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Espiritualidade e missão: perspectivas para uma espiritualidade missionária na América Latina Vitor Hugo Lourenço * Introdução Ao pensarmos em espiritualidade e espiritualidade missionária, de modo especial no contexto latino-americano, tão diverso e plural, somos chamados a compreender que tais conceitos não estão limitados à religião cristã, mas pelo contrário, estão sendo cada vez mais usados além dos círculos explicitamente religiosos. Como resultado, há tentativas de definir espiritualidade genericamente. Essas conceituações buscam transcender as suposições de tradições religiosas específicas. Sabemos que é claramente proveitoso chegar a alguma definição bastante geral para o propósito do diálogo inter-religioso, conversações entre credos e disciplinas, entretanto, as definições globais e genéricas tem graves limitações, tendo em vista que, o modo que entendemos tal conceito é, em última análise, dependente de perspectivas religiosas bastante específicas. Em termos cristãos, espiritualidade diz respeito a como as pessoas se apropriam de modo subjetivo de crenças tradicionais sobre Deus, a pessoa humana, a criação e seu inter- relacionamento, e então as expressam na oração, nos valores elementares e no estilo de vida. Assim, a espiritualidade é o todo da vida humana, visto em termos de uma relação consciente com Deus, em Jesus Cristo, por meio da morada interior do Espírito, dentro da comunidade dos fieis, da vida em sociedade. Tendo então como referência, a Espiritualidade vista como uma experiência de Deus vivida em comunidade sob o impulso do Espírito, o presente artigo traz em seu bojo a proposta de aprofundar um pouco mais sobre a Espiritualidade Missionária, seus principais conceitos, seus desdobramentos, seus desafios históricos e contemporâneos, à luz da caminhada de fé expressa na América Latina, condensada no Documento de Aparecida, * Doutorando em Teologia – PUCPR – Curitiba /PR. E-mail: [email protected]

Espiritualidade e missão: perspectivas para uma ... · Evangelização na América Latina. Como fruto do artigo, ao seu término proporemos algumas ... mero fato, descobre que o

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Espiritualidade e missão: perspectivas para uma espiritualidade missionária na

América Latina

Vitor Hugo Lourenço*

Introdução

Ao pensarmos em espiritualidade e espiritualidade missionária, de modo especial no

contexto latino-americano, tão diverso e plural, somos chamados a compreender que tais

conceitos não estão limitados à religião cristã, mas pelo contrário, estão sendo cada vez mais

usados além dos círculos explicitamente religiosos. Como resultado, há tentativas de definir

espiritualidade genericamente. Essas conceituações buscam transcender as suposições de

tradições religiosas específicas.

Sabemos que é claramente proveitoso chegar a alguma definição bastante geral para

o propósito do diálogo inter-religioso, conversações entre credos e disciplinas, entretanto, as

definições globais e genéricas tem graves limitações, tendo em vista que, o modo que

entendemos tal conceito é, em última análise, dependente de perspectivas religiosas

bastante específicas.

Em termos cristãos, espiritualidade diz respeito a como as pessoas se apropriam de

modo subjetivo de crenças tradicionais sobre Deus, a pessoa humana, a criação e seu inter-

relacionamento, e então as expressam na oração, nos valores elementares e no estilo de

vida. Assim, a espiritualidade é o todo da vida humana, visto em termos de uma relação

consciente com Deus, em Jesus Cristo, por meio da morada interior do Espírito, dentro da

comunidade dos fieis, da vida em sociedade.

Tendo então como referência, a Espiritualidade vista como uma experiência de Deus

vivida em comunidade sob o impulso do Espírito, o presente artigo traz em seu bojo a

proposta de aprofundar um pouco mais sobre a Espiritualidade Missionária, seus principais

conceitos, seus desdobramentos, seus desafios históricos e contemporâneos, à luz da

caminhada de fé expressa na América Latina, condensada no Documento de Aparecida,

* Doutorando em Teologia – PUCPR – Curitiba /PR. E-mail: [email protected]

oferecendo assim, perspectivas para a sua vivência principalmente em meio a tantos

crucificados do tempo presente.

Para tal empreendimento, sem pretensão de esgotar o tema, passaremos

primeiramente pelo conceito de Espiritualidade e Espiritualidade Missionária, vistos de

modo geral, em seguida, pela Espiritualidade Missionária sintetizada e compreendida pelo

Documento de Aparecida, bem como, os seus desdobramentos durante a história da

Evangelização na América Latina. Como fruto do artigo, ao seu término proporemos algumas

perspectivas para o anúncio e o testemunho da fé, tendo sempre como ponto de partida a

ação evangelizadora e a proposta de uma Espiritualidade Missionária de rosto Ameríndio.

1. Compreendendo o conceito de espiritualidade

A palavra espiritualidade tem uma linhagem relativamente curta e foi confinada, até

pouco tempo (séc. XVI), aos círculos católicos romanos e anglicanos. O que ela procura

descrever mudou de forma no decorrer dos séculos, seja sutil, seja substancialmente, na

medida em que os entendimentos de Deus, das igrejas e da pessoa humana evoluíram em

diferentes contextos.

Mais significativamente, em décadas recentes houve uma mudança de paradigma no

método teológico que teve efeitos importantes sobre como é entendida a espiritualidade.

Antes, a teologia era predominantemente analítica, lógica, dedutiva em sua abordagem,

com um estável corpo de conhecimentos, rica em tradição e preparada para responder a

todas as perguntas a partir uma posição apriorística. As abordagens à “vida espiritual”

eram similarmente estruturadas e separadas da vivência concreta (SHELDRAKE, 2005, p.

53).

No entanto, uma reflexão maior sobre a experiência humana, como um autêntico

ponto de partida teológico, encorajou um movimento de afastamento dos entendimentos

estáticos da vida cristã. Ao mesmo tempo em que houve avanços no pensamento teológico,

numa perspectiva mais indutiva e vivencial, a espiritualidade tornou-se algo mais próximo de

uma tensão dialética. A Revelação, a Tradição e o acesso do povo ao Evangelho levaram a

espiritualidade a uma hermenêutica de acordo com as realidades socioculturais.

A espiritualidade, como vivência, caracteriza o seguimento de Jesus, próprio do

cristão, enquanto entrega do coração a Deus. Opera na fronteira entra a experiência

religiosa e a tradição herdada. Em princípio, subordinava-se a experiência à tradição.

Contudo, a espiritualidade, antes de tudo, está incorporada nas pessoas, e não somente na

doutrina, ela parte de vivências e não de ideias abstratas (LIBÂNIO; MURAD, 1996, p. 232).

Além da tensão em definir a espiritualidade por conta dos entraves entre a

experiência “subjetiva” e a tradição “objetiva”, é que ela não é mais um fenômeno singular e

sim transcultural. Antes, estava enraizada nas experiências humanas de Deus enquadradas

de maneiras específicas, localizadas no cristianismo. Presentemente, ela ultrapassa até

mesmo as religiões e suas herméticas instituições. A espiritualidade identifica-se com

aqueles e aquelas que têm sede de Deus.

2. Espiritualidade como uma experiência de Deus

Na gênese da espiritualidade cristã está, pois, o relacionamento pessoal com Jesus, o

Deus que se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14), seu seguimento no Espírito. Enviado do

Pai, Jesus, como verdadeiro homem, vem até nós no seu Espírito, por meio dele nos introduz

na comunhão de conhecimento e de amor que é o próprio Deus, o Mistério que celebramos

(CATÃO, 2010, p. 92).

Constatamos hoje que depois de todas as implicações do modernismo, do

cientificismo, do materialismo, entre outros “ismos”, há uma grande busca por uma

experiência de Deus, não tão pautada em grandes tratados espirituais e casuísticos, não que

estes não tenham importância, mas uma experiência, um relacionar-se que fale diretamente

a vida e aos seus desafios cotidianos e concretos.

Saturado por inúmeros discursos e por palavras em demasia no campo da política, da

religião e até mesmo da fé, a pessoa de hoje, o cristão, sente a exigência e a necessidade de

crer e experimentar somente o que possa ser constatado em sua própria vida e na vida dos

que o rodeiam. Influenciado pelas ciências naturais a permanecer constantemente no reino

de uma experiência empírica, assume agora instintivamente uma postura de desconfiança

frente a construções ideológicas destituídas de bases fáticas (GOFFI; DE FIORES, 1989, p.

349).

Consciente da dimensão histórica e salvífica da Revelação bíblica, o cristão que busca

uma experiência de Deus adapta-se a uma ortopráxis como à medida de sua própria adesão

da Palavra de Deus. Distinto do período da cristandade, onde a fé era um fato coletivo, o

cristão hodierno não mais condicionado por essa visão eclesiológica, vive a sua convicção de

fé, sua experiência pessoal. Assim sendo, passando de uma experiência coletiva para uma

experiência pessoal de Deus, esbarramos na reflexão de Karl Rahner, de que “O Cristão do

futuro ou será místico, aquele ou aquela que faz uma experiência de Deus, ou não será

cristão”, a fé como fato coletivo e institucional já não diz muito à nossa sociedade.

A presença de Deus na história, revelando-se como esperança e sentido na de

homens e mulheres, se torna, pois o imperativo para uma nova experiência religiosa e

mística, entendida e baseada como encontro e comunhão com o divino. A fé nesse contexto

não é uma árida abstração, uma ideia, mas algo que nos conecta com o todo da vida, que faz

essa mesma vida se tornar mais saborosa, gerando assim, compromisso com o outro,

testemunho e missão.

Quando fazemos uma rica experiência de Deus, cultivamos uma espiritualidade que

nos faz ser pessoas, filhos e filhas de Deus, ou seja, encontramos uma luz que nos ilumina

frente aos desafios da vida, precisamos comunicá-la, nasce aqui, uma espiritualidade

missionária, uma espiritualidade que caracteriza todo cristão que inebriado e cheio de Deus

sai a transbordar, anunciar, as maravilhas do Reino a todos os cantos da terra (Mc 16,15).

3. Espiritualidade como uma opção pela vida

A espiritualidade para além das instituições religiosas está vinculada a uma busca

profunda de Deus expressa no apreço de melhor servir a este Deus fazendo uma consciente

opção pela vida e tudo aquilo que a compõe. Destaca o teólogo:

O desejo de Deus é a expressão concreta da capacidade que o ser humano tem de

conhecer e amar a Deus, mesmo naqueles que não o reconheçam explicitamente. Como

tal, esse desejo está na raiz de toda espiritualidade humana (CATÃO, 2010, p. 19).

Superada a mentalidade estreita que fazia da espiritualidade monopólio dos cristãos

ou até de determinada categoria deles. Recentemente, julga-se que a espiritualidade deve

ser atribuída a todo ser humano que esteja aberto ao Mistério e viva segundo suas

verdadeiras dimensões.

A espiritualidade é encarada dentro da perspectiva antropológica; é prerrogativa das

pessoas autênticas que, diante do ideal e da história, constataram uma escolha axiológica

decisiva, fundamental e unificante, capaz de dar sentido à existência. Do ponto de vista

cristão é a coincidência do espírito humano com o Espírito divino.

A reflexão humanística de nosso tempo, superando o positivismo, que reduzia o homem a

mero fato, descobre que o ser humano nunca é puro ser, pois sempre implica um

significado. O homem não se resigna a uma vida carente de sentido, por que nele aflora o

antigo problema da filosofia: “Saber se a vida merece ou não ser vivida” (A. Camus).

Embora sua inserção na família e seus compromissos profissionais lhe permitam realizar

uma dimensão significativa, o homem busca o sentido global da vida, e não apenas o

sentido parcial das diversas ações particulares (GOFFI; DE FIORES, 1989, p. 347).

Em um mundo fragmentado, pela violação dos direitos humanos, violência,

consumismo, e especialmente pelo relativismo de valores éticos e morais, como a fé e o

altruísmo, somos provocados a fazer perguntas sobre o fim último do Homem, recuperar a

sua dimensão mais profunda, descartada pelo “horizontalismo moderno”, orientado para a

conquista do espaço e a dominação do mundo. Em contrapartida a esse modelo, o “Ser

religioso”, significa amar, andar apaixonadamente em busca do sentido da vida e manter-se

aberto também às respostas que podem comover profundamente (MONDONI, 2000, p. 87).

A vida encontra sua consistência definitiva na direção daquela misteriosa realidade

que está na origem de toda existência como dom: o Deus criador que, através de sua própria

existência dirige aos homens e as mulheres o convite para buscarem a comunhão, a

liberdade e a vida pessoal eterna, que se dá no encontro consigo, com o outro e com Deus.

4. Espiritualidade que leva à missão

A atividade missionária, o comunicar a ação de Deus em nossa vida e na história,

exige uma espiritualidade própria, que diz respeito de modo particular à missão que

recebemos do Altíssimo, o chamado específico que Ele faz a cada um de nós, sermos seus

discípulos e missionários.

A cerca da compreensão sobre a natureza da espiritualidade missionária, a Encíclica

Redemptoris Missio (87-91) nos fala que a mesma se dá e se fundamenta na medida em que

nos deixamos conduzir pelo Espírito, viver segundo o mistério de “Cristo enviado”, amar a

Igreja e aos homens como o próprio Cristo amou, buscando a santidade a partir de nossa

vida, vocação e testemunho.

Tomando também como ponto de referência para a espiritualidade missionária a vida

de Cristo, o Decreto Ad gentes (24), no apresenta a compreensão de que frente ao

chamamento de Deus, o homem deve responder entregando à sua vida à obra do

Evangelho, uma resposta dada por impulso e virtude do Espírito Santo. O enviado entra,

portanto, na vida e missão d’aquele que “a si mesmo se aniquilou tomando a forma de

servo” (Fl 2,7). Por conseguinte, deve estar pronto a perseverar a vida na vocação, a

renunciar a si mesmo e a todas as coisas, e fazer-se tudo para todos.

Em contrapartida a uma espiritualidade intimista, etérea, a espiritualidade

missionária iluminada pelo Magistério da Igreja e por nossa experiência latino-americana,

inspira-se como vimos no caminho histórico que Jesus seguiu para realizar a sua missão.

Viver tal espiritualidade é viver o valor redentor e libertador da cruz, nunca perdendo de

vista a dimensão da esperança, que brota da Ressurreição do próprio Cristo, a vida que

vence a morte, o amor que vence toda dor.

Alimentados por essa espiritualidade advinda da missão de Cristo, cujo rosto

contemplamos no rosto de tantos crucificados do tempo presente, podemos intuir que a

espiritualidade missionária além do anúncio do Evangelho, se dá também no campo da

solidariedade, no compromisso com o outro, denunciando as estruturas de morte, as

desigualdades sociais, reforçando a comunhão fraterna, constituindo um homem novo, livre,

pessoa e não objeto (LIBANIO; MURAD, 1996, p. 233).

5. A espiritualidade missionária sublinhada em Aparecida

Resultado das reflexões do Episcopado Latino-Americano, a Conferência de

Aparecida (2007) recolhe em suas páginas os principais elementos que compõem nossa

espiritualidade e espiritualidade da missão.

Historicamente em contraposição a uma espiritualidade de “fuga do mundo”, os

cristãos presentes na América Latina buscaram viver e testemunhar a sua fé em sintonia

com os “sinais dos tempos” (GS 1).

Atenta aos clamores de nossa gente e de nossos povos, desenvolve-se uma

espiritualidade missionária que traz no bojo de sua essência a luta pela vida, o combate as

injustiças sociais, a toda forma de violência e opressão, uma nova forma de se relacionar

com Deus e com o próximo, genuinamente latino-americana.

Superando então a compreensão de uma espiritualidade desconectada da realidade,

intimista, dualista e puramente vertical, foi-se tomando consciência que o mundo não é algo

que precisa ser evitado, combatido, mas um “lugar teológico”, de onde e para onde

devemos viver, anunciar, sermos missionários e principalmente testemunhar o Evangelho e

as maravilhas de Deus se preciso for até mesmo com a nossa vida (AG 24).

Paralelo à reflexão agora integral do ser humano e de que a missão se dá no mundo e

para o mundo (Jo 17,16) refloresceu a compreensão histórica, muito presente na Igreja

primitiva (At 4,32) de que o cristão além de fazer uma experiência pessoal de Deus, base de

toda espiritualidade, deveria se comprometer com a justiça, com a partilha dos bens e

principalmente com a transformação das realidades de morte, frutos da injustiça, em

realidades de vida, pautadas no amor, na fraternidade e partilha de bens e de dons.

Desse modo, o cristão, especialmente o latino-americano, depois de um ardoroso e

lento processo de conscientização foi chamado a sair de si, a ir em direção do outro, como

missionário, como aquele que anuncia a partir de sua vida e de sua fé os valores do Reino e

faz de sua existência uma busca do mesmo (Mt 6,33). Em um contexto como o nosso

marcado pela colonização, e exploração de riquezas naturais e de pessoas, para o

comentador abaixo, “Onde há injustiças, desigualdades sociais, políticas, econômicas e

culturais, rejeita-se o dom da paz do Senhor; mais ainda rejeita-se o próprio Senhor” (DE

FIORES, 1999, p. 55).

Iluminado por essa “nova” compreensão sobre a fé, o anúncio evangélico e o

compromisso como os irmãos e irmãs mais necessitados:

O cristão que percebeu a centralidade que ocupa o amor ao próximo, segundo a

mensagem bíblica, não pode alimentar a ilusão de agradar a Deus limitando-se a uma

relação intimista e cultual com ele. Já que conhecer Deus é ratificar a justiça, a conversão

a ele passa pela conversão aos seres humanos que sofrem todo tipo de opressão. É

preciso, pois, sair da indiferença ou da neutralidade e tomar partido abertamente em

favor dos pobres e dos explorados (GOFFI; DE FIORES, 1989, p. 352).

Desse modo, tanto a espiritualidade vista de modo geral, quanto à espiritualidade

missionária passaram a ter o seu lastro na pessoa de Cristo, refletido no irmão, e nas suas

práticas pessoais e comunitárias. O missionário nessa perspectiva “Crística” da

espiritualidade da missão é aquele que trás em sua experiência de fé e caminhada

eclisiológica o mesmo olhar de Jesus, um olhar cheio de compaixão, comprometido com a

promoção da vida, com a comunhão entre os povos, trazendo presente elementos de suas

culturas e tradições, um olhar inclusivo (AG 24,9).

Aos que cultivam uma espiritualidade missionária, uma espiritualidade do anúncio,

seguindo sempre os passos do mestre Jesus, sobrepõe-se ao menos uma dupla tarefa. A

primeira está no campo da denúncia profética. O cristão é aquele que por meio de sua vida

questiona as estruturas de poder, incomoda os que as detém, luta pela igualdade,

desmascara as desigualdades. A segunda tarefa se dá no fato da conscientização dos pobres,

dos fragilizados, convencendo-os a não permanecerem em sua condição, a lutarem por uma

vida digna, emancipando-os em sua consciência, oferecendo-lhes dignidade de pessoa. O

Evangelho deve promover a vida e não acomodá-la (BOFF, 1983, p. 25).

Ao percorrermos a evolução do conceito de espiritualidade a uma espiritualidade

missionária do ponto vista histórico principalmente na América Latina, passamos de uma

espiritualidade quase toda reduzida a uma espécie de intimismo para a compreensão de

uma espiritualidade agora mais pautada no compromisso com o outro e a transformação

social.

Reforçando uma espiritualidade pautada no discipulado missionário de Jesus, frisa

Aparecida:

É necessário formar os discípulos em uma espiritualidade da ação missionária,

que se baseia na docilidade ao impulso do Espírito, a sua potência de vida que mobiliza e

transfigura todas as dimensões da existência. Não é uma experiência que se limita aos

espaços privados da devoção, mas que procura penetrá-lo completamente com seu fogo e

sua vida. O discípulo e missionário, movido pelo estímulo e ardor que provêm do Espírito,

aprende a expressá-lo no trabalho, no diálogo, no serviço e na missão cotidiana (DAp 284).

Contrariamente a uma espiritualidade estática, o texto no exorta e nos chama a vida,

a tudo aquilo que ela pode nos oferecer enquanto desafios e potencialidades. Sob o impulso

do Espírito, o missionário é chamado a contrapor a sua vida, sua experiência de fé com a

Boa-notícia do Reino, dialogar nas mais diversas realidades e instâncias com o mundo a favor

da vida, dar um passo adiante frente à simples e significativa experiência devocional da fé e

da práxis cristã, mas que por muitas vezes pode nos estacionar e nos fechar num certo

comodismo.

Sobre a vocação e a vivência de uma espiritualidade missionária, o texto continua:

Quando o impulso do Espírito impregna e motiva todas as áreas da existência, então

penetra também e configura a vocação específica de cada pessoa. Assim se forma e

desenvolve a espiritualidade própria de presbíteros, de religiosos e religiosas, de pais de

família, de empresários, de catequistas etc. Cada uma das vocações tem um modo

concreto e diferente de viver espiritualidade, que dá profundidade e entusiasmo para o

exercício concreto de suas tarefas. Dessa forma, a vida no Espírito não nos fecha em

intimidade cômoda e fechada, mas sim nos torna pessoas generosas e criativas, felizes no

anúncio e no serviço missionário. Torna-nos comprometidos com os reclamos da realidade

e capazes de encontrar nela profundo significado em tudo o que nos cabe fazer pela Igreja

e pelo mundo (DAp 285).

Como cristãos somos convidados a partir do chamado que Deus nos faz a

transformarmos a realidade onde estamos inseridos. Pelo batismo recebemos uma missão

no seio da Igreja. Sob o impulso do Espírito somos conduzidos até os desafios do tempo

presente, somos interpelados a dar novas respostas, a pensar o nosso espaço e o nosso

papel de sal e luz para todos (Mt 5,13), nosso papel de fermento em meio a massa (Gl 5,9).

Alimentados por essa espiritualidade advinda da missão de Cristo e conduzida pelo

Espírito, podemos dizer que a espiritualidade missionária se concretiza e lança bases entre

outras dimensões, mas, sobretudo, quando buscamos fazer da nossa vida anúncio do Reino

e denúncia de tudo o que vai contra ele, quando proclamamos que a pobreza e fome são

frutos da injustiça e das desigualdades sociais, quando a partir de nosso apostolado

promovemos a constituição de um homem novo, livre de tantas amarras, quando

fortalecemos a solidariedade e o bem comum, em síntese, quando escutamos e nos abrimos

aos apelos da missão (LIBANIO; MURAD, 1996, p. 233).

Após refletirmos sobre a Espiritualidade nos seus conceitos básicos, a luz de sua

evolução histórica no compromisso com o outro, e na sua dimensão de anúncio, passamos a

pensar então em algumas perspectivas para a Espiritualidade Missionária na América Latina

que durante muito tempo fruto do colonialismo e da romanização foi levada a não

considerar elementos de sua cultura e da formação de sua gente. A partir dos apelos de

Aparecida somos convidados a pensar caminhos para uma experiência de Deus, que tenha

fenótipo e genótipo Latinos, que expresse o rosto sofrido, mas cheio de esperança de nosso

povo ameríndio.

6. Perspectivas para a América Latina

A missão é fruto de uma experiência que se vive e do Espírito que sopra onde quer

(Jo, 3,8). É um caminho pessoal e comunitário no seguimento de Cristo, descoberto no

cotidiano da vida, no qual se misturam alegrias e esperanças, certezas e dúvidas, de aspectos

nem sempre fáceis de serem definidos.

A partir das reflexões que fizemos até o presente momento sobre a espiritualidade

podemos intuir algumas perspectivas que podem nos ajudar a viver mais intensamente e

coerentemente segundo o Evangelho uma espiritualidade como o rosto missionário, com os

traços de nossa gente. Entre inúmeras possibilidades e apelos da ação missionária,

destacaremos a importância do diálogo na experiência de fé, da proclamação dos valores do

Reino e da sua justiça, de uma atitude de despojamento e entrega total, da Igreja como

ponto de comunhão e unidade, da pastoral de fronteira frente ao comunismo, por fim, dos

riscos e inseguranças da ação missionária, uma espiritualidade de confiança.

Quando pensamos em América Latina devemos sempre levar em conta a sua

dimensão geográfica, sua história, a formação de seus povos e de suas culturas. Dessa

maneira, mais do que em uma espiritualidade unilateral, somos convidados a pensar em na

espiritualidade a partir do diálogo. Impossível compreendermos uma espiritualidade

missionária de rosto ameríndio sem levar em conta as inumeráveis maneiras de ser, as

visões de mundo, as profissões de fé. Viver hoje a missão é ultrapassar constantemente

fronteiras ideológicas, dogmáticas e econômicas que nos separam, defender a vida, focalizar

em primeiro lugar os valores do Reino e da pessoa humana (PP 12).

Sendo então o diálogo entre povos, culturas e etnias, a tônica de toda evangelização

e experiência pessoal e comunitária de Deus, temos como ponto de partida para a nossa

evangelização e vivência espiritual a promoção dos valores do Reino. A missão de Cristo foi

proclamá-lo e inaugurá-lo entre os homens envolvendo-os. Enviados pelo Senhor nossa

missão é consolidá-lo rompendo até mesmo as fronteiras da Igreja. Somos chamados a

fecundar as suas sementes presentes em toda Criação, promover a sua essência, como a

paz, a solidariedade, a justiça e partilha entre todos, participando de suas alegrias e tristezas,

sempre na solidariedade e na compaixão (GS 1, LG 5).

Somente uma atitude de despojamento nos permitirá dialogar, anunciar os valores

do Reino. Fazemos memória aqui das palavras de Dom Helder, que em um de seus poemas

dizia que a missão “mais do que devorar quilômetros era sair de si, romper a crosta do

egoísmo que está em nós, que fazer darmos voltas em torno de nós mesmos, de nosso

desejo”. Assim, para termos os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 2) somos chamados a

“despir-nos de nossas seguranças”, de termos humildade na missão. O despojamento é

extremamente necessário para captarmos os caminhos do Espírito já presentes na missão.

Despojados de nós mesmos, tendo o Reino como centralidade de nossa missão e

apostolado, levando sempre em conta o outro e as suas riquezas, resta-nos buscar uma

espiritualidade de comunhão, de fraternidade, de bem comum, de ser comunidade. Como

um reflexo da comunhão Trinitária somos chamados a revelar em um mundo marcado por

tantas divisões, discórdias e injustiças, o modo de ser de Deus e o seu projeto de amor para

a humanidade. A Igreja como “sacramento universal de salvação”, um sinal visível desse

amor deve empenhar-se em promover a “família de Deus”. A “Ecclesia”, comunidade dos

fiéis, deve ser a expressão máxima da acolhida e do amor mutuo entre os irmãos (LG 6).

Durante muito tempo a imagem de Cristo, principalmente na Idade Média, ficou

estampada nos palácios e nas cortes. Hoje redescobrimos o rosto de Cristo estampado

naqueles e naquelas que sofrem, os crucificados vítimas da fome, da pobreza e da miséria. O

espaço da luta pelos direitos humanos e por uma vida mais justa e igualitária se tornou um

palco particularmente significativo para a espiritualidade missionária, sobretudo, para uma

espiritualidade encarnada, comprometida com a transformação social, uma mística que

supera nossas “sacristias”, “os muros” da Igreja.

Viver na fronteira é viver na insegurança, “sem uma pedra para recostar a cabeça” (Lc

9, 57) Viver longe de nossos esquemas espirituais que quase sempre nos situam em um

ambiente confortável e protegido, quase sempre devocional. Devemos nos colocar a partir

da realidade dos oprimidos, aonde ninguém que ir, mais do que falar para eles, devemos

falar a partir deles e do seu meio. A espiritualidade precisa caminhar no mesmo passo que a

vida vivida nas “fronteiras”, nos “limites” de nossas cidades, bairros e esquinas.

No tocante, tais fronteiras entre ricos e pobres, uma vida confortável e a simples

sobrevivência, se tornarão cada vez mais um espaço de missão, “um novo areópago”, um

“lugar teológico”. Nesse contexto de controvérsias apenas uma espiritualidade pautada na

simplicidade poderá dar respostas, uma espiritualidade construída a partir do cotidiano,

daquilo que é prosaico, do provisório, na crua realidade dos acontecimentos que se vivem.

“Estar na fronteira” significa também lidar com ambientes hostis ou alérgicos à verdade do

Evangelho, em situações de luta e de improvisação que caracterizam a vida dos pobres,

especialmente dos pobres de nossa latino-américa.

Chegamos ao que parece ser mais difícil enquanto perspectiva para uma

espiritualidade missionária de rosto latino, o enfrentamento das injustiças sociais, a luta

contra toda e qualquer realidade de morte, a inimizade com os poderosos, a coragem de

doar a vida, a espiritualidade vista do ponto de vista do risco, da insegurança, do profetismo.

A essa altura a única segurança daquele que fala por Deus e pelos pequeninos é ao Espírito

que o envia, envio que sempre requer necessariamente o testemunho da fé e dos valores do

reino.

Contudo, o martírio missionário, a vivência da insegurança e do desapego total não

nasce tanto de uma profissão explícita da fé, mas primeiramente da comunhão com os

outros mártires que seguindo o Cristo deram seu exemplo. Devemos sempre fazer memória

do sangue que correu ontem, mas que também continua a correr hoje na vida ceifada de

tantos excluídos de nossa história. Em meio ao “Calvário” hodierno somos chamados a

confrontar a nossa vida com o Evangelho, sermos testemunhas da vida que vence a morte

com a nossa própria vida, com a nossa espiritualidade, relacionamento com Deus e com o

próximo, de modo especial o latino-americano.

Considerações finais

Quando analisamos a caminha histórica da América Latina desde o seu processo de

colonização e dominação com tudo aquilo que decorreu, como a exploração, a violência e

tantas mortes, até o presente momento, percebemos a importância da fé e da

espiritualidade como um significativo pano de fundo na vida de milhares de pessoas, que ao

longo dos séculos encontraram no Transcendente seu sustento e esperança na construção

de sua liberdade, sua emancipação, frente às amarras da submissão política, social e

religiosa que sempre fizeram sangrar nossa terra, chorar de dor nossos povos.

Ao fazermos uma experiência pessoal de Deus, somos chamados a comunicar essa

experiência com a nossa vida, com o nosso testemunho. Em um contexto, marcado por

tantos contrastes, como ricos e pobres, brancos, índios e negros, saciados e famintos, o fiel,

o crente, o cristão, é chamado a ser um sinal de transformação, um promotor dos valores da

vida e do Reino. Impossível compreendermos hoje uma relação com Deus que não nos leve

em direção ao outro, ao que está caído, os crucificados de hoje.

Toda espiritualidade, todo relacionamento com Deus, deve se converter em missão,

em anúncio, em uma espiritualidade missionária. Deixar-se conduzir pelo Espírito é assumir

no seguimento de Jesus o seu projeto de vida: evangelizar promovendo a transformação, a

conversão, levando em conta as mais variadas culturas; proclamar a libertação dos cativos,

do pobre do oprimido, estar a serviço da vida, defendê-la onde está mais ameaçada; ter um

olhar de esperança.

Em síntese, quando refletimos sobre a espiritualidade missionária com um olhar

especial para a América Latina, podemos dizer que essa se dá à medida que nos

relacionamos com Deus e não perdemos de vista o nosso próximo. Fazer a experiência de

Deus nesse contexto de missão é se comprometer com aquele que sofre, é favorecer a

comunhão entre crenças e as mais diferentes culturas, despertar a todos para o dom que

recebemos em nosso batismo, discípulos e missionários de Cristo, a fonte toda

espiritualidade, de modo particular a espiritualidade missionária.

Referências Bibliográficas

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