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Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo Ano I – nº 8 – 3/12/2012 Nesta edição nº 8 de J&Cia Memória da Cultura Popular, Assis Ângelo foi buscar no acervo de seu Instituto Memória Brasil ma- téria que fez sobre o repentista e cordelista Zé Limeira, falecido em 1954, conhecido como “O poeta do absurdo” por seus versos surrealistas, nonsense e recheados de neologismos esdrúxulos – e, não raramente, pornográficos. A matéria de Assis, intitulada O cantador melhor que a Paraíba criou-lo, foi publicada na edição de 5/12/1977 do jornal Movimento. São poucas as referências que se tem desse repentista, a maioria trazida a público pelo advogado, poeta, ensaísta, jornalista, folclo- rista e professor Orlando Tejo, paraibano de Campina Grande, que sobre ele publicou, em 1980, o livro Zé Limeira, poeta do absurdo (1980). Mas Zé Limeira, que morreu cantando em 1954, sempre foi personagem na cultura popular nordestina. Fotos dele também não há – ao menos das quais se possa garantir alguma veracidade. Entretanto, na Enciclopédia Nordeste, Orlando Tejo faz dele uma descrição que dis- pensa imagens: “Estava na época com 15 anos, mas já era piolho de cantoria desde os 13. Vou passando por uma rua, a rua dos antigos cabarés da cidade, de tardezinha, pas- seando. E ouço uma voz inusi- tada, eu e um companheiro, a gente se aproximando dessa voz. Tinha uma viola no meio. Aí houve o alumbra- mento: a figura mais estranha que eu já vi no mundo. Tinha um cantador normal, que se chamava Cícero Vieira, mais conheci- do como Mocó, e o outro era o próprio Zé Limeira. O primei- ro momento foi de susto. Naquela época, 1950, o sujeito com uma viola psicodéli- ca, verde, azul, amarela, branca, de toda cor, as 12 clavículas tinham três, quatro fitas multicores, compridas, penduradas, quase 30 fitas. E a ventania que entrava no bar ia fazendo aquele moinho, as fitas por cima dele, como bandeirolas ao vento. Com óculos bem escuros, isso era de tardezinha, paletó azul e um lenço vermelho amarrado no pescoço. Fazia um nó aqui, muito grande, e um anel desses de feira, pendurado no nó. E nos dedos, negócio de 15 ou mais anéis, pedras de todas as cores. Era um espetáculo visual”. Na matéria do Movimento aqui reproduzida, Assis dá informa- ções sobre a vida do repentista e aborda as principais característi- cas da sua obra. E as amplia no texto de abertura, em que também analisa repente, cantorias e cordel no universo da cultura popular. Uma verdadeira aula. Boa leitura! Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli Zé Limeira, o poeta do absurdo A cultura popular é a digital de um povo Por Assis Ângelo Zé Limeira (supostamente) Assis, com matéria que integra o acervo do Instituto Memória Brasil, sobre Zé Limeira e cultura popular, publicada no extinto suplemento dominical Folhetim, da Folha de S.Paulo, em 2/7/1978 – Foto Darlan Ferreira Uma vez perguntei ao estudioso Luis da Câmara Cascudo o que é cultura popular – verbete que não consta de seu famoso Dicionário do Folclore Brasileiro – e ele me respondeu dizendo que “é a que vivemos, a tradicional e milenar que aprendemos na convivência doméstica”; e que a outra, a erudita, “é a que estudamos nas escolas, na universidade e nas culturas convencionais pragmáticas da vida” (confira em http:// migre.me/c9ce6). Ele disse também que cultura popular “é aquela que até certo ponto nós nascemos sabendo”. No universo da cultura popular – o berço da alma do povo – estão as brincadeiras infantis, os folguedos natalinos, joaninos e carnavalescos, as rezas e os ditos, os contos, as lorotas e adivinhações, os mitos e lendas; os seres encantados, as rendeiras, os artesãos, os poetas de bancada, que são aqueles que publicam versos em folhetos, revividos hoje nas livrarias, nas ruas e esco- las de quase todo o País. Os cantadores violeiros também se acham nesse universo, rico e belo. Os repentistas, como também nós chamamos os cantadores, são os poetas que improvisam ver- sos em ritmos e gêneros diversos ao som de violas, contando histórias a partir de motes que lhes dão espontane- amente. Numa ocasião, em plena função, o Cego Aderaldo respondeu a uma provocação de seu parceiro Rogaciano Leite em sextilha, que é a modalidade mais comum no dito Reino da Cantoria: Andei procurando um besta Um besta que fosse capaz De tanto procurar um besta Eu achei esse rapaz Que nem pra besta serve Porque é besta demais! E o que dizer de tiradas como esta, de Romano do Teixeira? Eu já suspendi um raio E fiz o vento parar Já fiz estrela correr Já fiz o sol quente esfriar Já segurei uma onça Para um moleque mamar Eu cresci escutando, abestalhado, as contendas intermináveis desses artistas. Muitos deles, embora já desaparecidos, continuam vivos na minha memória. Dimas Batista, por exemplo, que conheci numa cantoria no centenário Teatro Santa Rosa, na capital paraibana, não dá para esquecer. Ele pertencia a uma linhagem de gênios da qual faziam parte Pinto do Monteiro, Diniz Vitorino, José Alves da Cruz, Manuel Xudu, Fabião das Queimadas, Cego Aderaldo, Louro do Pajeú e Otacílio Batista, os dois últimos, seus irmãos. Louro e Otacílio eram como sereias: encantavam a todos, ao cantar na toada de suas violas. Os três chegaram a ser enal- tecidos por Manuel Bandeira num festival de violeiros no Rio de Janeiro, em 1959. A homenagem em versos de Bandeira foi originalmente publicada no Jornal do Brasil, onde ele tinha coluna, sob o título de Violeiros do Nordeste. O poema está no livro Estrela da vida inteira (Poesias Reunidas; Livraria José Olympio Editora). Em 1992, o cantor alagoano Djavan mu- sicou os dez primeiros versos de Violeiros do Nordeste, omitiu o nome do autor e cortou o título pela metade. A música pode ser ouvida no LP Coisa de Acender (Sony Music Entertainment). Os versos de Bandeira são estes: Anteontem, minha gente, Fui juiz numa função De violeiros do Nordeste Cantando em competição, Vi cantar Dimas Batista E Otacílio, seu irmão. Ouvi um tal de Ferreira, Rogaciano Leite Assis com os repentistas João Furiba, Minervina Ferreira, Mocinha de Passira e Sebastião Marinho http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br

Especial Cultura Popular Nº 8

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Para esta edição nº 8 de J&Cia Memória da Cultura Popular, Assis Ângelo foi buscar no acervo de seu Instituto Memória Brasil matéria que fez sobre o repentista e cordelista Zé Limeira, falecido em 1954, conhecido como “O poeta do absurdo” por seus versos surrealistas, nonsense e recheados de neologismos esdrúxulos – e, não raramente, pornográficos. A matéria de Assis, intitulada O cantador melhor que a Paraíba criou-lo, foi publicada na edição de 5/12/1977 do jornal Movimento. Nela, Assis dá informações sobre a vida do repentista e aborda as principais características da sua obra. E as amplia no texto de abertura, em que também analisa repente, cantorias e cordel no universo da cultura popular. Uma verdadeira aula.

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Page 1: Especial Cultura Popular Nº 8

Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo Ano I – nº 8 – 3/12/2012

Nesta edição nº 8 de J&Cia Memória da Cultura Popular, Assis Ângelo foi buscar no acervo de seu Instituto Memória Brasil ma-téria que fez sobre o repentista e cordelista Zé Limeira, falecido em 1954, conhecido como “O poeta do absurdo” por seus versos surrealistas, nonsense e recheados de neologismos esdrúxulos – e, não raramente, pornográficos. A matéria de Assis, intitulada O cantador melhor que a Paraíba criou-lo, foi publicada na edição de 5/12/1977 do jornal Movimento.

São poucas as referências que se tem desse repentista, a maioria trazida a público pelo advogado, poeta, ensaísta, jornalista, folclo-rista e professor Orlando Tejo, paraibano de Campina Grande, que sobre ele publicou, em 1980, o livro Zé Limeira, poeta do absurdo (1980). Mas Zé Limeira, que morreu cantando em 1954, sempre foi personagem na cultura popular nordestina.

Fotos dele também não há – ao menos das quais se possa garantir alguma veracidade. Entretanto, na Enciclopédia Nordeste, Orlando Tejo faz dele uma descrição que dis-pensa imagens: “Estava na época com 15 anos, mas já era piolho de cantoria desde os 13. Vou passando por uma rua, a rua dos antigos cabarés da cidade, de tardezinha, pas-seando. E ouço uma voz inusi-tada, eu e um companheiro, a gente se aproximando dessa voz. Tinha uma viola no meio.

Aí houve o alumbra-mento: a figura mais estranha que eu já vi no mundo. Tinha um cantador normal, que se chamava Cícero Vieira, mais conheci-do como Mocó, e o outro era o próprio Zé Limeira. O primei-ro momento foi de susto. Naquela época, 1950, o sujeito com uma viola psicodéli-ca, verde, azul, amarela, branca, de toda cor, as 12 clavículas tinham três, quatro fitas multicores, compridas, penduradas, quase 30 fitas. E a ventania que entrava no bar ia fazendo aquele moinho, as fitas por cima dele, como bandeirolas ao vento. Com óculos bem escuros, isso era de tardezinha, paletó azul e um lenço vermelho amarrado no pescoço. Fazia um nó aqui, muito grande, e um anel desses de feira, pendurado no nó. E nos dedos, negócio de 15 ou mais anéis, pedras de todas as cores. Era um espetáculo visual”.

Na matéria do Movimento aqui reproduzida, Assis dá informa-ções sobre a vida do repentista e aborda as principais característi-cas da sua obra. E as amplia no texto de abertura, em que também analisa repente, cantorias e cordel no universo da cultura popular. Uma verdadeira aula.

Boa leitura!

Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli

Zé Limeira, o poeta do absurdo

A cultura popular é a digital de um povo Por Assis Ângelo

Zé Limeira (supostamente)

Assis, com matéria que integra o acervo do Instituto Memória Brasil, sobre Zé Limeira e cultura popular, publicada no extinto suplemento dominical Folhetim, da Folha de S.Paulo, em 2/7/1978 – Foto Darlan Ferreira

Uma vez perguntei ao estudioso Luis da Câmara Cascudo o que é cultura popular – verbete que não consta de seu famoso Dicionário do Folclore Brasileiro – e ele me respondeu dizendo que “é a que vivemos, a tradicional e milenar que aprendemos na convivência doméstica”; e que a outra, a erudita, “é a que estudamos nas escolas, na universidade e nas culturas convencionais pragmáticas da vida” (confira em http://migre.me/c9ce6). Ele disse também que cultura popular “é aquela que até certo ponto nós nascemos sabendo”.

No universo da cultura popular – o berço da alma do povo – estão as brincadeiras infantis, os folguedos natalinos, joaninos e carnavalescos, as rezas e os ditos, os contos, as lorotas e adivinhações, os mitos e lendas; os seres encantados, as rendeiras, os artesãos, os poetas de bancada, que são aqueles que publicam versos em folhetos, revividos hoje nas livrarias, nas ruas e esco-las de quase todo o País.

Os cantadores violeiros também se acham nesse universo, rico e belo.

Os repentistas, como também nós chamamos os cantadores, são os poetas que improvisam ver-sos em ritmos e gêneros diversos ao som de violas, contando histórias

a partir de motes que lhes dão espontane-amente.

Numa ocasião, em plena função, o Cego Aderaldo respondeu a uma provocação de seu parceiro Rogaciano Leite em sextilha, que é a modalidade mais comum no dito Reino da Cantoria:

Andei procurando um bestaUm besta que fosse capazDe tanto procurar um besta Eu achei esse rapazQue nem pra besta serve Porque é besta demais!

E o que dizer de tiradas como esta, de Romano do Teixeira?

Eu já suspendi um raioE fiz o vento pararJá fiz estrela correrJá fiz o sol quente esfriarJá segurei uma onçaPara um moleque mamar

Eu cresci escutando, abestalhado, as contendas intermináveis desses artistas. Muitos deles, embora já desaparecidos, continuam vivos na minha memória.

Dimas Batista, por exemplo, que conheci numa cantoria no centenário Teatro Santa Rosa, na capital paraibana, não dá para esquecer. Ele pertencia a uma linhagem de gênios da qual faziam parte Pinto do Monteiro, Diniz Vitorino, José Alves da Cruz, Manuel Xudu, Fabião das Queimadas, Cego Aderaldo, Louro do Pajeú e Otacílio Batista, os dois últimos, seus irmãos.

Louro e Otacílio eram como sereias: encantavam a todos, ao cantar na toada de suas violas. Os três chegaram a ser enal-tecidos por Manuel Bandeira num festival de violeiros no Rio de Janeiro, em 1959. A homenagem em versos de Bandeira foi originalmente publicada no Jornal do Brasil, onde ele tinha coluna, sob o título de Violeiros do Nordeste. O poema está no livro Estrela da vida inteira (Poesias Reunidas; Livraria José Olympio Editora).

Em 1992, o cantor alagoano Djavan mu-sicou os dez primeiros versos de Violeiros do Nordeste, omitiu o nome do autor e cortou o título pela metade. A música pode ser ouvida no LP Coisa de Acender (Sony Music Entertainment).

Os versos de Bandeira são estes:

Anteontem, minha gente, Fui juiz numa função De violeiros do Nordeste Cantando em competição, Vi cantar Dimas Batista E Otacílio, seu irmão. Ouvi um tal de Ferreira, Rogaciano Leite

Assis com os repentistas João Furiba, Minervina Ferreira, Mocinha de Passira e Sebastião Marinho

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Ouvi um tal de João. Um, a quem faltava um braço, Tocava cuma só mão; Mas como ele mesmo disse, Cantando com perfeição, Para cantar afinado, Para cantar com paixão, A força não está no braço: Ela está no coração. Ou puxando uma sextilha, Ou uma oitava em quadrão, Quer a rima fosse em inha Quer a rima fosse em ão, Caíam rimas do céu, Saltavam rimas do chão! Tudo muito bem medido No galope do sertão. A Eneida estava boba, O Cavalcanti bobão, O Lúcio, o Renato Almeida; Enfim, toda a Comissão. Saí dali convencido Que não sou poeta não; Que poeta é quem inventa Em boa improvisação,Como faz Dimas Batista

E Otacílio, seu irmão; Como faz qualquer violeiro, Bom cantador do sertão, A todos os quais, humilde, Mando a minha saudação.

Otacílio Batista chegou a varar noites em porfia com grandes cantadores, como o legendário Zé Limeira (1886-1954).

Não conheci Limeira. Eu tinha dois anos de idade quando ele morreu cantando numa roda de violeiros.

O escritor José Américo de Almeida (1887-1980), sim, o conheceu de perto.

Zé Américo, criador do romance regio-nalista (A Bagaceira) e político respeitado e famoso – chegou a ser ministro de Getúlio Vargas e governador da Paraíba, além de personagem do próprio Limeira –, instiga-do pelo jornalista e escritor campinense Orlando Tejo, à guisa de prefácio ao livro O poeta do absurdo, escreveu dizendo, entre outras coisas, que Zé Limeira era “andarilho de sete fôlegos” e “meio carnavalesco”, que “usava roupa de mescla com um lenço encarnado no pescoço”. E, num detalhe,

arrematou: “Seus dedos eram grossos de anéis”. Quinze, para ser exato.

Átila Augusto F. de Almeida e José Alves Sobrinho definem num verbete do Dicionário Bio-Bibliográfico de Re-pentistas e Poetas de Bancada (Editora Uni-versitária/João Pessoa e Centro de Ciências e Tecnologia/Campina Grande, 1978), à página 166, que “Limeira era infenso ao deboche, ao emprego de termos chulos, à imoralidade”. E o des-crevem como tendo sido “alto, preto, de dentadura perfeita, viola enfeitada, boa rima, boa métrica, pouca concatenação lógica nos versos”.

Os dois garantem que a Zé Limeira são atribuídos versos que não fez, e que se acham no livro O poeta do absurdo. E apresentam exemplos, como este de José Pedro de Gouveia, que pode ser conferido à página 110 de Repentistas e Glosadores

(Poesia Popular do Nordeste Brasileiro), de Francisco Coutinho Filho, publicado de modo independente no ano de 1937:

José Pedro de GouveiaCantor de força vulcânicaProdologicadamenteCantor sem nenhuma pânica Só não pode apreciá-loPessoa servergonônica

Outra sextilha do mesmo Pedro, em resposta à pergunta de um padre de São José do Egito (PE) sobre se era coveiro ou cantador, se acha no livro de Coutinho Filho, à página 111:

José Pedro de GouveiaCantor que não é pilhéricoTem sofrido de alguns malesFoi atacado de histérico Chame logo a junta médicaFaça o exame cadavérico!

O tipo costumava andar armado de faca-peixeira e pistola e uma viola pen-durada às costas.

Zé limeira foi poeta provocador, de voca-bulário inovador e raro. Ele não rebuscava palavras para se expressar; ele as inventava quando lhe fugiam.

Limeira fez escola e não há ainda hoje, entre os cantadores, quem não conheça a sua fama e seus repentes. Prova disso é o mote heptassílabo “Eu querendo também

faço/Igualzinho a Zé Limeira”, aqui exem-plificado por Clodomiro Paes numa noite de cantoria na capital paulista, em 1995, durante peleja com Otacílio Batista:

São Paulo virou sertãoDoutor analfabetoPadre virou atletaNa primeira comunhão Eu abracei o trovãoSão Paulo deu uma carreiraAna Nery foi enfermeiraQue se criou no meu braçoEu querendo também façoDo jeito de Zé Limeira.

Zé Limeira, segundo a lenda, cantava direitinho, igualzinho a todo mundo; só que diferentemente na forma e no conteúdo de tudo o que se cantava até então. Os seus versos eram ousados e quase sempre des-conjuntados, sem sentido lógico, escalafo-béticos, como ele próprio haveria de dizer.

Otacílio Batista cantou muitas vezes

com ele, mas detestava fazer isso; fazia por insistência do público, que gostava de ver os dois em desafio. No dizer de Otacílio, Limeira “fazia versos sem pé nem cabeça”, embora perfeitamente dentro da métrica e rima: “Ele esculhambava era com a oração”.

Um exemplo:

Eu me chamo Zé LimeiraCantador qui num é toloSei tirar coro de bode Sei impaiolar tijoloSô o cantador milhor Qui a Paraíba criou-lo.

Outro exemplo, esse que tem por mote o escritor Zé Américo, que dizia ser Limeira “um negro forte e alto, parrudo, dono de bela voz que igual nunca existiu”:

Zé Américo foi princesoNo trono da monaiquiaDe pareia cum SansãoQui guvernava a BahiaViajaro pra SapéButaro lá um café Só pra vender melancia.

O cientista Paulo Vanzolini, também au-tor de clássicos da música brasileira, como Ronda e Volta por cima, é um apaixonado pelos versos do estrambótico cantador paraibano. Para ele, “Limeira é o maior”. E declama, antes de cair numa risada:

O velho Tomé de Souza Governador da Bahia Casou-se e no mesmo dia Passou a pica na esposa Ele fez que nem a raposa Comeu na frente e atrás

Chegou na beira do cais Onde o navio trefega Comeu o padre Nobrega Os tempos não voltam mais.

E a seu modo, em sextilhas próprias, versifica em autoapresentação:

Eu sou Paulo VanzoliniAnimal de muita fama Que tanto corre no secoComo na vage de lamaMas quando o marido chegaCorre pra debaixo da cama

Outro apaixonado por Limeira é o repen-tista anarquista – e cordelista –, dos bons, Allan Sales, autor destes versos ao modo limeriano:

Zé Limeira viu Sayad Certo dia vendo Ensaio Disse sim é do caraio Quando viu sua cumade Pois Sayad virou pade Mas sem ganhar bom salaro Mas andava de camaro

Assis e Paulo Vanzolini

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Do timão usando um gorro Não precisa ser cachorro Para dar valor ao Faro.

O cantador repentista passeia com de-senvoltura pela arte da literatura de cordel, ao contrário do cordelista – que não domi-na a arte da improvisação ao som da viola.

Foram dois os pioneiros na publicação de versos em folhetos de cordel, no Brasil: Silvino Pirauá de Lima (1848-1913) e Lean-dro Gomes de Barros (1865-1918), ambos paraibanos. Os dois disputavam a chancela de Rei do Cordel.

No domingo 8 de outubro de 1995, no pro-grama Flor da Terra, apresentado ao vivo pelo mineiro Téo Azevedo na extinta rádio Atual, o repentista pernambucano José Saturnino dos Santos, mais conhecido por Andorinha, explica em versos de improviso a diferença entre o cantador e poeta de bancada:

Do cordel para o repenteÉ diferente o traçado

Porque o cordel é escritoE o repente é improvisado O cordel tem de ser lidoE o repente, cantado.

O seu parceiro Sebastião Marinho, da Paraíba, na mesma ocasião emendou:

Repentista RespeitadoNarra, canta e profetizaGera mito, cria leiForma lenda e faz pesquisaCantador faz tudo isso Inda canta e improvisa.

Repentista em beira-marCanta oceanos e ilhasCordelista narra em verso O tratado de TordesilhasEm décimas e decassílabosSete linhas e sextilhas.

Patativa do Assaré, de batismo Antônio Gonçalves da Silva (1909-2002), desen-volveu boa parte da sua obra em versos

próprios de folheto de cordel. Bom que se diga que antes de ele enveredar pela literatura de cordel, foi cantador repentista citado em livros de José Carvalho de Brito (O matuto cearense e o caboclo do Pará) e Luís da Câmara Cascudo (Vaqueiros e can-tadores), nos 1930.

Em 1997, o Memorial da América Lati-na acolheu o 1º Campeonato Brasileiro de Poetas Repentistas. Desse campeonato, presidido por mim e vencido por Oli-

veira de Panelas, participaram 108 profissionais do improviso ao som de violas de várias partes do Nordeste (confira em http://migre.me/c9eyE). A banca julgado-ra foi constituída por especialistas do naipe de Diniz Vitorino, Mocinha

de Passira e Siba (ex-mestre Ambrósio), o escritor e tradutor Luís Avelima, os jorna-listas José Nêumanne Pinto, Luís Nassif, Audálio Dantas e Fernando Coelho; o brincante Antônio Nóbrega, o novelista Benedito Ruy Barbosa, o senador Ronaldo Cunha Lima (1936-2012) e o produtor mu-sical Marcus Vinicius, representando o selo CPC/Umes, que lançaria um álbum duplo registrando o melhor do melhor apresen-tado no campeonato.

A música brasileira está recheada de bons versos de repentistas e cordelistas.

Dentre os cantores/compositores mais afinados com o repentismo se acha Zé Ramalho, autor com Otacílio Batista de Mu-lher nova, bonita e carinhosa/Faz o homem gemer sem sentir dor, lançada em disco LP por Amelinha, em 1982 (ouça em http://migre.me/c9eWk).

Zé Ramalho é um apaixonado por de-cassílabos, o que pode ser constatado em http://migre.me/c9f4j.

Assis, com Patativa do Assaré

CD 1º Campeonato Brasileiro de Poetas Repentistas

Jurados: Mocinha de Passira (esq.), Luís Avelima, Siba, José Nêumanne, Diniz Vitorino, Assis, Marcus Vinicius, Ronaldo Cunha Lima, Benedito Ruy Barbosa, Luís Nassif, Audálio dantas, Fernando Coelho e Antônio Nóbrega.

BibliografiaÉ riquíssima a poesia popular brasileira. E são muitos os poetas

iletrados ou semiletrados que criam verdadeiras obras-primas como Juvenal Galeno, Zé da Luz, Patativa do Assaré, Renato Caldas, Chico Nunes das Alagoas, Alberto Porfírio, Pedro Bandeira – criador

da Missa do vaqueiro, com Luiz Gonzaga e padre João Câncio – e tantos e tantos; uns repen-tistas, como Ernesto Limeira, Agostinho Lopes, Antônio Ma-rinho e José Bernardino; outros não, como Juca da Angélica.

Juca nasceu em Patos de Minas e foi batizado com o nome cristão de José Joaquim de Sousa, em 1918. Ele ainda está lúcido e produzindo belos versos como estes, sob o título Eu queria ter um peito:

Eu queria ter um peito Forgado como um salão, Brilhando de oro e prata, Cheinho de inspiração, Qui quando eu desse um suspiro Caísse verso no chão.

Quiria qui os meus verso Andasse pelos caminho, Consolano os infilizes E dano pão os pobrezi-nho.

E como fazia Patati-va do Assaré, Juca da Angélica compõe cere-bralmente e guarda na memória todos os seus poemas, que se fosse declamá-los de uma vez passava dias e dias.

Encantado, o violeiro Saulo Alves, também de Minas, acaba de musicar uma pérola de Juca, Meu amor é uma garça:

Meu amor é uma garça na beirada da lagoaDe longe ela é mansinhaChega de perto ela avoaNa igreja ela não vaiNóis tá namorando à toa.

Assis, com Pedro Bandeira, um dos mais importantes repentistas do Brasil (cantou até para o papa João Paulo II)

Ernesto Limeira, Agostinho Lopes, Antônio Marinho e José Bernardino

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Carnavalesco, irônico, ele cantava disparates, distorcia a História e suas personagens,

desnorteava os ouvintes

(íntegra da reportagem publicada na edição de 5/12/1977 do jornal Movimento)

Assis Ângelo

“Sou nego um bocado esbagaçado, Sou o vate da glória desta terra,Sou a febre que chama berra - berra.Mastigando, eu sou cobra de veado, Sou jumento por fora do cercado,Sou tabefe que deram em seu Lameu;Se tiver bom guardado bote n’eu.Seu caminho de bonde ruim, estreito,Você hoje me paga o que tem feitoCom os poetas mais fracos do que eu”

Zé, José Limeira, cantador de voz trove-jante, nascido em fins do século passado nas serras do Teixeira (Paraíba); caboclo for-te, troncudo, “macho até debaixo d’água”; ora malicioso, ora ingênuo, de um lirismo rudimentar (“No dia qu’eu me zangar, mato você de carinho”), hoje está morto. Seus ditos, porém, feitos de repente, ao som da viola e em noites claras de luar, permanecem bem vivos na memória do

Zé Limeira:“O cantador melhor que a Paraíba criou-lo”

povo simples do sertão, do Nordeste: “Sou o cantador melhor/que a Paraíba criou-lo”. No gênero, ninguém jamais duvidou.

José Américo de Almeida fala dele: “Esse José Limeira, chamado o poeta do Absurdo, era doido ou um vidente. A figura humana encarnava um misto de excentricidade e simpatia. Alto, forte, sorridente, impressio-nava pelo físico e maneiras destabocadas. Andarilho de sete fôlegos, trazia o matulão a tiracolo e não largava a bengala de aro-eira, feita um bordão. Meio carnavalesco, usava roupa de mescla com um lenço encarnado no pescoço. Seus dedos eram

grossos de anéis. Cantando, com uma bonita voz, erguia, desdenhoso, o rosto guarnecido de grandes óculos escuros”.

A cantoria, ato de versejar de improviso, peleja entre dois ou mais poetas, também polêmica rimada e metrificada, surgiu nos primeiros anos do século XIX em Teixeira, município paraibano a 70 quilômetros da Capital. O primeiro expoente dessa nova arte foi Francisco Romano Caluete, o Ro-mano da Mãe D’Água.

“São os titulares da cantoria os mais autênticos representantes de todos os bardos, dizendo pelo canto improvisado,

com admirável talento, a crônica dos vultos renomados da região em que labutam, os acontecimentos históricos, os fatos sociais recentes, em desafios que duram noites in-teiras”, diz o escritor Orlando Tejo, autor de um livro sobre José Limeira, e acrescenta o folclorista Câmara Cascudo: “Os cantadores independem das cidades e dos cultos; vi-vem no ambiente limitado, zona de confor-

to restrita, mas real, para uma existência fabulosa de miséria e de encanto intelectual inconsciente”.

Limeira, até hoje, tal-vez tenha sido o mais inconsciente de todos os poetas. Ele cantava disparates, os mais inima-gináveis; desnorteava os cantadores que ousavam desafiá-lo:

Peço licença ao trulisoDos olbus da periféria,Dos chuás das pontulínias,Dos chomotos das matérias,Das grotas dos veluais,Das mimosas deletérias.

Seu estilo individualíssimo jamais foi confundido ou imitado por poeta algum; primava pela distorção histórica, dava vida a paus e pedras, fazia o papa comer grama, lutar boxe ou beber cachaça consigo num boteco:

Quando Jesus veio ao mundoFoi só pra fazer justiçaCom treze anos de idadeDiscutiu com a doutoriça;Com trinta anos depoisSentou praça na polícia.

Embora inegável o talento de José Limeira, somente agora o poeta começa a ser descoberto. Há dois anos, em João Pessoa (Paraíba), o teatrólogo José Bezerra Filho conseguiu lotar, por vários meses, as dependências do Teatro Santa Rosa, a principal casa de espetáculos da Capital paraibana, com a peça “Zé Limeira, o Po-eta do Absurdo”. Alguns compositores e intérpretes da música popular brasileira, também começam a se interessar pelo cantador do Teixeira. “Mas é de se crer que só o tempo poderá definir José Limeira, posto que até agora ninguém o situou bem, pondo-o no lugar de destaque que sempre mereceu”, diz Tejo.

Um contista pernambucano, Hugo Pinotti, classificou Limeira como sendo “um poeta rústico abstracionista”. Em Recife, um crítico escreveu num jornal: “O estilo desse cantador é nítido-abstracional-

-impressionista”. E outro disse: “José Limeira é um surrealista, ultra-sincretista e futurista nitidista”, que não se sabe o que venha a ser esta estranha definição. O fato é que há interesse em torno do autor destes versos.

Eu sou um nego moderno:Foi não foi, estou pensando.

E destes:Eu e o mestre da festaCanto até ficar de dia.Na terra só tem tristeza,No céu só tem alegriaSe um dia eu fosse chamadoPra cantar no céu, eu ia.

Para o escritor Orlando Tejo, o bom cantador, a rigor, “é aquele que, além de deter necessárias virtudes artísticas, valor intrínseco, prima pelo ritmo do verso, pela

riqueza da música, não esquecendo o nexo das palavras e esmaltando, com as cores dos sons, os mais deslumbrantes cenários

do sonho”. E José Limeira, segundo o teste-munho da época, foi um músico excelente. Dizem que a música natural dos seus ines-perados e fabulosos repentes teria sido um prêmio da natureza para compensar a permanente ausência de sentido poético.

“José Limeira tinha a música tão em si, tão sua, que essa sensibilidade foi uma constante em todos os seus movimentos de aedo inculto”, diz Tejo, e acrescenta: “Não é que ele – Limeira – se preocupasse com essa faceta da poesia, porque talvez haja desaparecido sem saber que foi antes de tudo músico. Todo músico. E isso não deixa de ser uma positiva qualidade poética, pois o elemento pode ser poeta sem ser músico e vice-versa, mas não será bom. A sonori-dade que transbordava na verve do Poeta do Absurdo é um requisito quase ausente na maioria dos poetas de viola, embora eles não aceitem, de bom grado, a realidade Nordeste: cordel, repente, canção – por J. Borges

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Expediente – Jornalistas&Cia Especial Memórias da Cultura Popular é uma publicação mensal da Jornalistas Editora Ltda. (Tel. 11-3861-5280) em parceria com o Instituto Memória Brasil • Diretor: Eduardo Ribeiro ([email protected]) • Produção do conteúdo: Assis Ângelo ([email protected]) • Editor-executivo: Wilson Baroncelli ([email protected]) • Diagramação e Progra-mação visual: Paulo Sant’Ana ([email protected]). É permitida a reprodução desde que citada a fonte.

desta observação (...) Indubitavelmente, falta à maioria dos nossos cantadores o senso de responsabilidade artística que os leve a penetrar no âmago da técnica, para a plenitude do canto. Esse pecado Limeira não cometeu, em toda sua vasta e intensa trajetória de nômade da viola. E é por força do talento musical que ele poderá fixar-se no próprio tempo, eternizando toda uma obra divinamente aberratória”.

Em 1951, no então distrito campinense (Paraíba) de Lagoa Seca, durante uma cantoria, Limeira criou termos até hoje ainda desconhecidos: Filosomia, Filanlumia, Pilogamia etc..

A santa filosomiaDescreve os peixes do mar,As sereias do sertão,Mula preta e mangangá,Mulher de saia rendada,Moça branca misturada,Carro de boi jatobá.

Zé Limeira, quando canta,Credo em cruz, Ave Maria.Canto debaixo da terraNa santa filanlumia,Nos arrecife ou na roca.Três mulher de perna grossa,Três bigode, três luzia.

Eu sou corisco pastando No vergel da ventania, Oceano desdobradoNo véu da pilogamia.No dia trinta de maioPelei trinta papagaio;Santo Deus, Ave Maria.

José Limeira jamais se utilizou de qual-quer meio de transporte para chegar ao Rio Grande do Norte, atravessar a Paraíba – do litoral ao sertão, do agreste ao curimataú –, Ceará ou Alagoas. E quando alguém sugeria um Jeep, uma camioneta ou mesmo um carro de boi para leva-lo aonde pretendia, ele simplesmente dizia: “Oxente, mestre,

precisa não; os pé foi feito pra carregar a gente”. Dito isso, saia a pé, sempre a pé, com o inseparável matulão surrado a tiracolo, cheio de mantimentos e quinquilharias; a viola às costas, uma velha espingarda de dois canos nas mãos e muita vontade e disposição para cantar. Dessa forma, caminhou até os 68 anos. E morreu como quis: cantando.

Após muitos meses de andanças, Limei-ra voltava para casa, no dia 23 de dezembro de 1954 – data do aniversário da esposa, Bela. À noite, um poeta alagoano – Bentevi –, que se encontrava pelas redondezas, o desafiou para uma cantoria. Imediata-mente, a notícia espalhou-se: Zé Limeira ia cantar. A casa encheu-se de gente, e os violeiros começaram. Lá para as tantas da

madrugada, ocorreu o imprevisto maior: Limeira, com os seus quinze anéis reluzindo ao luar, quando findava uma estrofe do beira mar, a viola escorregou de suas mãos e ele deslizou devagar da cadeira onde estava, morto de repente, num repente.

“Se um dia eu fosse chamado prá cantar no céu, eu ia”

E foi. Mas os seus versos ficaram:

Peço licença ao prugiloDos quelés da juvenia, Dos tolfos, dos aldiácos,Da baixa da silencia,Do genuíno da Biblia, Do grau da grodofobia.

E réplicas de parceiros famosos, como Arrudinha da Paraíba:

Eu jamais ouvi falarNessa tal de juvenia,Nem tampou em aldiácosDessa sua silencia.Limeira, me fale sério:Que diabo é grodofobia?

E ele “explicava”:

O Mestre ainda não sabiaQue Jesus grodofobou?Apois fique conhecendoQue Limeira prugilouE o cipó de seu PereiraTambém já juvenciou!

Você sabia?Que o jornalista e estudioso da cul-

tura popular Assis Ângelo é presidente do Instituto Memória Brasil, criado em 2011 para preservar e divulgar o seu acervo?

Que o acervo do Instituto Memória Brasil abriga mais de 150 mil itens, entre discos de todos os formatos, partituras, fotos, livros, jornais e revis-tas antigas?

Que saiu do acervo do Instituto Memória Brasil a exposição multimí-dia Roteiro Musical da Cidade de São Paulo, que o Sesc Santana instalou na sua área de Convivência II?

Que o acervo do Instituto Memória Brasil vem sendo formado há 40 anos e que nele há peças raríssimas que seu presidente, Assis Ângelo, adquire nas viagens que faz pelo País e Exterior?

Que o Instituto Memória Brasil, por meio de seu presidente Assis Ângelo, cedeu informações e material sobre o Rei do Baião para o documentário e filme Gonzaga, de Pai pra filho?

Zé Limeira na literatura de cordel