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Espiritualidade e missão: perspectivas para uma espiritualidade missionária na
América Latina
Vitor Hugo Lourenço*
Introdução
Ao pensarmos em espiritualidade e espiritualidade missionária, de modo especial no
contexto latino-americano, tão diverso e plural, somos chamados a compreender que tais
conceitos não estão limitados à religião cristã, mas pelo contrário, estão sendo cada vez mais
usados além dos círculos explicitamente religiosos. Como resultado, há tentativas de definir
espiritualidade genericamente. Essas conceituações buscam transcender as suposições de
tradições religiosas específicas.
Sabemos que é claramente proveitoso chegar a alguma definição bastante geral para
o propósito do diálogo inter-religioso, conversações entre credos e disciplinas, entretanto, as
definições globais e genéricas tem graves limitações, tendo em vista que, o modo que
entendemos tal conceito é, em última análise, dependente de perspectivas religiosas
bastante específicas.
Em termos cristãos, espiritualidade diz respeito a como as pessoas se apropriam de
modo subjetivo de crenças tradicionais sobre Deus, a pessoa humana, a criação e seu inter-
relacionamento, e então as expressam na oração, nos valores elementares e no estilo de
vida. Assim, a espiritualidade é o todo da vida humana, visto em termos de uma relação
consciente com Deus, em Jesus Cristo, por meio da morada interior do Espírito, dentro da
comunidade dos fieis, da vida em sociedade.
Tendo então como referência, a Espiritualidade vista como uma experiência de Deus
vivida em comunidade sob o impulso do Espírito, o presente artigo traz em seu bojo a
proposta de aprofundar um pouco mais sobre a Espiritualidade Missionária, seus principais
conceitos, seus desdobramentos, seus desafios históricos e contemporâneos, à luz da
caminhada de fé expressa na América Latina, condensada no Documento de Aparecida,
* Doutorando em Teologia – PUCPR – Curitiba /PR. E-mail: [email protected]
oferecendo assim, perspectivas para a sua vivência principalmente em meio a tantos
crucificados do tempo presente.
Para tal empreendimento, sem pretensão de esgotar o tema, passaremos
primeiramente pelo conceito de Espiritualidade e Espiritualidade Missionária, vistos de
modo geral, em seguida, pela Espiritualidade Missionária sintetizada e compreendida pelo
Documento de Aparecida, bem como, os seus desdobramentos durante a história da
Evangelização na América Latina. Como fruto do artigo, ao seu término proporemos algumas
perspectivas para o anúncio e o testemunho da fé, tendo sempre como ponto de partida a
ação evangelizadora e a proposta de uma Espiritualidade Missionária de rosto Ameríndio.
1. Compreendendo o conceito de espiritualidade
A palavra espiritualidade tem uma linhagem relativamente curta e foi confinada, até
pouco tempo (séc. XVI), aos círculos católicos romanos e anglicanos. O que ela procura
descrever mudou de forma no decorrer dos séculos, seja sutil, seja substancialmente, na
medida em que os entendimentos de Deus, das igrejas e da pessoa humana evoluíram em
diferentes contextos.
Mais significativamente, em décadas recentes houve uma mudança de paradigma no
método teológico que teve efeitos importantes sobre como é entendida a espiritualidade.
Antes, a teologia era predominantemente analítica, lógica, dedutiva em sua abordagem,
com um estável corpo de conhecimentos, rica em tradição e preparada para responder a
todas as perguntas a partir uma posição apriorística. As abordagens à “vida espiritual”
eram similarmente estruturadas e separadas da vivência concreta (SHELDRAKE, 2005, p.
53).
No entanto, uma reflexão maior sobre a experiência humana, como um autêntico
ponto de partida teológico, encorajou um movimento de afastamento dos entendimentos
estáticos da vida cristã. Ao mesmo tempo em que houve avanços no pensamento teológico,
numa perspectiva mais indutiva e vivencial, a espiritualidade tornou-se algo mais próximo de
uma tensão dialética. A Revelação, a Tradição e o acesso do povo ao Evangelho levaram a
espiritualidade a uma hermenêutica de acordo com as realidades socioculturais.
A espiritualidade, como vivência, caracteriza o seguimento de Jesus, próprio do
cristão, enquanto entrega do coração a Deus. Opera na fronteira entra a experiência
religiosa e a tradição herdada. Em princípio, subordinava-se a experiência à tradição.
Contudo, a espiritualidade, antes de tudo, está incorporada nas pessoas, e não somente na
doutrina, ela parte de vivências e não de ideias abstratas (LIBÂNIO; MURAD, 1996, p. 232).
Além da tensão em definir a espiritualidade por conta dos entraves entre a
experiência “subjetiva” e a tradição “objetiva”, é que ela não é mais um fenômeno singular e
sim transcultural. Antes, estava enraizada nas experiências humanas de Deus enquadradas
de maneiras específicas, localizadas no cristianismo. Presentemente, ela ultrapassa até
mesmo as religiões e suas herméticas instituições. A espiritualidade identifica-se com
aqueles e aquelas que têm sede de Deus.
2. Espiritualidade como uma experiência de Deus
Na gênese da espiritualidade cristã está, pois, o relacionamento pessoal com Jesus, o
Deus que se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14), seu seguimento no Espírito. Enviado do
Pai, Jesus, como verdadeiro homem, vem até nós no seu Espírito, por meio dele nos introduz
na comunhão de conhecimento e de amor que é o próprio Deus, o Mistério que celebramos
(CATÃO, 2010, p. 92).
Constatamos hoje que depois de todas as implicações do modernismo, do
cientificismo, do materialismo, entre outros “ismos”, há uma grande busca por uma
experiência de Deus, não tão pautada em grandes tratados espirituais e casuísticos, não que
estes não tenham importância, mas uma experiência, um relacionar-se que fale diretamente
a vida e aos seus desafios cotidianos e concretos.
Saturado por inúmeros discursos e por palavras em demasia no campo da política, da
religião e até mesmo da fé, a pessoa de hoje, o cristão, sente a exigência e a necessidade de
crer e experimentar somente o que possa ser constatado em sua própria vida e na vida dos
que o rodeiam. Influenciado pelas ciências naturais a permanecer constantemente no reino
de uma experiência empírica, assume agora instintivamente uma postura de desconfiança
frente a construções ideológicas destituídas de bases fáticas (GOFFI; DE FIORES, 1989, p.
349).
Consciente da dimensão histórica e salvífica da Revelação bíblica, o cristão que busca
uma experiência de Deus adapta-se a uma ortopráxis como à medida de sua própria adesão
da Palavra de Deus. Distinto do período da cristandade, onde a fé era um fato coletivo, o
cristão hodierno não mais condicionado por essa visão eclesiológica, vive a sua convicção de
fé, sua experiência pessoal. Assim sendo, passando de uma experiência coletiva para uma
experiência pessoal de Deus, esbarramos na reflexão de Karl Rahner, de que “O Cristão do
futuro ou será místico, aquele ou aquela que faz uma experiência de Deus, ou não será
cristão”, a fé como fato coletivo e institucional já não diz muito à nossa sociedade.
A presença de Deus na história, revelando-se como esperança e sentido na de
homens e mulheres, se torna, pois o imperativo para uma nova experiência religiosa e
mística, entendida e baseada como encontro e comunhão com o divino. A fé nesse contexto
não é uma árida abstração, uma ideia, mas algo que nos conecta com o todo da vida, que faz
essa mesma vida se tornar mais saborosa, gerando assim, compromisso com o outro,
testemunho e missão.
Quando fazemos uma rica experiência de Deus, cultivamos uma espiritualidade que
nos faz ser pessoas, filhos e filhas de Deus, ou seja, encontramos uma luz que nos ilumina
frente aos desafios da vida, precisamos comunicá-la, nasce aqui, uma espiritualidade
missionária, uma espiritualidade que caracteriza todo cristão que inebriado e cheio de Deus
sai a transbordar, anunciar, as maravilhas do Reino a todos os cantos da terra (Mc 16,15).
3. Espiritualidade como uma opção pela vida
A espiritualidade para além das instituições religiosas está vinculada a uma busca
profunda de Deus expressa no apreço de melhor servir a este Deus fazendo uma consciente
opção pela vida e tudo aquilo que a compõe. Destaca o teólogo:
O desejo de Deus é a expressão concreta da capacidade que o ser humano tem de
conhecer e amar a Deus, mesmo naqueles que não o reconheçam explicitamente. Como
tal, esse desejo está na raiz de toda espiritualidade humana (CATÃO, 2010, p. 19).
Superada a mentalidade estreita que fazia da espiritualidade monopólio dos cristãos
ou até de determinada categoria deles. Recentemente, julga-se que a espiritualidade deve
ser atribuída a todo ser humano que esteja aberto ao Mistério e viva segundo suas
verdadeiras dimensões.
A espiritualidade é encarada dentro da perspectiva antropológica; é prerrogativa das
pessoas autênticas que, diante do ideal e da história, constataram uma escolha axiológica
decisiva, fundamental e unificante, capaz de dar sentido à existência. Do ponto de vista
cristão é a coincidência do espírito humano com o Espírito divino.
A reflexão humanística de nosso tempo, superando o positivismo, que reduzia o homem a
mero fato, descobre que o ser humano nunca é puro ser, pois sempre implica um
significado. O homem não se resigna a uma vida carente de sentido, por que nele aflora o
antigo problema da filosofia: “Saber se a vida merece ou não ser vivida” (A. Camus).
Embora sua inserção na família e seus compromissos profissionais lhe permitam realizar
uma dimensão significativa, o homem busca o sentido global da vida, e não apenas o
sentido parcial das diversas ações particulares (GOFFI; DE FIORES, 1989, p. 347).
Em um mundo fragmentado, pela violação dos direitos humanos, violência,
consumismo, e especialmente pelo relativismo de valores éticos e morais, como a fé e o
altruísmo, somos provocados a fazer perguntas sobre o fim último do Homem, recuperar a
sua dimensão mais profunda, descartada pelo “horizontalismo moderno”, orientado para a
conquista do espaço e a dominação do mundo. Em contrapartida a esse modelo, o “Ser
religioso”, significa amar, andar apaixonadamente em busca do sentido da vida e manter-se
aberto também às respostas que podem comover profundamente (MONDONI, 2000, p. 87).
A vida encontra sua consistência definitiva na direção daquela misteriosa realidade
que está na origem de toda existência como dom: o Deus criador que, através de sua própria
existência dirige aos homens e as mulheres o convite para buscarem a comunhão, a
liberdade e a vida pessoal eterna, que se dá no encontro consigo, com o outro e com Deus.
4. Espiritualidade que leva à missão
A atividade missionária, o comunicar a ação de Deus em nossa vida e na história,
exige uma espiritualidade própria, que diz respeito de modo particular à missão que
recebemos do Altíssimo, o chamado específico que Ele faz a cada um de nós, sermos seus
discípulos e missionários.
A cerca da compreensão sobre a natureza da espiritualidade missionária, a Encíclica
Redemptoris Missio (87-91) nos fala que a mesma se dá e se fundamenta na medida em que
nos deixamos conduzir pelo Espírito, viver segundo o mistério de “Cristo enviado”, amar a
Igreja e aos homens como o próprio Cristo amou, buscando a santidade a partir de nossa
vida, vocação e testemunho.
Tomando também como ponto de referência para a espiritualidade missionária a vida
de Cristo, o Decreto Ad gentes (24), no apresenta a compreensão de que frente ao
chamamento de Deus, o homem deve responder entregando à sua vida à obra do
Evangelho, uma resposta dada por impulso e virtude do Espírito Santo. O enviado entra,
portanto, na vida e missão d’aquele que “a si mesmo se aniquilou tomando a forma de
servo” (Fl 2,7). Por conseguinte, deve estar pronto a perseverar a vida na vocação, a
renunciar a si mesmo e a todas as coisas, e fazer-se tudo para todos.
Em contrapartida a uma espiritualidade intimista, etérea, a espiritualidade
missionária iluminada pelo Magistério da Igreja e por nossa experiência latino-americana,
inspira-se como vimos no caminho histórico que Jesus seguiu para realizar a sua missão.
Viver tal espiritualidade é viver o valor redentor e libertador da cruz, nunca perdendo de
vista a dimensão da esperança, que brota da Ressurreição do próprio Cristo, a vida que
vence a morte, o amor que vence toda dor.
Alimentados por essa espiritualidade advinda da missão de Cristo, cujo rosto
contemplamos no rosto de tantos crucificados do tempo presente, podemos intuir que a
espiritualidade missionária além do anúncio do Evangelho, se dá também no campo da
solidariedade, no compromisso com o outro, denunciando as estruturas de morte, as
desigualdades sociais, reforçando a comunhão fraterna, constituindo um homem novo, livre,
pessoa e não objeto (LIBANIO; MURAD, 1996, p. 233).
5. A espiritualidade missionária sublinhada em Aparecida
Resultado das reflexões do Episcopado Latino-Americano, a Conferência de
Aparecida (2007) recolhe em suas páginas os principais elementos que compõem nossa
espiritualidade e espiritualidade da missão.
Historicamente em contraposição a uma espiritualidade de “fuga do mundo”, os
cristãos presentes na América Latina buscaram viver e testemunhar a sua fé em sintonia
com os “sinais dos tempos” (GS 1).
Atenta aos clamores de nossa gente e de nossos povos, desenvolve-se uma
espiritualidade missionária que traz no bojo de sua essência a luta pela vida, o combate as
injustiças sociais, a toda forma de violência e opressão, uma nova forma de se relacionar
com Deus e com o próximo, genuinamente latino-americana.
Superando então a compreensão de uma espiritualidade desconectada da realidade,
intimista, dualista e puramente vertical, foi-se tomando consciência que o mundo não é algo
que precisa ser evitado, combatido, mas um “lugar teológico”, de onde e para onde
devemos viver, anunciar, sermos missionários e principalmente testemunhar o Evangelho e
as maravilhas de Deus se preciso for até mesmo com a nossa vida (AG 24).
Paralelo à reflexão agora integral do ser humano e de que a missão se dá no mundo e
para o mundo (Jo 17,16) refloresceu a compreensão histórica, muito presente na Igreja
primitiva (At 4,32) de que o cristão além de fazer uma experiência pessoal de Deus, base de
toda espiritualidade, deveria se comprometer com a justiça, com a partilha dos bens e
principalmente com a transformação das realidades de morte, frutos da injustiça, em
realidades de vida, pautadas no amor, na fraternidade e partilha de bens e de dons.
Desse modo, o cristão, especialmente o latino-americano, depois de um ardoroso e
lento processo de conscientização foi chamado a sair de si, a ir em direção do outro, como
missionário, como aquele que anuncia a partir de sua vida e de sua fé os valores do Reino e
faz de sua existência uma busca do mesmo (Mt 6,33). Em um contexto como o nosso
marcado pela colonização, e exploração de riquezas naturais e de pessoas, para o
comentador abaixo, “Onde há injustiças, desigualdades sociais, políticas, econômicas e
culturais, rejeita-se o dom da paz do Senhor; mais ainda rejeita-se o próprio Senhor” (DE
FIORES, 1999, p. 55).
Iluminado por essa “nova” compreensão sobre a fé, o anúncio evangélico e o
compromisso como os irmãos e irmãs mais necessitados:
O cristão que percebeu a centralidade que ocupa o amor ao próximo, segundo a
mensagem bíblica, não pode alimentar a ilusão de agradar a Deus limitando-se a uma
relação intimista e cultual com ele. Já que conhecer Deus é ratificar a justiça, a conversão
a ele passa pela conversão aos seres humanos que sofrem todo tipo de opressão. É
preciso, pois, sair da indiferença ou da neutralidade e tomar partido abertamente em
favor dos pobres e dos explorados (GOFFI; DE FIORES, 1989, p. 352).
Desse modo, tanto a espiritualidade vista de modo geral, quanto à espiritualidade
missionária passaram a ter o seu lastro na pessoa de Cristo, refletido no irmão, e nas suas
práticas pessoais e comunitárias. O missionário nessa perspectiva “Crística” da
espiritualidade da missão é aquele que trás em sua experiência de fé e caminhada
eclisiológica o mesmo olhar de Jesus, um olhar cheio de compaixão, comprometido com a
promoção da vida, com a comunhão entre os povos, trazendo presente elementos de suas
culturas e tradições, um olhar inclusivo (AG 24,9).
Aos que cultivam uma espiritualidade missionária, uma espiritualidade do anúncio,
seguindo sempre os passos do mestre Jesus, sobrepõe-se ao menos uma dupla tarefa. A
primeira está no campo da denúncia profética. O cristão é aquele que por meio de sua vida
questiona as estruturas de poder, incomoda os que as detém, luta pela igualdade,
desmascara as desigualdades. A segunda tarefa se dá no fato da conscientização dos pobres,
dos fragilizados, convencendo-os a não permanecerem em sua condição, a lutarem por uma
vida digna, emancipando-os em sua consciência, oferecendo-lhes dignidade de pessoa. O
Evangelho deve promover a vida e não acomodá-la (BOFF, 1983, p. 25).
Ao percorrermos a evolução do conceito de espiritualidade a uma espiritualidade
missionária do ponto vista histórico principalmente na América Latina, passamos de uma
espiritualidade quase toda reduzida a uma espécie de intimismo para a compreensão de
uma espiritualidade agora mais pautada no compromisso com o outro e a transformação
social.
Reforçando uma espiritualidade pautada no discipulado missionário de Jesus, frisa
Aparecida:
É necessário formar os discípulos em uma espiritualidade da ação missionária,
que se baseia na docilidade ao impulso do Espírito, a sua potência de vida que mobiliza e
transfigura todas as dimensões da existência. Não é uma experiência que se limita aos
espaços privados da devoção, mas que procura penetrá-lo completamente com seu fogo e
sua vida. O discípulo e missionário, movido pelo estímulo e ardor que provêm do Espírito,
aprende a expressá-lo no trabalho, no diálogo, no serviço e na missão cotidiana (DAp 284).
Contrariamente a uma espiritualidade estática, o texto no exorta e nos chama a vida,
a tudo aquilo que ela pode nos oferecer enquanto desafios e potencialidades. Sob o impulso
do Espírito, o missionário é chamado a contrapor a sua vida, sua experiência de fé com a
Boa-notícia do Reino, dialogar nas mais diversas realidades e instâncias com o mundo a favor
da vida, dar um passo adiante frente à simples e significativa experiência devocional da fé e
da práxis cristã, mas que por muitas vezes pode nos estacionar e nos fechar num certo
comodismo.
Sobre a vocação e a vivência de uma espiritualidade missionária, o texto continua:
Quando o impulso do Espírito impregna e motiva todas as áreas da existência, então
penetra também e configura a vocação específica de cada pessoa. Assim se forma e
desenvolve a espiritualidade própria de presbíteros, de religiosos e religiosas, de pais de
família, de empresários, de catequistas etc. Cada uma das vocações tem um modo
concreto e diferente de viver espiritualidade, que dá profundidade e entusiasmo para o
exercício concreto de suas tarefas. Dessa forma, a vida no Espírito não nos fecha em
intimidade cômoda e fechada, mas sim nos torna pessoas generosas e criativas, felizes no
anúncio e no serviço missionário. Torna-nos comprometidos com os reclamos da realidade
e capazes de encontrar nela profundo significado em tudo o que nos cabe fazer pela Igreja
e pelo mundo (DAp 285).
Como cristãos somos convidados a partir do chamado que Deus nos faz a
transformarmos a realidade onde estamos inseridos. Pelo batismo recebemos uma missão
no seio da Igreja. Sob o impulso do Espírito somos conduzidos até os desafios do tempo
presente, somos interpelados a dar novas respostas, a pensar o nosso espaço e o nosso
papel de sal e luz para todos (Mt 5,13), nosso papel de fermento em meio a massa (Gl 5,9).
Alimentados por essa espiritualidade advinda da missão de Cristo e conduzida pelo
Espírito, podemos dizer que a espiritualidade missionária se concretiza e lança bases entre
outras dimensões, mas, sobretudo, quando buscamos fazer da nossa vida anúncio do Reino
e denúncia de tudo o que vai contra ele, quando proclamamos que a pobreza e fome são
frutos da injustiça e das desigualdades sociais, quando a partir de nosso apostolado
promovemos a constituição de um homem novo, livre de tantas amarras, quando
fortalecemos a solidariedade e o bem comum, em síntese, quando escutamos e nos abrimos
aos apelos da missão (LIBANIO; MURAD, 1996, p. 233).
Após refletirmos sobre a Espiritualidade nos seus conceitos básicos, a luz de sua
evolução histórica no compromisso com o outro, e na sua dimensão de anúncio, passamos a
pensar então em algumas perspectivas para a Espiritualidade Missionária na América Latina
que durante muito tempo fruto do colonialismo e da romanização foi levada a não
considerar elementos de sua cultura e da formação de sua gente. A partir dos apelos de
Aparecida somos convidados a pensar caminhos para uma experiência de Deus, que tenha
fenótipo e genótipo Latinos, que expresse o rosto sofrido, mas cheio de esperança de nosso
povo ameríndio.
6. Perspectivas para a América Latina
A missão é fruto de uma experiência que se vive e do Espírito que sopra onde quer
(Jo, 3,8). É um caminho pessoal e comunitário no seguimento de Cristo, descoberto no
cotidiano da vida, no qual se misturam alegrias e esperanças, certezas e dúvidas, de aspectos
nem sempre fáceis de serem definidos.
A partir das reflexões que fizemos até o presente momento sobre a espiritualidade
podemos intuir algumas perspectivas que podem nos ajudar a viver mais intensamente e
coerentemente segundo o Evangelho uma espiritualidade como o rosto missionário, com os
traços de nossa gente. Entre inúmeras possibilidades e apelos da ação missionária,
destacaremos a importância do diálogo na experiência de fé, da proclamação dos valores do
Reino e da sua justiça, de uma atitude de despojamento e entrega total, da Igreja como
ponto de comunhão e unidade, da pastoral de fronteira frente ao comunismo, por fim, dos
riscos e inseguranças da ação missionária, uma espiritualidade de confiança.
Quando pensamos em América Latina devemos sempre levar em conta a sua
dimensão geográfica, sua história, a formação de seus povos e de suas culturas. Dessa
maneira, mais do que em uma espiritualidade unilateral, somos convidados a pensar em na
espiritualidade a partir do diálogo. Impossível compreendermos uma espiritualidade
missionária de rosto ameríndio sem levar em conta as inumeráveis maneiras de ser, as
visões de mundo, as profissões de fé. Viver hoje a missão é ultrapassar constantemente
fronteiras ideológicas, dogmáticas e econômicas que nos separam, defender a vida, focalizar
em primeiro lugar os valores do Reino e da pessoa humana (PP 12).
Sendo então o diálogo entre povos, culturas e etnias, a tônica de toda evangelização
e experiência pessoal e comunitária de Deus, temos como ponto de partida para a nossa
evangelização e vivência espiritual a promoção dos valores do Reino. A missão de Cristo foi
proclamá-lo e inaugurá-lo entre os homens envolvendo-os. Enviados pelo Senhor nossa
missão é consolidá-lo rompendo até mesmo as fronteiras da Igreja. Somos chamados a
fecundar as suas sementes presentes em toda Criação, promover a sua essência, como a
paz, a solidariedade, a justiça e partilha entre todos, participando de suas alegrias e tristezas,
sempre na solidariedade e na compaixão (GS 1, LG 5).
Somente uma atitude de despojamento nos permitirá dialogar, anunciar os valores
do Reino. Fazemos memória aqui das palavras de Dom Helder, que em um de seus poemas
dizia que a missão “mais do que devorar quilômetros era sair de si, romper a crosta do
egoísmo que está em nós, que fazer darmos voltas em torno de nós mesmos, de nosso
desejo”. Assim, para termos os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 2) somos chamados a
“despir-nos de nossas seguranças”, de termos humildade na missão. O despojamento é
extremamente necessário para captarmos os caminhos do Espírito já presentes na missão.
Despojados de nós mesmos, tendo o Reino como centralidade de nossa missão e
apostolado, levando sempre em conta o outro e as suas riquezas, resta-nos buscar uma
espiritualidade de comunhão, de fraternidade, de bem comum, de ser comunidade. Como
um reflexo da comunhão Trinitária somos chamados a revelar em um mundo marcado por
tantas divisões, discórdias e injustiças, o modo de ser de Deus e o seu projeto de amor para
a humanidade. A Igreja como “sacramento universal de salvação”, um sinal visível desse
amor deve empenhar-se em promover a “família de Deus”. A “Ecclesia”, comunidade dos
fiéis, deve ser a expressão máxima da acolhida e do amor mutuo entre os irmãos (LG 6).
Durante muito tempo a imagem de Cristo, principalmente na Idade Média, ficou
estampada nos palácios e nas cortes. Hoje redescobrimos o rosto de Cristo estampado
naqueles e naquelas que sofrem, os crucificados vítimas da fome, da pobreza e da miséria. O
espaço da luta pelos direitos humanos e por uma vida mais justa e igualitária se tornou um
palco particularmente significativo para a espiritualidade missionária, sobretudo, para uma
espiritualidade encarnada, comprometida com a transformação social, uma mística que
supera nossas “sacristias”, “os muros” da Igreja.
Viver na fronteira é viver na insegurança, “sem uma pedra para recostar a cabeça” (Lc
9, 57) Viver longe de nossos esquemas espirituais que quase sempre nos situam em um
ambiente confortável e protegido, quase sempre devocional. Devemos nos colocar a partir
da realidade dos oprimidos, aonde ninguém que ir, mais do que falar para eles, devemos
falar a partir deles e do seu meio. A espiritualidade precisa caminhar no mesmo passo que a
vida vivida nas “fronteiras”, nos “limites” de nossas cidades, bairros e esquinas.
No tocante, tais fronteiras entre ricos e pobres, uma vida confortável e a simples
sobrevivência, se tornarão cada vez mais um espaço de missão, “um novo areópago”, um
“lugar teológico”. Nesse contexto de controvérsias apenas uma espiritualidade pautada na
simplicidade poderá dar respostas, uma espiritualidade construída a partir do cotidiano,
daquilo que é prosaico, do provisório, na crua realidade dos acontecimentos que se vivem.
“Estar na fronteira” significa também lidar com ambientes hostis ou alérgicos à verdade do
Evangelho, em situações de luta e de improvisação que caracterizam a vida dos pobres,
especialmente dos pobres de nossa latino-américa.
Chegamos ao que parece ser mais difícil enquanto perspectiva para uma
espiritualidade missionária de rosto latino, o enfrentamento das injustiças sociais, a luta
contra toda e qualquer realidade de morte, a inimizade com os poderosos, a coragem de
doar a vida, a espiritualidade vista do ponto de vista do risco, da insegurança, do profetismo.
A essa altura a única segurança daquele que fala por Deus e pelos pequeninos é ao Espírito
que o envia, envio que sempre requer necessariamente o testemunho da fé e dos valores do
reino.
Contudo, o martírio missionário, a vivência da insegurança e do desapego total não
nasce tanto de uma profissão explícita da fé, mas primeiramente da comunhão com os
outros mártires que seguindo o Cristo deram seu exemplo. Devemos sempre fazer memória
do sangue que correu ontem, mas que também continua a correr hoje na vida ceifada de
tantos excluídos de nossa história. Em meio ao “Calvário” hodierno somos chamados a
confrontar a nossa vida com o Evangelho, sermos testemunhas da vida que vence a morte
com a nossa própria vida, com a nossa espiritualidade, relacionamento com Deus e com o
próximo, de modo especial o latino-americano.
Considerações finais
Quando analisamos a caminha histórica da América Latina desde o seu processo de
colonização e dominação com tudo aquilo que decorreu, como a exploração, a violência e
tantas mortes, até o presente momento, percebemos a importância da fé e da
espiritualidade como um significativo pano de fundo na vida de milhares de pessoas, que ao
longo dos séculos encontraram no Transcendente seu sustento e esperança na construção
de sua liberdade, sua emancipação, frente às amarras da submissão política, social e
religiosa que sempre fizeram sangrar nossa terra, chorar de dor nossos povos.
Ao fazermos uma experiência pessoal de Deus, somos chamados a comunicar essa
experiência com a nossa vida, com o nosso testemunho. Em um contexto, marcado por
tantos contrastes, como ricos e pobres, brancos, índios e negros, saciados e famintos, o fiel,
o crente, o cristão, é chamado a ser um sinal de transformação, um promotor dos valores da
vida e do Reino. Impossível compreendermos hoje uma relação com Deus que não nos leve
em direção ao outro, ao que está caído, os crucificados de hoje.
Toda espiritualidade, todo relacionamento com Deus, deve se converter em missão,
em anúncio, em uma espiritualidade missionária. Deixar-se conduzir pelo Espírito é assumir
no seguimento de Jesus o seu projeto de vida: evangelizar promovendo a transformação, a
conversão, levando em conta as mais variadas culturas; proclamar a libertação dos cativos,
do pobre do oprimido, estar a serviço da vida, defendê-la onde está mais ameaçada; ter um
olhar de esperança.
Em síntese, quando refletimos sobre a espiritualidade missionária com um olhar
especial para a América Latina, podemos dizer que essa se dá à medida que nos
relacionamos com Deus e não perdemos de vista o nosso próximo. Fazer a experiência de
Deus nesse contexto de missão é se comprometer com aquele que sofre, é favorecer a
comunhão entre crenças e as mais diferentes culturas, despertar a todos para o dom que
recebemos em nosso batismo, discípulos e missionários de Cristo, a fonte toda
espiritualidade, de modo particular a espiritualidade missionária.
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