r i c a " , encerrando em s i a garantia da sobrevivncia da poca, d i zainda Broch (Ibidem).

    Criar uma "expresso da poca", nisso consiste s a l v a r o quotidiano.Flaubert, retomado por Bourdieu (1996: 1 1 9 ) , d i - l o da seguinte forma:"Escrever bem o medocre". Ou s e j a , nas palavras de Bourdieu, "nadamenos do que escrever o r e a l " ( I b i d . : 1 2 1 ) . Escrever o r e a l , continuaBourdieu, e no descrev-lo, i m i t - l o ou deix-lo de algum modo pro-duzir-se a s i p r p r i o , numa como que "representao n a t u r a l da natureza"(Ibidem). Do que s e t r a t a , p o r t a n t o , de escrever a s f o r a s annimas edispersas da poca, escrever uma atmosfera s o c i a l , sendo a atmosfera umarede de foras materiais e e s p i r i t u a i s . minha i d e i a que o s media podems e r os intermedirios desta atmosfera.A questo assim formulada no deixa de s e r problemtica. Numapoca de "desagregao dos v a l o r e s " , numa poca de "meios sem f i n s " ,como diz Agamben (1995), quando j no possvel conceber o mundoorganizado como unidade e regido por uma ordem t o t a l i z a d o r a , podemainda os media pretender abrang-lo como uma t o t a l i d a d e que s e exprimenuma poca? Embora problemtica, todavia e s t a a minha h i p t e s e . Emmeu entender, a actualidade no t em que s e esgotar em novidade, emn o t c i a s , em vida que s e no v i v e , mas que apenas s e e x i b e . Penso que aactualidade, o que e s t " i n a c t u " , a nossa experincia do confronto coma s coisas e com os o u t r o s , pode convocar no apenas a gravidade dah i s t o r i c i d a d e , ou s e j a , a responsabilidade pelo nosso estado e pelo estadodo mundo, como tambm a promessa de uma "comunidade a v i r " , pararegressar a Agamben (199 1 ) e concluir com e s t a f e l i z expresso.

    R e v i s t a F i l o s fi c a d e Coimbra -n . 27 ( 2 0 0 5 ) p p . 1 5 7 - 1 7 2

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  • 8/3/2019 Espao Pblico e Vida Privada Moiss de Lemos Martins

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