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1 Retirado de: http://www.obeco-online.org/rkurz429.htm (26/10/2018) Robert Kurz ESPLENDOR E MISÉRIA DO ANTI- AUTORITARISMO Tópicos para a história ideal e real da “Nova Esquerda” Nota prévia Este ano comemora-se, pela quinquagésima vez, o aniversário da revolta de 1968. (i) Parece que ainda é necessário um debate sobre ela. Por um lado, porque os da chamada geração de 68 ainda têm de servir de superfície de projecção para algum ressentimento, pois muita coisa lhes é atribuída, como a destruição da família, a histeria ecológica, o abuso de crianças, etc. Por outro lado, porque a "Nova Esquerda" tem no seu pensamento lacunas que permanecem até hoje, tendo sido novamente esquecida a crítica que há muito lhes foi feita. Essas lacunas surgem claramente quando se trata da crítica do fascismo e do Estado autoritário. Em tais ocasiões, busca-se ainda um momento anarquista de "individualidade livre", o que, num exame mais atento, mais não é do que a "liberdade da servidão". (ii) Um exame crítico da geração de 68 e dos seus descendentes não é geralmente tomado como oportunidade para avançar até uma crítica radical do capitalismo, ao nível dos tempos que correm. Embora parte da esquerda faça, de facto, uma crítica perfeitamente legítima e necessária do anti-sionismo e da ideologia anti-imperialista (iii), ou uma crítica que denuncia a carreira dos Verdes, de partido pacifista-ecologista para partido imperialista-verde-oliva, geralmente não se passa daí. Por isso chamamos a atenção para o texto de Robert Kurz "Esplendor e miséria do anti- autoritarismo", de 1988, que evita a todo o custo cair na nostalgia, ou usar as deficiências da "nova esquerda" como desculpa para se demitir da crítica social. (iv) Thomas Meyer pela redacção da exit!, Abril de 2018 (i) Uma perspectiva global em 68 pode ser encontrada em: iz3w nº 364, Jan/Fev 2018.

ESPLENDOR E MISÉRIA DO ANTI- AUTORITARISMO€¦ · Por isso chamamos a atenção para o texto de Robert Kurz "Esplendor e miséria do anti-autoritarismo", de 1988, que evita a todo

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Page 1: ESPLENDOR E MISÉRIA DO ANTI- AUTORITARISMO€¦ · Por isso chamamos a atenção para o texto de Robert Kurz "Esplendor e miséria do anti-autoritarismo", de 1988, que evita a todo

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Retirado de: http://www.obeco-online.org/rkurz429.htm (26/10/2018)

Robert Kurz

ESPLENDOR E MISÉRIA DO ANTI-

AUTORITARISMO

Tópicos para a história ideal e real da “Nova Esquerda”

Nota prévia

Este ano comemora-se, pela quinquagésima vez, o aniversário da revolta de 1968. (i)

Parece que ainda é necessário um debate sobre ela. Por um lado, porque os da chamada

geração de 68 ainda têm de servir de superfície de projecção para algum ressentimento,

pois muita coisa lhes é atribuída, como a destruição da família, a histeria ecológica, o

abuso de crianças, etc. Por outro lado, porque a "Nova Esquerda" tem no seu

pensamento lacunas que permanecem até hoje, tendo sido novamente esquecida a crítica

que há muito lhes foi feita. Essas lacunas surgem claramente quando se trata da crítica

do fascismo e do Estado autoritário. Em tais ocasiões, busca-se ainda um momento

anarquista de "individualidade livre", o que, num exame mais atento, mais não é do que

a "liberdade da servidão". (ii)

Um exame crítico da geração de 68 e dos seus descendentes não é geralmente tomado

como oportunidade para avançar até uma crítica radical do capitalismo, ao nível dos

tempos que correm. Embora parte da esquerda faça, de facto, uma crítica perfeitamente

legítima e necessária do anti-sionismo e da ideologia anti-imperialista (iii), ou uma

crítica que denuncia a carreira dos Verdes, de partido pacifista-ecologista para partido

imperialista-verde-oliva, geralmente não se passa daí.

Por isso chamamos a atenção para o texto de Robert Kurz "Esplendor e miséria do anti-

autoritarismo", de 1988, que evita a todo o custo cair na nostalgia, ou usar as

deficiências da "nova esquerda" como desculpa para se demitir da crítica social. (iv)

Thomas Meyer pela redacção da exit!, Abril de 2018

(i) Uma perspectiva global em 68 pode ser encontrada em: iz3w nº 364, Jan/Fev 2018.

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(ii) Cf: Die Freiheit zur Knechtschaft – Der Anarchokapitalismus als Schmuddelkind

des Anarchismus [A liberdade da servidão – O anarcocapitalismo como pária do

anarquismo] (2017), em exit-online.org.

(iii) Por exemplo, em: Holger J. Schmidt: Antizionismus, Israelkritik und „Judenknax“

– Antisemitismus in der deutschen Linken nach 1945 [Anti-sionismo, a crítica de Israel

e "Judenknax" – O anti-semitismo na esquerda alemã depois de 1945], Bonn 2010; ou:

Jens Benicke: Von Adorno zu Mao – uber die schlechte Aufhebung der antiautoritären

Bewegung [De Adorno a Mao – A má superação do movimento anti-autoritário], 2.

Aufl. Freiburg 2013 [2010].

(iv) Especialmente no caso dos Anti-alemães, no entanto, este confronto com o anti-

sionismo da esquerda etc. levou apenas a um regresso à democracia burguesa e –

claramente, no caso da revista Bahamas – a um abandono definitivo da pretensão de

crítica social radical.

1.

O movimento estudantil de 1968 concebeu-se como "anti-autoritário", o que era

essencialmente sinónimo de "anti-institucional". O famoso lema de Rudi Dutschke,

"Longa marcha através das instituições", não estava em contradição com este auto-

entendimento, pelo menos no sentido original, mas pretendia apenas expressar a

necessidade de conduzir a luta anti-institucional, não só do lado de fora, mas ao mesmo

tempo a partir de "dentro", penetrando subversivamente as próprias instituições

capitalistas. Outro lema do movimento estudantil, a "Práxis revolucionária profissional",

visava uma orientação similar, e mostra as ideias, desejos e ilusões de então, como se

poderia dizer hoje. Como sinónimo do termo "anti-autoritário", poderia ser posto o

termo "autonomia", que é hoje mais comum, e pelo qual toda uma corrente da jovem

oposição radical define a sua auto-imagem actualmente. Isso já mostra que temos de

lidar de outro modo com a história actual não elaborada, que 1968 não é mera história,

mesmo que para alguns jovens possa parecer hoje tão longe como a Primeira Guerra

Mundial.

A ideologia anti-autoritária não podia ter caído do céu; no entanto, parecia ter aparecido

de repente, inquestionavelmente assumida por um movimento em rápida expansão, em

que a maioria dos indivíduos, desde logo, estava completamente desprovida da reflexão

teórica. O impulso decisivo não era para a multiplicação de experiências na torre de

marfim, mas para a mudança social, para a objectividade por trás das costas dos

sujeitos. As causas e obstáculos externos do movimento eram políticos e morais;

politicamente, a crítica das leis do estado de necessidade e da grande coligação, em si

uma crítica puramente burguesa, democraticamente imanente; moralmente, a indignação

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com a Guerra do Vietname dos EUA, em si um movimento que não deixa o quadro do

pensamento burguês. Mas por que razão as instituições sociais, que já existiam antes, de

repente se tornaram agora autoritárias e insuportáveis ("Sob as vestes talares – um mofo

de mil anos")?

Sem dúvida que a mudança social objectiva, como pano de fundo do movimento de

1968, é marcada pelo processo de socialização fordista do capital. A época do pós-

guerra não foi apenas um "período de reconstrução" do capital, como dizia a expressão

padrão do próprio movimento, mas uma socialização capitalista numa nova escala, indo

muito para além disso. O que é sugerido não apenas por taxas de crescimento da

acumulação de capital historicamente sem precedentes; acima de tudo, foi decisiva a

qualidade social dessa mudança, para além do crescimento meramente quantitativo. Já

se tornou um lugar-comum sociológico que a socialização fordista gerou o

intervencionista Estado social keynesiano e desintegrou em grande parte a família. A

reflexão teórica (por exemplo, da Teoria Crítica) já antecipara parcialmente essas

tendências, derivando-as da lógica das economias de guerra, do fascismo e do New

Deal. Mas somente após a Segunda Guerra Mundial o verdadeiro boom de socialização

fordista se instalou. Só agora o automóvel, bem como a eletrónica de entretenimento e

os electrodomésticos, entram na fase da produção mundial em massa, em parte

favorecidos pelas inovações tecnológicas da guerra; apenas a criação de novas

necessidades maciças à escala mundial e a correspondente produção, como absorção

lucrativa de enormes massas de força de trabalho viva, constituíram o boom auto-

sustentável. Numa medida sem precedentes, a mulher foi envolvida na "actividade

profissional" constituída pelo capitalismo, enquanto, simultaneamente, os pressupostos,

consequências e "efeitos colaterais não intencionais" deste processo exigiam em escala

crescente a intervenção do Estado a todos os níveis, desde o controle monetário,

passando pela "economia de guerra permanente" da economia armamentista e pelas

instituições em rápida expansão de qualificação e cientificização, até ao trabalho social,

etc.

Ao mesmo tempo, porém, as instituições sociais e as formas de comunicação

persistiram nos modos tradicionais de pensar, cujas raízes remontam à sociedade

corporativa pré-capitalista. Se já o cadinho sangrento das duas guerras mundiais na

primeira metade do século XX tinha destruído, dissolvido e decomposto de muitas

maneiras as formas tradicionais de relacionamento, os modos de pensar e os

comportamentos, agora a "pacífica" socialização fordista consumava este trabalho, até

aos mais finos poros da sociedade. Como resultado, esboçou-se, como o único adequado

ao capitalismo, o indivíduo negativamente social, a MÓNADA abstracta, livre de todos

os laços e "valores" tradicionais, mas "livre" apenas para o fim em si mesmo sem

sentido da valorização do valor, da compra e da autovenda totais. O tornar-se real numa

nova escala desta tendência, desde o início inerente à relação de capital, o

desenvolvimento deste indivíduo vazio e auto-suficiente, tinha de colidir com os

tradicionais modos de pensar e comportamentos petrificados e "autoritários", na sua

essência ainda pré-capitalistas. Esta colisão encontrara expressões culturais maciças

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entre os jovens, muito antes do movimento em 1968, não só na subcultura de revolta

dos roqueiros e no amplo fascínio pela rebelião heróico-existencialista em si, por

exemplo, ao estilo de James Dean, mas especialmente na cultura musical das massas

populares do rock ou do beat e nos seus ídolos. Não é possível sobrevalorizar este

impulso. O fenómeno da CULTURA MUNDIAL, constituída pelo capitalismo já no

século XIX, pela primeira vez na história ascendeu, a partir da base da "alta cultura" de

minoritárias elites intelectuais, para a vida quotidiana das massas, tornado possível pela

força produtiva técnica do fordismo e pela formação com ela relacionada de um

contexto de comunicação mundial imediata. Neste aspecto até então nenhuma outra

forma de cultura de massas tinha conseguido avançar e, mesmo a pop-music, apenas

aproximadamente. E foi justamente nesse nível da velha e da nova cultura de massas

que houve os primeiros choques violentos, desencadeados pelas habituais formas

secundárias, que foram inicialmente entendidas como protesto (jeans, cabelos

compridos, etc.). Tudo isso não era simplesmente o fosso eternamente repetido do

conflito de gerações, mas o início da colisão entre dois mundos, o mundo tradicional,

em que a socialização capitalista era meramente sectorial, ou simples verniz superficial,

e o mundo fordista do capitalismo acabado e total, que submete a reprodução social à

sua vazia determinação da forma, até aos últimos nichos e poros.

Destes contextos resultaria uma interpretação do movimento de 1968 objectivamente

estabelecida que é diametralmente oposta ao seu próprio auto-entendimento,

nomeadamente, a sua apresentação como uma mera função da "modernização" do

capitalismo, ou, mais precisamente, como a imposição do capitalismo acabado, que se

torna total e historicamente idêntico consigo mesmo. Tendências para uma reavaliação

desse movimento são encontradas na literatura cada vez mais vezes, algumas negativas,

mas mais frequentemente com a conotação positiva, sob o manto ideológico das

declarações de "democratização". Também o auto-entendimento, hoje banalmente

democrático-capitalista, dos então suportes do movimento, até aos principais

personagens do "radicalismo de esquerda" (por exemplo, Cohn-Bendit), aponta neste

sentido.

E, no entanto, tal interpretação seria tão unidimensional como, inversamente, o auto-

entendimento super-revolucionário de 1968. Este movimento, como já as anteriores

subculturas de revolta e existencialistas, era muito ambivalente. Ele exprimia não só a

tendência de modernização capitalista, na elaboração de mónadas abstractas contra o

tradicionalismo "autoritário", mas, ao mesmo tempo, o imenso SOFRIMENTO dessas

individualidades em si, a indignação contra o terrível vazio da autovalorização total. E a

questão que permanece é se este lado da revolta, se esta indignação pode ser salva como

"herança", e transformada num novo pensamento revolucionário à altura do nosso

tempo, hoje, vinte anos depois. Para poder perceber, seria preciso detectar e analisar

criticamente os traços da ambivalência do anti-autoritarismo, nas suas expressões

teóricas e ideológicas.

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2.

Então, como agora, a definição de anti-autoritário ou de autonomia permaneceu muito

vaga. É suposto tratar-se da autonomia do indivíduo, contra as instituições sociais

sentidas como repressivas; o indivíduo autónomo deve defender-se contra a autoridade

da socialidade repressiva, ou dos seus representantes, e constituir um movimento de

muitos indivíduos autónomos, que acabará por abolir a socialidade institucional

repressiva. Esta ideologia anti-autoritária ou autónoma está, naturalmente, numa forte e

contraditória relação de tensão com a história das ideias socialistas. Por um lado,

compartilha amplamente a intenção socialista de abolir as relações económicas de

exploração como base da repressão social; por outro lado, vê no socialismo, como foi

tradicionalmente entendido e praticado (2ª e 3ª Internacional), uma nova forma de

opressão institucional do indivíduo, uma avaliação que, é claro, só foi reforçada pelo

desenvolvimento real da União Soviética. Portanto, um impulso essencial do

movimento estudantil e juvenil anti-autoritário era, além da crítica do capitalismo tardio

repressivo, simultaneamente, a crítica das formas repressivas e autoritárias de

socialização do socialismo real. O facto de em 1968, no auge do movimento, os tanques

das máquinas de repressão terem rolado tanto no levantamento do Maio parisiense

como na Praga dos reformadores parecia confirmar flagrantemente essa visão na prática.

Para se poder compreender criticamente o anti-autoritarismo, talvez seja necessário um

breve exame de sua própria história das ideias, um salto de 150 anos para trás. Nas

sociedades tradicionais literalmente "impensável", a ideologia anti-autoritária, já nesta

fase inicial do "capitalismo com base nos seus próprios fundamentos", é um produto

típico do século XIX burguês, assim como também o marxismo, e reflecte perfeitamente

um momento emancipatório. Desde o início, as correntes do pensamento anti-autoritário

estão próximas do anarquismo, ou dele fazem parte originalmente. Em sua agudização

mais radical, o mais antigo anti-autoritarismo virava-se contra qualquer autoridade, de

qualquer tipo, exterior ao ego individual. Esta ideia básica de egoísmo "solipsista", que

se entende a si mesmo como emancipatório, já na véspera da revolução burguesa de

1848 foi resumida, com uma banalidade francamente brilhante, por Max Stirner: "Por

isso: nada de causas que não sejam única e exclusivamente a minha causa! Vocês dirão

que a minha causa deveria, então, ao menos ser a «boa causa». Qual bom, qual mau! Eu

próprio sou a minha causa, e eu não sou nem bom nem mau. Nem uma nem outra coisa

fazem para mim qualquer sentido. O divino é a causa de Deus, o humano a causa «do

homem». A minha causa não é nem o divino nem o humano, não é o verdadeiro, o bom,

o justo, o livre, etc., mas exclusivamente o que é MEU. E esta não é uma causa

universal, mas sim... ÚNICA, tal como eu. Para mim, nada está acima de mim!"

(Prólogo a "O único e sua propriedade", 1842). Mesmo nesta primeira formulação de

Stirner, o cerne do anti-autoritarismo se torna nítido com uma clareza insuperável.

Contra o altruísmo hipócrita da moral de escravos cristã e da organização do "bem-

estar" burguês, esta declaração tem certamente algo de refrescante em si, como também

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declarações semelhantes de Nietzsche, a partir de um contexto conceptual diferente.

Este parentesco problemático não é certamente acidental. Não pode ser evitada a

questão de saber como quer o anti-autoritarismo realmente demarcar-se das ideologias

igualmente individualistas do liberalismo radical (liberalismo de Manchester no século

XIX, monetarismo etc. hoje), ou do Homem superior nietzschiano. Algo coxa e

desamparadamente abstracta parece a resposta de que a liberdade de cada ego individual

e "único" deve condicionar todos os outros. Este postulado pode ser denunciado como

deslize altruísta, como apêndice moral, em si não incluído na lógica da autonomia

radical do anti-autoritarismo consequente. Tampouco essa definição abstracta dá o

menor indício de como a socialidade humana deveria ser praticamente possível, sob o

pressuposto do anti-institucionalismo radical.

Obviamente que o anti-autoritarismo traz consigo o problema não resolvido da relação

entre indivíduo e sociedade, o problema clássico do pensamento burguês em geral, que

nunca sai desse dualismo. O ponto de partida é sempre o indivíduo moderno já formado,

como se tivesse caído do céu. Esse indivíduo é alheio e exterior à sua própria

socialidade, até mesmo hostil, na medida em que as instituições estatais e burocráticas,

ao longo dos séculos XIX e XX, se tornam cada vez mais ameaçadoras, e parecem

devorar o ego da individualidade. Não ocorre ao pensamento burguês que este indivíduo

não é um pressuposto inquestionável, mas é ele próprio um constructo histórico-social

que apenas surgiu com a generalização da produção de mercadorias pelo capitalismo e,

portanto, com a formação do dinheiro, como forma de relacionamento total e universal

da sociedade.

Stirner pretende fazer recuar as falsas abstracções da crença cristã em Deus, tal como a

falsa abstracção do Homem na crítica da religião de Feuerbach, a fim de pousar no

supostamente concreto, físico, compreensível, ou seja, no próprio ego. Ele não percebe

que este é a mais extrema e árida abstracção de todas. Este ego é tão abstracto que já

não conhece a sua própria constituição social, mas experimenta-a praticamente como a

frieza absolutamente hostil das instituições sociais, às quais ele se contrapõe em luta

pela sua autonomia abstracta e vazia de conteúdo. O dualismo incessante do

pensamento burguês oscila assim constantemente entre a abstracção da socialidade e a

abstracção da privacidade do indivíduo, não podendo conciliar nem mediar ambas,

embora se trate de uma identidade mediada consigo mesma, que em si e consigo se

arruinou. Pelo que, ou a socialidade abstracta e as suas instituições, como direito,

Estado, nação, etc., são trazidas a terreiro contra a liberdade do indivíduo isolado, como

sua limitação necessária, ou, inversamente, em nome apenas dessa liberdade do

indivíduo, é declarada guerra às instituições, as quais são somente expressões de um e

mesmo processo, que, apenas ele, produziu este mesmo indivíduo. As dores insuperadas

e insuperáveis parecem resultar do facto de ser um indivíduo abstracto no contexto de

uma socialidade abstracta. O desencadeamento da produção de mercadorias e, com ela,

a transformação da força de trabalho humana em mercadoria, desencadeou um tremendo

salto de socialização, em comparação com os modos de produção tradicionais e brutos,

como o feudalismo. As pessoas estão cada vez menos expostas ao contexto imediato da

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natureza, e reproduzem suas vidas cada vez menos num pequeno contexto doméstico-

rural, baseado num modo de produção agrário. O trabalho assalariado, a expansão dos

mercados, a produção do mercado mundial e, associada a isso, a industrialização

criaram, dito com um termo ecológico hoje familiar, um contexto de "ligação em rede"

mundial do trabalho humano e da reprodução. No invólucro capitalista, trata-se de um

processo histórico de socialização, mas, por assim dizer, apenas meia socialização,

nomeadamente abstracta. Abstracta porque as pessoas não planeiam nem regulam em

conjunto este contexto de crescente ligação em rede do seu trabalho social directamente,

através das suas instituições sociais, de acordo com pontos de vista de utilidade

concreta, sendo, pelo contrário, a ligação social em rede realizada na forma da produção

de mercadorias, desenvolvida com base no trabalho assalariado, para a práxis social das

pessoas apenas indirecta e DESLIGADA DAS NECESSIDADES CONCRETAS. O

meio desta socialização abstracta é uma coisa externa, o DINHEIRO. O dinheiro, como

"mercadoria geral", é uma coisa abstracta e vazia, como expressão do trabalho social,

que o separa completamente do seu conteúdo concreto. Como se sabe, o dinheiro não

cheira, não se vê nele se é a expressão de um dispêndio de trabalho social destrutivo ou

útil. Portanto, o aspecto da utilidade concreta em si não desempenha nenhum papel na

multiplicação do dinheiro adiantado, que é o conhecido fim em si da produção

capitalista.

O indivíduo moderno surgiu apenas na dissolução dos limites dos modos de produção

tradicionais, sendo, portanto, um indivíduo social abstracto, isto é, um mero sujeito do

dinheiro. No conhecido desvio da conhecida sentença de Descartes, teria de dizer de si

mesmo: "Ganho dinheiro, logo existo". O anti-autoritarismo pode lutar contra as

modernas instituições, promovidas pela socialização abstracta do dinheiro, pode

condenar moralmente a dança em torno do bezerro de ouro, aqui de modo não

inteiramente diferente da tagarelice cristã, mas, infelizmente, não é anti-autoritário o

suficiente para não acabar por se submeter à real autoridade do dinheiro, porque não

pode escapar à sua própria socialidade incompreendida. O dinheiro, apesar do fim em si

vazio e abstracto da desenfreada produção de mercadorias, surge ao indivíduo abstracto,

para quem "não há nada acima de si mesmo", como o meio inconscientemente

pressuposto pelo qual ele tem de afirmar o seu ego. Anti-autoritarismo ou ideologia do

indivíduo autónomo não é senão o reflexo inconsciente do desenvolvimento do sujeito

burguês, da revolta desesperada da subjectividade abstracta do dinheiro contra si

mesma. E, ainda assim, reside neste reflexo revoltista, ainda inseparado, um desejo

emancipatório que não sabe como se expressar adequadamente. Portanto, em cada nova

época de crise da socialização burguesa mediada pelo dinheiro, também a ideologia

anti-autoritária emerge de novo, numa escala superior, sem nunca ser capaz de sair da

prisão das categorias na lógica da mercadoria, na medida em que não ocorre nenhuma

transformação, numa crítica concreta da forma da mercadoria em si. Como foi

historicamente possível que a ideia da libertação do indivíduo até hoje nunca tivesse ido

além do anti-autoritarismo e da "autonomia" abstracta?

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3.

A teoria de Marx contém em si o cerne de uma crítica radical da produção de

mercadorias em geral, isto é, da socialidade abstracta e apenas a meias do indivíduo. A

revolução comunista é para Marx, em última instância, a abolição do trabalho

assalariado, ENQUANTO abolição da forma mercadoria-dinheiro em si, ainda que ele

não tenha podido formular com suficiente clareza estas consequências. Esta dificuldade

deriva do relativo subdesenvolvimento do processo de socialização abstracta capitalista

no seu tempo. Pela mesma razão, o antigo movimento operário, mesmo em sua ala

revolucionária, foi incapaz de compreender as consequências verdadeiramente radicais

da teoria de Marx. Queria abolir o trabalho assalariado na base da produção de

mercadorias e do dinheiro, um empreendimento condenado ao fracasso. No Ocidente, o

resultado foi a social-democracia integrada no capitalismo, no Oriente, foi a sociedade

soviética na forma da mercadoria de uma maneira específica, como expressão de uma

industrialização ATRASADA e de uma socialização BURGUESA. A partir dessas

bases, a teoria de Marx teve de ser tremendamente reduzida e, portanto, também

fornecer uma crítica redutora e chata do anti-autoritarismo. O marxismo tradicional,

preso ele próprio às categorias da socialização abstracta da mercadoria e do dinheiro,

não estava em posição de analisar adequadamente o anti-autoritarismo. Com o lema

meramente denunciatório do "individualismo pequeno-burguês", ele sinalizou a sua

falta de entendimento para reconhecer a ideologia anti-autoritária como expressão da

socialização capitalista em geral. A simples atribuição sociologística, como ideologia

específica de uma determinada classe definida como "pequeno-burguesa", obscureceu o

facto de que o problema da individualidade abstracta, com o avanço do

desenvolvimento capitalista, atingiu TODAS as classes, MESMO A CLASSE

OPERÁRIA, como portadora da força de trabalho e, portanto, como sujeito burguês do

dinheiro. Uma vez que, contra o individualismo abstracto dos anti-autoritários, apenas

foi feito valer o ponto de vista da organização externa anti-individual do velho

movimento operário, o próprio marxismo tradicional, em sua crítica da ideologia anti-

autoritária, permaneceu preso no dualismo do pensamento burguês; ele não representava

a individualidade concreta do comunismo, mediada pela luta pela libertação social

contra a individualidade abstracta de dinheiro, mas apenas uma nova variante da

socialidade abstracta (na figura do "socialismo de Estado"), contra a privacidade

abstracta dos liberais e sua variante "virada do avesso" anarquista.

O motivo central do anti-autoritarismo, portanto, tinha de permanecer vivo além do

anarquismo clássico, e não apenas nos surtos dos processos de crise capitalista. O

sujeito burguês vazio e abstracto do dinheiro, que vive em disputa consigo mesmo, é o

tema de toda a filosofia do século XX. Filosofia da vida e existencialismo assumiram o

problema, sem, naturalmente, serem capazes de resolvê-lo filosoficamente. Também a

Teoria Crítica da Escola de Frankfurt (como, aliás, em grande parte, o "marxismo

ocidental" em geral) deve ser localizada neste contexto. Na sua crítica ao "Estado

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autoritário" e à "personalidade autoritária", ela não só permaneceu meramente formal e,

de acordo com o seu nome, vinculada aos motivos centrais do velho anti-autoritarismo,

mas passou, ainda assim, pelo debate filosófico contemporâneo e invocando ao mesmo

tempo a crítica da economia política de Marx. O resultado permaneceu eclético em

muitos aspectos, não podendo falar-se de uma resolução crítica da antiga antítese.

Também a própria Teoria Crítica reproduziu o velho dualismo burguês de indivíduo e

sociedade, como oposição externa, não comunicável e hostil; em contraste com o

marxismo tradicional do velho movimento operário, no entanto, ela não se limitou

simplesmente, "à maneira do socialismo de Estado", a fazer valer a abstracção do geral

da sociedade contra o indivíduo (liberal), mas tentou, exactamente ao contrário, com as

categorias da própria teoria de Marx e na sua mediação com o debate filosófico burguês,

defender este indivíduo, o "indivíduo" (também o indivíduo como proletário existente

na sua singularidade irrepetível) contra os desaforos daqueles poderes da socialidade

negativa abstracta, que no século XX começaram a aumentar até ao insuportável. A

Teoria Crítica em si não foi além do indivíduo como abstracção; a esse respeito, o

motivo central de Stirner ainda foi preservado indissoluto de forma modificada e

desenvolvida. Mas, uma vez que a Teoria Crítica assumiu a ousada tentativa de, contra a

linha da interpretação tradicional, justificar precisamente a libertação da individualidade

pela teoria de Marx, ela acabou, afinal, por abrir a porta para uma reformulação e

desenvolvimento desta teoria, para além da redução do marxismo tradicional; uma porta

que, está claro, ninguém passou até hoje.

Essa era a situação histórica do pensamento de crítica social que o movimento estudantil

também encontrou em 1968, e sobre cuja sombra não poderia saltar. Ele não estava em

condições de, por assim dizer, a partir desse estado, saltar para uma completa

reelaboração da teoria, mas, no entanto, tinha de dar uma base teórica de legitimidade à

sua oposição às estruturas sociais encontradas. Dada a petrificação da social-

democracia, como instituição burguesa, e a completa impotência teórica e política do

chamado "marxismo-leninismo" de cunho oriental, como falsa "ortodoxia de Marx", o

ataque ao anti-autoritarismo através do filtro histórico da Teoria Crítica representava um

inevitável fenómeno de transição da teoria e práxis radical; a inutilidade e exaustão

teórica do marxismo tradicional orientado para o velho movimento operário obrigou a

recorrer a abordagens menos desacreditadas do pensamento radical. Se o

reaparecimento do anti-autoritarismo nas crises do século XX, até então, se fizera à

sombra do velho movimento operário e dos seus grandes partidos, em 1968 ele

regressou à plena ribalta da história, como ideia central do movimento juvenil e

estudantil global, como nova reivindicação de uma promessa antiga não cumprida, na

qual o liberalismo e o marxismo tradicional haviam fracassado. Os representantes do

velho marxismo do movimento operário ficaram tão surpreendidos quanto horrorizados,

como mostra o clamor de um dos seus propagandistas:

"O anarquismo ressurgiu; ele entusiasma estudantes rebeldes, despoleta as granadas de

mão da propaganda da acção, inunda livrarias, enriquece o vocabulário dos relatórios

policiais. O facto é indiscutível, tão surpreendente ele é. Ele tinha sido considerado

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morto, um objecto de museu; mas foi uma morte vergonhosa. É preciso renovar a

discussão, enriquecida pela experiência de um século de movimento" (Bruno Frei, Die

anarchistische Utopie [A utopia anarquista], Frankfurt 1978, 1ª edição 1971, p. 5). Mas,

neste debate renovado, os "tradicionalistas" não tinham nada de novo a dizer, como o

mesmo autor mostra com clareza involuntária quando, de seguida, se vira contra o

"individualismo pequeno-burguês" do novo movimento anti-autoritário e seu conceito

neo-anarquista de liberdade: "O Estado, que garante e ordem social (!), não constitui

nenhuma oposição à liberdade (!). A questão é saber que Estado garante que ordem

social, de quem garante a liberdade? .... A liberdade, ensina Marx, não consiste na

negação (!), na recusa individual, não consiste no isolamento dos indivíduos da

sociedade, mas sim na capacidade de se identificar com as leis do movimento (!) e com

os altos objectivos (!) da humanidade" (ibidem, p. 77).

Também um conservador poderia ter dito exactamente a mesma coisa. Os

representantes tradicionalistas do "socialismo real" e da social-democracia de esquerda

desmascaravam-se assim clarissimamente, como ideólogos da tranquilidade e da ordem;

ao apelo do indivíduo abstracto pela liberdade, mais uma vez, só conseguiam contrapor

a cidadania abstracta, como a outra face do dinheiro. Enquanto, na consequência da

autêntica teoria de Marx, a abolição do Estado é idêntica à abolição do trabalho

assalariado e do dinheiro, o ideólogo da "produção de mercadorias socialista" e o da

estatalidade "social-democrata" têm de recorrer às "leis do movimento" e a "altos

objectivos" da humanidade. Essas "leis do movimento", que não são nada mais do que a

lógica imanente da produção de mercadorias, e que Marx considerava sobretudo como

merecendo ser abolidas, exigem precisamente o dilaceramento do indivíduo em

privacidade abstracta e socialidade abstracta, esse dilema não resolvido que, apenas ele,

produz a construção nas nuvens dos "ideais" externos e dos "altos objectivos da

humanidade" abstractos, aos quais o indivíduo empírico é então moralmente condenado

a "subordinar-se". Com razão, este marxismo do socialismo real e da cidadania social-

democrata mais não mereceu do que desprezo e ridicularização da parte dos anti-

autoritários. Claro que, com isso, também do outro lado permaneceu ainda por resolver

o dilema clássico da individualidade burguesa em si dilacerada, porque o novo

movimento anti-autoritário tão pouco podia avançar uma crítica concreta da produção

de mercadorias e da socialização abstracta mediada pelo dinheiro como o socialismo

dos cidadãos nas suas versões tradicionais. O movimento de 1968 tornou-se, assim, o

mero esquentador de fluxo para todas as ideias de emancipação da crítica social do

passado, que todas, mais uma vez, foram rapidamente ultrapassadas e rejeitadas,

incluindo o próprio anti-autoritarismo.

4.

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Para fazer justiça ao movimento anti-autoritário, deve-se enfatizar, porém, que ele

(assim como a própria Teoria Crítica) não repetiu simplesmente e sem rupturas as

declarações da Stirner de 1842, nem se fundiu simplesmente com a ideologia anarquista

tradicional. Na verdade, podem reconhecer-se duas correntes de argumentação e

interpretação diferentes e, em última instância, contraditórias do novo anti-

autoritarismo, que então, obviamente, não resolveram realmente a sua contradição

objectiva. A primeira e verdadeiramente importante corrente de argumentação, que

ainda poderia ser de grande importância, foi desenvolvida por um grupo agora

completamente esquecido, pelo menos na consciência da esquerda alemã, a

"Internacional Situacionista". Como o nome aparentemente estranho sugere, essa

corrente parecia derivar do existencialismo de esquerda francês. O conceito de

"situação" é um conceito central de toda a filosofia existencial, como mostra Bollnow;

este termo significa "... que a situação não é algo em que o ser humano cai apenas

ocasional e externamente, mas que a existência humana é essencialmente um ser numa

situação, e que o ser humano nunca consegue escapar da prisão numa situação. Ele

encontra-se sempre, em cada momento da sua vida, numa situação por ele não

escolhida, que não presta atenção aos seus desejos e necessidades, mas que o oprime,

como algo estranho e hostil "(O. F. Bollnow, Filosofia existencial, Stuttgart / Berlim /

Colónia / Mainz 1955, 9ª edição 1984, p. 59s.).

Traduzido para a linguagem do activismo de esquerda, isso só pode significar propagar

uma versão da velha ideia anarquista da "acção directa", rebelar-se imediata e

"situacionistamente" como sujeito, contra as situações objectivamente definidas da

socialização capitalista. Os autores da história da SDS (Associação de Estudantes

Socialistas Alemães), Fichter e Lönnendonker, regressados à social-democracia,

também não têm muito mais para informar sobre esta fonte do movimento anti-

autoritário internacional: "O sentimento básico de resignação na inteligência europeia

de então ... seduziu os Situacionistas para uma prática estranha: através de

'comportamentos experimentais' deveria ser introduzido na organização colectiva um

'ambiente unificado', como 'momento construído da vida'" (Fichter/Lönnendonker,

Kleine Geschichte des SDS [Breve História da Associação de Estudantes Socialistas

Alemães], Berlim 1977, p. 78s.).

Esta ideia de práxis, de facto estranha, parece lembrar apenas as velhas experiências

anarquistas e utópicas de "comuna". De facto, foi na Alemanha que o communard tardio

Dieter Kunzelmann se constituíu, já em 1959, com o grupo artístico de Schwabing

"Spur", como secção alemã da "Internacional Situacionista". No entanto, este grupo em

torno de Kunzelmann, dadas as suas tendências golpistas e neo-anarquistas, um ano

depois foi novamente expulso da IS, o que aponta para um diferente auto-entendimento

real desta corrente francesa. Sob o nome de "acção subversiva" (a que às vezes também

Rudi Dutschke pertenceu) o grupo de Kunzelmann tornou-se parte integrante da história

da SDS e o precursor na Alemanha do activismo anti-autoritário.

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Mas essencialmente interessantes são as abordagens teóricas dos próprios

Situacionistas, que não eram bem conhecidos na Alemanha, mas certamente

desempenharam um papel na França da revolta de Maio. No Verão 1968, foi publicada

a tradução alemã de um panfleto dos Situacionistas, que antes, além da França, já tinha

sido divulgado também na Inglaterra, na Itália e nos Estados Unidos. Os pensamentos aí

expressos quase não foram discutidos no movimento alemão, mas agora parecem ainda

mais importantes, para uma reavaliação crítica. O anti-autoritários da IS repetiam muito

pouco das ideias básicas do velho anti-autoritarismo anarquista, mas procuravam mediá-

lo com a crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria, ou seja, precisamente com aquela

dimensão ocultada pelo marxismo tradicional da crítica de Marx à relação de capital. Já

Sartre, nos seus últimos escritos inspirados pelo confronto com a teoria de Marx, tinha

agarrado este problema, a ser mediado com a filosofia existencial, sem, claro, ir além de

uma primeira tentativa (ver Sartre, Kritik der dialektischen Vernunft [Crítica da razão

dialética], Reinbek 1967). Os Situacionistas pretendiam, nessa medida indo além do

"marxista" Sartre, atacar e superar directamente a alienação do indivíduo da sua

existência social, alienação constituída pelo fetichismo da mercadoria; um dos seus

slogans públicos dizia: "Abaixo o mundo da imagem e o fetichismo da mercadoria". Por

"mundo da imagem" entendiam eles a existência do fetiche da mercadoria na cultura do

consumo de massas capitalista da época fordista, uma formulação que ia muito para

além do lema anti-autoritário divulgado na RFA da "compulsão consumista", mesmo

que hoje pareça talvez um pouco ingénuo o facto de aquele slogan verter directamente

na forma de palavra de ordem um juízo essencialmente teórico. Na brochura dos

Situacionistas diz-se: "O fetichismo dos factos dissimula o ponto arquimediano, e os

detalhes fazem esquecer a totalidade. Diz-se tudo a propósito desta sociedade, excepto a

sua verdadeira característica: o seu desenvolvimento em fetichismo da mercadoria ..."

(Das Elend der Studenten [Da miséria no meio estudantil] Berlim, junho de 1968, p. 5).

A partir desta posição, a esquerda tradicional podia ser fundamentalmente criticada num

sentido realmente novo: "A luta aparente conduzida hoje por organizações

supostamente revolucionárias contra o velho mundo permanece inteiramente dentro

deste velho mundo e envolvida em mistificações" (ibidem, p 20).

Essa caracterização, embora geral, atinge a essência de todo o velho movimento

operário e do marxismo que com ele se fundiu; é claro que se pode sentir aqui o tom de

uma crítica quase "ontológica", devido a uma abordagem a-histórica, ainda agarrada ao

existencialismo, que se resume a denunciar abstractamente como "errado" o velho

movimento operário, sem analisar a condição das suas realizações reais. É, porém,

importante que os Situacionistas não critiquem a imanência do marxismo tradicional na

habitual maneira meramente político-revolucionária, mas, indo muito mais longe,

coloquem exigências directamente dirigidas contra a socialização dinheiro-mercadoria:

"Não basta um voto abstracto no poder dos Conselhos Operários; é necessário mostrar o

seu significado concreto: a supressão da produção de mercadorias e, por conseguinte, a

supressão do proletariado. A lógica da mercadoria é a racionalidade primeira e última

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das sociedades actuais; é ela a base do auto-regulamento totalitário destas sociedades ...

No mundo da produção de mercadorias, o trabalho não se realiza em função de um

objectivo determinado livremente, mas sim por força de directivas vindas de forças

exteriores. E se as leis económicas dão a impressão de se transformar em leis naturais

duma espécie peculiar, isso acontece na medida em que a sua força se baseia

unicamente na ausência de consciência daqueles que nisso participam. O princípio da

produção mercantil é este: a perda do indivíduo na produção caótica e inconsciente de

um mundo que escapa inteiramente aos seus produtores" (ibidem, p. 23)

A importância desta abordagem solitária de uma crítica radical da forma da mercadoria

em geral não pode ser apreciada o suficiente, quando se considera que, desde os anos

vinte do século XX, o extremo de "radicalismo" da esquerda nunca foi mais do que

apenas um mero "voto abstracto no poder dos Conselhos Operários", tanto na Nova

Esquerda entretanto envelhecida, como hoje (na melhor das hipóteses!) entre os

autonomistas. Certamente que essas importantes afirmações dos Situacionistas a

princípio permaneceram abstractas em sua nova abordagem e, aparentemente, a partir

dos fundamentos existencialistas, não poderiam ser mais desenvolvidas, para uma

concretização da crítica da economia política de Marx à altura do tempo. Tampouco os

Situacionistas conseguiram ultrapassar a falsa identidade em curto-circuito entre teoria e

práxis imediata, que caracteriza o activismo dos anti-autoritários em geral. Se algo de

toda a sua abordagem ficou preso na consciência esquecida da esquerda, então é talvez

esta frase, desde então muitas vezes citada: "As revoluções proletárias serão festas ou

não serão coisíssima nenhuma." No entanto, a associação de um hedonismo abstracto,

não mediado, que aparece nessa ideia fora de contexto não faz justiça aos Situacionistas.

A sua crítica radical à mercadoria e ao dinheiro vai muito além do usual anti-

autoritarismo e permanece até hoje como o "ponto arquimediano", a partir do qual,

apenas, os sistemas sociais existentes podem ser removidos.

No entanto, precisamente porque esta abordagem antecipou um futuro do movimento

revolucionário que ainda hoje precisa de ser alcançado, ela não poderia realmente ser

aceite e compreendida pela consciência do movimento comum em 1968; os próprios

Situacionistas tiveram de se queixar de que as suas ideias haviam sido "exaustivamente

comentadas e exaustivamente mal compreendidas por toda a imprensa francesa de

esquerda". Por maioria de razão isso se aplica ao movimento alemão, que até poupou o

comentário. Em vez disso, prevaleceu nele uma interpretação do anti-autoritarismo que

permaneceu mais presa à Teoria Crítica de Frankfurt, com as suas implicações

resignadamente reformistas, e que não conseguia acompanhar a radicalidade das

tentativas "existencialistas" francesas de renovação da teoria de Marx. É verdade que a

Teoria Crítica também abordou as mistificações da por ela chamada "sociedade da

troca"; no entanto, a sua ousadia teórica, invocando o indivíduo indissolutamente

abstracto contra a sua própria mistificação social, recuou perante a porta aberta, de volta

ao mundo conceptual do fetichismo democrático. A concretude da crítica não apreendeu

a forma da mercadoria como tal e directamente, mas apenas as formas secundárias do

seu desenvolvimento histórico. Com relação ao "nervo central" da sociedade burguesa,

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a Teoria Crítica permaneceu assim, em última análise, vaga e inconsistente, por um

lado, refugiando-se na esfera cultural, por outro lado, operando ela própria acriticamente

com as categorias-fetiche da economia política (ver os trabalhos relevantes sobre teoria

do planeamento económico de Friedrich Pollock, o "economista político" da Teoria

Crítica). Portanto, a Escola de Frankfurt, apesar de seus méritos teóricos, conseguiu

muito menos do que alguns existencialistas de esquerda, que ultrapassaram a mera

evocação da individualidade monetária indissolutamente abstracta, e com ela o

liberalismo burguês.

Rolf Wiggershaus resumiu sucintamente as premissas e consequências essenciais da

Teoria Crítica com base na teoria de Adorno. Segundo ela, em Marx, supostamente,

trata-se da "realização não burguesa" das ideias burguesas de liberdade, igualdade e

fraternidade, a fim de resgatar as promessas do iluminismo e do liberalismo. Isso

também pode ser aplicado num sentido quase moral ou um tanto metafórico (veja-se a

ideia de Marx do "reino da liberdade"). Teórico-conceptualmente, no entanto, e no

sentido de práxis social revolucionária, Marx estava muito longe de tais intenções. Ele

estava preocupado NÃO com a "realização", mas com a ABOLIÇÃO do liberalismo e

do iluminismo. A ideia de mera realização em si permanece no invólucro do fetichismo

da mercadoria e, portanto, da subjectividade monetária abstracta. A implicação

reformista desta abordagem é representada clarissimamente por Habermas, que, como

iluminista vulgar, ainda gostaria de mexer nesta "realização" sempre dentro dos limites

da legalidade e das leis da produção de mercadorias. Também em Adorno, o

reformismo bastante resignado resulta da combinação essencialmente liberal da

economia de mercado e da individualidade em geral; porque a forma valor da

mercadoria, como forma básica de reificação, permanece completamente indissoluta e

na sombra, a crítica das suas formas secundárias culturais não dá em nada,

permanecendo completamente incompreensível como se pretende constituir um

indivíduo social comunista revogando a produção de mercadorias. Em vez disso,

Adorno, ignorando a questão central, dirige a sua atenção, muito à semelhança de

Horkheimer, para as supostas formas de transformação do capitalismo dentro da própria

forma de reprodução capitalista; ele vê no "capitalismo organizado" e na moderna

burocracia estatal a destruição da individualidade e da subjectividade constituídas pela

troca de mercadorias, e o seu interesse orienta-se principalmente para lamentar isso e

para a análise deste processo: "Sem a economia de mercado e a família nuclear

patriarcal, segundo a convicção de Adorno, deixa de haver não apenas empresários

relativamente independentes, mas mesmo pessoas de algum modo autónomas em geral

... Por causa de tais julgamentos, Adorno não procura outra coisa senão as condições

capitalistas liberais para o surgimento de forças de oposição ... Desintegração do

mercado, desintegração da família burguesa, desintegração do ego – eram as palavras-

chave para a visão de Adorno da genealogia dos sujeitos dessubjectivados do

capitalismo autoritariamente organizado" (R. Wiggershaus, Theodor W. Adorno,

Munique 1987, p. 75).

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É claro que Adorno não era um liberal chapado, no sentido de um ideólogo do mercado

capitalista; pelo contrário, para ele a questão era a abolição, segundo a sua

autocompreensão, da reprodução social capitalistamente constituída, mas essa intenção

é curiosamente distorcida pela sua própria abordagem teórica. O crucial é sobretudo que

ele, realmente, devido à falta de crítica concreta da forma da mercadoria em si, é

verdadeiramente incapaz de nomear, na sua abstracção, qualquer outra individualidade

que não a constituída por essa forma; portanto, a ideia da abolição vacila, não continua a

ser pensada e acaba por se esgotar num problema incorrectamente colocado como de

"condição": a subjectividade constituída pelo "capitalismo liberal" (assumido como

moribundo) deve ser a condição indispensável para uma rejeição radical, que por sua

vez permanece uma caixa preta e mera intenção teoricamente vazia. Paradoxalmente,

surge aqui quase inevitavelmente o slogan desdentado da SALVAÇÃO deste

"capitalismo liberal", como suposta condição prévia para a sua abolição. Para além do

facto de aqui se esboçar um argumento circular, devido ao mero pensamento da

"realização", esta visão já está próxima da tendência para executar na práxis somente a

luta defensiva por meras "condições" de emancipação, mas deixando em aberto o

objectivo em si, em seu conteúdo decisivo vazio, e a interpretação imanente na forma da

mercadoria. Não por acaso ecoa neste contexto uma associação surpreendente, ou seja, a

memória do velho revisionista Bernstein, para quem "o movimento é tudo e o objectivo

não é nada". A compatibilidade da Teoria Crítica e da Social-Democracia, que desde

então se tornou prática, torna-se compreensível do ponto de vista teórico. Na aparente

radicalidade do movimento anti-autoritário baseado nesta linha de argumentação, desde

o início estava o germe para se transformar em reformismo claro.

O dilema do movimento perante seus "pais teóricos" consistiu em que ele não conseguiu

criticar a sua atitude regressiva reformista-democrata a partir do conteúdo da própria

teoria, mas apenas de maneira formal peculiar, como mera crítica de uma suposta falta

de "vontade de práxis". Esta unidimensionalidade da crítica do movimento às

"autoridades professorais", como Horkheimer, Adorno e Habermas, levantando as mãos

defensivamente em face destes espíritos não invocados, tem contribuído muito para o

estúpido fetichismo da práxis, que tem empurrado a esquerda revolucionária

repetidamente para a desmoralização. Este dilema pode ser visto na abordagem

estratégica de Rudi Dutschke, o símbolo central desse movimento. A "Longa marcha

através das instituições", o "processo de mudança" pode ser interpretado de duas

maneiras, e esse mesmo facto mostra uma duplicidade inconsciente do próprio

movimento: ou se trata, realmente, de um processo de ganhar consciência para a

revolução, mas então seria um ganhar consciência contra o dinheiro, contra a

socialização na forma da mercadoria em geral (ou seja, na acepção de Marx e do 1968

dos Situacionistas, ainda que estes não tenham conseguido ir além da intenção) – ou se

trata de uma "renovação democrática" da própria produção de mercadorias, ou seja, do

capitalismo. Não pode haver um terceiro. Em suma, Rudi Dutschke afirmou claramente:

"O problema da reforma já não se coloca. Reformas como as que se podem implementar

nada mais são do que a melhoria das celas da prisão, reproduzem a realidade existente

..." (R. Dutschke, Mein langer Marsch [A minha longa marcha], Reinbek 1980, p 16).

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Mas o conteúdo permaneceu indeterminado, o ataque directo à produção de mercadorias

e, portanto, ao dinheiro, como forma de socialização capitalista (e só nesta

intensificação se poderia pensar também numa crítica revolucionária do "socialismo

real") permaneceu silenciado, podendo assim Dutschke ser interpretado

democraticamente e, portanto, na forma da mercadoria. A ênfase sempre tão

pessoalmente credível na libertação do indivíduo teve de permanecer burguesmente

conciliável neste nevoeiro conceptual, se não na situação daquele momento, pelo menos

historicamente. O próprio Dutschke acabou por se juntar à Associação de Cidadãos dos

Verdes, e a sua morte prematura deixou essa decisão em aberto. Mesmo o Dutschke

vivo, no auge do movimento, era também ocasionalmente acusado e considerado cívico-

integracionista, uma visão que ele ainda rejeitava veementemente naquela época: "O

facto de existir Rudi Dutschke, de ele ter de ser levado a sério, resulta do estado actual

da nossa democracia parlamentar e dos seus partidos de apoio. Se os Dutschkes – e

desta vez não no sentido pejorativo – iniciam o auto-exame necessário no Estado e nos

partidos, iniciam a redemocratização, então eles vão fortalecer a sociedade que eles

procuram ultrapassar. Um efeito que não é desejável para Dutschke, mas sim para a

maioria" (Stuttgarter Nachrichten de 1967/05/12, citado em: Mein langer Marsch, cit.,

p. 55).

O Rudi Dutschke morto é interpretado pela maioria dos seus antigos colegas

SOMENTE nesta pista que declara o lado imanente democrático na lógica da

mercadoria do movimento de 1968 como "único verdadeiro", e assim nega de modo

francamente infame o outro momento que ia mais longe, apontando para lá da

imanência meramente democrática, e até o self do revolucionário. Se estes senhores

ainda querem alguma coisa hoje, então, na melhor das hipóteses, é a "viabilidade" para

"melhorar as celas da prisão", que o Dutschke de 1968 tanto detestava.

Ainda melhor e mais exemplarmente do que Dutschke, a ambivalência social do

movimento anti-autoritário e da sua ideologia pode revelar-se noutro porta-voz, Oskar

Negt, que nunca poderia ser acusado de actividades revolucionárias, e que

provavelmente sempre trouxe consigo o cartão de militante do SPD. Em seu discurso

muitas vezes reimpresso "Política e protesto", de Outubro de 1967, ele fala,

ocasionalmente, de "relações de poder reificadas", mas esta frase congelada já não tem

realmente nenhum significado que importe especificamente, e está muito longe da

agudização conceptual directa dos Situacionistas. Em vez disso, Negt argumenta

principalmente num quadro de referência comparativamente distante e redutor, da

história alemã do pós-guerra; em vez do fetichismo da mercadoria se totalizando

historicamente, é descrito apenas um determinado movimento interno da mais recente

fase de desenvolvimento da produção capitalista de mercadorias, no sentido do conceito

de um "Estado autoritário" de Horkheimer e Adorno. Trata-se da " ... estabilização de

uma sociedade autoritária meritocrática que, no interesse dos poderes de decisão

monopolistas e estaduais, procura eliminar passo a passo a esfera liberal da discussão

política, dos controlos parlamentares, a longa negociação de compromissos e acordos

temporários de interesses conflituantes, como modelo de perdas por atrito

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desnecessárias numa empresa social global em funcionamento" (O. Negt, Politik und

Protest, em: Strategie- und Organisationsdebatte, Hannover, sem data, p. 3).

Sem quaisquer rodeios, sugere-se aqui a posição de um plano alternativo que de modo

nenhum é meramente táctica, cuja busca substancial própria mais trata de invocar a

"esfera liberal dos controlos parlamentares" e de nomear "acordos de interesses

conflituantes" (em última instância de "parceiros sociais"), no sentido do mais ordinário

legalismo sindical, como única fixação de objectivo claramente formulada. Embora

Negt admita, ao mesmo tempo, que o movimento de protesto surge com "uma

reivindicação de total mudança social" (ibidem), no entanto o vazio peculiar desta

atribuição já aponta para que, para já, a totalidade desta reivindicação não poderia ser.

Isso fica ainda mais claro quando ele diz dos grupos anti-autoritários que "... na reflexão

politicamente activa desenvolvem formas de auto-atividade organizacional" e, assim,

realizam "não só as reivindicações constitucionalmente (!) imanentes à solidariedade

democrática, contidas no catálogo dos direitos fundamentais (!)", mas que, ao mesmo

tempo, seriam estabilizadas " ... zonas autónomas de resistência prática contra uma

ordem que só consegue reagir à pressão para a legitimidade com pressão e violência

como legitimidade" (ibidem, p. 13s.). Se as "zonas autónomas de resistência" vagamente

definidas eram realmente apresentáveis como radicalmente modificadoras da sociedade,

nesse caso seriam precisamente a ruptura com meras reivindicações

"constitucionalmente imanentes" e nunca poderiam ser ligadas com estas numa lógica

de "não só – mas também". Essa duplicidade de Negt não apenas deixa ver sob a boina

revolucionária o professoral filisteu alemão que aí vem, que em sua legitimação

argumentativa se protege retroactivamente muito antes das proibições, mas também

sinaliza aquela duplicidade inconsciente do próprio movimento. O seu verdadeiro ponto

de partida empírico, de facto, foi simplesmente a "defesa da democracia" e da

constituição burguesa, contra as leis do estado de necessidade, a grande coligação e as

tendências de formação "tecnocráticas". A própria dinâmica do movimento levou-o

formalmente a posições revolucionárias, mas o seu conteúdo não podia ser mais

especificado nem tornado mais concreto. Na verdade, o suposto radicalismo passou

mais pela mera FORMA da "violação da regra do jogo", da ruptura com os

regulamentos académicos etc. do que por um conteúdo radical, modificador da

sociedade. O conteúdo, afinal, permaneceu realmente preso ao ponto de partida do

movimento meramente democrático e, portanto, fetichista da mercadoria, permanecendo

imanente ao capitalismo, a partir do qual, apenas, tinha ganho a sua base de massas

relativa. Isso fica claro novamente, a título de exemplo, no final do discurso de Negt,

quando ele diz: "Uma dialética constituída pela práxis de elementos anti-institucionais e

institucionais, que cria as condições (!) para uma ultrapassagem socialista da sociedade

de classes capitalista, torna-se a medida para transformar o poder sublime em poder

manifesto do sistema de dominação, como actividade revolucionária democrática (!)

ganha uma verdadeira base de massas. Somente através de um tal alargamento se teria

naturalmente concretizado socialmente o conteúdo político do protesto; a violência

manifesta do Estado não poderia mais virar-se exclusivamente contra estudantes e

jovens, mas seria confrontada com estratégias organizadas de contraviolência, que

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juntariam todos os democratas desta sociedade (!!) numa frente unida de resistência

"(ibidem, pp. 15s.).

Aqui não apenas as orelhas de burro democráticas são visíveis em todo o seu esplendor,

atributos com que Negt hoje, mais do que nunca, é amplamente abençoado, mas já se

mostra a retirada do combate por meras "condições", como já se viu em Adorno. Em

relação a um movimento social real, no entanto, essa disposição torna-se ainda mais

questionável e nebulosa. Porque "condições", no sentido de algo como um

comprometimento do processo da reprodução social real, não podem sequer ser

"criadas" pelo mero esforço subjectivo de um movimento juvenil e estudantil

relativamente limitado; devem significar "condições" de consciência, no sentido de

"revolução cultural", ou no sentido de difusão da visão teórica, o que seria precisamente

a proclamação, o desenvolvimento e a concretização de conteúdos revolucionários em

si, não uma fraca afirmação de exigências e soluções imanentes burguesas da

consciência meramente democrática. Invocar a "comunidade de democratas", até

mesmo "todos os democratas desta sociedade" de modo alternativo supostamente

"verdadeiro", apelar ao PRINCÍPIO da sociedade burguesa contra a sua realidade

empírica, em vez de rebentar este mesmo princípio ideológico com o conteúdo

revolucionário da crítica radical da forma da mercadoria, isso tem de permanecer, desde

o início, como uma manifestação da imanência burguesa, e provar como mentirosos

todos os tons aparentemente radicais. Mas os burros democráticos, que permanecem

completamente dentro do invólucro das abstracções fetichistas, são apenas a

consequência necessária de uma abordagem teórica truncada. Porque falta, na verdade,

o próprio conteúdo revolucionário, os ideais há muito podres da burguesia

revolucionária do século XVIII têm de ser repetidos ad nauseam, enquanto o suposto

radicalismo não se pode agarrar a nada senão à FORMA – e, justamente por isso, fazer

da "QUESTÃO DA VIOLÊNCIA", puramente formal, o ponto crucial sempre repetido,

realmente vazio ou com CONTEÚDOS BURGUESES absolutamente não militantes,

tendo de cair no gesto estilizado da militância de "estratégias organizadas de

contraviolência". Negt hoje já não quer aceitar a sua própria responsabilidade pelo

caminho destrutivo e suicida da RAF; ela pode ser-lhe oferecida partindo directamente

do contexto descrito acima. Os combatentes da RAF eram apenas moralmente mais

consequentes do que os fofos carreiristas universitários do calibre de Negt, que, apesar

da fama, na verdade nunca foram radicais no conteúdo, nem sequer nesse tempo. Nem

deve ser visto como uma expressão de declínio teórico quando Oskar Negt hoje, 20 anos

depois, documenta descaradamente a sua completa falta de compreensão das categorias

centrais da crítica de Marx à produção de mercadorias, como aconteceu no "Prima-

Klima-Kongress" dos antigos membros da Associação de Estudantes Socialistas

Alemães, em Novembro de 1986: "Infelizmente muitos ... só leram os capítulos da

forma do valor de O Capital, que são os mais difíceis, mais obscuros e, provavelmente,

não essenciais – provavelmente. Sim, isto pode dar protestos, não quero comprometer-

me também ... É simplesmente de facto não tão essencial para mim, nem também as

formas do valor ... ou não" (Actas do Prima Klima, Hamburgo, 1987, p. 165).

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Este gaguejar não-conceptual realmente diz tudo. Não é uma descida, porque o nível

teórico nunca foi maior. Só que hoje já não são necessárias frases pseudo-radicais;

satisfeito e instalado no regaço do fáctico da socialização capitalista, cuja força

normativa deve finalmente ser aceite sem resistência, um Negt pode hoje alongar-se a

pregar moral democraticamente, de boca cheia, no círculo dos seus convertidos ao

"realismo". A vergonha acabou. A interpretação democrática do movimento anti-

autoritário, que prevaleceu desde o início contra quaisquer outras opções, especialmente

contra a dos Situacionistas franceses, de acordo com a sua própria lógica tinha de

capitular às consequências da subjectividade do dinheiro não resolvida na sociedade do

fetichismo da mercadoria, e acabar por confessar-se abertamente na "Realpolitk" na

cidadania capitalista.

5.

Acontece, assim, que o anti-autoritarismo de 1968, apesar de todas as repreensões

incompreensivas do marxismo tradicional, teve os seus méritos, pelo menos por um

momento histórico, permitindo mostrar um nível de contradição até hoje nunca mais

percebido, representando, precisamente na sua ambivalência social, um momento de

desenvolvimento necessário que, no entanto, tal como o marxismo, também não foi

capaz de romper o invólucro burguês da história não renovada da emancipação social. A

abstracção extrema do indivíduo que não alcança a base da sua constituição social, e,

como mónada que é, se rebela de modo meramente formal contra a sua própria

socialidade institucional, que lhe é exterior, só pode produzir um pseudo-radicalismo,

que representa, por assim dizer, à maneira de pantomima, as consequências extremas do

sujeito burguês do dinheiro, mas não o supera teoricamente (o que seria o pressuposto),

nem praticamente. O conteúdo vazio do anti-autoritarismo leva, portanto, com lógica

necessidade, de volta ao regaço do mundo burguês, a cuja ultrapassagem ele se furta

sempre de novo, com a ênfase quixotesca na constante metamorfose da sua aparência,

em todas as fases do desenvolvimento da socialização capitalista.

O regresso pacífico e em rebanho ao curral da pátria burguesa, ou, como se expressa

algo mais elegantemente Thomas Schmid, outro antigo pseudo-radical, o "regresso da

esquerda ao seu país" ocorreu primeiro com pezinhos de lã, e, à primeira vista,

parecendo superficialmente ter mesmo carácter de oposição. O anti-autoritarismo tinha

ajudado a Associação de Estudantes Socialistas Alemães a destruir a forma burguesa de

organização herdada, a de uma pequena associação socialista de criação de pequenos

animais domésticos; isso também só pode ser contado como mérito. Certamente que a

"dissolução no movimento" meramente negativa não poderia resolver a questão da

organização da esquerda radical, por causa da sua falta de conteúdo; na realidade, a

regressão burguesa já estava escondida por trás da suposta questão da organização. Na

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prática, isso mostrou-se no aumento rápido e de curta duração de seitas K.,

assustadoramente bizantinas e orientadas pelo tradicional modelo de partido

bolchevique. A mitificação que faziam de uma forma empiricamente já morta do

proletariado e da luta de classes dos anos vinte do século XX, como "mundo

revolucionário que ainda estava em ordem", não sinalizou, como os seus membros

imaginavam, uma quimicamente pura "traição de classe à pequena burguesia" e

"transição para a classe operária", mas só podia ser uma escala no caminho de regresso

ao porto da pátria burguesa. O facto de algumas pessoas terem ficado presas numa

qualquer fase do movimento, e de ainda hoje nos podermos aperceber empiricamente de

todos os seus fenómenos transitórios em tamanho de bolso, não muda o curso geral

como tal. O fetichismo da organização, historicamente fantasiado de "proletário", na

verdade, com as suas rígidas proibições de pensamento e a auto-flagelação dos

"intelectuais" (a que todos os estudantes "revolucionários" de filologia germânica do 1º

semestre estavam autorizados e obrigados) teve principalmente a função de estrangular

e acabar com qualquer impulso ainda remanescente de "excesso", nos momentos do

movimento tocados pela crítica radical do fetichismo da mercadoria. O polo oposto,

alcançado não em último lugar, do mundo burguês foi aquele marxismo tradicional, em

sua figura transfigurada como "revolucionária", que agora era trazido a terreiro de modo

meramente dogmático, contra as formas de decadência, elas próprias lamentáveis e

denunciadas como "revisionistas", mas que secretamente eram almas aparentadas, já

como tal inconscientemente sentidas. O verdadeiro conteúdo dessa suposta questão de

organização e de classe revelou-se no final dos anos setenta, na metamorfose acelerada

em associação verde de criação de pequenos animais domésticos, com todos os atributos

da forma jurídica e política burguesa; até ao ridículo de um renascimento pintado verde

do antigo social-democratismo sob novas condições.

O que resta são essas "novas condições" em si; e o movimento anti-autoritário pode até

dizer, com razão, que ajudou a "modernizar" o capitalismo, não só na Alemanha, no

sentido da plena socialização negativa e abstracta na forma da mercadoria. Quando os

veteranos desta contribuição, hoje claramente sob o nome de "democratização" da

sociedade, querem fixar como uma medalha ao peito a "extensão dos direitos e

liberdades" etc., eles distorcem o verdadeiro conteúdo deste desenvolvimento até à

irreconhecibilidade. Mesmo a tese da Teoria Crítica do "Estado autoritário" percebeu a

tendência histórica muito unidimensionalmente, ainda que soubesse da ambiguidade dos

conceitos na forma fetichista da mercadoria. Expansão da repressão estatal e da

intervenção do Estado, por um lado, e expansão das "liberdades do indivíduo" formais,

por outro lado, não se excluem mutuamente, pelo contrário. A dinâmica solta da forma

abstracta da mercadoria e o desenvolvimento plenamente válido do ser humano

abstracto combinam-se ambos como identidade. Os indivíduos são estatizados na forma

da universalidade abstracta, mas "libertados" precisamente através do mesmo processo,

como mónadas do dinheiro, sem conteúdo e tendencialmente desumanizadas. Atesta

uma ilimitada ingenuidade teórica e política o facto de momentos estatistas deste

processo serem mal interpretados como um "retorno do Estado autoritário" (o que

mesmo Adorno, por vezes, não conseguiu evitar). A máquina de repressão do Estado, o

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seu aparelho de facto tremendamente reforçado, bate nos indivíduos de formas

evidentes e subtis, na medida em que eles, através das contradições da forma da

mercadoria total, são colocados em situações desesperadas na sua própria vida e

integridade física, e são literalmente perturbados; mas essa repressão não tem nada a ver

com a função do aparelho estatal semifeudal tradicional, de manter pela força

hierarquias tradicionais e estruturas de autoridade. Pelo contrário, os indivíduos devem

poder adaptar-se, sem qualquer limitação, à livre circulação do "sujeito automático"

(Marx), à forma do valor da reprodução social e, portanto, do dinheiro. Os

remanescentes tradicionalistas e as formas autoritárias de consciência tinham de ser

dissolvidos, na medida em que ainda se encontravam no caminho da livre flutuação das

mónadas monetárias; e é nesse aspecto que o movimento anti-autoritário alcançou os

seus "sucessos" duradouros.

O capitalismo "liberal" do século XIX não era, como sugere a Teoria Crítica, o

capitalismo "verdadeiro" do indivíduo liberal, que ainda teria tido a chance da

"verdadeira" emancipação social generalizada, sendo na realidade, pelo contrário, um

capitalismo ainda semifeudal, existente apenas como um subsector social, ainda

inacabado e subdesenvolvido; o indivíduo liberal da época não era o indivíduo

plenamente desenvolvido, mas apenas a pré-forma embrionária da individualidade

abstracta. O capitalismo completo ou total fordista não constitui, portanto, uma

transcendência da relação de capital nos seus próprios fundamentos, como Horkheimer

e Adorno pensavam, mas sim o mero acabamento do capitalismo, cujo ponto máximo

eles imaginam no passado. As formas secundárias por eles descritas de fetichismo da

mercadoria não são, em sua perversidade, o resultado de uma falsa superação da

mercadoria, sendo, pelo contrário, apenas o seu vir a si, a revelação da sua verdadeira

natureza e a consequência lógica de si mesma. Cada afirmação da subjectividade

abstracta indissoluta contra as instituições da universalidade abstracta, como suspeitas

portadoras de tradições autoritárias, tinha de emaranhar-se ainda mais profundamente

no fetichismo da forma da mercadoria, o que Adorno, em todo o caso, suspeitava. Sua

recusa em curvar-se ao desaforo da "práxis" dos anti-autoritários aparece, assim, sob

uma luz mais branda. De facto, toda a realização parcial das ideias emancipatórias anti-

autoritárias nas formas da sociedade burguesa transformou-as na prática no seu

contrário. A realização parcial da "sexualidade libertada" resultou necessariamente na

industrialização pornográfica do sexual. Pois a "democratização" da sexualidade é

imediatamente idêntica à sua comercialização pornográfica, porque a forma da

mercadoria e a democracia são idênticas. Para ser de outro modo, a interpretação da

"democratização" do movimento anti-autoritário teria de levar directamente a um

confronto com a forma da mercadoria, e não à sua afirmação.

Que o movimento anti-autoritário, no seu desenvolvimento, não só tem contribuído para

a afirmação social objectiva e para uma diferente versão histórica da forma da

mercadoria, mas também tem sido afectado em sua consciência subjectiva, é o que

mostra também a sua forma decadente reformadora da vida na figura dos alternativos,

cujos múltiplos projectos até hoje devem ser considerados como pilar de suporte social

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dos Verdes. Os projectos alternativos têm sido desde o início uma retirada de direitos

sociais, um abandono de facto da referência político-social global, degradada a

ornamento moral, em relação à qual, apenas, a socialidade do indivíduo e as suas

reivindicações poderiam ser abordadas. "Comunas" redefinidas até se tornarem

"comunidades residenciais", tipografias, editoras, bares, livrarias, projectos culturais

etc., foram desligadas do movimento político em desintegração e transformadas, com

perdas por atrito maiores ou menores, em "empresas comerciais"; com isso, no entanto,

a partir de uma função logística para uma finalidade social superior, foram

transformadas num fim em si de privacidade abstracta, que no seu espaço interior baniu

ideologicamente a transcendência primeiro imaginada social global: a partir da

politização do privado, foi a privatização do político, a partir da ênfase da

autodeterminação revolucionária, foi mais baixinho a "auto-administração" reformadora

da vida, no mero espaço interior de projectos alternativos. O débil reflexo de

reivindicação social na expansão de projectos, primeiro meramente logísticos, de um

movimento pela pseudoprodução reformadora da vida (padarias alternativas e outras

empresas artesanais, agricultura na "terra queimada" de culturas agrícolas abandonadas,

até aos modelos keynesianos de "empreendimentos dos trabalhadores" subsidiados pelo

Estado), na sua "ligação em rede" entrelaçada com o Estado, sinalizou não só uma

mudança na subjectividade de "revolta", mas também, há muito tempo, o abandono com

renúncia incondicional do revolucionamento da produção social real, depois de alguns

anos de tentativas ofegantes. É testemunho da estupidez teórica quando, em afirmação

insinuante, a abstracção que se revela burguesa do sujeito do movimento ainda é

celebrada em suas formas de decomposição directamente na forma da mercadoria:

"Hoje, quando a reflexividade está ameaçada como princípio de vida, também os

movimentos sociais se desenham algo na forma de movimentos alternativos, que

imediatamente (!) assumem a luta por formas de vida tecnicamente ameaçadas,

finalmente pelas chances de IPSEIDADE – como sempre contraditoriamente" (Noel

Daniel, Theorien der Subjektivität [Teorias da subjectividade], Frankfurt / New York

1981, pág. 125, destaque de R.K.).

A tomada alternativa da queijaria agrícola aparentemente arrastou consigo o teórico.

"Como sempre contraditoriamente" – em tais enunciados salgados, procura-se tão pouco

pela forma social da subjectividade proclamada como pelos seus conteúdos. Na

produção de mercadorias socialmente totalizada, no entanto, a própria forma vazia é o

conteúdo, enquanto fim em si mesmo, a que não pode escapar ninguém que não critique

fundamentalmente esta forma como tal. É mais fácil montar num tigre do que mobilizar

para "bons fins" a forma do dinheiro como tal, há muito socialmente desencadeada. Na

vida falsa, não há realmente nenhuma vida verdadeira; a "ipseidade" na forma da

mercadoria totalizada só pode ser sempre, apenas, a rendição incondicional do sujeito

abstracto ao automovimento objectivo dessa forma. Há muito que também o movimento

alternativo, como metamorfose do anti-autoritarismo inicial, foi atingido no seu próprio

terreno pela voracidade da forma social do valor, não só na ironia da fundação de um

banco, mas mesmo na inevitável "profissionalização" na economia de mercado, em que

as leis objectivas da forma da mercadoria tiveram de pôr a ridículo a ilusão de

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"autogestão", tal e qual como a bancarrota há muito ocorrida da "autogestão operária"

na economia mercantil capitalista da Jugoslávia. E já se manifesta uma nova e última

metamorfose do anti-autoritarismo, que restabelece a relação social global juntamente

com a "profissionalização", mas agora como militância ideológica anti-socialista,

enquanto perspectiva de gestão de um "capitalismo ecológico". Os "ecologistas de

mercado" verdes constituem apenas um pequeno segmento dessa tendência, que se

concentrou mais na perspectiva "eco-social" da tecnologia social capitalista. O aumento

do trabalho social do fordismo tardio nos anos de 1970 esteve, desde o início, pessoal e

ideologicamente, intimamente ligado com o movimento anti-autoritário e suas fases de

transição, projectos alternativos incluídos. No entanto, no contexto do trabalho social

comunitário e da sua reflexão "teórica", o surto de "profissionalização" produz

resultados aparentemente inimagináveis.

"A indústria altamente desenvolvida exige para si e para os seus propósitos inovações

sociais ... Cada um é o seu próprio gerente ... O novo estilo de direcção empresarial é

'um estilo de gestão em rede' ... em que cada um se torna um recurso para todos (!). As

empresas cuidam dos seus recursos humanos (!), orientando-se para as necessidades

sociais e do mundo da vida dos seus empregados. Planeamento empresarial da vida de

trabalho e planeamento pessoal da vida, estilo de trabalho e estilo de vida, adaptam-se

com flexibilidade um ao outro (!). Por outro lado, ocorre em muitos lugares a criação de

empreendimentos económicos alternativos por razões sociais: viver diferente – trabalhar

diferente ... A 'nova pobreza' não nos devia bloquear a visão (!) para um processo de

valorização dos recursos humanos (!) que se desenvolve de forma diametralmente

oposta à tese clássica da miséria. O ser humano individual pode fazer mais de si (!) no

Ocidente industrializado, e fazer mais com menos esforço do que nunca ... Os recursos

humanos são a moeda que se pode multiplicar (!). O papel futuro do trabalho social

provavelmente será menos determinado pelo seu contínuo compromisso para ajudar os

necessitados do que pela sua eficácia no desenvolvimento dos recursos sociais (!) ... O

desenvolvimento ocorre em parte na conexão directa entre trabalho social e actividade

empresarial ... Afinal, o sector da economia alternativa já tem na República Federal

Alemã 150.000 empregados, ou mais ... No longo prazo, rentabilidade e bem-estar têm

de concordar (!) em toda a parte, rendimento económico e social têm de estar em

equilíbrio. Para que isso não aconteça por cima das cabeças das pessoas (ou seja, mais

uma vez, de modo 'anti-social'), uma tarefa cada vez mais importante do trabalho social

consiste em, fora e dentro das empresas, insistir na própria organização produtiva do seu

modo de vida, e assim participar de forma socialmente activa nos processos da

economia. Este é o significado de autogestion, termo pelo qual os franceses discutem o

contexto de auto-determinação, auto-administração e autogestão (!!) … " (Wolf Rainer

Wendt, Das breite Feld der sozialen Arbeit: Historische Beweggrunde und ökologische

Perspektiven [O amplo campo do trabalho social: motivos históricos e perspectivas

ecológicas], in: Oppl/Tomaschek, Soziale Arbeit 2000, Band 1, Soziale Probleme und

Handlungsflexibilität [Problemas sociais e flexibilidade de acção], Freiburg 1986, p.

68ss.).

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A brutal e perversa reificação desta linguagem e da sua terminologia julga-se a si

mesma. Agora se vê que valor tinham as frases sobre a "reificação" na boca daqueles

que negligenciaram a sua concretização como crítica radical da forma da mercadoria da

reprodução social em geral. E de maneira nenhuma se trata de uma voz isolada; basta

pensar na "mudança de paradigma" dos sociólogos industriais que foram de "esquerda",

como Kern/Schumann, que hoje também apostam numa "gestão esclarecida". Em sua

consequência objectiva a longo prazo, tal como na transformação da consciência

subjectiva dos seus representantes, o movimento anti-autoritário tornou-se o último

grito da cultura empresarial capitalista. Desde a revolucionária "autodeterminação",

passando pela "auto-administração" reformadora da vida até à brutal autodefinição

como "recurso humano" reificado, até à "auto-economificação" e "autovalorização" –

que impiedosa lógica de autodestruição da vontade emancipatória, sob a luz orientadora

da indissoluta subjectividade abstracta! A incapacidade do pensamento meramente

formal de autonomia, ou anti-autoritarismo, de se distinguir da determinação do sujeito

monetarista do liberalismo é, assim, cruelmente provada na prática. Basta citar outro

grande anti-autoritário, alternativo e amante da subjectividade abstracta do dinheiro: "A

Revolução Americana foi filosófica. Pela primeira vez na história da humanidade, nós

libertámos o génio individual de cada pessoa singular, para subir tão alto e tão longe

quanto a sua própria força e as suas capacidades o levarem" (Ronald Reagan, 1980).

Sendo a "autodeterminação" e "auto-administração" definidas deste modo no seu

conteúdo pelo resultado, perdem assim retrospectivamente como tais, como mera

proclamação de vontade de emancipação, qualquer último suspiro de transcendência

revolucionária. Que era importante "fazer algo de si mesmo" como sujeito do dinheiro,

para isso não havia necessidade de nenhuma ideia emancipadora, porque o conteúdo da

forma do dinheiro consiste em si mesmo e no seu vazio, no qual se baseia a total

dessubjectivação do sujeito. Não é ao muito citado "Offene" [Campo aberto] da elegia

de Hölderlin que o movimento anti-autoritário chegou, no final amargo da sua jornada,

pelo contrário, foi voluntariamente que ele mesmo se emparedou definitivamente na

"cela prisional" da socialização abstracta, cujo nome Dutschke e os seus não foram

capazes de pronunciar de modo radicalmente crítico. O "tempo de chumbo" só agora

começou, tanto para os vencedores do processo de "auto-economificação", que não

conseguem ser sujeitos nenhuns, como para os perdedores dele, que são entregues à

administração capitalista da pobreza e das catástrofes. Para o caso da sua revolta,

também estarão prontas, se necessário como representantes de último recurso da

dominação despersonalizada do "sujeito automático", as sapatilhas de Noske, uma vez

que os Verdes também já produziram o seu millerandismo em sapatilhas. Os

Situacionistas de 1968 sabiam do que falavam: "A auto-gestão do sistema da

mercadoria... FARIA DE CADA SER HUMANO O PROGRAMADOR DA SUA

PRÓPRIA EXISTÊNCIA: é a quadratura do circulo. A tarefa dos Conselhos Operários

não consistirá, portanto, na autogestão do mundo existente, mas na sua transformação

qualitativa ininterrupta, ultrapassando na prática o sistema da mercadoria e, assim,

abolindo a gigantesca perversão da produção pelos produtores" (Das Elend der

Studenten [A miséria do meio estudantil], Junho 1968, p. 23s., destaque de R.K.).

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A parte negativa desta declaração lê-se hoje como um prognóstico sobre o próprio

movimento anti-autoritário, na sua interpretação imanente democrática e capitalista.

Com a verificação deste prognóstico, a esquerda está realmente "regressada a casa no

seu país". Os Verdes e o seu ambiente social são o cadáver fedorento da vontade

emancipatória de 1968. Esta vontade, afogada na lógica do dinheiro e do seu

automovimento, não voltará a erguer-se nos seus portadores, como Fénix das cinzas, na

crise que aí vem e em parte já se manifesta do dinheiro e da economia das mercadorias,

mas transformá-los-á definitivamente em novos pequeno-burgueses furiosos,

gananciosos e, em última análise, assassinos. O agarrar e morder, o choro e ranger de

dentes em torno do "tacho alternativo" do Estado e dos municípios terá de aumentar até

ao insuportável, com a crise manifesta das finanças públicas e com uma crise económica

global iminente, e produzir formas contínuas políticas hoje ainda na sombra. Apenas

debilmente se podem ver hoje novas esperanças de uma vontade social de emancipação

do sujeito humano. Para a actual oposição radical juvenil dos autónomos, que ao seu

conceito de "autonomia" tão pouco deu um conteúdo claro como o movimento anti-

autoritário de 1968, o desenvolvimento deste e os seus resultados sociais e subjectivos

devem representar um sinal de alerta. "Não basta um voto abstracto no poder dos

Conselhos Operários". O slogan abstracto, sempre tão frequentemente repetido, contra o

trabalho assalariado e pela autonomia permanece vazio e sem efeito, se não puder ser

fundamentado no discurso da teoria social e concretizado na luta prática, a todos os

níveis da sociedade, como crítica fundamental da própria forma da mercadoria e do

dinheiro. Os autónomos, tal como outros movimentos futuros, serão radicais como

críticos radicais da sociedade do fetichismo da mercadoria e do dinheiro em geral, ou

não serão nada como radicais.

Original Glanz und Elend des Antiautoritarismus. Streiflichter zur Ideen- und Wirkungsgeschichte der

"Neuen Linken" aqui e aqui. Publicado originalmente na revista Marxistische Kritik nº 5, Dezembro 1988.

Republicado na homepage da exit!, com uma nota da redacção, em Abril de 2018. Tradução de

Boaventura Antunes.

http://obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/