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ESPM/SP PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS DE CONSUMO - PPGCOM Dariane Lima Arantes CELEBRANDO NOSSOS CORPOS, ENCRESPANDO NOSSOS FIOS: A transição capilar como política de visibilidade em narrativas autobiográficas de mulheres negras São Paulo 2019

ESPM/SP PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS DE … · 2019-05-07 · Dissertação (mestrado) – Escola Superior de Propaganda e Marketing, Programa de Pós

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ESPM/SP

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS DE CONSUMO - PPGCOM

Dariane Lima Arantes

CELEBRANDO NOSSOS CORPOS, ENCRESPANDO NOSSOS FIOS:

A transição capilar como política de visibilidade em narrativas autobiográficas de

mulheres negras

São Paulo

2019

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Dariane Lima Arantes

CELEBRANDO NOSSOS CORPOS, ENCRESPANDO NOSSOS FIOS:

A transição capilar como política de visibilidade em narrativas autobiográficas de

mulheres negras

Dissertação apresentada à ESPM como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosamaria Luiza

(Rose) de Melo Rocha

São Paulo

2019

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“O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001”.

“This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001”.

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Ficha catalográfica elaborada pelo autor por meio do Sistema de Geração Automático da Biblioteca ESPM

Arantes, Dariane Lima

CELEBRANDO NOSSOS CORPOS, ENCRESPANDO NOSSOS FIOS: a transição capilar como política de visibilidade em narrativas autobiográficas de mulheres negras / Dariane Lima Arantes. - São Paulo, 2019.

131 p. : il., color.

Dissertação (mestrado) – Escola Superior de Propaganda e Marketing, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, São Paulo, 2019.

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Dariane Lima Arantes

CELEBRANDO NOSSOS CORPOS, ENCRESPANDO NOSSOS FIOS:

A transição capilar como política de visibilidade em narrativas autobiográficas de

mulheres negras.

Dissertação apresentada à ESPM como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo.

Aprovado em ______ de __________________de ________

BANCA

EXAMINADORA

__________________________________________________

Presidente: Prof.ª Dr.ª Rosamaria Luiza (Rose) de Melo Rocha Escola Superior de Propaganda e marketing (ESPM-SP)

__________________________________________________

Membro: Prof.ª Dr.ª Fabiana Moraes Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

__________________________________________________

Membro: Prof.ª Dr.ª Tânia Hoff Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP)

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Para Cecília, com amor!

À memória de vovó, que foi ensinada a odiar os

próprios fios crespos, que considerava pentear

os cabelos um tormento e que sempre precisou

“discipliná-los”, mantendo-os presos e puxados

para trás.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe, Vilma, por todo esforço dedicado à minha formação

pessoal e acadêmica; por estar sempre ao meu lado e não medir esforços para que

pudesse concretizar os meus sonhos.

Ao meu amor, Diego Laux Jaques, por estar comigo em absolutamente todos

os momentos – os bons e os ruins – e ainda por toda a paciência nos momentos mais

difíceis. Sem você, eu sequer teria começado esta jornada.

Às minhas irmãs, Danielle Arantes e Marcelle Arantes, que sempre me

apoiaram nas longas jornadas de estudos, nas ausências e nos dias estressantes em

que parece que nada vai dar certo.

Agradeço ao meu amado amigo, Hadriel Theodoro, por ter me apresentado à

ESPM, pelos conselhos dados e por todo o companheirismo que teve comigo durante

toda essa trajetória.

Às queridas amigas Angélica Ribeiro da Silva e Mariane Rodrigues, pela a

amizade e carinho de sempre.

À minha parceira de trabalho e amiga, Larissa Santos, por sempre ter entendido

às vezes que precisei me ausentar e por me incentivar a buscar meus sonhos.

Aos amigos do PPGCOM-ESPM, em especial, minha querida turma M17. Foi

uma alegria imensa ter tido vocês como parceiros de aulas, discussões e conversas

no corredor.

À Prof.ª Dr.ª Fabiana Moraes e à Prof.ª Dr.ª Tânia Hoff, por aceitarem integrar

a banca avaliadora e por todas as contribuições à pesquisa.

Aos professores do PPGCOM-ESPM, agradeço por todo suporte e

aprendizados.

À ESPM-SP, pela ótima infraestrutura e recursos humanos.

Agradeço ainda de forma muito especial à Coordenação de Aperfeiçoamento

de Pessoal de Nível Superior (CAPES) por ter financiado o desenvolvimento desta

pesquisa.

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Por fim, à minha orientadora Rose de Melo Rocha, por ter me guiado de forma

tão generosa nessa jornada, por todo o conhecimento compartilhado e todo o carinho

que sempre demonstrou por mim.

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RESUMO

Nesta investigação, articulamos as dinâmicas entre comunicação e culturas do

consumo no debate centrado nas visibilidades sociais que emanam das vivências

midiáticas de mulheres negras. Interessa-nos perceber como os fluxos identitários e

culturais que emergem dessas experiências autobiográficas midiatizadas dialogam

com realidades sociais e contextos culturais, atrelados às subjetividades, disputas

simbólicas e imaginários, em um contexto permeado por lógicas de branqueamento e

pelo mito da democracia racial. Partindo de reflexões sobre espaço biográfico, nossa

discussão se volta às narrativas de transição capilar de quatro figuras de diferentes

âmbitos da mídia: a atriz Taís Araújo, a empreendedora Alexandra Loras, a cantora

Ludmilla e a youtuber Rayza Nicácio. Como problemática desse estudo, indagamos

se a estética pode atuar como possibilidade de negociação de sentidos, partindo do

entendimento de que da experiência de transição capilar emergem sentidos ligados

aos corpos negros, que englobam estigmas e exclusões, mas também possíveis

sentidos de (re)significação e (re)existência.

Palavras-chave: comunicação; culturas do consumo; espaço biográfico; transição

capilar.

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ABSTRACT

In this research, we articulate the dynamics between communication and consumer

cultures in the debate centered on the social visibilities from the mediatic experiences

of black women. It is interesting to see how the identity and cultural flows that emerge

from these mediated autobiographical experiences interact with social realities and

cultural contexts, linked to subjectivities, symbolic and imaginary disputes, in a context

permeated by a whitening logic and the myth of racial democracy. Starting from

reflections on biographical space, our discussion turns to the capillary transition

narratives of four figures from different media spheres: the actress Taís Araújo, the

entrepreneur Alexandra Loras, the singer Ludmilla and the youtuber Rayza Nicácio. .

As a problematic of this study, we ask if aesthetics can act as a possibility of negotiation

of meanings, starting from the understanding that from the experience of capillary

transition emerge senses linked to black bodies, which encompass stigmas and

exclusions, but also possible meanings of (re)signification and (re)existence.

Keywords: communication; consumer cultures; biographical space; capillary

transition.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1: Anúncio racista da marca Dove (2017) ................................................ p. 24

Imagem 2: Propaganda racista marca de cerveja Devassa (2017) ....................... p. 26

Imagem 3: Propaganda “O Cabelisador” ............................................................... p. 29

Imagem 4: Propaganda da esponja de aço “Krespinha” (1952) ............................ p. 30

Imagem 5: Propaganda Unilever para cabelos crespos e cacheados com youtubers

(2017) .................................................................................................................... p. 33

Imagem 6: Propaganda Salon line, narrativa da aceitação (2018) ........................ p. 33

Imagem 7: Regulamento que estabelece exemplos de tipificações capilares permitidas

aos militares da Força Aérea Brasileira ................................................................. p. 64

Imagem 8: Taís Araújo em selfie com colegas ...................................................... p. 76

Imagem 9: Taís e o ator Lazaro Ramos, seu marido ............................................. p. 78

Imagem 10: Taís apresentando o programa Saia Justa, da GNT ......................... p. 79

Imagem 11: Ludmilla participa de quadro "Revira viral", do programa Caldeirão do

Huck ...................................................................................................................... p. 84

Imagem 12: Cena original do vídeo viral à que Ludmilla faz referência ................ p. 85

Imagem 13: Comentários de seguidores na imagem postada por Ludmilla .......... p. 86

Imagem 14: Ludmilla posa na praia ....................................................................... p. 86

Imagem 15: Ludmilla compartilha antes e depois das transformações estéticas .. p. 87

Imagem 16: Rayza compartilha selfie .................................................................... p. 90

Imagem 17: Rayza compartilha foto destacando o cabelo crespo ........................ p. 91

Imagem 18: Selfie Rayza Nicácio .......................................................................... p. 92

Imagem 19: Alexandra compartilha imagem da propaganda da Lancôme .......... p. 95

Imagem 20: Alexandra celebra Dia Internacional da Mulher Negra e Caribenha

............................................................................................................................... p. 97

Imagem 21: Alexandra compartilha capa da Revista Istoé .................................... p. 99

Imagem 22: Ludmilla antes e depois da transição capilar .................................... p. 110

Imagem 23: Rayza Nicácio, antes e depois da transição capilar ......................... p. 110

Imagem 24: Alexandra Loras, antes e depois da transição capilar ...................... p. 111

Imagem 25: Taís Araújo, antes e depois da transição capilar .............................. p. 111

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Levantamento relatos transição capilar .................................................. p. 67

Tabela 2: Levantamento de dados no YouTube .................................................... p. 68

Tabela 3: Levantamento de dados no Facebook ................................................... p. 68

Tabela 4: Postagens de Taís Araújo com maior audiência no Facebook .............. p. 69

Tabela 5: Postagens de Ludmilla com maior audiência no Facebook ................... p. 69

Tabela 6: Postagens de Alexandra Loras com maior audiência no Facebook ...... p. 70

Tabela 7: Postagens de Rayza Nicácio com maior audiência no Facebook ......... p. 70

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................... p. 13

CAPÍTULO 1. MULHERES NEGRAS, MÍDIA E CONSUMO ................................ p. 20 1.1 CONSUMO, MÍDIA E NEGRITUDE: A CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA DA MULHER

NEGRA EM CONTEXTOS BRASILEIROS ........................................................... p. 20

1.2 A IMAGEM DA MULHER NEGRA: ESTEREÓTIPOS E REPRESENTAÇÕES

............................................................................................................................... p. 23

1.3 O CABELO E AS REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS ..................................... p. 28

CAPÍTULO 2. AUTOBIOGRAFIAS E VISIBILIDADES EM PERFORMANCES MIDIÁTICAS DE MULHERES NEGRAS .............................................................. p. 35 2.1 DO EU QUE ECOA UM NÓS: MEU CABELO, NOSSAS HISTÓRIAS ........... p. 35

2.2 O ATO DE NARRAR A SI MESMO: INTERSEÇÕES ENTRE COMUNICAÇÃO,

CONSUMO E ESPAÇO AUTOBIOGRÁFICO ....................................................... p. 49

2.3 AS NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS COMO PERFORMANCE MIDIÁTICA

............................................................................................................................... p. 56

CAPÍTULO 3. PERCURSOS METODOLÓGICOS ............................................... p. 61 3.1 ESCOLHAS METODOLÓGICAS .................................................................... p. 61

3.2 DELIMITAÇÃO DO CORPUS E ETAPAS METODOLÓGICAS ....................... p. 66

CAPÍTULO 4. ANÁLISES E INTERPRETAÇÕES ................................................ p. 73 4.1 MODOS DE APRESENTAÇÃO ....................................................................... p. 73

4.2 PRESENÇA MIDIÁTICA E MODOS DE APRESENTAÇÃO EM TAÍS ARAÚJO

............................................................................................................................... p. 74

4.2.1 Modos de apresentação ..................................................................... p. 76

4.3 PRESENÇA MIDIÁTICA E MODOS DE APRESENTAÇÃO EM LUDMILLA

............................................................................................................................... p. 81

4.3.1 Modos de apresentação ..................................................................... p. 84

4.4 PRESENÇA MIDIÁTICA E MODOS DE APRESENTAÇÃO EM RAYZA NICÁCIO

............................................................................................................................... p. 88

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4.4.1 Modos de apresentação ..................................................................... p. 90

4.5 PRESENÇA MIDIÁTICA DE ALEXANDRA LORAS ........................................ p. 94

4.5.1 Modos de apresentação ..................................................................... p. 95

4.6 LUGARES DE FALA E AS NARRATIVAS DE TRANSIÇÃO CAPILAR ......... p. 100

4.6.1 Processos de alisamento ................................................................. p. 101

4.6.2 A decisão pela transformação e os sentidos “pós transição capilar”

.................................................................................................................. p. 105

4.7 ESTRATÉGIAS DE VISIBILIDADE ................................................................ p. 112

4.7.1 Taís Araújo ....................................................................................... p. 116

4.7.2 Ludmilla ............................................................................................ p. 117

4.7.3 Rayza Nicácio .................................................................................. p. 118

4.7.4 Alexandra Loras ............................................................................... p. 119

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ p. 121

REFERÊNCIAS .................................................................................................. p. 124

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O corpo é entendido como construção sociocultural e depositário da cultura de

que participa o indivíduo (CAMPELO, 1997). Assim, seus sentidos são dados nas

interações sociais e nelas são significados. Ao longo de séculos de história, marcados

pela colonização, escravidão e processos de branqueamento, foi se construindo

socialmente o conceito dos corpos ditos conformes e corpos não conformes,

potencializados nas sociedades modernas, pelos agenciamentos subjetivos

(MENDONÇA, 2008) destinados à conformação e ao disciplinamento.

Nesse sentido, o cabelo se destaca como elemento corporal para analisar as

imposições e estigmas a que estão sujeitos os corpos, mas também alude a possíveis

sentidos de (re)existência que dele pode emergir. Gomes (2008), ao refletir sobre as

significações do corpo da mulher negra, afirma que o corpo e o cabelo são colocados

como espaços de aceitação, rejeição e ressignificação, pois são considerados

expressões e suportes simbólicos da identidade negra no contexto brasileiro. Como

símbolo inscrito no corpo, o cabelo sempre recebeu considerável atenção por parte

dos seus possuidores. É a parte do corpo utilizada para exibir não apenas um gosto

pessoal, mas pertencimento, filiação a uma causa ou até mesmo um ato político, o

que evidencia sua imbricação com aspectos da cultura.

Conforme aborda Quintão (2013), já no século XIX era possível perceber uma

hierarquização de fenótipos entre negros e brancos a partir das expressões corpóreas.

Essa lógica favoreceu a construção dos sentidos de cabelo “bom” ou “bonito”,

associado à textura lisa; em contrapartida, o chamado cabelo “ruim” ou “feio” era

associado a texturas encaracoladas e crespas, comum entre as mulheres negras.

Neuza Santos traça um comparativo entre essa visão social do negro em relação ao

branco:

O irracional, o feio, o ruim, o sujo, o sensitivo, o superpotente e o exótico são as principais figuras representativas do mito negro (...). Aqui branco quer dizer aristocrata, elitista, letrado, bem-sucedido. Noutro momento o branco é rico, inteligente, poderoso. Sob quaisquer nuances, em qualquer circunstância, branco é o modelo a ser escolhido (SANTOS, 1983, p. 27-34).

Nesse contexto, desde ainda muito jovens, as mulheres afrodescendentes são

socializadas a manipular o cabelo para se aproximarem de uma estética próxima ao

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liso, celebrado como belo. A naturalização desses processos provém das lógicas de

branqueamento e inferiorização a que o corpo negro é submetido historicamente, que

incute, muitas vezes, nesses sujeitos sociais a necessidade de alterações de suas

características capilares naturais como forma de se enquadrarem a um padrão de

beleza hegemônico.

A sociedade ocidental, construída sobre os pilares de um sistema colonialista

e escravocrata, promove uma estrutura violenta de moldes e conformações de

padrões de beleza. Aqueles que não se enquadram em tais padrões estéticos, sofrem

algum tipo de rejeição social. A representatividade da beleza/cultura afrodescendente

nas mídias (revistas, novelas, peças publicitárias, etc.) ainda é bastante tímida, apesar

de o Brasil ser um país de expressiva população negra.

Nesse ambiente hostil, as mulheres negras constroem suas identidades e

subjetividades, o que muitas vezes lhes impossibilita de existir e de se reconhecer

como belas, visto que os padrões corporais hegemônicos – que conformam gostos,

sentimentos e preferências – não as favorece. Dessa forma, a transição capilar1 surge

como aspecto que tensiona as relações raciais e os padrões de gosto impostos às

mulheres e suscita discussões sobre consumo voltadas à ideia de uma política da

diferença no contexto brasileiro.

Em suma, acreditamos que o debate em torno desses tensionamentos sociais

que envolvem a conformação dos corpos e seus atos de resistência é perpassado

pela cultura e materializa-se na mídia – entendendo-a como espaço de expansão dos

corpos (BAITELLO, 2010). Portanto, revelam conflitos e embates de ideias que se

manifestam em narrativas autobiográficas (ARFUCH, 2010) de mulheres negras sobre

suas experiências capilares e suas relações com a memória coletiva, racismo e a

resistência.

Assim, em vista da contextualização aqui proposta, delimitaremos nosso objeto

de estudo contemplando as narrativas autobiográficas de mulheres negras na cena

audiovisual brasileira e suas intersecções com a mídia e as práticas do consumo.

Nosso objeto de pesquisa se volta à compreensão das visibilidades midiáticas

de mulheres negras inclinadas à ideia de uma política da diferença. A partir das

1 A transição capilar é o processo no qual se abandona a utilização de processos químicos e mecânicos de alisamento e se assume o cabelo em suas texturas naturais, crespas e cacheadas.

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narrativas autobiográficas de transição capilar apreendidas das vivências midiáticas

da atriz Taís Araújo, da empreendedora Alexandra Loras, da youtuber2 Rayza Nicácio

e da cantora Ludmilla, buscamos investigar como as culturas do consumo atreladas

às visibilidades midiáticas de mulheres negras (especificamente nas experiências de

Taís Araújo, Ludmilla, Alexandra Loras e Rayza Nicácio) podem se articular no sentido

de promover uma política da diferença. Indagamos ainda quais os sentidos produzidos

acerca da transição capilar em suas narrativas e quais as disputas de sentido que

delas emergem.

Ao centralizar nossa temática de pesquisa nas narrativas de transição capilar,

torna-se necessário algumas reflexões acerca do corpo e suas expressividades. A

modernidade teve um papel importante na construção da percepção do corpo como

um marcador de diferenças. Ela trouxe consigo todo um conjunto de procedimentos

discursivos e institucionais de disciplina aos corpos. Contudo, segundo Foucault

(2008), o poder também pressupõe a resistência. Dessa forma, das expressividades

corpóreas podem emanar sentidos contrários aos mecanismos de dominação.

Esse sistema de conformação corporal é a expressão do poder na

modernidade, segundo Foucault (2005). Para o autor, a “disciplinarização” e a

modernidade são correspondentes, na medida em que o corpo se torna um elemento

central, sem o qual o poder não tem condições de ser exercido. Essas tecnologias do

poder (FOUCAULT, 2005) impostas aos corpos estabelecem condutas, proibições,

obrigações e modelos de existência aos sujeitos, criando padrões acerca do corpo:

“bom”; “mau”; “belo”; “feio”, “conforme” e “não conforme”.

Associando tais preceitos ao contexto brasileiro, cuja história é marcada pela

escravidão, mestiçagens e políticas de branqueamento, temos que o modelo de corpo

“conforme” é o eurocêntrico. Assim, os que se distanciam desses padrões sofrem uma

série de sanções de forma a se conformarem ao padrão hegemônico estabelecido.

Nessa dinâmica, os corpos não “conformes” criam estratégias de resistência que

geram disputas de significações acerca dos aspectos corpóreos (GÓMEZ; SALGADO,

2012).

2 Tipo de celebridade que ganhou popularidade com produção de conteúdo na plataforma digital YouTube.

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Aproximando essas reflexões aos aspectos ligados às sociedades

comunicacionais na contemporaneidade, temos que os corpos criam disputas de

sentido que se ligam a fluxos identitários e culturais, tornando-se perceptíveis nas

vivências midiáticas dos sujeitos. Esses trânsitos simbólicos que englobam os corpos

e suas expressividades são potencializados pelos aparatos tecnológicos e nutrem as

práticas comunicacionais, estabelecendo vínculos sociais, que empregam sentidos

aos bens e aos indivíduos (ROCHA, 2008).

Lemos (2007) argumenta que a descentralização dos meios de comunicação

no contexto pós-massivo provoca o avanço da midiatização e das novas

sensibilidades de lidar com tempo-espaço, levando os meios de comunicação ao

centro da vida cotidiana. Este cenário se torna fértil para a afirmação de uma

expressão imediata do vivido e do testemunhal, em formas de narrar a vida (ARFUCH,

2010). Assim, os relatos autobiográficos construídos nos espaços midiáticos são ao

mesmo tempo produtos e dispositivos de interpretação das culturas midiáticas e se

expandem para além de um caso singular, possibilitando novas narrativas,

identificações e identidades e uma interpretação das realidades sociais e contextos

culturais (RINCÓN, 2006).

A mídia se desenha como uma arena do visível (ROCHA; CASTRO, 2009),

inserindo os sujeitos em um cenário amplo, permeado pela extensão televisionada ou

teleauditiva. Assim, a dinâmica social mediada pela “transparência de uma tela, da

impalpabilidade de uma imagem, uma participação por olho e por espírito nos abre ao

infinito do cosmos real e das galáxias imaginárias” (MORIN, 2006, p. 71). Essa

multiplicidade do real e do imaginário fomenta as trocas afetivas entre os sujeitos,

onde os sentidos são construídos na representação de imagens.

Para André Lemos (2007, p. 156), os processos midiáticos, em especial as

mídias audiovisuais, configuram-se enquanto “fluxo, troca, deslocamento,

desenraizamento e desterritorialização das relações sociais, das informações e dos

territórios”. Essa estrutura midiática, instaurada pela cibercultura, permite que

qualquer indivíduo produza e publique informação em tempo real. Ou seja, torna-se

possível “emitir, circular e se mover ao mesmo tempo” (Ibidem, p. 159).

O território informacional se converte, portanto, em um lugar dependente do

espaço físico e eletrônico a que está vinculado. Tudo isso a partir de elementos que

criem laços de pertencimento simbólico, econômico, afetivo, etc., afirma Lemos

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(2010). Ou seja, nessa configuração atravessada por territórios informacionais, os

sujeitos sociais virtualmente adquirem maior capacidade de intervenção e expressão

da subjetividade.

Esta imbricação entre mídia, cultura e política é atravessada por práticas de

consumo, que, articuladas a contextos socio-históricos, permitem a interação entre os

sujeitos e a construção de suas identidades para além do consumo restrito a bens

materiais. O consumo atua como um promotor de vínculos sociais, por meio de

práticas discursivas e simbólicas articuladas às práticas cotidianas. Ou, como afirma

Rocha:

(...) consumir, neste caso, é muito mais do que mero exercício de gostos, caprichos ou compras irrefletidas, mas todo um conjunto de processos e fenômenos socioculturais complexos, mutáveis, através dos quais se realizam a apropriação e os diferentes usos de produtos, serviços (...) (ROCHA, 2010, p. 1).

Assim, torna-se necessário pensar a comunicação e o consumo para além de

aparatos e estruturas, abarcando seu viés cultural, que englobe análises que se

refiram aos sujeitos sociais. Nesse sentido, mais do que dinâmicas de reprodução de

formas e conteúdo, faz-se necessário localizar na produção da comunicação “os usos

sociais dos meios, as recriações de seus conteúdos e a criação de novos significantes

e significados” (ROCHA, 2010, p. 2).

Rocha e Castro (2009, p. 51), ao abordarem as culturas da mídia, lembram que

o consumo pode ser entendido como uma forma de mediação: “ao consumirmos bens

materiais e imateriais nós nos constituímos enquanto indivíduos e negociamos nossos

próprios significados nos jogos comunicativos entre o coletivo e o individual, o global

e o local”. As práticas de consumo são, assim, atreladas às dinâmicas sociais,

culturais e econômicas que as circundam.

A hibridação entre mídia, consumo e a estetização do cotidiano cria:

(...) dinâmicas de visibilização incessante e configuram verdadeiras arenas de disputa pela conquista de atestados de existência midiáticos. Nessas arenas do visível, homens e mulheres buscam, a todo custo, manter-se em cena (ROCHA; CASTRO, 2009, p. 52).

As dinâmicas de visualidade, com fronteiras cada vez menos demarcadas,

aludem à maneira como construímos nossa identidade e reconhecemos a diferença,

e repercutem nas formas como concretamente vivemos nossas vidas, percebemos o

mundo e nele nos inserimos (Idem).

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Esse ambiente de produção e exigência de visibilidades permite investigar as

formas de produção e negociação de sentidos ligados aos corpos negros, que

englobam estigmas e exclusões, mas também possíveis sentidos de (re)significação

e (re)existência, em que tensões socioculturais ganham visibilidade social e impacto

midiático.

Nesta direção, a presente pesquisa se desenvolve em três etapas

metodológicas. A primeira delas faz referência a revisão bibliográfica, com o intuito de

estabelecer uma aproximação das teorias e estudos já realizados sobre o mesmo

tema. A segunda etapa se refere ao levantamento de dados que compõem o corpus

de análise. Por fim, a terceira etapa metodológica corresponde à análise de conteúdos

selecionados do corpus, pautada em perspectiva crítica de interpretação.

Deste modo, no Capítulo 1 buscamos entender a constituição de uma

sociedade de consumo, localizada a partir da modernidade. Nosso olhar está voltado

a perceber como as transformações tecnológicas, das cidades, das imagens, das

identidades e das mídias, pautadas nas práticas do consumo, oferecem formas de

demarcar pertencimento e reconhecimento, mas também estabelecem conflitos e

exclusões. Buscamos refletir ainda, como as sociedades modernas desenvolvem

maneiras de se estar no mundo e agenciamentos subjetivos (MENDONÇA, 2008)

destinados à conformação dos corpos, ao estabelecerem manuais de comportamento

que visam disciplinar as condutas, expressões e aparências e o quanto isso influência

a criação de padrões corporais ideais, que privilegiam modelos hegemônicos de

branquitude e marginaliza aspectos atrelados à estética negra.

No Capítulo 2, nos dedicamos a compreensão das narrativas autobiográficas

de transição capilar em mulheres negras, como forma de refletir acerca de suas

visibilidades midiáticas. A partir deste ponto, versamos sobre o fato de as imagens

tomarem centralidade em nossas sociedades e no imaginário midiático, concebendo

ainda o processo narrativo como aquele que legitima e dá significado à realidade

cultural.

No capítulo 3, detalhamos a construção metodológica da pesquisa.

Destacamos nosso posicionamento adotado, o entendimento da ciência não enquanto

lugar neutro, mas como espaço para pensar a cultura, as estruturas de poder e

também o lugar de onde se fala e de onde se parte enquanto pesquisador. Assim,

nosso estudo mobiliza conceitos como lugar de fala (RIBEIRO, 2017) e a

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autoetnografia (SCRIBANO; SENA, 2009; VERGUEIRO, 2014) como estratégia

metodologia para compreender o quanto a presença dos pontos de vista de quem

pesquisa pode favorecer a captação de experiências outras.

É apresentado no capítulo 4 as análises e interpretações de nosso corpus da

pesquisa, com o intuito de apreender as visibilidades midiáticas presentes em Taís

Araújo, Ludmilla, Alexandra Loras e Rayza Nicácio. Nossas interpretações se dividem

em três categorias distintas: modos de apresentação; lugares de fala associadas a

narrativas autobiográficas e estratégias de visibilidades.

Por fim, encontram-se as considerações finais, onde estão colocadas reflexões

mais gerais sobre a pesquisa e a alguns apontamentos acerca das relações entre

mulheres negras e espaços midiáticos, relacionando as narrativas biográficas das

artistas estudadas.

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CAPÍTULO 1. MULHERES NEGRAS, MÍDIA E CONSUMO

1.1 CONSUMO, MÍDIA E NEGRITUDE: A CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA DA MULHER

NEGRA EM CONTEXTOS BRASILEIROS

O surgimento da sociedade do consumo constitui um marco teórico para

pensarmos sobre as visibilidades de mulheres negras. O contexto de seu início

perpassa a Revolução Industrial e as mudanças estruturais por ela acarretadas, que trouxeram um novo sistema de ordens que modificou as esferas sociais, econômicas,

tecnológicas, culturais, e também nas práticas de consumo. Neste contexto, o

consumo adquire protagonismo, como força motriz do desenvolvimento econômico e

como elemento de mediação de novas relações e processos, que se estabelecem no

âmbito das sociedades modernas.

É neste cenário também, “do fazer viver moderno”, fundamentado nas lógicas

capitalistas, que surgem movimentos em prol do “prolongamento da vida”, no intuito

de torná-la mais produtiva, mas também permitindo que os indivíduos passem a ter

melhor compreensão do próprio corpo. Assim, aquilo que é a favor da vida, no sentido

de hábitos e condutas, consolida-se como prática obrigatória; por outro lado, tudo que

parece ser contra a vida, tornou-se proibido (BERTOLINI, 2015). Esses processos de

disciplinarização dos corpos, entendidos 2por Foucault sob o conceito de biopoder,

centram-se:

no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos.” (FOUCAULT, 1998, p. 151)

Esta noção de biopoder aparece como um modo de exercício do poder

característico das sociedades na modernidade, e está atrelada a formas de regulação

e disciplinarização destinando-se à conformação dos corpos (FOUCAULT, 1998). Os

modos de subjetivação são produzidos a partir da midiatização de uma série de

regras, condutas e práticas de cuidado com o corpo, “em consonância com o

fortalecimento de uma imagem moderna e produtiva.” (SANT’ANNA, 2009apud

MENDONÇA, 2005, p. 108).

A partir desta nova dinâmica, pautada em um capitalismo centrado no consumo

cada vez mais simbólico, imaterial e imagético, atrelado às novas tecnologias

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comunicacionais e informacionais, estabelece-se um modelo de sociedade que tem

na comunicação o seu principal estruturador simbólico (SANTOS, 2012). Os meios de

comunicação adquirem papel determinante nesse “fazer viver moderno”, pois é a partir

de tais dispositivos que esses referenciais acerca do “corpo perfeito” são difundidos.

Nessa conjuntura, a mídia surge como agente de significados (SILVERSTONE, 1999).

O corpo, em sua dimensão física e estética, passa a adquirir centralidade nas

discussões pertinentes à comunicação midiática. Desta forma, fica inserido em

construções socioculturais, adquirindo papel essencial nos processos de identidade e

de socialização. Assim, como local onde a construção identitária se registra e adere,

o corpo se torna capaz de evidenciar fluxos discursivos e marcas simbólicas. Assume,

assim, papel de extrema importância na constituição das identidades e no processo

de pertencimento e distinção (HOFF, 2008).

Nesse sentido, foi se instituindo definições de padrões no que diz respeito aos

elementos corpóreos, por meio de imagens e representações do “corpo ideal”,

evidenciando uma verdadeira corrida ao consumo, em que a mídia se institui como

articulador dessas representações corpóreas, a partir de imagens:

A mídia trabalha para que a produção de imagens chegue ao indivíduo de maneira que legitime e afirme não só o consumo, mas também os modos de sociabilidade – uma espécie de orientação sobre como viver e se relacionar em sociedade – nelas inserido. Para isso, a mídia ensina o que, onde, quando e como consumir. Mais: ensina como devemos ser. Por meio de suas representações/imagens, o indivíduo pode se reconhecer como protagonista das imagens, espelhando-se nos modelos apresentados, fazendo da imagem midiática algo a ser copiado (SAMARÃO, 2009, p. 167).

Nesse sentido, o consumo, ao estar “intrinsicamente articulado à midiatização

do real” (ROCHA, 2012, p. 24), vincula-se a esses processos de produção de sentido

e à constituição das identidades. Ao abordar a relação entre mídia e práticas do

consumo, Rocha e Barros (2008) compreendem o consumo como um sistema de

significação que traduz grande parte de nossas relações sociais. Para os autores, ao

decodificar sentimentos e relações, o consumo “forma um sistema de classificação de

coisas e pessoas, produtos e serviços, indivíduos e grupo” (ROCHA; BARROS, 2008,

p. 198). Desta forma, ao operar na dimensão pública deste sistema de significação, a

mídia faz com que conheçamos o consumo “através das micro histórias, dos

pequenos mundos, das narrativas que se passam dentro dos anúncios, do cinema ou

das novelas” (Ibidem, p. 198-199). As narrativas midiáticas instituem de forma pública

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produtos e serviços como necessidades, além de nos ensinar suas formas de uso e

estabelecer desejos como classificações sociais (Idem).

Considerando os contextos brasileiros, Hoff (2009) pontua que as

representações midiáticas acerca do corpo, implicam em uma realidade editada da

existente no tecido cultural, em que certos padrões corporais são privilegiados e

representados como “belos” ou como ideal a ser atingido. Enquanto isso, os que

diferem dessas características se tornam invisíveis nas representações midiáticas, ou

são retratados de maneira pejorativa e/ou inferiorizada.

Douglas Kellner (2011) acredita que a mídia e suas representações ajudam a

moldar opiniões e comportamentos sociais, a partir de suas definições do que é bom

ou do que é mau, certo ou errado, moral ou imoral. E ainda contribui a demonstrar

quem tem e quem não tem poder, legitimando assim as relações de poder vigentes

(Idem). O autor compreende a cultura da mídia como um território de disputas de

sentido “por meio de imagens, discursos, mitos e espetáculos veiculados pela mídia”

(Ibidem, p. 11).

Nesta perspectiva, em uma sociedade como a brasileira, marcada ao longo dos

séculos pela colonização, escravidão, miscigenação e por processos de

branqueamento, onde o racismo opera numa ordem fenotípica – beneficiando

pessoas de pele clara e traços finos –, a questão racial é uma das causas dessas

disputas de sentido, presentes nas narrativas e representações midiáticas. Desse

modo, os elementos corpóreos se destacam como forma de analisar as imposições e

estigmas a que estão sujeitos os corpos negros.

As concepções estereotipadas acerca do corpo negro e a valorização da

branquitude já eram nítidas no período escravocrata (QUINTÃO, 2013). Contudo, a

partir do século XX, as tecnologias comunicacionais e seu inegável espraiamento

social, atrelado aos agenciamentos subjetivos, fomentam a disseminação de sentidos

vinculados a um ideal de embranquecimento no Brasil – na época, estimulados pelas

elites e instituições brasileiras.

Os debates em torno dessas possibilidades de embranquecimento da

população brasileira foram embasados por teorias científicas pós-abolição, que

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dialogavam com concepções vinculadas ao darwinismo social3. Duas visões em

especial se tornaram célebres em torno dos dilemas referentes aos negros e o futuro

racial do país. Ambas compreendiam a população negra como inferior; porém,

algumas vertentes, como a defendida pelo médico Raimundo Nina Rodrigues,

acreditavam que o cruzamento racial operado no Brasil “levaria à degeneração

crescente e à impossibilidade de constituição de um povo brasileiro habilitado à

“civilização” (SANTOS; SILVA, 2018 apud ORTIZ, 2003, p. 257). Já outros

intelectuais, como João Batista Lacerda, viam na mestiçagem:

(...) uma possibilidade de melhoria e regeneração racial que levaria ao desaparecimento progressivo dos negros e mestiços de pele escura, tidos como inferiores, e ao branqueamento paulatino do conjunto da população” (Idem).

A representação inferiorizada da negritude em produções midiáticas, em

especial da mulher negra, corrobora esses conceitos e são reflexos das políticas de

branqueamento que vinculavam a imagem do negro a aspectos pejorativos e

subalternizantes (ARAUJO, 2006).

Como parte intrínseca da constituição das identidades, o sentido de

representação faz referência aos sistemas simbólicos por meio dos quais os

significados são construídos e a como esses sentidos produzidos afetam a percepção

dos sujeitos sobre si mesmo e sobre o contexto em que estão inseridos. Segundo

Woodward (2000, p. 170), “a representação, compreendida como um processo

cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos

quais ela se baseia”.

As representações são, portanto, efeitos de práticas discursivas, convenções

sociais articuladas a linguagens e imagens, que não se configuram somente como um

meio transparente a partir do qual a realidade é refletida. Nesta perspectiva, as

narrativas midiáticas e as práticas de consumo são agentes significantes, mediadores

da realidade, produtores de sentidos que não só a reproduzem, mas também atuam

em suas definições.

1.2 A IMAGEM DA MULHER NEGRA: ESTEREÓTIPOS E REPRESENTAÇÕES

3 Interpretações muito difundidas entre os XIX e XX interpretações que utilizavam a Teoria da Seleção Natural como instrumento de análise do meio social.

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A representação da imagem da mulher negra em produções midiáticas nos

auxilia a pensar acerca dessas significações que vinculam aspectos negativos a

elementos corpóreos atribuídos à negritude. Na década de 1920, no Brasil, já era

perceptível em propagandas, por exemplo, um predomínio das representações

femininas fazendo referência a padrões estéticos europeus (HOOF, 2008). Essa

hierarquização pautada por traços fenotípicos foi atribuindo uma série de sentidos a

essas representações midiáticas, conectados diretamente à cor da pele, ao tipo de

cabelo, ao formato do nariz, etc. Ou seja, relacionam-se às “marcas” diretamente

percebidas e performadas pelos sujeitos.

De acordo com Sant’Anna (2014), nas décadas de 1920 e 1930, a pele branca

dominava as propagandas de produtos de beleza. Segundo ela, nessa época, era

comum associar a pele negra à sujeira, à doença ou empregar a ela termos como

“pele encardia”. Os anúncios eram divididos entre aqueles que atribuíam à

mestiçagem sentidos como “atraso cultural” e “indolência” e aqueles que exotizavam

a figura de negros e mestiços, “como se por intermédio deles fosse possível

experimentar devaneios secretos” (SANT’ANNA, 2014, p. 76). Os anúncios de cremes

para o rosto, por exemplo, atribuíam à brancura sentidos de saúde e beleza: (...) “uma

pele branca, delicada e fina, dentro da qual se vê circular a vida, o ser ideal de toda a

mulher. Peles encardidas, conforme anunciava a propaganda, precisavam ser

regeneradas” (Idem).

Essa necessidade de “regeneração” da pele escura ou “morena”, que

supostamente deveria “ser limpa” de modo a adquirir o tom branco da “beleza” e

“saúde”, era tão intensa nas propagandas que motivava a difusão das mais variadas

receitas no intuito de “corrigir” o problema da chamada “pele encardida”. Máscara feita

de leite, suco de limão e óleo de amêndoas eram alguns dos produtos que prometiam

bons resultados clareadores. Por muito tempo, segundo Sant’Anna (2014), o

clareamento da pele foi visto como algo positivo e muito recorrente nas propagandas

de cosméticos. Contudo, mesmo em um contextos mais recentes, é possível perceber

em narrativas publicitárias o clareamento da pele negra associado à ideia de

“limpeza”. Um exemplo é o anúncio de sabonete da marca Dove, produzido na

Inglaterra e veiculado no Brasil em 2017:

Imagem 1: Anúncio racista da marca Dove (2017)

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Fonte:

<https://www.google.com.br/search?q=anuncio+racista+dove&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0a

hUKEwjCg_GUwbfAhUBIJAKHQC7CwsQ_AUIDygC&biw=1366&bih=618#imgdii=2w_a321f_JCRHM:

&imgrc=1x8_FtRn4mXfCM:>.

Na imagem, vemos uma mulher negra com uma blusa na cor de sua pele. A

seguir, ela “retira” a camisa e aparece uma mulher branca. O sentido estabelecido cria

um efeito de “antes e depois”, dando a entender que a primeira estava “suja” e, após

o uso do sabonete da marca, “ficou limpa”.

Outra forma comum de representar a mulher negra na publicidade é a partir de

um viés fortemente erotizado, atribuindo a elas uma sensualidade exacerbada. A

imagem sexualizada da mulher negra, especialmente as de pele clara, são comuns

na produção cultural brasileira e remetem a uma visão construída ainda no período

colonial escravista. De acordo com De Paula (2012), os aspectos corporais vinculados

à sensualidade eram atributos exigidos nos mercados de compradores de escravos.

Essa objetificação das mulheres negras escravizadas e sua desumanização por não

serem proprietárias de seus corpos e serem vistas como sexualmente disponíveis por

seus “senhores”, justificava ainda constantes violências sexuais. Sentidos desse

imaginário racista ainda se perpetuam em anúncios publicitários brasileiros recentes.

Em 2017, a marca de cerveja Devassa veiculou um anúncio que exibia a ilustração de

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uma mulher negra, com roupas curtas e justas e com os seguintes dizeres: “É pelo

corpo que se reconhece a verdadeira negra”:

Imagem 2: Propaganda racista marca de cerveja Devassa (2017)

Fonte: <https://www.diariodocentrodomundo.com.br/wp-content/uploads/2013/10/devassaa.jpg>.

Hoff (2008) considera que, apesar de apresentar sintonia com as

transformações socioculturais, a publicidade no Brasil repercute, mesmo em suas

representações “positivas” de diferentes etnias, estéticas corporais, etc., uma falsa

ideia de inclusão, evidenciando, muitas vezes, apropriações indevidas dessas

identidades. Para a autora, essas representações costumam ser distantes da

realidade, idealizadas, o que a leva a inferir que o “diferente” permanece sem voz

(Idem).

Além da publicidade, as telenovelas e o cinema também são importantes

produtos culturais que influenciam a forma como a imagem da negritude é percebida

e retratada no Brasil. Araújo (2006) reflete que a estética do branqueamento se tornou

referência na produção de telenovelas no país. Segundo ele, o padrão de beleza ideal

percebido nas produções televisivas se aproxima dos modelos de beleza

eurocêntricos, que exaltam a superioridade da branquitude, o que é perceptível, por

exemplo, nos critérios para a escolha dos personagens principais:

(...) a escolha dos galãs, dos protagonistas, celebra modelos ideais de beleza europeia, em que quanto mais nórdicos os traços físicos mais

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destacado ficará o ator ou atriz na escolha do elenco. Os mesmos também receberão as melhores notas nos processos de escolha e premiação dos mais bonitos do ano pelas revistas que fazem a crônica cotidiana do mundo das celebridades. (ARAÚJO, 2006, p. 77).

Por outro lado, afirma Araújo (2006), as atrizes negras costumam representar

papéis associados ao feio, ao subalterno ou ao socialmente inferior. Os graus de

mestiçagem também estão atrelados a essas escolhas: quanto mais intensa as

“marcas da negritude”, como cor da pele e textura do cabelo, maiores as chances de

se ter papeis vinculados a estereótipos negativos.

As representações da mulher negra no cinema brasileiro não costumam diferir

destes aspectos. Segundo Ferreira (2018), a branquitude ainda predomina como

representação estética no cinema brasileiro, o que acarreta em uma naturalização de

certos estereótipos e de uma invisibilidade associadas a mulheres negras. Como

sistema de representação, o cinema revela, ainda, muitas das assimetrias, dos

privilégios e contradições presentes no imaginário cultural do Brasil acerca das

relações raciais (FERREIRA, 2018).

Para João Carlos Rodrigues (2001), as personagens negras costumam não ser

individualizadas e com frequência seus papéis não possuem profundidade psicológica

em produções ficcionais no Brasil (incluindo as cinematográficas e as televisivas). O

autor identifica alguns arquétipos atrelados a essas a representações femininas em

telenovelas e no cinema, enfatizando o quanto estão atreladas a vieses negativos e

refletem sentidos da ideologia do branqueamento.

O primeiro corresponde ao arquétipo da “mãe-preta”, típico da sociedade

escravocrata brasileira; este tipo de personagem possui características como

submissão e conformismo, sua existência está sempre atrelada ao “cuidado com os

patrões”, costuma ser retratada como “a empregada”, a “cuidadora”, etc. O segundo

arquétipo a que se refere é o da “negra de alma branca”, que corresponde à

representação da negra que teve acesso a uma boa educação e, por meio dela, foi

(ou pretende ser) integrada à sociedade dominante. O terceiro faz referência à “nega

maluca”, utilizado inclusive como inspiração em fantasias de carnaval; este arquétipo

é normalmente uma personagem cômica, que faz trapalhadas e confusões. Temos

ainda o arquétipo da “mulata boazuda”, vinculada à exploração da sexualidade da

mulher negra. Por fim, “a musa”, é o arquétipo menos frequente na arte brasileira.

Essa representação se distancia do erotismo vulgar; ao contrário, evidencia uma

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figura pudica e respeitável, sendo, portanto, a que mais se distancia das

representações negativas (RODRIGUES, 2001).

Vemos, a partir deste panorama, que as representações de mulheres negras

em produções midiáticas reverberam ainda muitos dos sentidos negativos instituídos

em um passado escravocrata e pós-abolição. A valorização da estética branca e a

naturalização de estereótipos que inferiorizam e invisibilizam a mulher negra ainda se

fazem muito presentes nessas representações midiáticas.

É evidente que muitas transformações acerca da imagem de mulheres negras

têm ocorrido com o passar dos anos nas produções veiculadas pela mídia. Contudo,

cabe enfatizar que são mudanças ainda muito sutis se comparadas ao macrocontexto

das produções audiovisuais no Brasil (COUCEIRO, 2001). Isso tudo acaba por gerar

um fenômeno de invisibilidade social, em que mulheres negras, ao não se

identificarem com suas representações na mídia, por vezes, a fim de se enquadrarem

socialmente, se utilizam de recursos estéticos para se aproximarem dos padrões da

branquitude.

1.3 O CABELO E AS REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS

O cabelo exerce um papel importante na autopercepção dos indivíduos,

consistindo em uma manifestação da expressão simbólica de identidade. Ao falarmos

das texturas crespas e afros, irremediavelmente nos aproximamos da estética negra.

Constantemente suprimida desde o período da colonização, eram comuns, por

exemplo, rituais em que os negros escravos eram obrigados a raspar os fios, sob o

pretexto de necessidade de higiene. Além disso, turbantes e penteados que

lembrassem sua cultura de origem eram proibidos, numa tentativa de destruir qualquer

sentimento de identidade étnica daqueles indivíduos (SILVA, 2016).

O contexto histórico brasileiro deixa claro o quanto a estética negra caminhou

paralelamente ao racismo e a padrões fenótipos eurocêntricos, como o cabelo liso,

disseminado em representações midiáticas como ideal a ser seguido. Esse modelo

influenciou milhares de mulheres e meninas a abdicarem de suas características

raciais e adotarem modelos homogêneos como forma de disfarçar e camuflar sua

“negritude”.

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Segundo Sant’Anna (2018), no início do século XX já se podia notar no discurso

publicitário e na imprensa da época um incentivo aos métodos de alisamento.

Produtos como “O Cabelisador”, que consistia em um pente a ser aquecido antes do

uso, e “uma pasta mágica” eram comercializados com o intuito de alisar os fios e

faziam sucesso entre mulheres negras. Antes de sua invenção, contudo, receitas

caseiras e rituais, como passar os cabelos a ferro, já eram utilizados como estratégias

de alisamento.

Imagem 3: Propaganda “O Cabelisador”

Fonte: O Clarim d’Alvorada, ano VI, n° 16, maio 1929.

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Neste momento em que a publicidade promovia um ideal de beleza

eurocêntrico, “O Cabelisador” surgia como uma “invenção incrível” para resolver um

dos motivos de desalento dos negros: a textura crespa. A representação do cabelo

crespo como algo que deveria ser suprimido, reforça um ideal de beleza pautado na

estética dos fios lisos, associado a sentidos como “beleza”, “elegância” e

“modernidade”. Ter o cabelo alisado no discursos publicitários passou a ser sinônimo

de “mais apresentável socialmente”:

(...) a exigência dos cabelos lisos era constante em reportagens e anúncios publicitários. Por conseguinte, técnicas e produtos apropriados para se conseguir um cabelo menos crespo e menos volumoso conquistaram forma e valor (LOPES, 2002, p. 417).

Por outro lado, ao mesmo tempo em que as representações publicitárias

celebravam e promoviam a estética dos fios lisos, advindos dos padrões

eurocêntricos, disseminava sentidos estereotipados e negativos, acerca dos cabelos

crespos.

Imagem 4: Propaganda da esponja de aço “Krespinha” (1952)

“No Rio, todos me conhecem. Sou Krespinha – a melhor esponja para a

limpeza da cozinha. As paulistas também vão me querer bem”.

Fonte: <https://cacheia.com/2017/05/cabelo-natural-ato-politico/?fbclid=IwA>.

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A propaganda acima relaciona uma menina negra de cabelo crespo a uma

esponja de aço. O termo “krespinha” faz uma referência pejorativa aos cabelos afro

provenientes da estética negra. Essa comparação negativa das texturas crespas ao

aspecto “duro”, “ressecado” e “áspero” das esponjas de aço, são alguns dos aspectos

mais comuns atribuídos até hoje como forma de ridicularizar o cabelo afro. É preciso

pontuar o quanto estes sentidos depreciativos estão associados a estigmas e não

correspondem à realidade.

Segundo Mello (2010), as texturas capilares possuem características diferentes

que alteram o formato da fibra do cabelo. Os fios lisos, refletem mais a luz e tem mais

facilidade de circulação do sebo do couro cabeludo até o eixo do cabelo,

diferentemente dos fios crespos. Isso de modo algum indica qualquer indício de falta

de saúde, de “maciez” ou de “hidratação”, como dão a entender os sentidos presentes

na propaganda acima. O que reforça o quanto desses significados estão atrelados a

preconceitos construídos socialmente.

Essas representações, que, ao mesmo tempo em que valorizavam o cabelo

liso, discriminavam os fios afro, tinham como intuito “marcar a diferença”, promovendo

o entendimento disciplinado de que as diferenças são permanentes e naturais,

quando, na verdade, “eram naturalizadas por um discurso ideológico e publicidade

visual editadas com esse objetivo (SILVA, 2016apud HALL, 2010, p. 427).

A partir da década de 1980, o mercado brasileiro passou a se voltar mais para

o que passou a ser denominado “cabelo afro” (SANT’ANNA, 2018), impulsionado por

movimentos de valorização da estética negra surgidas nas décadas anteriores, como

o Movimento Black is beautiful4, nos Estados Unidos, e o Movimento Black Rio5, no

Brasil. Com isso, passa a se evidenciar um aumento no número de negros nos

espaços publicitários. Como exemplo desta valorização do negro no mercado de

consumo, temos a revista “Raça Brasil”, primeira revista dedicada à cultura afro-

brasileira, lançada em 1995.

4 Movimento iniciado nos Estados Unidos na década de 1960, que tinha com um dos principais intuitos a valorização da estética negra. 5 O Movimento Black Rio, da década de 1970, configurou-se como uma cena musical que associou cidadania, linguagem e novas formas de apropriação do espaço público, tendo como premissa a exaltação de aspectos atrelados a negritude, como a valorização estética.

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Segundo Brasileiro (2003), o cabelo adquire bastante relevância nas pautas

abordadas na revista Raça Brasil, por se tratar de um marcador identitário dos traços

negros evidenciados como modelo de “anti-beleza”. A revista buscava

incansavelmente enaltecer o cabelo crespo e as características negras na seção

“Cabelo Bom”, totalmente dedicada ao assunto. O “cabelo bom” aqui é uma resposta

ao estigma do “cabelo ruim”, em uma tentativa de ressignificação do que que circula

como sinônimo do cabelo crespo (BRASILEIRO, 2003). Alguns elementos presentes

no editorial da seção “Cabelo Bom” também ressaltam esses sentidos de

ressignificação atribuído aos cabelos crespos:

(...) em todas as edições de RAÇA BRASIL dedicamos um espaço considerável para cortes, tratamentos e novidades da área, sempre pensando em ajudá-la a manter sua cabeleira acima de qualquer crítica - Editorial Seção “Cabelo Bom” Revista Raça Brasil (BRASILEIRO, 2003, p.124).

A expressão “qualquer crítica” remete a uma tentativa de ressignificar o

estereótipo do cabelo crespo, constante alvo de chacotas por ser vinculado a

elementos depreciativos como “desarrumado” ou “feio”. Brasileiro (2003), contudo,

ressalta que a Revista Raça, mesmo ao se propor à valorização da negritude e sua

estética, ainda demonstrava elementos vinculados a padrões estéticos próximos aos

cabelos lisos ao propor, com frequência, métodos e técnicas de cuidados com o

cabelo crespo, enfatizando tratamentos como “relaxamento” e “permanente-afro”, que

consistem em processos químicos para “diminuir o volume” e diminuir o aspecto

crespo do cabelo, deixando-os em uma textura mais próxima do aspecto liso.

Em contextos mais recentes, é possível perceber que a comunicação em rede

tem favorecido um aumento no número de compartilhamento das narrativas midiáticas

sobre a estética negra. Após períodos de transformação nas formas de uso do cabelo

afro, que enfatizavam principalmente processos químicos como alisamentos e

relaxamentos, nos últimos anos, movimentos pela valorização das texturas crespas e

cacheadas, atreladas a um discurso de aceitação, têm se tornado cada vez mais

frequentes.

Essas narrativas de enaltecimento das texturas crespas e cacheadas têm

adquirido espaço significativo em sites de rede social, como em canais da plataforma

digital YouTube. Desta forma, trazem a presença da mulher negra figurando como

protagonista, algo pouco presente em mídias tradicionais, como a publicidade, a

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televisão e o cinema. O surgimento dessas presenças midiáticas de mulheres negras

com conteúdos relacionados a cabelo, dicas de produto e abordagem da relação entre

estética negra e autoestima, têm chamado a atenção do mercado publicitário a este

público até então esquecido, o da mulher negra (SOUZA; BRAGA, 2018).

Imagem 5: Propaganda Unilever para cabelos crespos e cacheados com youtubers

(2017)

Fonte:

<https://www.google.com.br/search?biw=1366&bih=654&tbm=isch&sa=1&ei=In47XISXJsKawQTEwa

6oBQ&q=propaganda+seda+cabelos+crespos+juntas+arrasamos&oq=propaganda+seda+cabelos+cr

espos+juntas+arrasamos&gs_l=img.3...4071156.4079366..4079877...4.0..3.2315.13627.1j5j7j0j3j5j9-

3......1....1..gws-wiz-img.rmlLL_jAQxs#imgrc=aqpLIQRlRxNj_M:>.

Imagem 6: Propaganda Salon line, narrativa da aceitação (2018)

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Fonte:

<https://www.instagram.com/p/BoCM_HvBE6v/?utm_source=ig_share_sheet&igshid=3p5aow3hdad1

&fbclid=IwAR2hFsRtCLDg_hlgkL44g1KNyacJ9P1ybMy_pkaPI99RBO-kUmpbBgXalw8>.

Nessa conjuntura, tem surgido nos espaços midiáticos, em pautas televisivas

e, principalmente, em anúncios e propagandas, narrativas que incorporam esse

enaltecimento dos “cachos”, dialogando com o movimento de aceitação surgido em

sites de redes sociais, a partir do compartilhamento de relatos de experiências de

mulheres negras com os próprios cabelos.

Assim, refletir sobre essas narrativas autobiográficas de mulheres negras

compartilhadas em rede, atreladas a representações midiáticas da estética negra,

constitui-se como questão privilegiada para pensar a comunicação a partir da

diversidade, e de suas possíveis implicações no empoderamento de mulheres negras,

a partir de estratégias de “descolonização estética”, por meio do abandono dos

processos de alisamento e de uma valorização das texturas crespas.

Ressalta-se que essas narrativas estão longe de expressar um rompimento a

padrões estéticos eurocêntricos, ainda predominantes nas representações midiáticas.

Contudo, permitem dialogar com possíveis deslocamentos de sentido acerca de como

a imagem do negro vem sendo retratada na mídia, assim como com seus impactados

nas identidades de mulheres negras.

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CAPÍTULO 2. AUTOBIOGRAFIAS E VISIBILIDADES EM PERFORMANCES MIDIÁTICAS DE MULHERES NEGRAS

2.1 DO EU QUE ECOA UM NÓS: MEU CABELO, NOSSAS HISTÓRIAS

A formação subjetiva e identitária de um indivíduo está inscrita em seu corpo e,

segundo Campelo (1997), é visível através das informações que dele fluem. Para

Fernández (2013), cada época constrói significações relacionadas aos corpos; estes,

por sua vez, obedecem e acatam, mas também resistem e transgridem. Isso implica

dizer que os indivíduos não são apenas reprodutores da realidade e, portanto, sujeitos

assujeitados, mas possuidores de reflexividade, através da qual questionam a

realidade – em particular a vida social em suas várias formas (SALGADO; GOMES,

2012).

Nesse ensejo, o cabelo se manifesta enquanto elemento corpóreo significativo

no que diz respeito às experiências socializantes da mulher negra. Ele tanto pode

oferecer ferramentas expressivas voltadas ao questionamento do status quo classista

e racista, concernente à dominação e aos enquadramentos das corporalidades,

quanto significar o assujeitamento de mulheres negras a padrões de gosto e

reconhecimento social extremamente elitistas e preconceituosos. Goffmann (2017),

ao apontar os aspectos tocantes aos indivíduos estigmatizados, alude que, por serem

considerados “diferentes” e/ou inferiores comparados aos demais na sociedade,

esses indivíduos marginalizados, visando construir e legitimar sua identidade social,

criam uma série de estratégias de sobrevivência nas suas interações sociais. Nesses

trânsitos simbólicos da contemporaneidade, tensões socioculturais ganham

visibilidade social e impacto midiático.

Enquanto elemento vinculado a uma minoria, o cabelo cacheado/crespo se

situa na mira de um olhar hegemônico, que estranha, exotiza e rejeita a diferença. É

colocado, com frequência, em oposição ao que é considerado belo ao longo da

história. Neste contexto, o cabelo surge como elemento que impulsiona os sujeitos a

refletirem sobre seu estar no mundo, a partir de uma perspectiva estética com

implicação política, pois o padrão estético aqui está associado a relações de poder

que atuam sobre a condição de ser. Como nos apresenta Gomes (2008, p. 21):

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O cabelo do negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do negro como “ruim” e do branco como “bom” expressa um conflito. Por isso, mudar o cabelo pode significar a tentativa do negro de sair do lugar da inferioridade ou a introjeção deste.

Pensar o cabelo via fenômeno da transição capilar é refletir sobre a estética

enquanto possibilidade de negociação de sentidos, partindo do entendimento de que

da experiência de transição capilar emergem sentidos ligados aos corpos negros, que

englobam estigmas e exclusões, mas também possíveis sentidos de (re)significação

e (re)existência. O cabelo atua como um elemento associado a um passado ancestral

de dor e distanciamento da própria história, mas também pode reconectar essas

trajetórias a um presente que ressignifica a estética “afro”.

Nesses fluxos diaspóricos, Hall (2003, p. 27) afirma que “as identidades tornam-

se múltiplas”, pois cada dispersão carrega consigo a promessa do retorno redentor.

Portanto, a história “circula de volta à restauração de seu momento originário, cura

toda ruptura, repara cada fenda através desse retorno” (Ibidem, p. 29). Nesse

processo, emergem diversas dimensões, memórias e temporalidades que possibilitam

ampliar a compreensão de uma identidade negra a partir do corpo negro. Ou, como

afirma Gomes (2008), a construção da identidade está atrelada a uma questão

estética. Desta forma, ver-se como mulher negra é um processo individual e social

atrelado a experiências por vezes dolorosas consequências do racismo ao mesmo

tempo em que pode significar práticas de transformação e resistência.

Enquanto uma mulher que passou pela experiência da transição capilar, a

minha trajetória de pesquisadora está atravessada pelos relatos de tantas outras

mulheres que também vivenciaram esse processo. Por isso, com frequência me

confundo sobre quais desses relatos pertencem a mim, a elas ou a nós.

Assim, o interesse em adotar a transição capilar como objeto de pesquisa surge

da experiência pessoal com meu cabelo e com minha “identidade” racial. Na infância,

meus fios sempre foram vistos como uma questão, um problema a se resolver, algo a

ser controlado. Com apenas quatro anos de idade, pude ter a percepção de que havia

algo de “errado” com meus cabelos fartos em volume, com formato espiralado e que

cresciam para os lados e para cima.

Os dolorosos processos de penteados rotineiros que puxavam e o esticavam

para deixá-los com a aparência de “arrumado” eram também uma forma de fugir dos

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comentários negativos e deboches por conta de sua forma volumosa. Na escola,

apelidos como “pixaim”, “cabelo de poodle” e “sarará” eram bastante comuns. Eu

sorria e fingia não me importar, mas por dentro odiava e me entristecia. No convívio

familiar, ouvia de alguns parentes: “Seu cabelo parece uma esponja de aço”; ou

“Penteia essa juba, está parecendo garota de rua”. Me sentia fora do padrão; bonito

mesmo era ter cabelo liso. Perdi as contas de quantas vezes acordava muito antes da

hora na tentativa de “domar” os meus fios que estavam armados. Passava água,

quilos de creme e gel, mas nada adiantava. A solução costumava ser fazer um coque

ou um rabo de cavalo. Saía de casa sempre chateada e insegura.

Temia muito que me vissem com o cabelo “armado” e por isso eram raras as

vezes em que eu o deixava solto. Quando o deixava era sempre enquanto ainda

estava molhado, antes de secar e virar uma “juba de leão”, como me diziam. Em casa,

escondida, eu gostava de amarrar tecidos na cabeça e fingir que eu tinha cabelos

longos e lisos. Era uma de minhas brincadeiras prediletas. Além disso, ficava horas

penteando minhas bonecas (todas com cabelos lisos), e por vezes eu pensava no

azar que tinha por não ter o cabelo como o delas.

Já nessa época o forte desejo por mudar a textura capilar era muito nítido em

mim, motivado pelo incômodo, sofrimento e insegurança que a forma do meu cabelo

me causava. Com 13 anos, passei a me submeter a procedimentos químicos, a partir

de técnicas que alteravam a estrutura do cabelo crespo para o liso. A escova

progressiva, que prometia alisamento “sem danos”, fez meus olhos brilharem pela

possibilidade de enfim não ter mais de me esconder. Era quase impossível ficar com

os olhos abertos durante o procedimento, pois o formol ardia feito queimadura e o

odor era insuportável. Mesmo assim, estava feliz. Emocionei-me ao ver o resultado.

Após a primeira lavagem, porém, percebi que o produto só era ativado com o

calor — começava ali uma relação de amor e ódio com o secador e a chapinha6.

Passei diariamente horas utilizando esses dois aparelhos, por mais de dez anos da

minha vida, para conquistar o “liso perfeito”. Durante esse tempo, perdi as contas de

quantas vezes reapliquei as químicas com formol — em média, a cada dois ou três

meses. Nem mesmo as várias reportagens sobre os danos desse procedimento (como

6 Ferramentas utilizadas para alterar a estrutura do cabelo a partir do calor.

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couro cabeludo queimado, problemas respiratórios, queda capilar) me incomodavam.

Afinal, ouvia sempre nos salões de beleza que “a mulher, pra ser bonita, tem que

sofrer”. O sacrifício pela “boa aparência” era algo necessário. Contudo, o que estava

sendo questionado não era propriamente minha aparência, mas, sim, a capacidade

de me enquadrar “corretamente” em papéis sociais que correspondessem aos

padrões de beleza hegemônicos.

Eu não era “feia” ou “desleixada” porque meu cabelo era crespo, mas por não

me adequar às normatizações do que era tido como belo: um traço de negritude

contrário ao que se espera de beleza ou boa aparência. Por isso o desejo de esconder

meus traços étnicos como forma de me poupar das situações de preconceito que eram

desencadeadas por esse motivo. Como elucida Erving Goffman (2017, p. 58) ao

refletir sobre os estigmas:

(...) A descoberta prejudica não só a situação social corrente, mas ainda as relações sociais estabelecidas; não apenas a imagem corrente que as outras pessoas têm dele, mas também a que terão no futuro; não só as aparências, mas ainda a reputação. O estigma e o esforço para escondê-lo ou consertá-lo fixam-se como parte da identidade pessoal.

Sendo filha de pai negro e mãe branca e me aproximando mais do tom de pele

da minha família materna, quando criança ouvia continuamente que tive “sorte” por

puxar a cor de minha mãe e o “azar” pelo cabelo “ruim” do meu pai. Eu naturalizava

esses dizeres. Os sentidos de “sorte” e “azar” que ecoavam dessas falas mascaravam,

na verdade, os sentidos atribuídos aos corpos, que só podem ser entendidos a partir

das estruturas sociais que os rodeiam. Contudo, é a partir dos corpos que se faz a

resistência, pois adquirem uma importância central em seu potencial de abrigar tanto

as operações de dominação quanto as práticas de desobediência, isto é, do corpo

irrompem linhas de fuga frente a delimitações e prescrições (SALGADO; GOMES,

2012). As corporalidades carregam múltiplas marcas, biológicas, mas também

políticas, histórico-sociais, etc. (FERNÁNDEZ, 2013). Assim, me entendia enquanto

branca com um “defeito”: o cabelo “pixaim” – que, na tentativa de uma “passabilidade

branca”, deveria me esforçar por esconder, o que permitiria fugir dos preconceitos

advindos do racismo.

Contudo, mesmo me afirmando enquanto “não negra”, isso não me impediu de

reconhecer situações de racismo e discriminação vivenciadas no decorrer da vida em

relação aos meus cabelos crespos. Há, diante disso, uma contradição, afinal, se não

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me identifico enquanto mulher negra, como é que eu sofro racismo? É revelada, ao

meu ver, uma das implicações dissonantes da suposta democracia racial brasileira e

de outras teorias de branqueamento que afetam os contextos brasileiros, culminando

em uma “indefinição” racial respaldada na ideia de mestiçagem. Kabengele Munanga

nos faz refletir sobre o quanto os sentidos de negritude no Brasil são complexos:

Parece simples definir quem é negro no Brasil. Mas, num país que desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil apresentar uma definição de quem é negro ou não. Há pessoas negras que introjetaram o ideal de branqueamento e não se consideram como negras. Assim, a questão da identidade do negro é um processo doloroso (MUNANGA, 2004, p. 52).

As expressões imagéticas do negro no Brasil, entre o final do século XIX e

início do século XX, passaram a evidenciar com bastante ênfase os efeitos das lógicas

do branqueamento (SCHWARCZ, 1994). Os imaginários sociais7 amplamente

difundidos pelos meios de comunicação derivaram dessa ideologia e estabeleceram

padrões do corpo dito conforme, correto, bom e belo: o corpo branco. Nesta

concepção, o corpo “negro” figurava sempre como inconforme diante do modelo de

corpo “branco”, considerado a forma exemplar, o ideal da convenção (DOMINGUES,

2002).

Nesse contexto marcado por estigmas e exclusões, a transição capilar

significou um marco em minha trajetória, na medida em que envolveu um processo de

desconstrução de padrões e de autoaceitação, mas igualmente da consciência dos

processos de invisibilidade e preconceitos a que estão sujeitos os corpos das

mulheres negras. Importante salientar que aqui falamos de um duplo estigma,

envolvendo “ser mulher” e “ser negra” no contexto brasileiro.

Como desde criança a relação com meu cabelo foi pautada no que eu queria

ter e não no que eu tinha/era, abandonar as químicas de alisamento, depois de 12

anos, cortando toda a parte alisada (já que depois de modificado o cabelo não retorna

ao formato original), foi uma experiência de, pela primeira vez, me olhar no espelho

com os cabelos encaracolados sem sentir vergonha ou vontade de escondê-los. Esse

entendimento só foi possível, para mim, ao perceber que as situações sofridas durante

7 Segundo Deibar Hurtado (2004), os imaginários sociais são uma categoria sociocultural, socialmente instituída e legitimada. Os imaginários se tornam matrizes de sentido a partir das quais essas categorias são explicadas e compreendidas; mas, ao mesmo tempo, atuam enquanto mediadores fundamentais, a partir dos quais esses imaginários são vivenciados.

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a infância por causa de minha textura capilar se inserem em uma dinâmica que nega

o direito à mulher negra de reconhecer a beleza na própria aparência, relegando-a à

“adequação”, a mimetizar a estética branca dos cabelos lisos.

Mais de uma década com os cabelos alisados me fez, de certo modo,

“esquecer” meu cabelo natural. Por me manter “distante” dele por tantos anos, ao

vivenciar a transição capilar, não mais sabia (ou talvez nunca o soube) como era

cuidar de um cabelo crespo como o meu. Afinal, na TV, apesar de o ano ser 2015,

ainda poucas mulheres ostentavam cabelos em formatos próximos aos meus, e nos

discursos publicitários das revistas e comerciais predominava a imagem do cabelo

liso. Os salões de beleza ecoavam esse discurso hegemônico e me diziam que o

melhor seria voltar a “relaxar” os fios. Nas prateleiras das perfumarias e

supermercados, os produtos vinham com rótulos como “dome o seu volume” ou “liso

perfeito”. De certo modo, revivi algumas das experiências da infância, principalmente

a de não me sentir representada.

Essas experiências fazem alusão ao impacto que a mídia hegemônica e seus

discursos têm na construção da subjetividade. Aidar Prado, ao refletir sobre os

dispositivos comunicacionais, afirma que os enunciadores dos discursos midiáticos,

regados pelo imaginário da publicidade e do marketing, têm a função de convocar os

receptores a experiências multissensoriais voltadas à construção de uma vida

desejável, criando regimes discursivos de visibilidade “em que certos itens são

tornados positivos e podem vir às cenas midiáticas com seus modos de usar e suas

receitas de vida boa, enquanto outros são disforizados e relegados ao ostracismo”

(PRADO, 2013, p. 24).

Após ter feito o Big Chop8, a falta de representatividade midiática e de mulheres

próximas nas quais pudesse me inspirar e aprender a lidar com minha textura natural

me causava certa estranheza e insegurança. Lidar com o cabelo curto – diferente do

que é considerado “feminino” – e crespo foi um desafio. Esse momento da minha

trajetória me aproximou de páginas do Facebook e canais no YouTube de mulheres

que apareciam com seus cabelos volumosos e defendiam em suas narrativas o

quanto poderiam ser belos. Em comum comigo, estavam a dor pelo passado marcado

8 Conhecido como “grande corte”, o “big chop” consiste em cortar toda a parte alisada dos cabelos durante o processo de transição capilar.

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pelos apelidos pejorativos e os processos químicos de alisamento. Passei a observar

que as situações sofridas durante a minha vida não eram só minhas histórias, mas de

muitas outras mulheres. A experiência pessoal estava, na verdade, ligada a um

contexto estrutural que tentara invisibilizar as características ligadas à minha origem

negra.

O consumo dessas narrativas de vida compartilhadas em rede me fez intuir o

quanto a relação com os cabelos leva mulheres (e também homens) a se

reconhecerem de forma diferente, a consumirem novos produtos e conhecimentos,

formarem novos laços e passarem a ter questionamentos e preocupações que

anteriormente não eram tão delineados em seu cotidiano.

Nesses processos de (in)visibilidades, a experiência da transição capilar é

entendida como um marco na trajetória de vida de mulheres negras, que, a partir de

um processo de desconstrução de padrões e de autoaceitação, passam a ressignificar

os sentidos atrelados ao próprio corpo, à própria aparência. Assumir o cabelo

cacheado/crespo nessa conjuntura e defender o direito de usá-lo em suas texturas

naturais, no espaço midiático, remete a um posicionamento político a partir do

estético. Como corrobora Cardoso (2017, p. 2):

(...) mulheres negras na diáspora vêm atuando como corpo político de enunciação, produzindo conhecimento a partir de diferentes experiências e vivências, narrativas e contextos. Conhecimentos e saberes que revelam a importância dos processos de resistência empreendidos contra violações vivenciadas ao longo da história, constituindo-se em múltiplas respostas epistêmicas descolonizadoras e alternativas ao eurocentrismo, às teorias e às perspectivas de gênero conservadoras e hegemônicas.

Djamila Ribeiro (2017) aponta que, sobre os corpos negros, existem saberes e

produções de um olhar colonizador que nos confina em um papel de submissão,

comportando significações hierarquizadas. Nesses discursos, a mulher negra é

colocada como “a antítese da branquitude e da masculinidade” (Ibidem, p. 39). Na

carência dupla, por não ser nem branca e nem homem, acaba por ocupar um lugar de

subalternidade e invisibilidade na sociedade, que pode ser percebido também nos

espaços midiáticos.

Spivak (2010), por sua vez, ao refletir sobre a violência epistêmica, entende

que é necessário, enquanto pesquisadora, combater os lugares de subalternidade,

criando mecanismos para que o sujeito subalterno se articule a modos de resistência

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e seja ouvido. A autora compreende os sujeitos subalternos como aqueles excluídos

da representação política e legal, sendo relegados à invisibilidade, ao silenciamento e

excluídos de possibilidades de representação.

Ainda segundo Spivak (2010), mulheres negras e pobres ocupam os lugares

mais frágeis dessa estrutura por preencherem a totalidade dos requisitos para a

condição de subalternidade: a da classe social, a do gênero e a da cor. As reflexões

acerca da subalternidade e das possibilidades de brechas ou linhas de fuga nos

espaços de dominação me remontam a uma experiência traumática de confronto

direto com relações de poder rígidas, que dizem respeito ao meu objeto de pesquisa.

Ao assumir o meu cabelo natural no ambiente de trabalho, uma instituição

militar com padrões de conduta, vestimenta e aparência bastante conservadores,

enfrentei muitas dificuldades. Para as mulheres militares, os cabelos necessitam estar

amarrados em um coque; contudo, se o comprimento está acima dos ombros, é

possível usá-los soltos. Desta forma, por estar com o cabelo crespo curto, passei a

usá-lo assim, solto. Entretanto, logo depois disso, passaram a surgir diversas

situações de pressão para que eu “desse um jeito nele”, sempre partindo de oficiais

com patentes mais altas que a minha.

Em várias ocasiões, fui chamada para “conversar”, com o intuito de ser

orientada de que o meu cabelo estava fora do enquadramento previsto no

regulamento da instituição militar e que eu deveria corrigir essa situação, para não

correr o risco de sofrer possíveis punições por insubordinação – que incluíam inclusive

uma possível detenção. Mesmo apontando que nossos regulamentos apenas previam

tipificações para cabelos lisos, não foi suficiente para flexibilizar tais ações, e acabei

por ser obrigada a fazer um coque para evitar sanções que poderiam comprometer

minha carreira.

Essas situações vividas me fizeram perceber a forte relação que a estética

negra pode ter com a resistência à invisibilidade e ao silenciamento impostos pelos

sistemas de poder hegemônicos. E o quanto ostentar os cabelos crespos e cacheados

vai além de uma questão de gosto pessoal, ao pressupor os enfrentamentos a que se

está suscetível pela não adequação às normatizações impostas.

Tendo isso em vista, é notória a impossibilidade de desassociar a minha

trajetória das questões raciais ligadas a outras mulheres negras. Elas estão presentes

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na minha rotina diária e permeiam estreitamente minha atuação enquanto

pesquisadora. Certamente, elas me guiaram e continuam a me guiar no exercício de

um olhar epistemológico sobre o tema. Um olhar atuante, que observa, mas também

se permite ser transformado. Essas relações compõem o percurso de construção da

problemática e do objeto de estudo da presente pesquisa, explorando a

interseccionalidade como perspectiva analítica para visibilizar a interligação entre

múltiplas estruturas de dominação e as ações e práticas mobilizadas por mulheres

negras para enfrentá-las. Desta forma, os sistemas de opressão são entendidos e

experimentados a partir de um lugar configurado pela maneira como gênero, raça,

classe e sexualidade se entrecruzam (CARDOSO, 2017).

Segundo Foucault (1981), onde há poder, há resistência. Assim, por mais

perfeito, eficaz e hegemônico que se mostre um dispositivo de disciplinamento, mais

se cria possibilidades de linhas de fuga aos poderes estabelecidos, pois “o que não

pode ser disciplinado, pode tomar modalidades singulares e coletivas, explícitas ou

implícitas, sintomáticas ou criativas, políticas ou infrapolíticas” (FERNANDEZ, 2013,

p. 21).

Os espaços midiáticos e de consumo se tornam, assim, lugares onde esses

indivíduos podem adquirir voz, entendendo aqui a fala não apenas como o ato de

emitir palavras, mas também o de poder existir. A mídia se converte em uma arena

de disputas de sentido dos corpos, pois, ao mesmo tempo em que propaga e reitera

estigmas, também vai se tornando um espaço de luta por visibilidade, legibilidade e

legitimidade social de setores minoritários na contemporaneidade.

Assim, a experiência da transição capilar, entendida como uma forma de

ativismo pelo reconhecimento de direitos à liberdade do corpo da mulher negra, expõe

confrontos e embates que se desenham nos espaços midiáticos – que se constroem

enquanto arena de disputas dos sentidos, significações e ressignificações sobre a

mulher negra. Esses espaços midiáticos, em especial os existentes na internet, são

vistos enquanto lugares de reconhecimento onde se criam diálogos e confrontações

entre diferenças, revelando sua natureza ambígua e ambivalente, mesclando-se

intersecções e divergências (RINCÓN, 2016).

Ressignificar os sentidos negativos e excludentes atrelados ao corpo negro

pressupõe uma perspectiva epistemológica descolonizada. Segundo Mbembe (2018),

a visão do negro na contemporaneidade foi construída pelo sistema escravocrata e

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colonial. Nessa construção social, o negro designa a imagem de uma existência

subalterna e de uma humanidade castrada. Nas palavras do autor, o negro é aquele

que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando

nada queremos compreender. Essa invisibilidade está no cerne do racismo, que, além

de negar a humanidade do outro, desenvolve-se como modelo legitimador da

opressão e da exploração, e ainda sofre com toda carga de descaracterização de sua

cultura.

Ramón Grosfoguel (2010 apud CARDOSO, 2017, p. 5), refletindo acerca da

importância da localização do sujeito na produção do conhecimento ao abordar as

epistemologias descolonizantes, distingue lugar epistêmico de lugar social. Segundo

Grosfoguel (Idem), para pensar a partir do lugar epistêmico subalterno, mais do que

estar situado socialmente no lado oprimido das relações de poder, é necessário

assumir o compromisso ético-político em elaborar um conhecimento contra-

hegemônico.

Campelo (1997, p. 16) defende que “o corpo de um indivíduo é o depositário da

cultura de que participa este indivíduo e, portanto, é depositário de informação”. O

corpo humano é, assim, atravessado por construções de ordem familiar, estética,

midiática, etc. Desta forma, abarca ideologias presentes na cultura em que se insere.

Para apreender as corporalidades, há de se levar em consideração não apenas sua

perspectiva física ou biológica, mas, sim, os sentidos sociais e culturais que as

entremeiam. O que significa dizer que a aparência, como afirma Nogueira (1999), está

sujeita a um grau de classificações em relação ao conjunto de atributos que

caracterizam a imagem dos indivíduos de determinado grupo social, em termos do

espectro de tipificações existente. O corpo está, assim, suscetível a classificações,

significações e atribuições de valor. Quintão (2013) explicita que as texturas capilares

crespas e cacheadas, por se distanciarem de padrões de beleza hegemônicos, criam

buscas por uma “adequação” estética.

Gomes (2012) acrescenta que os processos identitários são construídos

historicamente no contato e contraste com o outro, na negociação, na troca, no conflito

e no diálogo; isso tudo dentro de uma sociedade que perpetua lógicas racistas e o

mito da democracia racial. Logo, os sentidos contidos no corpo são sentidos de

cultura, visto que os liames entre o corpo e o universo social em que emerge e de

onde não podem ser dissociados se instituem em um processo relacional – e, por

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extensão, comunicacional. Essa conceituação vai ao encontro do que apresenta

Campelo (1997, p. 14) ao sustentar que o corpo é dinâmico, em constante movimento,

e que sua interpretação é perpassada por constantes (re)significações:

(...) tudo no corpo é semelhante a um jogo de espelhos que refletem novos ângulos e novas, quase infinitas, combinações, criando um jogo de formas que se organizam e se desmancham em novas formas, que de novo se embaralharão para surpreender o olhar de quem ousou ter pensado capturar alguma forma anterior. (CAMPELO, 1997, p. 14)

Nessa perspectiva, Norval Baitello (2010), com base nas teorizações

sistematizadas por Harry Pross, compreende as mídias a partir de uma ótica mais

expandida, não as restringindo somente aos meios de comunicação. O autor as

dispõe entre mídias primárias, secundárias e terciárias. A dimensão primária diz

respeito justamente às comunicabilidades que se depreendem do corpo: suas cores,

sons, odores, gestualidades, aparências. A secundária corresponde aos suportes que

se externalizam desse corpo, como a indumentária, por exemplo. Já a terciária é

aquela que se vale de aparatos para transmissão de mensagens, como a TV, o rádio,

os computadores, possível devido à eletricidade. O mais importante de se destacar é

que Baitello (Idem) defende que sempre há um corpo no início e no final desses

processos midiáticos, independentemente do tipo de mediação.

Sendo assim, verifica-se o enredamento que as sociocomunicabilidades

assumem, abrangendo fatores biotecnológicos e psicoantropológicos. A fala ou os

gestos, característicos das mídias primárias, ganham amplitude devido a sua

onipresença, da mesma forma que os aparatos veiculadores de mensagem expandem

seus referenciais, pois se tornam mídia ao agregar “significados aos corpos que deles

se utilizam” (BAITELLO, 2010, p. 64). Logo, os meios terciários também se

transformam, ao passarem a se constituir não apenas fundamentados em sua

tecnologia, mas também compreendendo a dimensão de “mediação técnica que opera

em seu ambiente uma tradução dos meios primários e secundários” (Idem). É por isso

que podemos interpretar as mídias terciárias e seus aparatos como uma expansão do

corpo.

Ao tomar o corpo como mídia – concebendo-a enquanto elementar à produção,

circulação e consumo de sentidos na contemporaneidade –, constatamos que o corpo

não pode ser separado das espacialidades e temporalidades que nele estão contidas,

isto é, de sua historicidade. Ou, conforme afirma Campelo (1997, p. 30), “das relações

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primárias que terá de seu grupo familiar e, depois, social, do grupo sociocultural a que

pertence, de sua específica organização psíquica, de suas crenças, etc.”.

Em suas inter-relações com as mídias, sobretudo com o recente espraiamento

das mídias terciárias e a centralidade por elas assumidas em nossa vida cotidiana,

este corpo se verá expandido, fragmentado, (re)composto em permanência,

(re)significado, em disputa: converte-se em um verdadeiro campo de batalhas sígnico,

onde também estão implicadas formas de subjetividade e construções identitárias as

mais diversas. Como Baitello (2010, p. 73) preconiza, “imagem e eletricidade, de mãos

dadas, vão ditar os preceitos do mundo, sua sociabilidade, sua memória, seus

projetos, seus ritmos e tempos, seus territórios e espaços, sua capilaridade e

potência”.

Quintão (2013) sustenta que a ideia de superioridade estética do cabelo liso em

relação ao cabelo enrolado ou crespo (comumente associado ao fenótipo negro)

remonta à época da escravidão, em que já se observava uma hierarquização entre

padrões de beleza que alocavam em esferas opostas negros e brancos.

Isso sobreleva a relevância dos cabelos nas dinâmicas sociais no decorrer da

história: desde o antigo Egito, onde os fios eram ostentados em penteados como

elemento enaltecedor da beleza, ou nas culturas judaicas e cristãs, onde eram

interpretados como ferramenta de sedução, representando perigo ao homem e,

portanto, devendo ser cobertos. No Ocidente, o cabelo adquire novas significações

com a ascensão do capitalismo e dos ditames da moda, a partir do século XVIII

(LIPOVETSKY, 2009). A valorização dos fios, enquanto aspecto da aparência, faz

surgir a profissão cabelereiro e diversos salões de beleza, provocando impactos na

relação dos sujeitos com seus cabelos, em especial as mulheres.

Com relação aos “cabelos afros”, Quintão (2013) aponta que, no final do

período escravocrata americano, por exemplo, o cabelo liso já representava

vantagens econômicas e sociais aos negros: “ao alisarem seus cabelos, alguns

escravos de pele mais alva conseguiam se fazer passar por homens livres. Para os

demais, o alisamento do cabelo poderia representar menos trabalho e esforço físico”

(Ibidem, p. 17). Nesse contexto, nota-se o corpo negro visto como elemento a ser

enquadrado dentro de um padrão estético hegemônico, branco, sofrendo processos

de opressão e invisibilização de sua existência.

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Em “A História da Beleza”, Umberto Eco (2013) faz críticas a essa “beleza

padronizada”, amplamente difundida pelos meios de comunicação de massa e que

reforçam conceitos de beleza normatizados, hierarquizados e que mantêm relações

de poder assimétricas, baseadas em uma escala gradual de estética almejada.

Campelo (1997, p. 49), por sua vez, também apresenta contribuições ao refletir sobre

os efeitos dessa influência nos corpos:

Este corpo será ainda acrescido do corpo expandido de outros corpos que a cultura a que ele pertence apregoará em sua vida: o corpo de seus heróis culturais, os comunicadores e atrizes de TV e de cinema, o corpo das personagens de literatura e teatro, o corpo ideal plasmado pela publicidade.

Portar um cabelo que escape aos padrões estéticos hegemônicos, como o caso

de cabelos cacheados ou crespos, pode representar uma “libertação”, adquirindo uma

potência política de resistência ao viés normativo desses mesmos padrões. Falar de

cabelo, por conseguinte, é também falar de relações de poder. O cabelo é signo,

comporta uma multidimensionalidade simbólica e comunicacional que flui entre o

individual e o coletivo.

Os processos de significação do corpo e dos ideais e padrões de beleza são

construções sociais. Deste modo, estão em constante movimento, são mutáveis e

passíveis de ressignificação e transformação pelos sujeitos, possibilitando

rompimentos e formação de novos sentidos. Trata-se de uma forma de expressão

social que viabiliza distinções identitárias. E no que concerne ao cabelo crespo e ao

corpo negro, “colocados nessa ordem, são expressões de negritude. Por isso não

podem ser pensados separadamente” (GOMES, 2002, p. 9).

Em sintonia com essa perspectiva, a estética atua como uma possibilidade de

negociação de sentidos entre os que se fazem visíveis nos territórios digitais –

concebendo-os como ambientes potenciais para a construção de debates e

entendendo que a questão estética pode tomar um caráter político quando inserida

em discussões como racismo e preconceito, representações e visibilidades.

No contexto da mídia pós-massiva, o corpo tem sido elemento simbólico na

produção de narrativas que reelaboram representações imagéticas sob uma

perspectiva descolonizada. O cabelo, enquanto signo expressivo dessa corporificação

estética, ousa e desconstrói padrões convencionais veiculados midiaticamente. Nesse

ínterim, o resgate do cabelo naturalmente crespo implica reconhecer a inversão de

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um modelo até então convencionado como “belo”, cuja característica principal são os

cabelos lisos.

Nesse universo de disputas simbólicas, a transição capilar, enquanto narrativa

compartilhada nas redes digitais, engloba processos de ressignificação do corpo

negro. Os relatos de mulheres negras, no que concerne à aceitação da própria

estética, tornam-se um símbolo de resistência, que ressignifica os valores da própria

ancestralidade, marcada por processos de invisibilidades. Os fragmentos

autobiográficos contidos nas narrativas de mulheres negras que passaram pela

transição capilar trazem à tona elementos de trajetórias individuais que ecoam vozes

que aludem a um contexto social marcado por estruturas de preconceitos raciais.

Nos processos de disputas simbólicas, a participação da mulher negra sofreu

processos de apagamento, historicamente. As vozes e realizações das mulheres

negras durante o período da escravidão, por exemplo, foram fortemente silenciadas e

invisibilizadas. Nomes como Dandara, que lutou ao lado de Zumbi dos Palmares pelo

direito dos negros, e Maria Carolina de Jesus, escritora e literária, que produziu

importantes relatos acerca da vida na favela nos anos 1960, podem ser citados como

casos concretos de mulheres negras que realizaram importantes feitos, sem, todavia,

terem sido devidamente reconhecidos.

As lutas do movimento negro no Ocidente se fortaleceram na década de 1960,

tendo como um de seus desdobramentos o enaltecimento da beleza negra, como no

movimento conhecido por “Black is beautiful”, que defendia como sinal do orgulho

negro assumir o cabelo black power. Angela Davis, filósofa e ativista negra, foi uma

de suas mais importantes representantes femininas. No cenário brasileiro, temos no

Movimento Black Rio, da década de 1970, um exemplo de ação política em torno do

consumo cultural, do entretenimento e do lazer, a partir da música. Esse movimento

se configurou como uma cena musical que associou cidadania, linguagem e novas

formas de apropriação do espaço público. O Black Rio significou mais do que um

caráter meramente de resistência e oposição, mas propôs novas representações

socioculturais e políticas através de práticas de consumo diferenciadas, marginais e,

ao mesmo tempo, influenciadas por uma cultura de massa hegemônica (OLIVEIRA,

2018).

Verificamos, assim, o papel estratégico da estética no seio dos movimentos de

lutas sociais. O cabelo, nesse sentido, adquire uma potencialidade de ato político,

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como nos movimentos de transição capilar, cada vez mais populares entre mulheres

negras. Atrizes, modelos e blogueiras de moda têm se tornado ícones em sites de

redes sociais, tais como o YouTube, Instagram e Facebook, e também na TV, como

representantes da beleza negra, servindo de inspiração ao compartilharem as próprias

histórias conflituosas com o cabelo, a decisão de parar de alisá-lo e voltar a ter os fios

naturais, bem como as experiências e os cuidados com sua textura.

2.2 O ATO DE NARRAR A SI MESMO: INTERSEÇÕES ENTRE COMUNICAÇÃO,

CONSUMO E ESPAÇO AUTOBIOGRÁFICO

“(...) então, as histórias não são inventadas? Mesmo as reais, quando são contadas. Desafio alguém a relatar algo que realmente aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar essas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência (...).” (Conceição Evaristo. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nadyala, 2011).

O âmbito midiático, nas sociedades contemporâneas, torna-se central às

comunicabilidades humanas, englobando os corpos e suas expressões. O consumo,

enquanto promotor de vínculos sociais, emprega sentidos a esses bens e aos

indivíduos, por meio de práticas discursivas e simbólicas articuladas às práticas

cotidianas. Assim, o consumo atua como forma de mediação: “ao consumirmos bens

materiais e imateriais nós nos constituímos enquanto indivíduos e negociamos nossos

próprios significados nos jogos comunicativos entre o coletivo e o individual, o global

e o local” (ROCHA; CASTRO 2009, p. 51). As imbricações entre mídia e cultura são,

portanto, atravessadas por essas práticas do consumo e permitem estabelecer

interações entre os sujeitos e compreender a construção de suas identidades,

atreladas às dinâmicas sociais, culturais e econômicas que os circundam.

Esses trânsitos simbólicos nutrem as práticas comunicacionais,

potencializados pelos aparatos tecnológicos e suportes midiáticos, onde o consumo,

associado à imagem, institui-se enquanto campo privilegiado de constituição das

subjetividades (ROCHA, 2008), possibilitando uma conexão entre imaginário e

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sociabilidade. Essa profusão de imagens às quais estamos expostos, do ponto de

vista da comunicação, possui grande impacto, na medida em que os sentidos se

constroem a partir das representações imagéticas, dado que a estética do consumo

se relaciona intimamente com a transformação da realidade em imagens (JAMESON,

1993).

As culturas midiáticas e suas interfaces com o consumo atuam enquanto

lugares de “reconhecimento” para os sujeitos, e interferem “na produção de narrativas

de si e na percepção das alteridades” (ROCHA, 2010, p. 3). Assim, torna-se

necessário pensar a comunicação e o consumo, para além de aparatos e estruturas,

a partir de seu viés cultural que abarque análises que se referem aos sujeitos sociais.

Nesse sentido, mais do que dinâmicas de reprodução de formas e conteúdo, é preciso

localizar na produção da comunicação “os usos sociais dos meios, as recriações de

seus conteúdos e a criação de novos significantes e significados” (Ibidem, p. 2).

Segundo Rocha (2012, p. 128), o debate acerca das imagens e representações

em nossas sociedades midiáticas tornou a política “um caso de imagem, nem sempre

resultando em processos nos quais se tornam visíveis sujeitos sociais autônomos e

ativos”. Assim, analisar as imagens a partir da corporalidade do sujeito, em que este

é capaz de interpretar as imagens a partir de sua materialidade, ratifica a ideia

segundo a qual é menos relevante nos perguntar sobre a natureza das imagens que

nos cercam do que indagar sobre a natureza das relações que nós estabelecemos

com elas (ROCHA, 2012).

Essa abordagem, ao avaliarmos a dimensão política da relação entre corpos e

imagens, acarreta dizer que a produção imaginária se dá na rede de materialidades e

negociações simbólicas (ROCHA, 2010). Desta forma, os imaginários são também

sociais, na medida em que se expressam por meio de práticas concretas e “estariam

associados a práticas dotadas de politicidades e/ou expressividade pública, indicando

disputas por hegemonia imagética e simbólica” (ROCHA; SILVA; PEREIRA, 2015, p.

102). A politicidade é aqui entendida “a partir da articulação entre conhecimento e

emancipação, ou seja, articula-se a processos de consciência social de sujeitos

implicados na construção de autonomia e na criação de alternativas próprias de ser e

de estar no mundo” (ROCHA, 2012, p. 142).

O campo das visualidades e dos corpos na configuração das sociedades

midiatizadas, atravessadas pelas mais variadas redes e aparatos tecnológicos,

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reverbera sobre as possibilidades comunicativas das imagens aprendidas como

fontes de afecção (ROCHA, 2012). Partindo dos princípios de Spinoza (2008 apud

ROCHA, 2012, p. 163) acerca dos processos de afetação dos corpos, que aumentam

e/ou diminuem sua potência de agir, a autora associa esse pilar das teorias da afecção

“à dimensão em essência política do que nos é dado a ver — por meio da profusão

de imagens visuais — levando-nos a questionar aquelas imagens que, ao nos

afetarem, efetivamente aumentam ou diminuem nossa competência corpórea e

cognitiva de ação” (ROCHA, 2010, p. 200). O que significa dizer que as imagens

podem estabelecer fontes de vinculação; contudo, nem sempre serão portadoras de

afetos felizes (ROCHA, 2010).

Segundo Norval Baitello (2010), essas visibilidades e os processos de afetação

dos corpos se associam a estruturas socioculturais compartilhadas, em que as

imagens se aliam a um significado de permanência da existência. Desta forma, “as

dinâmicas de visibilização incessante configuram verdadeiras arenas de disputa pela

conquista de atestados de existência midiáticos” (ROCHA; CASTRO, 2009, p. 52). Os

modos de consumo interferem na forma como nos comunicamos e nos afirmamos

socialmente (ROCHA, 2008). Essa comunicação mediada pelo consumo possibilita a

identificação de iguais e semelhantes, e também detecta os diferentes. Ou seja, ela

permite a inclusão, mas pode gerar a exclusão.

Nessas arenas do visível, homens e mulheres buscam, a todo custo, manter-

se em cena (ROCHA, 2008). As dinâmicas de visualidade, com fronteiras cada vez

menos demarcadas, aludem à maneira como construímos nossa identidade e

reconhecemos a diferença, e repercutem nas formas como concretamente vivemos

nossas vidas, percebemos o mundo e nele nos inserimos (ROCHA; CASTRO, 2009).

A multiplicidade de telas que habitam nosso tempo, os variados formatos e

modelos de narrativas audiovisuais e a diversidade de identidades e estéticas nos

levam a buscar outras formas de compreender e explicar a vida a nosso entorno.

Somos levados a aprender a pensar com imagens (RINCÓN, 2006). As culturas

midiáticas criam e socializam as percepções estéticas, os padrões de gosto e as

formas de sentir. Assim, na experiência do cotidiano, a estética se associa à ordem

do sensível e ao campo dos afetos. Os valores estéticos se referem aos critérios que

conformam os gostos a partir de aspectos subjetivos, emotivos e da validez coletiva.

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A imagem se projeta, pois, como o centro da cotidianidade (Idem). Assim, a cultura da

narração e da performance surge como estratégia para imaginar, resistir e sobreviver.

Ao narrar, há de se compreender as especificidades de cada dispositivo (TV,

Internet, celular, etc.) e as formas de narrar dos sujeitos, a partir dos sentidos

adquiridos nas experiências vividas. Ou, nas palavras de Rincón (2006), entender

quais os critérios de temporalidade, imagens, som, ritmo, duração, gênero, formato e

ainda as especificidades narrativas de cada dispositivo comunicacional e de cada

narrador.

Para Rincón (2008), mais do que consumidores de produtos midiáticos,

devemos buscar a emancipação enquanto cidadãos ao nos convertermos em

produtores de mensagens e culturas que visam – a partir das dimensões políticas,

comunicativas e culturais que se criam em nossas narrativas – existir e (re)existir no

mundo. Segundo o autor, temos que considerar que as telas da TV, dos celulares,

notebooks e demais dispositivos permeiam a vida cotidiana, interferindo em nossos

modos de comer, estar com os amigos, dormir, chorar, de se divertir, etc. Contudo,

mais do que imagens, sons e conteúdos, os aspectos sociais, culturais e econômicos

atravessam a relação dos sujeitos com os dispositivos comunicacionais, que são

intrínsecos a sua produção e interpretação.

Nessa trama cultural, irradiam-se, como um marco de nosso tempo, mediado

pelo horizonte midiático, as narrativas biográficas e autobiográficas. Esses relatos de

vida delineiam uma cartografia da trajetória individual, em que a ênfase na

singularidade é ao mesmo tempo uma busca pela transcendência (ARFUCH, 2010).

Narrar é se fazer visível, em tempos onde os meios de comunicação são levados ao

centro da vida cotidiana.

Segundo Rincón (2006), para nos constituirmos enquanto ser e compreender a

realidade a nossa volta e a nós mesmos, narramos. O autor afirma que podemos até

intentar interpretações e explicações acerca das experiências dos seres humanos,

das culturas e das sociedades, mas apenas comunicamos o que vivemos ao

convertermos nossas experiências em histórias. Assim, quando buscamos explicar,

narramos.

Desta maneira, o ato de narrar se expande para além de um caso singular,

possibilitando novas narrativas, identificações e identidades (ARFUCH, 2010). O

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caráter narrativo da experiência revela um processo dialógico desse entrecruzamento

de vozes. Como reforça Butler (2015, p. 27), “só se pode contar uma autobiografia

para o outro, e só se pode fazer referência a um “eu” em relação a um “tu”, sem o “tu”

a narrativa torna-se impossível”. Desta maneira, para se efetivar, o ato de narrar

precisa ser também visível ao outro, para quem se compartilha. Rincón (2006)

estabelece que narramos em uma perspectiva coletiva ao nos conectarmos com o

outro, visando criar comunidades de sentido.

O processo de narrar as experiências e trajetórias em rede legitima e dá

significado à realidade cultural. O relato se torna uma maneira de pensar, interpretar

e também de contar sobre nós mesmos, por meio de estruturas dramáticas visíveis a

partir dos aparatos digitais. Desta maneira, a narração atua como um articulador entre

o passado e o futuro. Até porque a produção narrativa parte da confiança em um relato

prévio, a partir de acontecimentos existentes na memória individual ou coletiva. A

produção de narrativas autobiográficas pressupõe uma interdependência entre quem

relata e o outro, a quem se compartilha a narração. Assim, podemos dizer que o “eu”,

ao narrar sua trajetória retida na memória individual, ecoa elementos de uma memória

que também é coletiva.

As narrativas autobiográficas são capazes de reconstruir o passado e dar

sentido ao presente ao avaliarem as experiências vividas (RAGO, 2013). Essa

reconstituição de trajetórias, através do processo narrativo busca os sentidos das

experiências vividas. Construídas nos espaços midiáticos, essas narrativas são ao

mesmo tempo produtos e dispositivos de interpretação das culturas midiáticas

(RINCÓN, 2006). O relato, assim, implica em uma temporalidade social, que excede

as capacidades do sujeito da narração, por pressupor que esse “eu” não tem uma

história própria que não seja uma relação (BUTLER, 2011). Esse regime de

reflexividade delineia quais formas de “ser” serão reconhecíveis e não reconhecíveis

ao sujeito.

Segundo Arfuch (2010, p. 19), os avanços da midiatização proporcionaram um

cenário fértil para a afirmação de uma expressão imediata do vivido, do testemunhal,

que contribui para uma trama de intersubjetividades “em que a superposição do

privado para o público excede todo o limite de visibilidade”. Assim, o espaço

autobiográfico se torna um cenário móvel de manifestação que extrapola formas

reguladas de relatos de si:

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(...) nos diversos momentos biográficos que surgem, mesmo inopinadamente, nas diversas narrativas, particularmente nas midiáticas. Ali, nesse registro gráfico ou audiovisual que tenta dar conta obstinadamente - cada vez mais pela boca de seus protagonistas – do “isso aconteceu”, talvez seja onde se manifesta, com maior nitidez, a busca da plenitude da presença - corpo, rosto, voz – como proteção inequívoca da existência, da mítica singularidade do eu (...) (ARFUCH, 2010, p. 74).

Nesta concepção, o espaço biográfico na contemporaneidade cria uma relação

entre o geral e o particular. Ou a ideia do eu que vai além de si mesmo, que transcende

em direção à vida em geral. Assim, articulam-se o “momento” e a “totalidade” na busca

pela identidade ou identificação. A articulação indissociável entre o eu e o nós abre a

possibilidade para narrativas que se estendam para além do caso singular em que se

reconhecem pluralidades de vozes que ultrapassam o binômio público-privado,

ampliando-se para “vários espaços públicos e privados, coexistentes, divergentes,

talvez antagônicos” (ARFUCH, 2012, p. 101).

Rago (2013), a partir das narrativas autobiográficas, reflete sobre as estéticas

da existência e suas implicações na produção de uma subjetividade que deixa de ser

pautada na obediência e submissão e se abre para a construção de novas formas de

viver, capazes de se libertar das tecnologias do dispositivo biopolítico de controle

individual e coletivo. A autora defende que o conceito de estética da existência se

aproxima da produção autobiográfica, na medida em que permite a possibilidade de

criação de um estilo próprio de existir, com base em modos de vida e escolhas de

existência de cada um (Idem).

O indivíduo se torna produtor de si mesmo, determinando suas regras de

conduta, e também busca modificar-se para alcançar sua singularidade. A linguagem

e as escritas narrativas são entendidas por Rago (2013) como espaços onde se

revelam as práticas da estética da existência; nelas as representações sociais são

formuladas, veiculadas e também assimiladas. A noção de espaço biográfico aqui está

ligada a diferentes tipos de narrativas de si, memórias, depoimentos, entrevistas, etc.,

que permitem cartografar as subjetividades presentes.

Para Villar (1971), narrar a própria biografia se constitui enquanto instrumento

de poder, na medida em que dá ao sujeito a autonomia em moldar a própria existência,

em que a narrativa de si é análoga à ideia de um autorretrato. Nesta ótica, ao se

apropriar de si a partir da construção narrativa de sua própria trajetória, seria possível

ver o sujeito através de uma imagem que ele próprio delimitou. A autora salienta a

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existência de um elemento que confere legitimidade à narrativa de si: o pacto

autobiográfico (Idem).

Neste ato, a “assinatura” de quem relata é que atribui à narrativa o caráter

autobiográfico, até porque dificilmente atribuímos como autobiográfico um relato

anônimo. “Em primeiro lugar, sirvo-me da linguagem para escrever, de uma língua

que me vem do outro. E minha assinatura mesma está plena desse outro, já que ela

quer englobar o meu ser através de um nome que me pertence, mas que só é meu

porque me foi dado por alguém” (VILLAR, 1971,SI p. 4). Por sua vez, a recepção

também pressupõe a atuação do pacto autobiográfico. É na apropriação do relato pelo

outro que os fragmentos autobiográficos podem exercer poder: “é, na verdade, nesse

ato de leitura que o leitor assina o pacto e deixa o relato autobiográfico exercer seu

poder (...) ou não” (Idem).

Já para Alberti (1991), o exercício autobiográfico opera uma síntese dos

sentidos dados à própria vida. Síntese esta que engloba descontinuidades, omissões

e seleção de acontecimentos a partir dos relatos de si. Nessa dinâmica, o sujeito se

orienta pela busca de significações: que lhe dirão quais acontecimentos ou reflexões

devem ser omitidos e quais (e como) devem ser narrados.

Nesta busca, os relatos ganham sentido na medida em que vão sendo

narrados, acumulando-se uns nos outros, de forma que a significação se constrói no

momento em que o sujeito narra a sua existência. O adentrar das narrativas midiáticas

em nosso cotidiano (onde se inserem as narrativas autobiográficas partilhadas em

rede) “se tornou um potente agenciador de nossos imaginários, tanto os coletivos —

dos mitos, ritos e símbolos — quanto os individuais – dos sonhos propriamente ditos”

(ROCHA, 2012, p. 136). Há que se lembrar que as mídias digitais e seus aparatos

tecnológicos, com sua memória imaterial, “são virtualmente mais ‘eternas’ do que a

memória material. Também é assim que hoje podemos reconstruir as lembranças e

escrever nossas próprias memórias” (Ibidem, p. 138).

Nesse debate sobre visibilidade midiática, a partir das narrativas

autobiográficas, centramos nossa abordagem nas visibilidades sociais de mulheres

negras veiculadas nas sociedades comunicacionais e mediadas pelas culturas do

consumo. Interessa-nos perceber como os fluxos identitários e culturais que emergem

de suas vivências midiáticas dialogam com realidades sociais e contextos culturais,

revelando formas de produção e negociação de sentidos ligadas aos corpos negros,

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que englobam estigmas e exclusões, mas também possíveis sentidos de

(re)significação e (re)existência, em que tensões socioculturais ganham visibilidade

social e impacto midiático.

Ao refletir sobre as narrativas autobiográficas de mulheres negras, produzidas

e veiculadas em aparatos midiáticos, temos de localizar o lugar de subalternidade e

desamparo social a que essas mulheres estão sujeitas no contexto brasileiro. Em meio

a tamanha adversidade de se estar às margens da sociedade, “as mulheres negras

criam táticas de sobrevivência forjando soluções culturais para os problemas

econômicos” (SANTANA; ALMEIDA, 2017, p. 58), por meio do compartilhamento das

práticas cotidianas, experiências e trajetórias nas redes digitais.

Essas táticas de vida de mulheres negras, presentes em suas memórias, são

compartilhadas em rede digitais por meio de narrativas com teor autobiográfico. Nesse

exercício de narrar a si mesmo, tomam o protagonismo dos significados da própria

existência, rompendo com os lugares de subalternidade, normalmente atribuídos às

mulheres pelos discursos hegemônicos. Nesse sentido, escrever/narrar é existir e

(re)existir:

(...) é de um lugar de alteridade que desponta a escrita da mulher negra. Uma voz que se assume. Interrogando, se interroga. Cobrando, se cobra. Indignada, se indigna. Inscrevendo-se para existir e dar significado à existência, e neste ato se opõe. A partir de sua posição de raça e classe, apropria-se de um veículo que pela história social de opressão não lhe seria próprio, e o faz por meio de seu olhar e fala desnudado os conflitos da sociedade brasileira (ALVES, 2010, p. 185).

Nossa reflexão se pauta, portanto, nas narrativas autobiográficas acerca da

experiência da transição capilar, entendendo o cabelo enquanto elemento corpóreo

identificado a aspectos culturais e sociais ligados a traços étnicos, que refrata e reflete

sentidos individuais e coletivos. Essa escolha se justifica ao considerar que o cabelo

surge enquanto aspecto corpóreo marcante no que tange às experiências

socializantes da mulher negra. Suas significações são construídas e podem ser

entendidas no interior de contextos sociohistóricos e percebidos nas dinâmicas

midiáticas

2.3 AS NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS COMO PERFORMANCE MIDIÁTICA

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A performance midiática como “espetáculo da interioridade” (ARFUCH, 2010)

adquire especial atenção ao analisarmos as narrativas autobiográficas de transição

capilar compartilhadas por mulheres negras que possuem o status de “celebridade”

ou que são portadoras de visibilidade midiática, como denominamos em nossa

reflexão. A partir de diversos aparatos midiáticos, como programas de TV, entrevistas,

videoclipes e sites de redes sociais, essas personalidades constroem sua

subjetividade em rede e performam narrativas de si.

Embora tenha se popularizado consideravelmente nos últimos anos, o conceito

de performance9 contempla uma série de ambiguidades e está longe de ser simples.

No campo das artes, o termo “performance” se fundamenta a partir de um movimento

dos anos 1970, que originou um gênero artístico assim denominado (SIBÍLIA, 2015).

O conceito contempla manifestações híbridas que abrangem dança, teatro, poesia,

música, artes visuais e auditivas, e, permeadas pelas novas tecnologias digitais,

tornam-se amplamente difundidas na internet.

Para esta autora, quando se fala em performance na atualidade, remete-se à

construção de uma subjetividade espetacularizada em rede. Assim, o conceito adquire

uma maior amplitude e pode fazer referência tanto ao desempenho de um ator no

palco, de determinado atleta em uma partida de futebol ou até mesmo, como aqui

trataremos, da espetacularização da vida cotidiana (SIBILIA, 2015).

Como bem sintetiza Schechner (2003, p. 25), “no século XXI, as pessoas têm

vivido, como nunca antes, através da performance”. Percebemos na fala do autor que

o exibicionismo ou as maneiras de se tornar visíveis, atreladas às performances

compartilhadas em rede, têm se tornado uma estratégia habitual nas práticas

cotidianas. Sem dúvida, o espraiamento dos espaços midiáticos e do consumo na

contemporaneidade cria um ambiente fértil para a profusão de imagens e relatos

inspirados em tais moldes. Além disso, essa espetacularização da vida comum “tende

a se realizar nas imagens e ganha consistência ao se produzir com a ajuda dos

9 Nesta pesquisa, refletimos sobre o conceito de performance em contextos midiáticos proposto por Sibília (2015), contudo, pontuamos, que o termo performance vem sendo utilizado por diversas correntes da Antropologia, Linguística, Sociologia, entre outros campos, para entender dinâmicas de construção de identidades e sociabilidades (SOARES; AMARAL, 2018). Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1809-58442018000100063&script=sci_arttext>. Acesso em: 10 de janeiro de 2018.

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códigos midiáticos ao se plasmar nas telas que se multiplicam por toda parte” (SIBÍLIA,

2015, p. 355).

Nesta cena midiática, o compartilhamento das narrativas de si pelas chamadas

celebridades, reproduzidas e repercutidas em diversos veículos de mídia e nos sites

de redes sociais, enfatizam os aspectos da vida cotidiana, íntima e privada,

multiplicando-se em resposta ao apelo de um público que reconhece nesses

indivíduos uma espécie de inspiração. Cria-se uma relação de interação, pois a

performance se vincula a um outro que assiste e contempla o ato performativo: “se

viver se assemelha a atuar ou encenar, se ‘ser alguém’ equivale a interpretar um

personagem, e se a vida tende a se parecer cada vez mais com uma narrativa

midiática, isso ocorre porque costumamos sublinhar nossos gestos e ações para

aqueles que assistem” (SIBÍLIA, 2015, p. 355).

Nessa perspectiva, performamos para aqueles que assistem e, assim,

calculamos, ensaiamos e emolduramos nossas próprias práticas do dia a dia, como

se o objetivo fosse enquadrá-las para que o público possa apreciá-las.

A dimensão performativa faz parte do próprio ato de se tornar visível, pois

implica em um corpo que se expõe e, nesse ato, cria-se a si próprio. Isso significa que

essa subjetividade ganha forma e existência à medida que se mostra, aparece,

performa. Schechner (2003, p. 49) afirma que “mais e mais pessoas experimentam

suas vidas como sequências de performances conectadas”. Os aparatos audiovisuais

e interativos atrelados aos espaços midiáticos, auxiliam na intensificação desse

fenômeno. Nessas criações contemporâneas:

(...) convida-se a ‘vida real’ para participar, interagir, julgar, colaborar e, sobretudo, ela é tentada insistentemente a se produzir para e nas telas. Por outro lado, a própria vida cotidiana se contagia desse modus operandi e se espetaculariza ela também, de modo crescente, mesmo nas cada vez mais escassas situações em que as câmeras não estão presentes (SIBÍLIA, 2015, p. 355).

Os modos performáticos conformam novas formas de se relacionar consigo,

com os outros e com o mundo. Assim, aqueles que adquirem visibilidade midiática,

atuam enquanto representantes de ideais e identidades desejados e idealizados pela

sociedade contemporânea: “quem nós pensamos que a celebridade é ‘de verdade’,

nos diz algo sobre quem nós somos ou quem nós queremos ser” (MEYERS, 2009, p.

895).

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Nesse contexto, a ideia de performance midiatizada advém importante para a

discussão acerca dos corpos e cabelos vinculados à negritude, pois, ao tornar essas

trajetórias de mulheres negras visíveis, partindo do entendimento de que a

performance se associa a uma subjetividade construída, ela contribui para fomentar o

debate e desestabilizar visões essencialistas dos traços ligados às identidades

sociais. Assim, os corpos e cabelos são performativos, na medida em que seus

sentidos são constantemente construídos e reconstruídos em sociedade e mediados

pela cultura (PAULA, 2014).

Dessa forma, não há uma estética preestabelecida para os corpos negros,

como também não há uma textura única de cabelo das negritudes. Dito de outra forma,

não há uma identidade social unânime da negritude, pois ela se concebe em um

caráter heterogêneo de infinitas variáveis, que vão desde a origem/contexto social em

que se inserem esses indivíduos, passando pela tonalidade da pele, a textura dos

cabelos, a robustez dos corpos, a cor dos olhos, etc. Nas palavras de Hall (2006), as

identidades são como “celebrações móveis”, formadas e transformadas

continuamente a partir dos sistemas culturais que as rodeiam.

A filósofa e ativista Sueli Carneiro (2004), no texto “Negros de Pele Clara”10,

entende que a hierarquização dos discursos que atribuem valores morais a traços

fenotípicos e genotípicos de grupos sociais nos permite entender as dinâmicas e

estruturas racistas. Segundo ela, por trás dessa premissa estão inquietações sobre a

facilidade com que atribuímos múltiplas características aos indivíduos brancos, algo

que, no entanto, não é considerado da mesma forma ao pensarmos na diversidade

de indivíduos negros. Para Carneiro (Idem), pensar o processo emancipatório da

população negra compreende a aceitação coletiva das diferentes trajetórias,

narrativas e identidades ligadas aos indivíduos negros.

A performance corpórea que se constrói nas redes digitais se torna uma

estratégia de posicionamento no mundo social. Os sentidos atribuídos aos corpos são

cotidianamente produzidos e negociados na performance e na interação social. Tais

práticas/construções dão condições para se compreender como as identidades, os

corpos/cabelos negros adquirem sentido nessas interações. Desta maneira, a partir

10 Portal Geledés. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/>. Acesso em: 15 de novembro de 2018.

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do corpo se pode reconhecer o processo de constituição das subjetividades (GOMÉZ;

SALGADO, 2012), pois, o corpo é portador de significado, construído em relação ao

outro e desta forma nominado e denominado com diferentes atributos. O corpo é lugar

único de existência de cada ser, onde é destacado o poder de decidir, ser e fazer.

Nesse sentido, é espaço onde se objetiva não apenas as violências, mas também as

resistências.

Nesse campo de construção de sentidos que tem o corpo como lugar e as

identidades negras como questão, o cabelo adquire valor simbólico ao vincular

identificação e pertencimento de indivíduos a determinados grupos: o do cabelo

“alisado”, do “relaxado”, do “natural”, constituindo uma pluralidade de narrativas e

significados atribuídos. Essas dinâmicas não fazem alusão apenas ao uso do cabelo,

mas igualmente a uma prática, a um “fazer” no mundo social (PAULA, 2014).

Desta maneira, o uso do cabelo é uma performance e, por consequência,

inscreve rotas sociais aos indivíduos. Ao mesmo tempo, cria possibilidades de desvios

a partir de performances e usos dos cabelos que desafiam o normativo, criando

caminhos próprios de (re)existências.

Nesse ínterim, as mudanças, como a transição capilar, abrem fissuras propícias

à diversidade (PAULA, 2014), e possibilitam brechas para desnaturalizar e/ou

desessencializar os corpos negros, criando espaços para que as negritudes possam

estabelecer seus roteiros sociais e espaços de (re)existência que se fundamentem em

pilares, que não sejam as de uma fisicalidade negra essencializada,

hegemonicamente imposta.

Em suma, entendemos que as narrativas de transição capilar enquanto

performance corpórea, difundidas pela cultura midiática, tensionam construções

essencialistas acerca dos corpos socialmente concebidos como negros, que

perpetuam posições de inferioridade a esses sujeitos sociais. Dessa forma, ao colocar

em cena mulheres negras como protagonistas das próprias narrativas, a partir da

performance de sua existência, essas expressividades se apresentam como

potenciais instrumentos de negociação de sentidos acerca das identidades e

significações dos corpos e sentidos vinculados a negritude.

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CAPÍTULO 3. PERCURSOS METODOLÓGICOS

3.1 ESCOLHAS METODOLÓGICAS

Neste capítulo, tratamos de expor as inspirações metodológicas que conduzem

nossa pesquisa, ajudando-nos assim na construção de uma instância investigativa e,

posteriormente, na descrição e problematização de nosso objeto de estudo.

A decisão por uma prática de pesquisa, dentre outras questões, refere-se à

maneira como fomos e estamos subjetivados, como nos colocamos no jogo dos

saberes e como nos relacionamos com o poder. Desta forma:

(...) não escolhemos, de um arsenal de métodos, aqueles que melhor nos atendem, mas somos “escolhidos” pelo que foi historicamente possível de ser enunciado; que para nós adquiriu sentidos; e que também nos significou, nos subjetivou, nos (as)sujeitou. (CORAZZA, 2002, p. 124).

Isto significa dizer que, pensar o conhecimento é também pensar a cultura, as

estruturas de poder e o lugar de onde se fala ou de onde se parte. A seleção do

método investigativo reflete um posicionamento adotado pelo pesquisador, que reflete

sua identidade, suas crenças, suas angústias e o seu saber. Na perspectiva de Martin-

Barbero (2004), o método não é apenas uma ferramenta para pensar objeto/problema,

mas uma postura filosófica, um ponto de vista acerca do objeto, onde a trajetória do

pesquisador também está implicada.

Grada Kilomba (2010) nos lembra que o espaço acadêmico não se constitui

enquanto lugar neutro, objetivo ou universal, mas, sim, como um espaço onde os

discursos hegemônicos pautados pela branquitude são reiterados como centro, como

a norma. Enquanto isso, os discursos que se distanciam desse viés são vistos como

conhecimento desviante, “muito interessante, porém, pouco científico” (Idem).

Dado este contexto em que o privilégio de fala têm sido, muitas vezes, negado

às pessoas negras e não-brancas, Kilomba (2010) propõem a descolonização do

conhecimento, reivindicando uma epistemologia que inclua a subjetividade e o

pessoal como parte do discurso teórico, lembrando que falamos de um lugar,

realidade e história específica que incluem emoções e subjetividade como parte do

conhecimento produzido. Assim, adotar um posicionamento descolonizado enquanto

pesquisador é “apresentar uma possibilidade de produção de conhecimento

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emancipatória” (KILOMBA, 2010, p. 32), alternativa aos discursos hegemônicos

advindos dos espaços de poder.

Nesta direção, como pesquisadora que se reconhece enquanto mestiça, minha

temática de estudo se ambienta em espaços que envolvem minhas experiências

pessoais como sujeito, que se mesclam com as vivências de meu objeto de pesquisa.

As questões que perpassam a minha pesquisa provocam um duplo sentido de

pertencimento a mim como pesquisadora: o da produção do conhecimento científico

e o da experiência enquanto mulher mestiça que vivenciou a transição capilar, filha de

pai negro e mãe branca, da pele clara e cabelos crespos. Nesses processos de

leituras e vivências, reconhecer essas fronteiras que me atravessam, representou,

possivelmente, a motivação maior para que, a partir dessas experiências

autobiográficas, eu decidisse buscar na autoetnografia um apoio metodológico para

esta dissertação.

Alicerçada no conceito de lugar de fala proposto por Djamila Ribeiro (2017),

que salienta que nossa fala parte sempre de um determinado lugar situado nas

estruturas de poder, a autoetnografia caracteriza-se como uma estratégia em que a

presença dos pontos de vista de quem pesquisa pode favorecer a captação de

experiências outras (SCRIBANO; SENA, 2009).

Na autoetnografia o pesquisador não suprime sua subjetividade, ao contrário,

a experiência pessoal é pensada “no contexto das relações e práticas culturais, de

forma que o método procura revelar o conhecimento de dentro do fenômeno,

demonstrando assim, aspectos da vida cultural que não podem ser acessados na

pesquisa convencional” (MOTA; BARROS, 2015, p. 1339). Esses processos

autorreflexivos que exploram e problematizam o próprio lugar de enunciação,

permitem, segundo Vergueiro (2014, p. 27):

(...) (re)descrever as complexidades de nossas histórias diversas, dores e brutalidades esquecidas ou neutralizadas em estatísticas e lamentações, (des)aprendendo epistemologias colonialistas e cartografando-as utopias, sonhos, análises críticas e curas contra toda ciscolonialidade a invadir, assassinar e explorar (econômica, acadêmica, politicamente) as diversidades corporais.

Com o intuito de fundamentar o compromisso com o meu locus

enunciativo/metodológico, evoco também a reflexão de Glória Anzaldúa (1987),

contida em Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. Na obra, a “consciência

mestiça” apresentada por Anzaldúa, remete à capacidade do pesquisador em

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“reinterpretar a história” universalizante, contrapondo-a através de uma “nova

consciência”, que recusa tanto o identitarismo essencialista quanto o hibridismo

hegemônico (ANZALDÚA, 1987). Nesta perspectiva de pensar a descolonização

intelectual, a autora reconhece que os terrenos da diferença são mais do que nunca

espaços de poder e, assim, defende pensar a construção de um pensamento que se

distancie dos moldes europeus, mas que dialogue com vozes marginais, capazes de

produzir um conhecimento diferente daquele que se proclamou como universal.

Nesta perspectiva, a ideia de consciência mestiça proposta por Anzaldúa se

associa ao conceito de lugar de fala trazido por Ribeiro (2017, p. 64), em que “o falar

não se restringe ao ato de emitir palavras, mas o de poder existir”. Assim, pensar lugar

de fala nesse contexto é se utilizar do lugar de marginalidade que ocupamos na

sociedade, como forma de produzir conhecimento alternativo à “historiografia

tradicional e à hierarquização de saberes consequente da hierarquia social”

(RIBEIRO, 2017, p. 64).

O lugar de fala do pesquisador e sua trajetória estão, portanto, implicados em

sua pesquisa. Minhas experiências enquanto mestiça, com os cabelos crespos, mas

com a pele alva o suficiente para ter sido chamada de branca a vida toda –, nunca me

senti compelida a pensar às questões raciais, devido a minha “passabilidade branca”,

que me colocou em uma posição de conforto e distanciamento do racismo.

Mesmo quando vivi um tempo na Europa, a minha negritude nunca foi algo que

saltou às vistas. Com os cabelos alisados e os olhos pequenos e puxados (que herdei

de um avô descendente de indígenas), era constantemente confundida por colegas

europeus com uma intercambista chinesa. Nesses instantes, eu não percebia as

tentativas, muitas vezes inconscientes, de apagar a minha negritude, até porque

essas experiências de embranquecimento vividas e a falsa ideia de “pertencimento”

me alienaram com relação a minha própria identidade e também com relação à

consciência das questões raciais que atingem a realidade brasileira.

Foi a transição capilar que me tirou do estado alienante em que eu me

encontrava. Em um primeiro momento, nada foi conscientemente político nesse ato.

Cortar os fios alisados, na minha experiência, foi uma maneira de salvar um cabelo

maltratado por químicas realizadas durante anos. A consciência de que usar o cabelo

crespo estava para além de uma questão de gosto veio com o preconceito. Na época,

sendo militar da Aeronáutica, uma instituição conservadora e bastante rígida com

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relação a normas de apresentação pessoal, chegar na minha seção de trabalho

fardada e com as madeixas encaracoladas soltas e volumosas foi um ultraje aos meus

superiores. Passei a sofrer perseguições para alisar o cabelo, com o argumento de

que precisava me “adequar” ao regulamento – que apenas previa a tipificação para

cabelos lisos. De nada adiantava a minha argumentação de que faltavam diretrizes

para um cabelo como o meu e que, segundo estas mesmas diretrizes, eu estava de

acordo. Foram meses de tentativas de intimidação que acabaram por me impor um

silenciamento forçado, na forma de um “coque” que escondia a textura e o volume de

meu cabelo, e também apagava a minha voz e existência destoante dos modelos

hegemônicos de branquitude.

Imagem 7: Regulamento que estabelece exemplos de tipificações capilares

permitidas aos militares da Força Aérea Brasileira

Fonte: <https://pt.scribd.com/document/117464463/ica-35-10-pdf

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A proibição de usar o meu cabelo em sua textura natural, na simbologia de um

“coque”, alude ao conceito de “máscara” apresentado por Kilomba (2010). Utilizado

como um instrumento de tortura no período escravocrata, “a máscara” presa à boca

de indivíduos negros, possuía também a intenção de promover um senso de mudez e

de medo. Ao ser coagida a “me adequar” a um padrão de aparência hegemônico,

meus traços étnicos foram tratados como errados e inferiores, necessários de serem

apagados e silenciados.

A conscientização dessas situações vividas como um processo de

silenciamento foi possível ao transpor minhas experiências biográficas vividas no

cotidiano do trabalho para as reflexões acadêmicas. O preconceito sofrido despertou

minha consciência mestiça e meu interesse em entender o quanto o racismo ligado

às características fenotípicas negras como cabelo, cor da pele, formato de nariz, etc.,

estavam atreladas a um contexto histórico-social pautado pelo colonialismo, que “cria,

deslegitima ou legitima certas identidades” (RIBEIRO, 2017, p. 31). Nessa lógica

colonial, “as desigualdades são criadas pelo o modo como o poder articula essas

identidades, resultantes de uma estrutura de opressão que privilegia certos grupos em

detrimento de outros” (Ibidem, p. 31).

Desta forma, norteada por uma perspectiva descolonizada de conhecimento,

propomos pensar a sociedade a partir dos caminhos da comunicação e da cultura,

fundamentados em uma construção metodológica que promova o des-centramento

do olhar do pesquisador (MARTÍN-BARBERO, 2004), convocado a ver junto às

populações subalternas. Adotamos, assim, uma visão observacional que pressupõe

uma perspectiva contaminada do pesquisador, que se constrói no campo, na

observação e na descrição do contexto observado em que os fluxos se misturam pela

reciprocidade, interdependência e (inter)influências, e a identidade final do

pesquisador, por sua vez, estabelece-se nessa relação (SILVA, 2009).

Tomando a imagem e seu papel central no contexto sociocultural e nas culturas

do consumo como eixo principal de nossa análise, compreendemos que o estudo das

sociabilidades humanas a partir das instâncias do corpo e de suas performances

midiáticas se converte em uma prática extremamente relevante às ciências humanas,

na medida em que o corpo é concebido como espaço potencial, que expõe

tensionamentos sociais e coloca em debate discussões como o racismo, o

preconceito, as representações e as visibilidades da mulher negra.

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Isso implica dizer que do corpo emergem sentidos de dominação e também

práticas de resistência, em que os indivíduos não são apenas reprodutores de

realidade, mas demonstram possibilidades de reflexividade, através da qual

questionam a vida social em suas várias expressões (GOMÉZ; SALGADO, 2012). E

dessa forma, as expressividades corpóreas postas em imagens adquirem dimensão

política (ROCHA, 2010).

3.2 DELIMITAÇÃO DO CORPUS E ETAPAS METODOLÓGICAS Para a escolha de nosso objeto empírico, voltamos nossa busca a mulheres

negras, brasileiras, de destaque na cultura midiática na atualidade. Alinhado ao nosso

tema de pesquisa, utilizamos como filtro para essa procura artistas negras que

tivessem passado pela transição capilar e cuja experiência tivesse sido midiatizada,

de modo a nos proporcionar material passível de análise.

Atentamo-nos às figuras midiáticas que, a partir de vestígios autobiográficos

que acessamos através da mídia, performam certa negritude, agenciando várias

camadas em torno do que é ser mulher negra, e confrontam, por assim dizer, os

lugares de subalternidade dados a esse sujeito social historicamente, utilizando-se

para isso de disposições performativas para criar mundos narrativos, através de

imagens.

Buscamos privilegiar em nossas escolhas uma pluralidade de vozes,

subjetividades, narrativas e sentidos do que é ser uma mulher negra no cenário

brasileiro, trazendo, para tanto, representantes de diferentes contextos midiáticos e

de visibilidades constituídas de maneiras distintas, cujas vivências midiatizadas se

articulam às práticas de consumo, promovendo discussões e reflexões sobre as

experiências enquanto mulher negra. Esse direcionamento metodológico nos permitiu

chegar a quatro figuras midiáticas de visibilidade negra, para compor nosso objeto de

análise: a atriz Taís Araújo, a empreendedora Alexandra Loras, a cantora Ludmilla e

a youtuber Rayza Nicácio.

Nossa observação se desenvolve em três etapas metodológicas, inter-

relacionadas entre si: a) revisão bibliográfica; b) coleta de material e sua posterior

seleção; e, por fim, c) análises e interpretações.

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A primeira delas correspondeu a uma revisão bibliográfica com o propósito de

angariar conhecimentos científicos sobre nossa problemática de investigação. A

procura se deteve em fontes de informação focalizada nos principais eixos temáticos

da pesquisa: comunicação, mídia, consumo, autobiografia, gênero, identidades,

relações étnicas e visibilidade. Os achados muito contribuíram para o enriquecimento

das reflexões teóricas estabelecidas ao longo de dessa dissertação.

A segunda etapa se deteve no levantamento das imagens que compuseram o

corpus de análise. Ao definir as narrativas autobiográficas de Taís Araújo, Alexandra

Loras, Ludmilla e Rayza Nicácio como o objeto empírico da pesquisa, instauramos um

processo de observação de suas visibilidades midiáticas, focado nos relatos

midiatizados de suas experiências de transição capilar e nas publicações em suas

páginas pessoais de redes sociais. Com relação aos relatos, selecionamos materiais

veiculados na mídia, em que Taís Araújo, Alexandra Loras, Ludmilla e Rayza Nicácio

compartilham suas experiências de transição capilar, suscitando elementos

importantes para nossa reflexão. Chegamos assim aos seguintes conteúdos para a

composição de nosso corpus:

Tabela 1: Levantamento relatos transição capilar

RELATOS MIDIATIZADOS SOBRE TRANSIÇÃO CAPILAR TAÍS ARAUJO LUDMILLA ALEXANDRA

LORAS RAYZA NICÁCIO

Entrevista ao Superbonita (GNT)

sobre cabelos crespo

(mar. 2017)

Entrevista Revista sobre sua

transição capilar (abr. 2017)

Entrevista para o Site Beauty Editor

sobre sua transição capilar

(mai. 2017)

Vídeo "Ninguém se mete com o meu cabelo" publicado

no seu canal do Youtube (mai. 2017)

Matéria Revista Glamour sobre

sua transição capilar (dez. 2016)

Vídeo sobre transição capilar publicado no seu

perfil do Facebook (abr. 2017)

Fonte: Elaboração própria.

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Nas redes sociais, foi realizado um levantamento quantitativo de suas

narrativas, colhidas a partir de publicações no Facebook11 e YouTube12, no período

de janeiro a julho de 2017. A justificativa de nossa escolha está no entendimento de

que essas mídias permitem certa autonomia de expressão e comunicação, que

possibilita verificar elementos biográficos presentes nas autonarrativas das figuras

midiáticas analisadas. Contudo, pontuamos que em nossa crítica não são

desconsiderados os enquadramentos de formato, padrões de publicações e políticas

de uso presentes nesses sites de rede social. Assim, o material encontrado está

sistematizado, conforme tabela abaixo:

Tabela 2: Levantamento de dados no YouTube

Taís Araújo Ludmilla Alexandra

Loras Rayza

Nicácio Número de vídeos

postados no YOUTUBE

(período de jan. a jul. de 2017)

0 9 0 85

Fonte: Elaboração própria.

Tabela 3: Levantamento de dados no Facebook

Taís

Araújo Ludmilla Alexandra Loras

Rayza Nicácio

Número de imagens postadas no

FACEBOOK (período de jan. a jul. de 2017)

124 174 173 172

Fonte: Elaboração própria.

11 Facebook é uma mídia social lançada em 2004 criada pelo americano Mark Zuckerberg. Em 2014 registrou 1,19 bilhão de usuários em todo o mundo. Disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2014/02/facebook-completa-10-anos-veja-evolucao-da-rede-social.html. Acesso em: 10 de janeiro de 2018. 12 O YouTube foi criado no ano de 2005, tendo como idealizadores Steve Chen, Chad Hurley e Jawed Karim. De acordo com estatísticas oficiais divulgadas pela plataforma, mais de um bilhão de pessoas acessam, atualmente, o conteúdo do site, que acumula milhões de horas de visualizações de vídeos diariamente. Disponível em: https://www.youtube.com/intl/pt-BR/yt/about/press/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2018.

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De forma a viabilizar nosso processo de análise, considerando o fato de Taís

Araújo e Alexandra Loras não terem tido publicações no YouTube no período do

levantamento, focalizamos nossa observação no conteúdo das imagens postadas no

Facebook. Por conta ainda do exíguo tempo e de modo a garantir a qualidade das

análises, dado o volume no número de postagens, foi necessário realizar um recorte,

de modo a garantir uma reflexão mais aprofundada acerca das visibilidades que

emanam das presenças midiáticas de nosso objeto de estudo.

Para o recorte, adotamos como critério as imagens postadas com maior

audiência. A justificativa para o parâmetro adotado está em sua possibilidade de

suscitar indicativos acerca das visibilidades encontradas nas figuras midiáticas

analisadas. A partir daí, selecionamos a imagens com maior número de curtidas e

comentários de Taís Araújo, Ludmilla e Alexandra Loras e Rayza Nicácio, em cada

mês correspondente ao período de nosso levantamento, chegando a um total de 24

imagens para a composição do corpus, conforme conta nas tabelas abaixo:

Tabela 4: Postagens de Taís Araújo com maior audiência no Facebook

Fonte: Elaboração própria.

Tabela 5: Postagens de Ludmilla com maior audiência no Facebook

CANTORA LUDMILLA DATA POST CURTIDAS COMENTÁRIOS

Jan./17 110.000 1.600 Fev./17 69.000 801 Mar./17 108.000 1.600 Abr./17 52.000 502

TAÍS ARAÚJO DATA POST CURTIDAS COMENTÁRIOS

Jan./17 214 mil 6,3 mil Fev./17 383 mil 7,4 mil Mar./17 87 mil 2,7 mil Abr./17 46 mil 1,1 mil Mai./17 77 mil 2,2 mil Jun./17 42 mil 462 Jul./17 56 mil 1,4 mil

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71

Mai./17 42.000 897 Jun./17 37.000 535 Jul./17 26.000 608

Fonte: Elaboração própria.

Tabela 6: Postagens de Alexandra Loras com maior audiência no Facebook

ALEXANDRA LORAS DATA POST CURTIDAS COMENTÁRIOS

Jan./17 2,4 mil 73 Fev./17 77 5 Mar./17 1,5 mil 80 Abr./17 2,1 mil 41 Mai./17 3,1 mil 57 Jun./17 1000 20 Jul./17 1,4 mil 9

Fonte: Elaboração própria.

Tabela 7: Postagens de Rayza Nicácio com maior audiência no Facebook

RAYZA NICÁCIO DATA POST CURTIDAS COMENTÁRIOS

Jan./17 12000 133 Fev./17 14000 186 Mar./17 24000 743 Abr./17 12000 119 Mai./17 9500 224 Jun./17 7300 101 Jul./17 17000 177

Fonte: Elaboração própria.

Por fim, a terceira etapa metodológica da pesquisa possui cunho qualitativo e

corresponde à análise crítica dos materiais que compõem o corpus. As análises

efetuadas incidem sobre as narrativas, fragmentos autobiográficos, performances e

politicidades incutidas nas visibilidades midiáticas de nosso objeto empírico. Nessa

fase, fundamentada nos estudos de autoetnografia (SCRIBANO, A.; SENA, 2009;

VERGUEIRO, 2014), utilizamos três categorias para a análise e interpretação dos

dados, de modo a apreender as visibilidades midiáticas dessas figuras midiáticas.

Assim, as chaves para esta investigação consistem nos seguintes eixos de

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observação: modos de apresentação; lugares de fala; e, por fim, estratégias de

visibilidade midiática.

a) Modos de apresentação

Neste eixo de observação, nos dispomos a analisar como as figuras midiáticas

estudadas se utilizam de canais de autoexpressão (LEMOS, 2002) para construir

espaços de autopercepção e afirmação de si. Pautados pelo conceito de corpo

midiático, “construído na mídia para significar e ganhar significados nas relações

midiáticas” (CAMARGO; HOOF, 2012, p.27), focamos nossa investigação em como

essas visualidades são nomeadas por suas interlocutoras, em prol da construção de

uma performance de si. Incidimos sobre aspectos como a linguagem utilizada, o

conteúdo produzido, o vestuário, os cenários e os enquadramentos das imagens

postadas. Atemo-nos aos sentidos de negritude que emanam das expressões

corpóreas associadas a Taís Araújo, Ludmilla, Alexandra Loras e Rayza Nicácio, a

partir de suas apropriações pelas mídias, ao se visibilizarem nos espaços midiáticos.

Para tanto, consideramos as contribuições teóricas de Martine de Joly (1996) e Agda

Aquino (2011) acerca da análise de imagens, buscando evidenciar quais sentidos

veiculam essas mensagens e como suscitam significados e interpretações.

b) Lugares de fala Com relação à segunda categoria, nossa intenção é observar os elementos que

caracterizam o sujeito que narra, quais as estratégias utilizadas para se colocar

enquanto indivíduo e como essas marcas suscitam sentidos associados aos lugares

sociais ocupados por mulheres negras na sociedade brasileira. Nosso objetivo é

verificar os enquadramentos estéticos presentes nas narrativas de transição capilar

de Taís Araújo, Ludmilla, Alexandra Loras e Rayza Nicácio, e se eles aludem a

determinados padrões de beleza excludentes. Para tanto, iremos nos ater a três

questionamentos: quais motivos as fizeram alisar o cabelo? O que levou a decisão

pela transição capilar? Qual o significado de usar o cabelo natural, na textura

crespa/cacheada? Fundamentamos nossa observação nos preceitos de lugar de fala

abordados por Ribeiro (2017), considerando que, embora existam individualidades no

que concerne às vivências enquanto mulher negra, as experiências individuais aqui

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suscitam indícios de opressões estruturais que nos auxiliam a refletir sobre as

condições sociais que aludem sobre grupos subalternizados.

c) Estratégias de visibilidade midiática

Finalmente, o terceiro eixo de análise tem a intenção de cruzar as informações

obtidas nas demais categorias. O intuito é compreender quais as apropriações e as

estratégias de visibilidade midiática empregadas pelas experiências de vida das

mulheres negras que fazem parte de nosso objeto de estudo, em dispositivos

comunicacionais que permitem maior autonomia de gestão da imagem, como o

Facebook, e como suas experiências de transição capilar estão interligadas a isso.

Indagamos se as visibilidades alcançadas nessas narrativas midiáticas são acionadas

no sentido de suscitar espaços de debate que questionem os lugares sociais de

subalternidade associados às mulheres negras, promovendo uma política da

diferença. Buscamos assim apreender quais posições Taís Araújo, Ludmilla,

Alexandra Loras e Rayza Nicácio ocupam no espaço midiático. Quais as relações de

pertencimento e posturas assumidas diante do público? E o que isso pode indicar

acerca das relações de poder e assimetrias raciais, assim como evidenciar fluxos e

contradições capazes de apontar possíveis estratégias de subversão? Apoiamo-nos

nas reflexões teóricas de Rocha (2009), que concebe a visibilidade como uma

visualidade portadora de legibilidade que pressupõe cunho essencialmente político,

associando-se “a mecanismos socioculturais partilhados que conferem, a

determinadas imagens visuais, a qualidade de partícipes de sistemas de crença e de

leitura visual reconhecíveis e reconhecidos” (Ibidem, p. 273).

Desta forma, temos que os eixos que guiam nossa observação tornam possível

apreender as visibilidades que emergem de nosso objeto de estudo, nos auxiliando

na compreensão dos sentidos de negritude que suscitam suas vivências midiáticas.

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CAPÍTULO 4. ANÁLISES E INTERPRETAÇÕES

4.1 MODOS DE APRESENTAÇÃO

Raquel Recuero (2009) compreende as redes sociais enquanto agrupamentos

complexos instituídos por interações sociais embasadas em tecnologias digitais de

comunicação. Segundo a autora essas “redes” que se configuram no universo digital

nos auxiliam a pensar acerca das interações sociais na Internet. Esses espaços

virtuais reúnem indivíduos que criam perfis para si mesmos, nos quais adicionam

informações sobre a vida pessoal e profissional, compartilham fotos, vídeos e textos

de diferentes naturezas.

Criado em 2004 pelo americano Mark Zuckerberg, com o propósito de unir e

proporcionar a interação entre estudantes, o site de rede social Facebook permite a

seus usuários a criação de perfis e comunidades virtuais. Nesses espaços, os

usuários indicam suas preferências, gostos, hábitos, estilos, a partir do

compartilhamento de mensagens acerca do trabalho, estudos, viagens, relações

afetivas, preferências artísticas e políticas, dentre outras informações. Assim, criação

de um perfil em uma rede social como o Facebook, por exemplo, “permite ao usuário

não somente a exposição de sua vida pessoal como também de seus gostos pessoais,

seus valores morais e sociais, ou seja, suas ideologias” (REIS, 2015, p. 39).

Sibília (2003) afirma que o discurso de si presente em redes sociais como o

Facebook tem aumentado consideravelmente no mundo ocidental devido ao

“imperativo da visibilidade” almejada no ciberespaço. Essa apropriação social da web

tem potencializado o entendimento das redes sociais como lugares de constituição de

sujeitos, pois, neles, os indivíduos inscritos se associam de acordo com interesses em

comum, veiculando aquilo que se é ou deseja ser (CARVALHO; KRAMER, 2013).

As relações nas redes sociais, compreende que o sujeito/ator em suas páginas

pessoais necessita constituir-se de forma atraente, de modo a despertar o interesse e

confiança de sua audiência naquele espaço. Baseados nisso, temos que “não se pode

tratar de identidade no singular, quando se pensa em cultura digital, precisamos tratar

de identidades, porque o ato de escrever de si e de revelar-se se dar a partir de uma

relação de alteridade/outridade” (ARAÚJO; ARCOVERDE, 2017, p. 7).

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Ao pensar a utilização sites de redes sociais como o Facebook por pessoas

públicas, como celebridades, cantores, atores, youtubers, etc., observamos que esses

espaços têm se tornado importantes locais de autopercepção e afirmação de si, pois

esse processo comunicativo descentralizado e não linear possibilita uma certa

autonomia em relação à cena midiática em que estão inseridos, ao permitir a

construção de um “lugar próprio” a partir da escrita de si, tornando essas experiencias

pessoais narradas uma espécie de diário em rede (ARAÚJO; ARCOVERDE, 2017, p.

2). Nesse sentido, além de produzirem informação (por meio de postagens), esses

artistas, em sua presença midiática em rede, tornam-se também consumidores de

informação ao interagirem com seus seguidores em sua página pessoal.

Ao abordar essas considerações sobre as redes sociais, a tecnicidade não

pode ser compreendida sem a mediação cultural, mas vista como novas formas de

percepção e linguagem. Assim, salientamos que, ao nos propormos a pensar a

sociedade a partir dos caminhos da comunicação e da cultura, compreendemos que

laços sociais se encontram cada vez mais entrelaçados às redes comunicacionais e

aos fluxos informacionais (MARTÍN-BARBERO, 2004). Nesse cenário, a

narrativização de si tem ganhado protagonismo por meio das redes sociais, permitindo

refletir sobre esses sujeitos sociais perpassados e produzidos a partir de uma relação

de alteridade/outridade e marcados por identidades fluídas e multifacetadas

(ARAÚJO; ARCOVERDE, 2017).

4.2 PRESENÇA MIDIÁTICA E MODOS DE APRESENTAÇÃO EM TAÍS ARAÚJO “Fui conquistando meu espaço com diplomacia. E sem essa de coitadinha. Eu sou negra, tinha consciência do país onde nasci (...)”. Excerto entrevista de Taís Araújo a Revista Trip de agosto de 2015.13

A atriz e apresentadora Taís Bianca de Araújo Gama nasceu no Rio de Janeiro,

em novembro de 1978. De classe média alta, filha de pai economista e mãe pedagoga,

viveu até os oito anos de idade no bairro carioca do Méier, mudando-se

13 Disponível em: <https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2015/08/1667694-sou-negra-tenho-consciencia-do-pais-onde-nasci-diz-tais-araujo.shtml>. Acesso em: Acesso em 10 de novembro de 2018.

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posteriormente para a Barra da Tijuca, onde morou boa parte de sua adolescência e

juventude. Estudou sempre em escolas particulares e formou-se em jornalismo pela

Universidade Estácio de Sá. Ela é casada com o também ator Lázaro Ramos e com

ele possui dois filhos, um menino e uma menina, de sete e três anos de idade

respectivamente.

O primeiro papel de destaque na carreira da artista foi como protagonista da

novela Xica da Silva (1996), na extinta Rede Manchete. Na época, sua personagem

gerou controvérsias ao realizar fortes cenas de erotismo e violência, mesmo a atriz

sendo menor de idade. Em 2009, na telenovela Viver a Vida, do autor Manoel Carlos,

deu vida à primeira protagonista negra em horário nobre da Rede Globo. A novela

acabou não fazendo sucesso na audiência, e sua personagem “Helena” sofreu

rejeição do público, sendo criticada pela mídia e pelos telespectadores. O ocorrido

deixou Taís muito abalada, o que a fez pensar em desistir da carreira: “Recebi críticas

que me fizeram acreditar que a minha carreira iria acabar naquele momento. Após 16,

17 anos de carreira, eu disse: 'Vai acabar!'”.14

Atualmente é a única atriz negra a acumular papéis de destaque em folhetins

brasileiros. Além de Xica da Silva (1996) e Viver a Vida (2009), foi protagonista ainda

de Da Cor do Pecado (2004); Cheias de Charme (2012); Geração Brasil (2014) e do

seriado Mister Brau (2015 a 2018), as cinco últimas, produções na Rede Globo. No

teatro, realizou turnê pelo Brasil com a peça O Topo da Montanha, que lhe rendeu

uma indicação ao o prêmio Shell de Melhor Atriz.15 Em 2017, foi apresentadora do

programa Saia Justa, do GNT.

Taís tem presença ativa nas redes sociais, acumulando mais de 10 milhões de

seguidores no Facebook e Instagram.16 Foi eleita em 2017 como uma das 100

personalidades negras, com menos de 40 anos, mais influentes do mundo pelo órgão

Most Influential People of African Descent – MIPAD.17 Também em 2017, recebeu

14 Entrevista ao site Purepeople. Disponível em: <http://www.purepeople.com.br/noticia/tais-araujo-lembra-sua-helena-de-manoel-carlos-achei-que-carreira-ia-acabar_a15530/1>. Acesso em: 10 de novembro de 2018. 15 Disponível em: <https://vejasp.abril.com.br/blog/dirceu-alves-jr/tais-araujo-e-o-sonho-possivel-de-falar-o-que-acredita-8220-se-eu-nao-fizer-desse-jeito-minha-carreira-nao-vai-ter-graca-8221/>. Acesso em: 10 de novembro de 2018. 16 Dados consultados no perfil da rede social da atriz em janeiro de 2019. 17 O MIPAD é uma organização afrodescendente internacional que identifica grandes empreendedores afrodescendentes em setores públicos e privados de todo o mundo, vinculado à Organização das

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homenagem no Prêmio Claudia, promovido pela Revista Claudia, da Editora Abril, na

categoria hors concours, honraria concedida aos indivíduos que atuam pela igualdade

de direitos na sociedade.18 Taís ainda aparece como a quinta artista mais influente da

televisão e internet no país, segundo o jornal Meio & Mensagem, em 2016.19

4.2.1 Modos de apresentação

Imagem 8: Taís Araújo em selfie com colegas

Fonte:

<https://www.facebook.com/taisdeverdade/photos/a.467026363422100/659469014177833/?type=3&theater>.

Na imagem, Taís aparece com outras duas atrizes, colegas de emissora,

Camila Pitanga e Juliana Paes, fazendo uma “selfie”.20 É possível vê-las apenas do

Nações Unidas (ONU). Todos os anos o órgão se destina a homenagear em cerimônia realizada em Nova York (EUA) as personalidades afrodescendentes mais influentes do mundo. |Disponível em: <https://www.mipad.org/>. Acesso em: 10 de novembro de 2018. 18 Disponível em: <https://claudia.abril.com.br/noticias/tais-araujo-homenageada-premio-claudia/>. Acesso em: 10 de novembro de 2018. 19 2ª Edição da pesquisa “Os Novos Influenciadores – quem brilha na tela dos jovens brasileiros”. Disponível em: <http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/2016/09/30/as-personalidades-mais-influentes-da-internet-e-da-tv.html>. Acesso em: 10 de novembro de 2018. 20 Termo em inglês para “autorretrato”.

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pescoço pra cima, em close-up21, e nota-se que a foto foi tirada pela própria Taís,

ressaltando um momento de intimidade entre elas, enfatizada pela legenda escolhida

pela atriz: “chama as amigas para selfie”.

O destaque no rosto de Taís deixa à mostra seu nariz afilado e evidencia parte

de seu cabelo, com cachos soltos e bem definidos. É possível ver também que ela

está maquiada assim como as outras atrizes. Chama a atenção ainda que todas

aparecem com a tonalidade de pele muito próxima, o que leva uma seguidora a fazer

o seguinte comentário: “eu olho essa foto e vejo três lindas morenas. Todas na mesma

cor da pele. E agora José? Quem é a negra?”.

A atriz não respondeu ao comentário, mas torna-se interessante pensar nessa

lógica que coloca em “dúvida” a negritude de certas mulheres pelo tom de pele mais

claro e/ou pelos traços afilados. Esses efeitos do colorismo, segundo Quintão (2013),

afetam a noção de identidade racial e perpassam as expressões corpóreas por estar

diretamente conectada à cor da pele, ao tipo de cabelo, ao formato do nariz, etc., ou

seja, as “marcas” diretamente percebidas e performadas pelos sujeitos. O colorismo

indica que as discriminações estão atreladas ao tom da pele, o que quer dizer que

mesmo entre pessoas afrodescentes existe uma diferença de tratamento, vivências e

oportunidades. Além disso, segundo Santana (2018) ele também indica efeitos que

buscam “amenizar” a negritude de indivíduos que porventura tenham traços

privilegiados pela branquitude, como cabelo liso, pele mais clara, etc. Assim, o termo

“morena” empregado pela seguidora da atriz, refere-se a sentidos da mestiçagem

ocorrida no Brasil, vinculados, muitas vezes, ao “apagamento da identidade negra”.

Taís sempre demonstrou publicamente reconhecer sua negritude, mas já

declarou que o ser negra é um processo de torna-se, que envolve uma

conscientização social: “(...) eu me tornei negra. A gente nasce nesse país para tentar

ser outra coisa, o que somos não é aceito (...) passei a olhar a minha história com

senso crítico e sei que tudo me foi contado de maneira distorcida (...)”.22

21 Termo em inglês comum no campo da fotografia, para designar o plano onde a câmera está muito perto da pessoa ou objeto em questão, possibilitando uma visão próxima e detalhada. 22 Entrevista concedida ao site O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/ela/gente/tais-araujo-fala-sobre-feminismo-luta-contra-racismo-branco-sai-na-frente-21107400>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018.

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Imagem 9: Taís e o ator Lazaro Ramos, seu marido

Fonte:

<https://www.facebook.com/taisdeverdade/photos/a.467026363422100/765439920247408/?type=3&theater>.

Na cena acima, Taís aparece sorridente ao lado do marido e também ator,

Lázaro Ramos. O enquadramento mostra os atores da cintura para cima e evidencia

novamente o rosto da atriz, enfatizando o batom vermelho na boca e os cabelos, mais

uma vez soltos e cacheados – desta vez bem volumosos. A pele de Taís contrasta

com a do marido, alguns tons mais escura. A legenda, explica o momento do encontro:

a participação de Lázaro no programa Saia Justa da GNT, do qual é Taís era

apresentadora.

Ver a imagem de um casal negro, em uma situação que alude a prestígio e

triunfo, como ocupar um lugar de destaque na TV brasileira, em um contexto dominado

por atores brancos, é bastante simbólico, considerando ainda mais o fato de o Brasil

ter uma população majoritariamente negra e mestiça23, que não vemos representada

nas produções televisivas.

23 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponíveis em: <https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem2007/default.shtm>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

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Em um cenário tão excludente aos negros como a TV, os atores carregam feitos

importantes no que se refere à representatividade. Um exemplo deles é a série Mister

Brau, veiculada na Rede Globo de 2015 a 2018. Na história, os protagonistas,

interpretados por Taís e Lázaro, são ricos e bem-sucedidos, fugindo à regra de papéis

com viés de subalternidade, normalmente destinados a negros. Vemos corpos negros

ocupando espaços que normalmente lhe são negados. Para Couceiro de Lima (2001,

p. 99), as produções televisivas, como parte integrante da cultura brasileira, têm um

papel importante no debate sobre as questões raciais, “que pode ensejar a reflexão

da sociedade através dos vários canais que ela circula”.

A imagem compartilhada de um casal negro apaixonado e feliz traz também

visibilidade a sentidos contrários que ela oculta: as questões que envolvem as

relações afetivas de mulheres negras. Segundo Alves (2008), o amor que designa as

relações românticas e afetivas no Brasil tem cor. A autora afirma que existe um

preterimento de homens brancos e negros por mulheres negras, dificultando suas

relações afetivas, principalmente as retintas e/ou fora dos padrões de magreza.

Assim, em um país onde os relacionamentos inter-raciais foram vistos como política

pública, com o objetivo de embranquecer a população, os padrões estéticos

eurocêntricos influenciaram/influenciam inclusive nas escolhas amorosas e afetivas.

Nesta perspectiva, as mulheres negras sofrem por estarem na base da pirâmide

social.

Imagem 10: Taís apresentando o programa Saia Justa, da GNT

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Fonte:

<https://www.facebook.com/taisdeverdade/photos/a.467026363422100/688495777941823/?type=3&theater>.

Taís aparece sentada em um sofá, de vestido azul com um leve decote e fenda,

que deixam suas pernas à mostra. Brincos e sandálias evidenciando as unhas feitas

e o cabelo, volumoso. Assim, a atriz posa de maneira elegante para a câmera,

mostrando sua “#becadosaia”, ou o figurino do dia para apresentar o programa Saia

Justa, no canal GNT. Ao lado, na legenda, ela dá crédito às marcas responsáveis por

vesti-la para a ocasião.

A imagem, desta vez, privilegia o corpo (magro) da atriz e deixa o seu rosto

pouco enfatizado. O enquadramento não evidencia, mas nesse palco ela é a única

negra, apresentando um programa ao lado de outras três mulheres, todas brancas. A

cena, por si só, já tem todo o mérito por ostentar a estética negra na pessoa da atriz.

Contudo, celebrar a estética negra nesta imagem não é deixar de reconhecer o como

ela pode ser hierarquizada, principalmente ao se falar dos espaços midiáticos.

O que vemos na cena é uma mulher negra, de pele clara, com o biótipo magro,

os cabelos cacheados (e não crespos) bem definidos, que “crescem para baixo” e sem

fios arrepiados. Evidente que ela continua sendo uma mulher negra ocupando

espaços onde poucas conseguem chegar, mas, ainda assim, é possível notar

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“ausências” nessa “presença negra”. Ausências de mulheres negras retintas, lésbicas,

transexuais e/ou fora de um padrão de magreza.

Em uma conjuntura social onde o movimento de miscigenação atua como um

mecanismo de embranquecimento, a diversidade na branquitude não se apresenta da

mesma forma para a negritude, aponta a filósofa Sueli Carneiro (2004). Segundo a

autora, os considerados racialmente hegemônicos são vistos em suas múltiplas

características. Nesta perspectiva, na imagem de Taís, podemos ao mesmo tempo

celebrar aspectos de uma negritude visibilizada, como evidenciar elementos de uma

sociedade racista e ainda influenciada por lógicas heteronormativas e padrões de

beleza ligados à magreza e à cor da pele. Demonstra o quanto os traços fenotípicos

se destacam como forma de tensionar as relações raciais e os padrões de gosto

impostos às mulheres negras.

4.3 PRESENÇA MIDIÁTICA E MODOS DE APRESENTAÇÃO EM LUDMILLA

“Hoje eu tô a fim de incomodar, se não gosta, senta e chora (...)”. Excerto canção Cheguei, de Ludmilla

Ludmilla Oliveira da Silva, ou Ludmilla, como é conhecida nacionalmente, tem

23 anos. Ela nasceu na cidade do Rio de Janeiro e foi criada em Duque de Caxias

(RJ). De origem humilde e filha de donos de um bar, desde a infância já demonstrava

afinidade com música, cantando nos pagodes da família de parentes, impulsionada

pelo padrasto, que tinha uma banda – a cantora foi abandonada pelo pai biológico

ainda criança, drama familiar que lhe causou muito sofrimento; seu padrasto e o tio

assumiram o papel de figura paterna em sua vida.

Seu antigo nome artístico “MC Beyoncé” foi inspirado na cantora americana

Beyoncé, a quem sempre considerou como fonte de inspiração musical. O acesso aos

videoclipes da cantora na internet a impulsionaram a iniciar sua carreira como artista:

“Eu ficava no YouTube vendo coisa da Beyoncé, vi também muita gente fazendo cover

dela. Aí eu pensei, pô, que legal, só pegar uma câmera e gravar...”.24 Após esse

episódio, Ludmilla passou a postar vídeos no YouTube cantando músicas da Beyoncé,

e, ao ficar conhecida nacionalmente, adotou o nome artístico de MC Beyoncé,

24 Trecho entrevista Programa de Frente com Gabi. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YvYNNmRE9e0>. Acesso em: 10 de novembro de 2018

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escolhido como forma de homenagem à artista americana e também por acreditar que

esta escolha teria maior apelo comercial. As semelhanças com Beyoncé, contudo, não

se limitaram ao nome artístico. Ludmilla, desde o início da carreira, é constantemente

comparada à cantora estadunidense pelas características capilares, formas de se

vestir, estilo musical e coreografias.

Em 2012, sua canção “Fala Mal de Mim” foi produzida pelo DJ Will, músico que

residia próximo a sua casa e se tornaria seu companheiro de shows no início da

carreira. A canção, gravada inicialmente no microfone do computador, foi regravada,

remasterizada e postada na internet. Na época, o videoclipe de “Fala Mal de Mim"

atingiu mais de 15 milhões de visualizações no YouTube. A voz estridente e marcante,

além das letras falando de mulheres invejosas e exaltando sua personalidade lhe

rendeu aparições em diversos programas de TV, como: Esquenta, Eliana, Encontro

com Fátima Bernardes, The Noite, Domingo Legal e De Frente com Gabi. A projeção

alcançada e a agenda de shows a fizeram abandonar os estudos, algo que ela

demostrou não ter afinidade: “Sempre gostei de cantar, de zoar, de animar a galera.

Odeio estudar. Minha mãe está pegando no meu pé para que eu faça o terceiro ano

a distância. Não tenho mais como ir à escola também”.25

Após adquirir evidência e chamar a atenção de uma importante gravadora,

despontou no cenário musical brasileiro, tornando-se popular, com uma personalidade

marcada pelo carisma e irreverência. Em 2014, solidificou sua carreira como cantora

ao assinar contrato com a gravadora Warner Music e lançar seu primeiro álbum

musical, com repercussão midiática positiva e relevância em vendagens. Assim

adquiriu o status de celebridade nos meios de comunicação. Ludmilla foi a cantora

negra que mais apareceu na TV e tocou nas rádios em 2016.26 Com participações em

diversos canais da TV aberta e paga, também teve duas de suas músicas entre as

25 Trecho entrevista Ludmilla ao O Globo Cultura. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/megazine/a-versao-brasileira-de-beyonce-funkeira-sucesso-pleno-no-youtube-6650354>. Acesso em: 10 de novembro de 2018 26 Dados do Portal Popline. Disponível em: <http://portalpopline.com.br/alvo-constante-de-racismo-na-web-ludmilla-e-cantora-negra-que-mais-apareceu-na-tv-e-tocou-nos-radios-em-2016/>. Acesso em: 10 de novembro de 2018

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100 mais tocadas daquele ano.27 Não há nenhuma outra mulher negra no ranking das

mais executadas pelas estações brasileiras naquele período.

A ascensão e o sucesso da cantora são constantemente marcados por

episódios de preconceito, já tendo sido alvo publicamente de injúria racial em diversas

ocasiões. Uma delas, que adquiriu bastante repercussão, ocorreu em fevereiro de

2016, durante uma transmissão ao vivo em um programa de TV. Enquanto comentava

os desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, a apresentadora e empresária

Val Marchiori criticou o penteado de Ludmilla com os dizeres: “Esse cabelo dela está

parecendo um bombril".28 Na época, Ludmilla declarou que o episódio a entristeceu

muito: “Na verdade, eu queria chorar. Mas fui forte, bati de frente, procurei a polícia e

registrei um boletim de ocorrência”.29 No início de 2018. a socialite foi condenada pela

3ª Vara Cível do Fórum Regional da Ilha do Governador (RJ) a indenizar Ludmilla em

R$10 mil.30

No cenário midiático brasileiro, Ludmilla desponta como uma artista em

ascensão. Com presença forte nas redes sociais, conta com mais de 22 milhões de

seguidores em seus perfis oficiais na internet.31 Três dos seus clipes já ultrapassaram

100 milhões de visualizações no YouTube (atualmente Ludmilla possui uma soma de

mais de 907 milhões de visualizações em seu canal).32 Ao longo de seis anos de

carreira, com presença assídua na TV, a cantora já foi indicada para 26 premiações

no cenário pop, tendo recebido prêmios como o de Cantora revelação, em 2014, pela

27 Dados do Portal Popline. Disponível em: <http://portalpopline.com.br/alvo-constante-de-racismo-na-web-ludmilla-e-cantora-negra-que-mais-apareceu-na-tv-e-tocou-nos-radios-em-2016/>. Acesso em: 10 de novembro de 2018 28 Trecho da fala de Val Marchiori no programa Carnaval da RedeTV de fevereiro de 2016. Disponível em: <https://revista.cifras.com.br/noticia/val-marchiori-diz-que-cabelo-de-ludmilla-parece-bombril-e-cantora-responde_11418>. Acesso em: 10 de novembro de 2018 29 Entrevista Câmera Record. Disponível em: <http://recordtv.r7.com/camera-record/ludmilla-desabafa-sobre-abandono-do-pai-e-casos-de-racismo-eu-queria-chorar-mas-fui-forte-21102018>. Acesso em: 10 de novembro de 2018. 30 Dados Site G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/val-marchiori-e-condenada-a-indenizar-ludmilla-apos-comentario-sobre-o-cabelo-da-cantora.ghtml>. Acesso em: 10 de novembro de 2018. 31 Dados retirados das redes sociais da cantora. Disponível em: https://www.facebook.com/pg/OficialLudmilla/about/?ref=page_internal . Acesso em: 10 janeiro de 2019. 32 Dados retirados do canal do Youtube de Ludmilla. Disponível em: <https://www.youtube.com/channel/UCSCB1IQUmNa8Gn5VfSUAUpg>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

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Rádio Awards Brasil; Música do ano no Melhores do ano do Faustão, em 2015;

cantora revelação pela Revista Glamour, em 2016; e o Prêmio Jovem Brasileiro de

Melhor Cantora Jovem ,também em 2016.33

4.3.1 Modos de apresentação

Imagem 11: Ludmilla participa de quadro "Revira viral", do programa Caldeirão do

Huck

Fonte:

<https://www.facebook.com/OficialLudmilla/photos/a.597727310256417/1564309900264815/?type=3&theater>.

Na imagem acima, Ludmilla compartilha sua participação em um quadro do

Programa Caldeirão do Huck, da Rede Globo, cujo o intuito é recriar vídeos que

adquiriram grande circulação na internet. Na cena, a cantora se transformou em

Giovanna, a garota que derrubou o forninho da mãe enquanto se apoiava para dançar

a música "Toda Gostosa", do cantor MC Leozinho, e foi "denunciada" pela prima

Vanessa com a frase que se tornou viral na web: “Eita Giovana, o forninho caiu”. A

33 Dados retirados do Site oficial de Ludmilla. Disponível em: <http://ludmillaoficial.com/>. Acesso em: 10 de novembro de 2018.

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semelhança do cenário e a referência à célebre frase no post, associados ao penteado

e figurino, muito próximos ao original, tem a intenção de criar uma conotação de humor

à imagem.

Imagem 12: Cena original do vídeo viral à que Ludmilla faz referência

Fonte:

<https://www.google.com.br/search?q=mae+o+forninho+caiu&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjcp9Hq_d3fAhUMj5AKHQdvAJAQ_AUIDygC&biw=1366&bih=654#imgrc=qbhq5PFZJfUW8M:>

.

Ao recriar a Giovana do vídeo viral, a personagem infantil adquire um sentido

de sensualidade e erotização ao ser interpretada por Ludmilla. O enquadramento da

imagem evidencia as formas do corpo da cantora. O vestuário (calça jeans e blusa

rosa justas) enfatiza ainda mais a intenção de destacar as curvas de Ludmilla,

ressaltando seus seios e os glúteos, em detrimento dos traços do rosto, que é pouco

perceptível.

Segundo Aquino (2011), a escolha do ângulo auxilia na compreensão do

fenômeno estético exposto, pois, ao delimitarmos a imagem, decidimos o que vai ser

mostrado e, por outro lado, o que vai ser excluído, criando sentidos para essas

representações. Mesmo que as significações girem em torno do humor a partir da

paródia criada, o enquadramento realçando o “bumbum avantajado” de Ludmilla

causa um desvio na cena, que abre a interpretações sexualizadas sobre o seu corpo,

como é evidenciado por comentários recebidos na foto (ver Imagem 6):

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Imagem 13: Comentários de seguidores na imagem postada por Ludmilla

Fonte:

<https://www.facebook.com/OficialLudmilla/photos/a.597727310256417/1564309900264815/?type=3&theater>.

Imagem 14: Ludmilla posa na praia

Fonte:

<https://www.facebook.com/OficialLudmilla/photos/a.597727310256417/1680954655267005/?type=3&theater>.

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Essa segunda imagem, compartilhada por Ludmilla, alude a sentidos similares

aos da primeira. Na praia, de biquíni e boné brancos, vemos Ludmilla olhando para o

horizonte, com ar pensativo. A cor da areia e dos trajes realçam sua pele escura e

mais uma vez o enquadramento traz destaque para as formas do seu corpo,

evidenciando novamente o “tamanho do seu bumbum”. As expressões do rosto são

ainda mais imperceptíveis na cena. A legenda da foto, com o ícone de uma figura que

remete a “fogo/chamas”, marca um tom provocativo e dúbio da imagem – ao mesmo

tempo em que esboça o sentido de “calor” do clima, remete também ao calor que

“emana” da cantora, atribuindo para si sentidos como “gostosa”, “fogosa”, etc.

Esses aspectos reforçam características de conotação sexual incorporadas pelo

imaginário social e usados para descrever mulheres negras ao longo da história. De

acordo com a antropóloga Lélia Gonzalez (1984), é no momento de exaltação do

estereótipo da “mulata” que o mito da democracia é reencenado e atualizado com toda

a sua força simbólica. Sueli Carneiro complementa que esses estigmas atrelados a

mulher negra, embora heranças do período colonial, “adquirem novas roupagens e

funções em uma ordem social supostamente democrática que mantém intactas as

relações de gênero, segundo a cor e a raça instituídas no período escravista”

(CARNEIRO, 2005, p. 23).

Imagem 15: Ludmilla compartilha antes e depois das transformações estéticas

Fonte:

<https://www.facebook.com/OficialLudmilla/photos/a.597727310256417/1773845605977909/?type=3&theater>.

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A composição acima contrasta duas imagens de Ludmilla. Na primeira, a

cantora se mostra no início da carreira, com cabelos loiros em uma textura cacheada,

lentes de contato verdes e o formato do nariz bem diferente do presente. Na segunda,

vemos uma Ludmilla “repaginada”, mais magra, com cabelo liso e longo e o nariz mais

afilado. Na postagem, a cantora reflete sobre suas transformações: “Quem costuma

vir de onde eu sou, às vezes não tem motivos para seguir, então vai, levanta e

anda...mas eu sei que vai, que o sonho te traz, coisas que te faz prosseguir”. Ao

comparar o lugar sem perspectivas de onde veio aos sonhos conquistados, a cantora

passa a mensagem de ter “vencido na vida”, e está “evolução” é ilustrada justamente

com imagens que comparam suas transformações estéticas ao longo da carreira.

As significações contidas nesta cena se fazem entender entre o que é expresso

na frase e o que emana da imagem:

(...) nessa relação o verbal “consiste em dar à imagem uma significação que parte dela, sem que, todavia, lhe seja intrínseca. Trata-se então de uma interpretação que ultrapassa a imagem, desencadeia palavras, uma ideia ou um discurso interior partindo da imagem que é o seu suporte” (JOLYE, 2007, p. 140).

Ludmilla vincula o seu sucesso a uma adequação do seu corpo a padrões de

beleza que exaltam a estética da magreza, dos cabelos lisos e traços afilados. Isso

nos permite inferir que mesmo a cantora exaltando a representatividade da negritude

na mídia, não necessariamente elimina seus conflitos com relação a padrões estéticos

excludentes: “o fato de estar integrado ou de se reconhecer pertencente a um grupo

étnico-racial não elimina os conflitos diários e os dramas pessoais vividos pelos

negros na esfera da subjetividade” (GOMES, 2008, p. 34).

4.4 PRESENÇA MIDIÁTICA E MODOS DE APRESENTAÇÃO EM RAYZA NICÁCIO

“Cristã, cacheada e apaixonada. Há quase 6 anos lancei o meu primeiro vídeo neste canal (Youtube), cantando e com longos cabelos lisos! Algum tempo depois me divorciei da chapinha e me encontrei. Gravei um vídeo e graças a isso, muitas meninas também se encontraram”. Descrição do canal de Rayza no YouTube34.

34 Disponível em: <https://www.youtube.com/user/rayzabatista/about>. Acesso em: 10 de novembro de 2018.

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Rayza Nicácio, atualmente com 26 anos, nasceu em Maceió (AL), mas foi

criada no interior de São Paulo desde a infância. Adquiriu popularidade midiática com

seu canal no YouTube ao abordar temáticas ligadas à desconstrução de padrões de

beleza hegemônicos associados ao cabelo liso, promovendo a “aceitação dos

cachos”, compartilhando suas experiências com a transição capilar.

Sua trajetória nas redes sociais teve início em 2012, de maneira

despretensiosa, ao criar um canal no YouTube para divulgar covers de música gospel

para amigos e familiares. Nesse período, Rayza passava pela transição capilar e o

fato de aparecer nos vídeos de cabelos cacheados gerou curiosidade no público que

a assistia sobre como ela fazia para manter e cuidar dos fios encaracolados. Naquela

época, segundo Rayza, as referências de mulheres cacheadas e crespas na mídia

era pequena e sua presença na plataforma digital a tornou um ícone de

representatividade para outras mulheres, que, assim como ela, haviam desistido das

químicas de alisamento.

Rayza é hoje, no Brasil, a mulher negra com maior número de seguidores no

YouTube.35 Mesmo após seis anos com o canal nessa plataforma digital, seu

conteúdo ainda é, em grande parte, voltado ao compartilhamento de relatos

associados ao seu processo de transição capilar e do como essa experiência teve

influência em seu entendimento enquanto mulher negra.

Considerada uma influenciadora digital – termo utilizado para denominar

aqueles que detêm poder de influência sobre uma grande audiência, através dos seus

canais de conteúdo e redes sociais –, Rayza acumula 3,5 milhões de seguidores

somando o YouTube, Instagram e Facebook.36 A visibilidade conquistada na Internet

garantiu a ela diversos contratos publicitários com marcas como Quaker, Natura e

Lancôme, e participações recorrentes em programas de TV como o É de Casa, da

Rede Globo e o Legendários, da Rede Record. Além disso, estampou capas de

revistas, como a edição de abril de 2017 da Glamour, da Editora Globo, e em parceria

35 Dados disponíveis em: <https://www.influencerwiki.com.br/rayza-nicacio-youtuber/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 36 Dados consultados em suas redes sociais. Taís Araújo: https://www.facebook.com/taisdeverdade/ Ludmilla: <https://www.facebook.com/pg/OficialLudmilla/about/?ref=page_internal / Alexandra Loras: https://www.facebook.com/alexandraloras/>. Rayza Nicácio: <https://www.facebook.com/rayzanicacio/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

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com a empresa Unilever lançou, em 2018, uma linha de cosméticos para cabelos,

inspirados e desenvolvidos em colaboração com a própria Rayza.

Apesar de seu reconhecimento midiático ter sido inicialmente no YouTube,

onde acumula a maior parte de seguidores, Rayza Nicácio adquiriu visibilidade nos

demais sites de redes sociais. Nessa pesquisa, por uma questão de adequação ao

objeto de pesquisa, concentraremos nossa análise em sua presença midiática no

Facebook.

4.4.1 Modos de apresentação

Imagem 16: Rayza compartilha selfie

Fonte:

<https://www.facebook.com/rayzanicacio/photos/a.470433732980109/1345430245480449/?type=3&theater>.

Rayza aparece em autorretrato, seu rosto no centro do quadro evidencia seus

traços. A cor clara de sua pele e o cabelo – cacheado e com tamanho volume a ponto

de parte do cabelo não “caber” na selfie. O enquadramento detalha ainda o formato

afilado do nariz, e a boca indicando uma leve tentativa de sorriso. A blusa branca deixa

parte do colo à mostra. As demais partes do corpo não são evidenciadas.

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Imagem 17: Rayza compartilha foto destacando o cabelo crespo

Fonte:

<https://www.facebook.com/rayzanicacio/photos/a.470433732980109/1382913288398811/?type=3&theater>.

A segunda imagem mostra Rayza em pé, de calça jeans e blusa amarela. O

enquadramento dessa vez deixa à mostra o seu corpo da cintura para cima. A

maquiagem é bastante discreta e o destaque mais uma vez está no cabelo cacheado

e bastante volumoso. Nota-se que o tom do rosto aparece bem mais claro do que o

tom de pele dos braços, fazendo parecer que foi utilizado um filtro ou efeito que

“clareou” a pele do seu rosto.

As duas composições evidenciam o seu rosto praticamente sem maquiagem, e

os tons claros e não chamativos das roupas e cenário destacam o seu cabelo escuro

e volumoso e a aproximam de um sentido “angelical”, de fragilidade e pudor. A figura

de Rayza aqui, evidencia traços da mestiçagem brasileira valorizada, que se

aproxima, sobretudo fenotipicamente, da branquitude; porém, carrega relativamente

outros símbolos e significados raciais, que, no caso da cena analisada, estão

centrados no aspecto do cabelo crespo e com volume. O fenótipo ambíguo (LOPES,

2014) de Nicácio nos lembra que o “racismo brasileiro não se concretiza em genética,

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em ancestralidade, na gota de sangue, mas se reconfigura nas relações do olhar, da

estética” (Ibidem, p. 49).

Esta questão se torna mais clara ao vincularmos a imagem a sua legenda: “ah

gente, se tivessem me contado como esse cabelo é LINDO antes! Por isso essa é

minha missão. Quem disse que seu cabelo é feio mentiu pra vc, tá? NUNCA MAIS

ACEITE!”. Na frase, Rayza problematiza o sentido de “feio” atribuído ao cabelo crespo,

desacreditando o discurso que o destitui de beleza. Contudo, sua fala se restringe aos

efeitos do racismo que atingem sua estética capilar, em nenhum momento a questão

da cor da pele é mencionada, o que nos leva a considerar que sua aparência mestiça

lhe proporcionou um valor de brancura que operou em sua subjetividade e

socialização, e, que em certa medida, lhe permitiu certos privilégios raciais da

branquitude (LOPES, 2014).

Imagem 18: Selfie Rayza Nicácio

Fonte:

<https://www.facebook.com/rayzanicacio/photos/a.470433732980109/1478366442186828/?type=3&theater>.

Mais uma vez Rayza compartilha um autorretrato, em formato selfie.

Novamente percebemos uma predominância nas cores claras, percebidas nas

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vestimentas, adornos e no fundo branco. Desta vez, além do cabelo crespo, escuro e

volumoso, contrastando com o tom de pele ainda mais claro que na imagem anterior,

chama a atenção também o batom vermelho, que dá destaque para a boca “carnuda”.

Não coincidentemente dois traços que marcam elementos de uma estética negra e

justamente aqueles que Rayza afirma com recorrência em sua narrativa, ter tido

dificuldades de aceitar durante a juventude. Na legenda, uma frase colocada em tom

de dilema: “Branca demais para ser preta, preta demais para ser branca...”.

A imagem, faz alusão a um vídeo publicado por ela no YouTube, em que aborda

sua negritude e traz a questão da mestiçagem e sua influência na constituição de sua

subjetividade, por não possuir uma linha racial tão nítida. Lopes (2014, p. 50)

argumenta que mais do que problematizar o poder e privilégios do grupo branco e os

processos de inferiorização do grupo negro, é necessário considerar a “as discussões

e ao entendimento da configuração étnico-racial identitária e representacional de

pessoas situadas nas categorias intermediárias do continuum de raça ou cor”.

Na experiência de Rayza, ao contrário da textura do cabelo e do tamanho da

boca, que sempre significaram motivo de trauma, o tom de pele nunca foi uma questão

sobre a qual pensava muito. Rayza cresceu não se considerando uma mulher negra,

nem tampouco branca; entendia-se enquanto “mulher parda”, pois era a forma que

seu fenótipo mestiço a permitia ser lida socialmente. Segundo Munanga (2008, p.

112), “na construção do sistema racial brasileiro, o mestiço é visto como ponte

transcendente, onde a tríade branco-índio-negro se encontra e se dissolve em uma

categoria comum fundante da nacionalidade”. Essas hierarquias fenotípicas ambíguas

(LOPES, 2014) criam estes “não lugares” de pertencimento e só podem ser

desconstruídos:

(...) a partir do processo de racialização positiva, da identificação e autoidentificação racial, paralelo ao processo de superação da construção social simbólica, subjetiva e material dos privilégios da branquitude e da inferioridade negra (LOPES, 2014, p. 54).

No seu caso, se ver como uma mulher negra foi um processo de

conscientização longo e que veio apenas na vida adulta, após se tornar youtuber e

passar a ser constantemente confrontada por parte de sua audiência, que cobrava

dela uma posicionamento: “por toda a minha história, por tudo o que eu enfrentei, pelo

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o meu tipo de cabelo, pelos os meus pais também, por ter sim sofrido racismo, eu sou

uma pessoa negra e ninguém pode tirar isso de mim mesmo eu tendo a pele clara”.37

Seu dilema exposto quanto a “ser branca demais para ser negra e negra demais

para ser branca” alude aos processos de miscigenação e das políticas de

branqueamento que conformaram uma mistura, étnica e cultural e que até os dias

atuais ainda provocam dificuldade em muitos indivíduos negros em se

autorreconhecerem como tal. É claro que mulheres negras rotuladas como “pardas”

ou “morenas”, assim como Rayza, carregam privilégios referentes a mulheres mais

pigmentadas. No entanto, é preciso reconhecer que esses espaços são limitados, pela

branquitude, que não mede esforços em confinar as mulheres negras ao espaço dos

arquétipos, muitas vezes ultrassexualizados e embranquecedores (LOPES, 2014).

4.5 PRESENÇA MIDIÁTICA DE ALEXANDRA LORAS

“Desde muito cedo, percebi que teria que me esforçar mais por ser negra. Quando entrei na faculdade, foi uma luta contra minha própria voz, que me falava, “não, Alexandra, você não pode alcançar esse nível”. Eu tentava dominar essa voz e sabia que poderia vencê-la. Mas isso me fez perceber o quanto a sociedade tinha me marcado como mulher e negra (...)”. Frase retirada do blog de Alexandra Loras.38

Filha de mãe francesa, de família aristocrata, e de pai africano de uma aldeia

em Gâmbia, a empreendedora Alexandra Loras, de 41 anos, é nascida no gueto de

Corbeil-Essonnes, na periferia de Paris. Única negra entre cinco irmãos brancos,

frutos de outros casamentos de sua mãe, ela relata, que, já na infância, notou que seu

tom de pele tinha influência na forma como era percebida. Quando menina, insistia

em perguntar à mãe quando ficaria igual à irmã mais velha. “Eu me sentia o patinho

feio da família”, lembra.

Na adolescência, atuou em diferentes empregos. Foi babá na Alemanha, nos

EUA e na Inglaterra, além de webdesigner e professora de francês. Posteriormente,

formou-se em jornalismo e concluiu o Mestrado em Mídias pelo Instituto de Estudos

37 Vídeo “Sobre ser negra”, no canal de Rayza Nicácio no YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EFrwQ5exHvc>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018. 38Dados disponíveis em: <http://alexandraloras.com/mulheres-que-inspiram-por-alexandra-loras/>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018.

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Políticos de Paris (Sciences Po). É fluente nas línguas alemã, inglesa, espanhola e

portuguesa. Atuou como apresentadora de TV na França até se casar com o cônsul

Damien Loras. Em 2013, mudou-se com seu marido para o Brasil, onde passou a

adquirir notoriedade no contexto midiático ao atuar como palestrante em empresas e

organizações com um discurso focado na conscientização sobre diversidade de

gênero e de raça em órgãos privados e públicos, como em escolas públicas e

universidades. Desde então, sua presença em canais de mídia massiva e em sites de

redes sociais como o Facebook é constante. Suas participações em canais de

televisão costumam versar sobre questões raciais e principalmente sobre suas

experiências enquanto mulher negra e estrangeira no Brasil.

Em 2016, em São Paulo, coordenou o primeiro ciclo de conferências da TED-

X39 dedicado às mulheres negras e lançou, em parceria com o historiador Carlos

Eduardo Dias Machado, o livro “Gênios da Humanidade: Ciência, Tecnologia e

Inovação Africana e Afrodescendente”, destinado a contar invenções africanas e

afrodescendentes dos tempos antigos e modernos que, com o passar dos anos,

caíram no esquecimento e foram marginalizadas pelo eurocentrismo. Ainda em 2016,

ocupou o posto de jurada da 12ª edição do Prêmio Empreendedor Social e do 8º do

Prêmio Folha Empreender Social de Futuro, ambos do Jornal Folha de S. Paulo.40

4.5.1 Modos de apresentação

Imagem 19: Alexandra compartilha imagem da propaganda da Lancôme

39 TED é uma organização sem fins lucrativos dedicada ao lema “ideias que merecem ser compartilhadas”, em que pensadores e personalidades de todo o mundo são convidados a dar “a melhor palestra de suas vidas”, em até 18 minutos. Informações disponíveis em: <https://www.tedxdantealighierischool.com.br/o-que-e-tedtedx/>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018. 40 Dados disponíveis em: <https://people.opovo.com.br/app/lifestyle/2016/12/04/ls,2055/feminismo-e-poder-com-alexandra-lores.shtml>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018.

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Fonte:

<https://www.facebook.com/alexandraloras/photos/a.1618428561718911/2062013617360401/?type=3&theater>.

Na cena, vemos a imagem da atriz queniana Lupita Nyong’o estampando o

anúncio publicitário da marca francesa de produtos de maquiagem Lancôme. A frase

“A base que você ama usar, perfeição sem fim! Conforto supremo” indica o produto a

qual faz referência a propaganda. Contudo, ao observarmos a legenda colocada por

Alexandra, notamos que o sentido da imagem não está vinculada propriamente à

publicidade de um item de beleza, mas em exaltar a imagem de uma mulher negra

ocupando o espaço de garota-propaganda nesse contexto: “Não é como se o

problema de diversidade no entretenimento e na indústria da moda fosse resolvido

com as capas de revistas, mas é ótimo ver a beleza negra sendo reconhecida e

valorizada na grande mídia”.

A frase de Alexandra Loras versa sobre o simbolismo de uma mulher negra

retinta protagonizar um anúncio que “reconhece e valoriza” sua beleza. O meio

publicitário, em suas representações, costuma ser excludente ao retratar de forma

estereotipada ou invisibilizar mulheres negras em propagandas:

O mercado publicitário tende a se inserir numa perspectiva social que atende interesses do senso comum, pois, trabalha com os mesmos referenciais. Constantemente coloca a mulher de pele escura em segundo plano, omite sua existência e também a apresenta em posições estereotipadas. (WINCH; ESCOBAR, 2012, p. 239).

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A exclusão e estereotipização da figura feminina negra em construções

publicitárias estão relacionadas às crises de aceitação nas afrodescendentes e a uma

conformação por ideias de beleza atreladas à estética branca (WINCH; ESCOBAR,

2012). Ao impor às mulheres negras espaços e posições subalternas, a publicidade

reproduz desigualdades e legitima valores racistas: “os meios de comunicação

reforçam a identidade racial negativa do negro, alimentando simbolicamente o ideal

de branqueamento” (SANTOS, 2004, p.10).

Assim, ao celebrar o simbolismo da presença de Lupita em uma propaganda

de beleza, Alexandra evidencia seu engajamento ao se utilizar de sua figura pública

para visibilizar o quanto as expressões corporais em construções publicitárias podem

surgir como aspectos que tensionam as relações raciais e os padrões de gosto

impostos às mulheres negras.

Imagem 20: Alexandra celebra Dia Internacional da Mulher Negra e Caribenha

Fonte: <https://www.facebook.com/alexandraloras/photos/a.1618428561718911/2091467111081718/?type=

3&theater>.

Na imagem, vemos a figura de mulheres negras e não brancas, com diferentes

tonalidades de pele e penteados que remetem à cultura africana. Na cena, elas

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aparecem com o punho cerrado erguido no ar, saudação que se tornou símbolo de

enfrentamento e resistência, usado por movimentos populares ao longo da história,

como o Grupo Panteras Negras41, nos Estados Unidos, conhecidos pela luta em prol

dos direitos da população negra. Ainda é possível visualizar no desenho a frase “Dia

25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha”.

A data, reconhecida pelas Organizações das Nações Unidas em 1992, tem

como intuito fortalecer as organizações voltadas às mulheres negras e reforçar seus

laços, trazendo maior visibilidade para sua luta. Na América Latina e no Caribe, 200

milhões de pessoas se identificam como afrodescendentes, de acordo com a

Associação Mujeres Afro42, sendo as que mais sofrem com a pobreza e violência. No

Brasil, por exemplo, entre os mais pobres, três em cada quatro são pessoas negras,

segundo o IBGE43. Além disso, de acordo com a ONU, dos 25 países com os maiores

índices de feminicídio do mundo, 15 ficam na América Latina e no Caribe.44

Para a empreendedora, o enfrentamento ao racismo perpassa o

compartilhamento dessas experiências nas mídias, como forma de denúncia e

reinvindicação por espaço, ao questionar a suposta democracia racial: “porque se fala

do Brasil lá fora como uma democracia racial, uma grande miscigenação, com tudo

resolvido. Quando cheguei aqui pensei que veria 50% de negros protagonistas nas

novelas, em cargos de liderança, nas empresas, nos desenhos animados. E não

estão”.45

Ao visibilizar uma data tão simbólica no que se refere à luta por direitos das

mulheres negras e caribenhas, Alexandra mais uma vez se utiliza do Facebook e de

41 Disponível em: <https://www.geledes.org.br/historia-dos-panteras-negras-em-27-fatos-importantes/>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018. 42 Dados disponíveis em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-07/mulheres-negras-enfrentam-problemas-semelhantes-na-america-latina>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018. 43 Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/multidominio/condicoes-de-vida-desigualdade-e-pobreza/9221-sintese-de-indicadores-sociais.html?=&t=o-que-e>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018. 44 Dados disponíveis em: <https://www.geledes.org.br/as-origens-do-dia-da-mulher-negra-latina-e-caribenha/>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018 45 Entrevista disponível em: <https://www.taofeminino.com.br/sociedade/startup-protagonizo-s2272485.html>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018.

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suas vivências como mulher negra no Brasil como forma de engajamento político nas

redes sociais.

Imagem 21: Alexandra compartilha capa da Revista Istoé

Fonte:

<https://www.facebook.com/alexandraloras/photos/a.1618428561718911/2042886775939752/?type=3&theater>.

“As cotas deram certo” diz a frase de capa da revista Istoé, compartilhada por

Alexandra Loras. Na imagem, é possível ver cinco jovens de beca – traje utilizado por

formandos em solenidades de formatura nas universidades. Dos jovens, apenas uma

é negra. O enquadramento dá destaque a seu rosto e desfoca os demais. A capa

ainda deixa à mostra um balanço temporal sobre as políticas públicas referentes às

cotas: “Uma década depois, a política de inclusão de negros nas universidades

brasileiras apresenta resultados surpreendentes”.

Mais uma vez, Alexandra Loras utiliza suas redes sociais para celebrar uma

conquista relativa à representatividade negra, dessa vez no espaço acadêmico: “Amo

essa capa...aumento de 350% de negros na universidade”. A postagem faz alusão

aos dados do IBGE que comparam o número de negros nas universidades. Apesar

dos dados apontados por Alexandra não corresponderem com exatidão as

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informações do IBGE, os dados evidenciam um aumento considerável no número de

negros no ensino superior, impulsionado pelas ações afirmativas e políticas

públicas46: em 2003, apenas 5,5% dos jovens negros e pardos em idade universitária

frequentavam a faculdade. Em 2015, esse percentual saltou para 12,8%.47 Contudo,

comparados a jovens brancos (26,5%), o número ainda é pequeno.

Na legenda, Alexandra vincula a postagem a um convite – “se cadastra no meu

site protagonizo.com”. A Protagonizo é uma plataforma fundada pela empreendedora

em parceria com o engenheiro Anderson Carvalho, cujo o objetivo é ligar profissionais

negros com formação universitária a empresas que queiram contratá-los.

Constantemente Alexandra Loras utiliza seu perfil no Facebook como forma de

divulgar vagas e promover empresas com foco em grupos afrodescendentes.

Segundo ela, o intuito é transformar sua narrativa de vida “em missão, com a intenção

de reequilibrar a diversidade étnico-racial de diversas organizações, pois

conscientização sobre diversidade de gênero e de raça também está diretamente

ligado à rentabilidade”.48

Novamente, percebemos que Alexandra Loras vincula sua narrativa biográfica

a um engajamento nas redes sociais. Sua atuação no ciberespaço indica “as

potencialidades do Facebook e das redes virtuais como espaços de debate político”

(SEVERO; HOEFEL; SHIMIZU, 2017, p. 195), capazes de “construir e criar outras

formas de atuação política e novos modos de intervenção no mundo” (Ibidem, p. 200).

4.6 LUGARES DE FALA E AS NARRATIVAS DE TRANSIÇÃO CAPILAR

A “Transição Capilar” consiste na passagem dos cabelos quimicamente

tratados para a textura natural, principalmente as cacheadas e crespas. No processo,

algumas raspam suas cabeças ou cortam bem curto, o chamado “big chop”. Já outras

46 O termo ação afirmativa foi empregado pela primeira vez nos Estados Unidos, na década de 60, para se referir as políticas do governo para combater diferenças entre brancos e negros. No Brasil, as ações afirmativas se dirigem a combater as desigualdades raciais presentes na sociedade, decorrentes de uma herança histórica de escravidão, segregação racial e racismo contra a população negra. Dados Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Disponível em: <http://www.seppir.gov.br/>. Acesso em 10 de janeiro de 2019. 47 Dados disponíveis em: <https://www.taofeminino.com.br/sociedade/startup-protagonizo-s2272485.html>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018. 48 Disponível em: <http://alexandraloras.com/#sobre>. Acesso em: 10 de dezembro de 2018.

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cortam aos poucos as pontas modificadas por métodos químicos de alisamento,

enquanto os fios novos crescem. Impulsionadas pelas redes sociais, na segunda

metade dos anos 2000, o movimento passou a ganhar muitas adeptas no Brasil.

Nessas mídias, a partir do compartilhamento de experiências, são formadas

redes de solidariedade e apoio mútuo, em que aqueles que ainda passaram pelo

processo são apoiados e encorajados a não desistir (MATOS, 2016). Nesse ínterim,

estudos recentes no Brasil têm relacionado a utilização dos cabelos cacheados e

crespos com a afirmação da identidade negra e sua relação com a forma como os

veículos midiáticos representam positiva ou negativamente os cabelos com a textura

afro. Segundo Gomes (2012), ao mesmo tempo em que são estigmatizados e

rotulados de “ruim” ou “feio”, essas texturas são apropriadas como símbolo de orgulho

para aqueles que afirmam ser negros.

Assim, concebendo os territórios digitais como ambientes potenciais para a

construção de debates e entendendo que a questão estética pode tomar um caráter

político quando inserida em discussões como racismo e preconceito, representações

e visibilidades da mulher negra, nos atemos às experiências de transição capilar de

Taís Araújo, Ludmilla, Alexandra Loras e Rayza Nicácio indagando três distintos

momentos: a) os motivos para o alisamento capilar; b) a decisão pela transição; e c)

os significados de usar o cabelo natural, na textura crespa/cacheada. Buscamos,

assim, evidenciar os fluxos identitários e culturais que emergem das vivências

midiáticas dessas mulheres em suas relações com o cabelo.

4.6.1 Processos de alisamento

Os processos de alisamento capilar, tanto de Taís Araújo como Ludmilla,

Alexandra Loras e Rayza Nicácio, aconteceram ainda na infância. Mesmo crianças, já

tinham uma relação conflituosa com o cabelo:

“(...) Não tive a chance de saber se gostava ou não (do cabelo), porque passei a mudar a estrutura dele muito cedo”. Taís Araújo.49 “(...) me importei com o cabelo, desde criança, mas não aceitava os meus cachos”. Estudava em colégio particular, e sofria preconceito por não ter o cabelo liso...(...) fui criada achando que cabelo crespo,

49 Entrevista Taís Araújo ao site L’Officiel. Disponível em: <https://www.revistalofficiel.com.br/beleza/eu-nao-lembrava-como-era-meu-cabelo-natural-diz-tais-araujo>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

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cacheado, enrolado, era a coisa mais feia do mundo. Por isso eu queria alisar, passar formol”. Ludmilla.50 “(...) Desde criança eu sempre pedia a minha mãe para alisar o cabelo, porque a minha família toda alisava. Eu me sentia fora do padrão com meu cabelo natural. Me sentia feia e “não aceita” na sociedade”. Rayza Nicácio.51 “(...) Usei extensão e alisei por mais de 30 anos (...)”. Alexandra Loras.52

As motivações para os processos de alisamento nas experiências dessas

mulheres estão vinculadas às dificuldades na socialização, que se iniciaram muito

cedo, ainda na infância. Se sentir “feia” ou “fora do padrão”, situações de preconceito

na escola ou ainda o fato de se submeterem a processos químicos agressivos sendo

tão jovens, indicam o quanto já percebiam ainda crianças as diferenças no trato das

pessoas a partir das aparências e o quanto os traços negros, como o cabelo afro e a

pele negra, se vinculavam a sinônimos de desordem, não sendo desejáveis.

Bell Hooks reflete sobre os sentidos do alisamento e afirma que apesar de

mudanças nas políticas raciais, o cabelo ainda é motivo de “obsessão” para as

mulheres negras: “insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras

sentimos com respeito a nosso valor na sociedade de supremacia branca!” (HOOKS,

2005, p. 25). Para ela, a busca de afrodescendentes por processos químicos de

alisamento se associa às dificuldades de autoaceitação, preconceito e tentativas de

aproximação a um padrão estético eurocêntrico, que os tornem imunes às

experiências racistas. Assim, para Hooks (Idem), o alisamento ainda é um processo

em que mulheres negras buscam mimetizar a estética eurocêntrica e está relacionada

com um desejo de triunfar no mundo branco.

Segundo Domingues (2002), a estética foi um dos campos afetados pelas

lógicas de branqueamento no Brasil. Para o autor, o branqueamento estético causou

entraves à socialização da mulher negra, pois esta passou a alimentar um certo

“autodesprezo”, principalmente devido à ausência de modelos positivos em que

pudesse se espelhar. A mulher negra, ao recusar sua aparência, gerava, muitas

50 Entrevista Ludmilla a revista Elle. Disponível em: <http://elle.abril.com.br/beleza/ludmilla-inicia-transicao-capilar-e-hora-de-ser-eu-mesma/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 51 Vídeo “Ninguém se mete com o meu cabelo” do Canal de Rayza Nicácio. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1gRjX_ilS6E>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 52 Entrevista Alexandra Loras ao site Beauty Editor. Disponível em: <https://www.beautyeditor.com.br/blog-das-convidadas/beleza-negra-entrevista-com-alexandra-loras-sobre-cabelo-atitude>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

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vezes, uma crise de identidade étnica, buscando se descaracterizar na busca pela

supressão dos traços afro (DOMINGUES, 2002).

Nessa lógica, os mecanismos de mudança de textura capilar para o liso podem

ser entendidos enquanto tentativas de superação da “inferioridade” que essas

características físicas adquirem. Em sua pesquisa sobre cabelo como performance

identitária, Quintão (2013) explicita que mulheres negras com as texturas capilares

crespas e cacheadas muitas vezes buscam “uma adequação” por meio de técnicas

de modificação, com o objetivo de se aproximar de um padrão próximo ao fio liso.

Quintão (2013) sustenta ainda que a ideia de superioridade estética do cabelo

liso em relação ao cabelo cacheado ou crespo remonta a um longo processo histórico,

marcado pela colonização e processos de branqueamento, onde foi se construindo

socialmente o conceito do cabelo do liso como “bom” ou “bonito”. Em contrapartida, o

chamado cabelo “ruim” ou “feio” é associado a texturas encaracoladas e crespas,

comum entre as mulheres negras.

Essa subjugação estética marginaliza mulheres negras em representações

midiáticas. A inferiorização e exclusão se expressa no “padrão de beleza”, que

privilegia mulheres brancas, magras, com cabelos lisos e traços finos como o ideal a

ser atingido. Essa não representatividade midiática da estética negra é citada por duas

delas elas como algo que influenciou a decisão pelo alisamento:

“(...) Como mulheres, somos formatadas desde a infância, através de desenhos animados, publicidades e novelas, a desenvolver muito a coisa da “beleza””. Alexandra Loras.53 “(...) toda a referência de mídia, eram de mulheres alisadas”. Rayza Nicácio.54

Ao refletir sobre as produções midiáticas, Couceiro de Lima (1997) afirma que

a mídia, embora se demonstre sensível às mudanças da sociedade e procure se

atualizar e incorporar anseios de parcelas minoritárias, por vezes ela absorve

elementos da estrutura racista e a incorpora nos produtos que veicula.

53 Entrevista Alexandra Loras ao site Beauty Editor. Disponível em: <https://www.beautyeditor.com.br/blog-das-convidadas/beleza-negra-entrevista-com-alexandra-loras-sobre-cabelo-atitude>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 54 Vídeo “Ninguém se mete com o meu cabelo” do Canal de Rayza Nicácio. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1gRjX_ilS6E>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

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Nem mesmo o fato de pertencerem a origens sociais mais abastadas, como

Taís Araújo e Alexandra Loras, pareceu amenizar as situações negativas vividas, por

não condizerem com uma estética hegemônica:

“(...) quando eu falo, ah, os meninos (na escola) não queriam saber de mim, também é um reflexo do preconceito...porque quando você chega num colégio de classe média alta que só está ali quem pode pagar e você não se reconhece, não vê ninguém igual a você, você fala pô, já entendi o país que eu faço parte (...)”. Taís Araújo.55 “(...) Sou praticamente a única negra na elite, então nos eventos sou sempre a diferente. Hoje, meu cabelo crespo vira hype, cool, fashion. Mas fui palestrar no shopping Village Mall para a marca Amsterdam Sauer sobre diversidade, e depois uma mulher que assistiu à conversa veio me falar: “nossa, gostei de sua palestra, você é tão linda, mas seria ainda mais linda se alisasse o cabelo”. Alexandra Loras.56

Os depoimentos de Taís e Alexandra remontam às reflexões propostas pelo

sociólogo Emerson Rocha (2016). Em estudo desenvolvido pelo autor, a percepção

do racismo e do preconceito estético são ainda mais aparentes aos negros que

ascendem socialmente. Segundo o autor, os afrodescendentes em posições

subalternas tendem a ser menos confrontados por estarem em uma “posição natural”,

destinadas a eles. Ao saírem desses espaços, porém, o “estranhamento” ou

“surpresa” que geram os tornam mais suscetíveis a manifestações de preconceito.

Já a experiência de Rayza revela o quanto, mesmo usufruindo dos privilégios

advindos do colorismo, como a tonalidade de pele clara que a permitiu não ser lida

como negra em grande parte de sua vida, não se está isento de situações negativas

vividas, por ter traços negros como o cabelo crespo:

“(...) tive muitos conflitos com o meu cabelo, com o meu tipo de corpo, mas não com a cor da minha pele. Pra eu chegar aos conflitos com a cor da minha pele demorou um pouquinho porque ninguém falava sobre isso comigo (...)”. Rayza Nicácio.57

Assim, nota-se nas experiências de Taís, Ludmilla, Rayza e Alexandra o quanto

os processos químicos não tiveram uma motivação positiva; ao contrário, foram

maneiras de se libertar de um sofrimento que as suas estéticas lhes impunham por

55 Entrevista Taís Araújo ao Programa Estrelas, da Rede Globo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=K4O71_ujacM&t=332s>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 56Entrevista Alexandra Loras ao site Beauty Editor. Disponível em: <https://www.beautyeditor.com.br/blog-das-convidadas/beleza-negra-entrevista-com-alexandra-loras-sobre-cabelo-atitude>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 57 Vídeo “Ninguém se mete com o meu cabelo” do Canal de Rayza Nicácio. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1gRjX_ilS6E. Acesso 10 de janeiro de 2019.

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estarem distante dos modelos normativos de aparência. Nesse contexto, o alisamento

significou uma tentativa de adequação, para deixarem de ser percebidas como

“inconformes” ou para se distanciar de um padrão estético que lhes imputava dor e

sofrimento.

As vivências conflituosas dessas mulheres com a própria estética revelam

ainda o quanto ser afetado pelo racismo independe da origem social, e que mesmo

os privilégios das lógicas de branqueamento não as isenta do preconceito. Por fim,

ainda a partir de suas experiências, é possível verificar o quanto a mídia, muitas vezes,

atua pela perpetuação de racismo ao invisibilizar negros em suas produções ou

representá-los em papéis estereotipados de subserviência.

4.6.2 A decisão pela transformação e os sentidos “pós transição capilar”

A motivação para o processo de transição capilar nas experiências de Taís

Araújo, Ludmilla, Rayza e Alexandra está vinculada à intenção de “assumir a própria

beleza” e ao desejo de conhecer o cabelo na textura natural, que nem mais lembravam

como era:

“(...) Há um ano eu resolvi passar pela transição capilar. Cortei meu próprio cabelo curtinho e tirei toda química fora. Desde criança eu não usava meu cabelo natural, nem sabia muito bem como ele era. Resolvi passar pela transição para redescobrir a minha beleza natural... Não lembrava mais como era o meu cabelo. Sempre alisei (...)”. Ludmilla.58 “(...) Na época nem sabia que tinha um nome. Meu desejo era deixar meu cabelo natural depois de tantos anos usando química. Eu nem me lembrava como ele era”. Taís Araújo.59 “(...) É muito difícil viver essa transição (capilar). Mas agora estou começando a gostar da minha identidade, a agradecer e assumir a minha beleza natural”. Alexandra Loras.60 “Parei de alisar por causa da minha autoestima. Era muito vaidosa e isso me fazia mal. Deixava de ir à piscina, de sair no calor porque ia enrolar a raiz do meu cabelo. Me privei muito e perdi muito tempo da

58 Entrevista Ludmilla à revista Elle. Disponível em: <http://elle.abril.com.br/beleza/ludmilla-inicia-transicao-capilar-e-hora-de-ser-eu-mesma/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 59 Reportagem Revista Glamour. Disponível em: <https://revistaglamour.globo.com/Celebridades/noticia/2016/12/tais-araujo-comemora-sua-transicao-capilar-nem-me-lembrava-como-ele-era.html>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 60 Entrevista Alexandra Loras ao site Beauty Editor. Disponível em: <https://www.beautyeditor.com.br/blog-das-convidadas/beleza-negra-entrevista-com-alexandra-loras-sobre-cabelo-atitude>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

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minha vida presa a um estereótipo que não era meu (...)”. Rayza Nicácio.61

Nestes trechos, observamos o quanto as vivências individuais ecoam sentidos

coletivos, em que o caso singular da experiência se expande para novas narrativas,

identificações e identidades (ARFUCH, 2010). As motivações que as levaram a

decisão pela transição capilar se aproximam de sentidos que expandem para além do

gosto estético e individual e se configuram como atos políticos ao reivindicar um direito

de existência a traços corporais normalmente estigmatizados e oprimidos.

Para Munanga, esse processo de aceitação a partir de elementos do corpo

simboliza uma afirmação da identidade negra, “a recuperação dessa identidade

começa pela aceitação dos atributos físicos de sua negritude antes de atingir os

atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e psicológicos, pois o corpo constitui

a sede material de todos os aspectos da identidade” (MUNANGA, 2012, p. 19). Costa

(2012) reforça que o corpo, como elemento visível, está sujeito historicamente a

construções e reconstruções simbólicas e que seus sentidos são produzidos, portanto,

dentro das relações sociais. Desconsiderando, assim, o caráter essencialista que

atribui neutralidade aos corpos, o entende como um signo ao qual se atribui

significado.

A desconstrução dos estigmas atrelados aos cabelos cacheado/crespo são

entendidos por elas como um processo que envolve também uma “transição” de

mente:

“(...) queria falar sobre a transição de mente, a gente ouve muito falar que o cabelo cacheado é feio, que te deixa desarrumada, que o volume não é bom, que parece ressecado, que parece sujo, mas isso é tudo mentira! Mas desconstruir esses pensamentos nas nossas cabeças não é nada fácil. Não foi fácil pra mim e não vai ser fácil pra ninguém, quando a gente cresce ouvindo muito uma coisa a gente toma aquilo como verdade absoluta e só em algum momento a gente começa a questionar tudo isso (...)”. Rayza Nicácio.62 “(...) o empoderamento das mulheres está muito forte e isso faz com que elas escolham outros caminhos de beleza, muito diferentes dos

61 Vídeo “Ninguém se mete com o meu cabelo” no canal de Rayza Nicácio no YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1gRjX_ilS6E>. Acesso 10 de janeiro de 2019. 62 Vídeo “Ninguém se mete com o meu cabelo” do Canal de Rayza Nicácio. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1gRjX_ilS6E>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

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que existiam quando eu cresci: a ditadura do alisamento, por exemplo”. Alexandra Loras.63 “(...) Não quero mais ser refém das laces, apliques e acessórios, amo mudar, mas chegou a hora de ser eu mesma também”. Ludmilla.64 “(...) foi muita paciência, criatividade para encontrar penteados, escovas, tranças (...)”. Taís Araújo.65

Verifica-se em suas falas que o que está sendo colocado em questão não é

propriamente a aparência, mas, sim, o romper com os enquadramentos do que é tido

como “correto” ou que corresponda a padrões de beleza hegemônicos. A conotação

pejorativa acerca da textura crespa adquire nova significação e passa a estar

vinculada não mais ao “feio” ou “ruim” mas a uma não adequação às normatizações

do que era tido como belo, dentro de uma estrutura de poder racista que as

desprivilegia, onde cabelo cacheado/crespo é entendido como um traço étnico dito

inconforme ao que se espera da beleza ou da boa aparência. Nesse cenário, o corpo

e seus atributos físicos se tornam territórios de disputas de sentido:

(...) o conceito de beleza é subjetivo, localizado, histórico e relacional. Apesar dessa relativização, as sociedades impõem alguns padrões de beleza, uma vez que ela também é construída em contextos de relações assimétricas de poder. O corpo é uma das instâncias sujeitas à inscrição, à classificação e a hierarquização da ideia de beleza (GOMES, 2008 apud OLIVEIRA, 2010, p. 92).p

Nesse ínterim, em que se travam disputas de sentido aos aspectos relativos ao

corpo, a mídia adquire papel de centralidade, ao se configurar como “palco” desses

embates:

“(...) foi um movimento contrário, a mídia falava o que a gente tinha que fazer e a gente fazia, graças à internet nós falamos o que eles precisavam fazer e agora tem uma amplitude de possibilidades pra gente se inspirar...a gente tem essa necessidade de se sentir representado de olhar e de se ver (...)”. Rayza Nicácio.66

63Entrevista Alexandra Loras ao site Beauty Editor. Disponível em: <https://www.beautyeditor.com.br/blog-das-convidadas/beleza-negra-entrevista-com-alexandra-loras-sobre-cabelo-atitude>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 64 Entrevista Ludmilla à revista Elle. Disponível em: <http://elle.abril.com.br/beleza/ludmilla-inicia-transicao-capilar-e-hora-de-ser-eu-mesma/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 65Reportagem Revista Glamour. Disponível em: <https://revistaglamour.globo.com/Celebridades/noticia/2016/12/tais-araujo-comemora-sua-transicao-capilar-nem-me-lembrava-como-ele-era.html>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 66 Vídeo “Ninguém se mete com o meu cabelo” no canal de Rayza Nicácio no YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1gRjX_ilS6E>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

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A experiência de transição de Rayza Nicácio enfatiza o papel da mídia como

arena de disputas de sentido. No caso dela, o espaço adquirido no YouTube

possibilitou um questionamento a padrões de beleza associados a produções das

mídias tradicionais, como telenovelas e comerciais de televisão. Já Ludmilla teve todo

o seu processo de mudança capilar acompanhado e publicizado por uma marca de

produtos para cabelo, a Salon Line. O anúncio de sua transição capilar ocorreu ao

mesmo tempo em que divulgava uma parceria com a empresa: “Como já conhecia os

produtos da Salon Line, tomei essa decisão para que meu cabelo crescesse de forma

saudável”.67 A cantora participou de diversos eventos e comerciais, tendo declarado

que se não fosse pela marca, não teria tido coragem de passar pelo processo da

transição: “a transição não é uma coisa fácil, graças a deus eu conheci a Salon Line

e estou muito feliz pelo carinho e incentivo que eles me deram”.68

O caso de Ludmilla e Rayza faz refletir sobre a importância que os veículos e

produções midiáticas podem ter na potencialização de discussões acerca de padrões

estéticos. Uma pesquisa realizada pela Kantar WorldPanel69 mostrou que 51,4% da

população brasileira possui cabelos ondulados, cacheados ou crespos. Em outra,

realizada pelo Instituto Beleza Natural em parceria com a Universidade de Brasília

(UnB), o índice chegou a 70%.70 Contudo, essa diversidade capilar não costuma

aparecer em propagandas, comerciais e anúncios publicitários, onde ainda

predominam os fios extremamente lisos.

Em outra direção, estudos desenvolvidos pela Google BrandLab em São

Paulo71, em 2017, apontaram que, pela primeira vez, as buscas no Google por cabelos

cacheados superaram a procura por cabelos lisos. A pesquisa afirma que houve um

aumento de 232% na busca por cabelos cacheados no último ano. Também indica

como o interesse por cabelos afro subiu 309% nos últimos dois anos. Esses índices

67 Entrevista Ludmilla à revista Elle. Disponível em: <http://elle.abril.com.br/beleza/ludmilla-inicia-transicao-capilar-e-hora-de-ser-eu-mesma/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 68 Entrevista Ludmilla à revista Elle. Disponível em: <http://elle.abril.com.br/beleza/ludmilla-inicia-transicao-capilar-e-hora-de-ser-eu-mesma/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 69 Dados disponíveis em: <https://www.kantarworldpanel.com/br/Releases/Mercado-de-cabelos-cresce-e-movimenta-R-8-bi-no-Brasil>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 70 Dados disponíveis em: <http://patrocinados.estadao.com.br/abihpec/2017/08/21/cabelos-crespos-muito-bem-cuidados/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 71 Dados disponíveis em: <https://oglobo.globo.com/ela/beleza/pela-primeira-vez-no-brasil-buscas-no-google-por-cabelo-cacheado-superam-as-por-cabelo-liso-21683014>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

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permitem inferir que os sentidos do racismo e da ideologia do branqueamento, que

incutem sobre os corpos negros e se reproduzem na mídia, são passíveis de

ressignificação. Nessa direção, mulheres negras, como as aqui estudadas, vêm

ganhando poder de fala e visibilidade midiática para discutir questões sobre o próprio

corpo e para questionar padrões, estigmas e a falta de representatividade percebidas

por elas nos meios de comunicação. Isso nos permite refletir sobre a mídia enquanto

tática de disputa do visível, do narrável e do reconhecido (RÍNCON, 2016).

Nos relatos de Taís Araújo, Ludmilla, Rayza Nicácio e Alexandra Loras, o

processo de transição marcou uma virada no entendimento de ambas acerca do

significado do cabelo crespo/cacheado em suas vivências. O que antes era visto como

“ruim” ou algo que precisavam suprimir, passou a ser entendido como símbolo de

orgulho:

“(...) Descobri que ele (cabelo) é diferente, e que eu não preciso seguir padrões para ser quem eu sou. Respeitar as diferenças deveria ser um sentimento obrigatório na nossa sociedade (...)”. Ludmilla.72 “(...) dá sim pra ser gata, linda e maravilhosa com o cabelo natural e tudo o que for contra isso é que está adoecido, é o sistema que está adoecido e não você, o seu tipo de cabelo ou o jeito que você nasceu (...)”. Rayza Nicácio.73 “(...) assumir meus cachos, meu cabelo crespo, foi um ato político”. Alexandra Loras.74 “(...) é difícil sim, mas é tão legal a gente se olhar no espelho e se reconhecer como realmente é gostarmos de ser como somos (...)”. Taís Araújo.75

72 Entrevista Ludmilla a revista Elle. Disponível em: <http://elle.abril.com.br/beleza/ludmilla-inicia-transicao-capilar-e-hora-de-ser-eu-mesma/>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 73 Vídeo “Ninguém se mete com o meu cabelo” do Canal de Rayza Nicácio. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1gRjX_ilS6E>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 74Entrevista Alexandra Loras ao site Beauty Editor. Disponível em: <https://www.beautyeditor.com.br/blog-das-convidadas/beleza-negra-entrevista-com-alexandra-loras-sobre-cabelo-atitude>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019. 75 Reportagem Revista Glamour. Disponível em: <https://revistaglamour.globo.com/Celebridades/noticia/2016/12/tais-araujo-comemora-sua-transicao-capilar-nem-me-lembrava-como-ele-era.html>. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

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Imagem 22: Ludmilla antes e depois da transição capilar

Fonte:

<https://www.google.com.br/search?biw=1366&bih=654&tbm=isch&sa=1&ei=vIU0XJWiO46vwgSKu63YCw&q=ludmillatransi%C3%A7%C3%A3o+antes+e+depois&oq=ludmillatransi%C3%A7%C3%A3o+antes+e+depois&gs_l=i

mg.3...66859.71219..71473...0.0..0.239.3784.0j22j2......1... ..gws-wiz-img.ryx1_PWwJwQ#imgrc=7ZqbFF5c3nj3qM:>.

Imagem 23: Rayza Nicácio, antes e depois da transição capilar

Fonte: <https://www.google.com.br/search?q=transi%C3%A7%C3%A3o+capilar+rayza+nic%C3%A1cio&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiCgua4iN7fAhVDF5AKHUj-AlYQ_AUIDigB&biw=1366&bih=654#imgrc=56-AknU-

PngteM:>.

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Imagem 24: Alexandra Loras, antes e depois da transição capilar

Fonte: <https://www.google.com.br/search?q=transi%C3%A7%C3%A3o+capilar+Alexandra+loras&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjK6OWGid7fAhXCkpAKHSv8BQUQ_AUIDigB&biw=1366&bih=654#imgrc=KTznKIWpY

mko1M:>.

Imagem 25: Taís Araújo, antes e depois da transição capilar

Fonte: <https://www.google.com.br/search?q=ta%C3%ADs+ara%C3%BAjo+transi%C3%A7%C3%A3o+capilar&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjj1eXTid7fAhVIHpAKHZt8DoQQ_AUIDigB&biw=1366&bih=654#imgrc=E1_

psIZUe78GBM:>.

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Suas falas deixam claro que “assumir” o cabelo em suas texturas crespas e

cacheadas, envolveu processos de ressignificação de estigmas atrelados a seus

traços fenotípicos. Mesmo que algumas delas não reconheçam o caráter político da

mudança estética, a análise das trajetórias, a partir dos processos de alisamento e

motivações para a transição capilar, mostra uma modificação na percepção dos

próprios fios, que dá ênfase ao processo da transição capilar como enfrentamento a

padrões estéticos hegemônicos, que valorizam as texturas lisas em detrimento das

crespas e cacheadas.

Desta forma, as narrativas de aceitação e valorização da estética africana

ganham destaque por serem visibilizados por figuras de forte presença midiática,

como Taís Araújo, Ludmilla, Rayza Nicácio e Alexandra Loras. Longe de significar

novas formas de enquadramento estético ou condenação a quem se submete a

químicas de alisamento, a opção pelos cabelos crespos e cacheados tem aqui o intuito

de suscitar novas formas de pensamento diante de padrões de beleza muitas vezes

excludentes.

4.7 ESTRATÉGIAS DE VISIBILIDADE

Em nossa sociedade, atravessada pelas mais variadas redes e fluxos

midiáticos, o debate acerca das imagens e suas significações adquire centralidade.

As possibilidades comunicativas das imagens estão na sua concepção enquanto

fontes de afecção (ROCHA, 2010), ou no fato de que, ao mesmo tempo em que são

compreendidas como possíveis fontes de vinculação e pertencimento, nem sempre

são mensageiras ou portadoras de afetos felizes.

Assim, ao pensar o lugar das visualidades e dos corpos na contemporaneidade,

Rocha (2010) propõe refletir sobre a essência política do que nos é dado a ver, ou, a

partir da abundância de imagens que nos invade, “questionar aquelas que, ao nos

afetarem, efetivamente aumentam ou diminuem nossa competência corpórea-

cognitiva de ação” (Ibidem, p. 200). Nessas dinâmicas entre produção e consumo de

visualidades atrelado ao campo da comunicação, a autora vislumbra nos estudos das

imagens uma nova maneira de enxergar, perceber e narrar o mundo em que vivemos

(Idem).

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A partir desses pilares conceituais, o consumo é caracterizado como “um

conjunto de processos e fenômenos socioculturais complexos e mutáveis” (ROCHA,

2008, p. 120), entendido enquanto locus privilegiado no que se refere à constituição

das subjetividades. O consumo abriga ambivalências, conflitos e tensionamentos. É

entendido como aspecto fundamental na conformação de narrativas sobre si e, desta

forma, integra produções simbólicas cheias de significado, das mais aterradoras às

mais inspiradoras (ROCHA, 2008). Dentro dessas lógicas, a imagem atua como

“partícipe de uma inédita articulação do imaginário e da sociabilidade na atualidade”

(ROCHA; SILVA, 2007, p. 5).

Temos, então, que o consumo e a cena cultural são aspectos interligados e

“tecidos pelo universo da comunicação massiva” (ROCHA, 2008, p. 24). Nesses

termos, a mídia se insere como palco ou arena de disputas de sentido, do narrável e

do reconhecido (RÍNCON, 2016), ao ofertar lógicas mediadas de percepção e ação

cultural (ROCHA, 2008). Entrelaçado às redes comunicacionais e aos fluxos

informacionais, o consumo é, portanto, um modo de produzir sociabilidade, que se

vincula às práticas cotidianas e aos processos identitários, em que as relações sociais

são mediatizadas por imagens (MARTÍN-BARBERO, 2004).

Nessa perspectiva, a mídia atua enquanto espaço de “reconhecimento” na

cultura popular. E nestas experiências de re-conhecimento, entremeiam-se sempre

relações de mediação social, de distintos contextos culturais – a partir daqueles que

vivem nessa cultura (RÍNCON, 2016). Para Martin-Barbero (1981 apud RÍNCON,

2016, p. 30), é no popular que se travam as batalhas pelo sentido, pois são nesses

espaços que se localizam modos outros de imaginação social e de política. O autor

complementa ainda que o popular remete a uma vivência pública, ou a uma

performance que envolve o sujeito em sua totalidade. O ato de compreender o

popular-massivo não significa despolitizar a indústria midiática; ao contrário, visa

compreendê-la em suas ambivalências, submissões e impugnações que se dão a

partir dos sujeitos do popular (RÍNCON, 2016). Nesta ótica, localiza-se a permanência

de um sujeito que interpreta, negocia e se apropria de textos culturais,

compreendendo-os dentro da experiência, de sua trajetória de vida (ROCHA;

GHEIRAT, 2016).

Assim, ao comtemplar o cenário das visualidades ininterruptas que engloba o

consumo, a mídia e as imagens, pensar as políticas de visibilidade perpassa aspectos

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como a falsa democracia do visível e a ideia de cidadania visual (ROCHA, 2012).

Nessa conjuntura expressada pela autora, o direito à imagem é visto sob uma

perspectiva de cidadania, que nos convoca a pensar sobre as imagens da diferença,

ou aquelas que evoquem a pluralidade das representações sociais e evidenciem a

parcialidade daquelas que se pretendem hegemônicas, e, além disso, conceber ainda

os “planos do não visível, do que não se quer representar e do que, em outro extremo,

quer-se ocultar” (ROCHA, 2012, p. 39).

Deste modo, ao investigarmos as formas como Taís Araújo, Ludmilla, Rayza

Nicácio e Alexandra Loras constroem suas autonarrativas em seus perfis do Facebook

e a maneira como visibilizam suas experiências de transição capilar, buscamos

associar esses elementos autobiográficos, no intuito de apontar quais as estratégias

de visibilidade empregadas por elas e como essas imagens e textos presentes em

suas narrativas agenciam seus modos de apresentação de si, relações de

pertencimento e subjetividades. Além disso, pretendemos apontar o que essas

visibilidades podem indicar acerca das relações de poder e assimetrias raciais, bem

como evidenciar fluxos comunicacionais e contradições capazes de apontar possíveis

estratégias de subversão.

Atuando em diferentes âmbitos midiáticos, Taís Araújo, Ludmilla, Alexandra

Loras e Rayza Nicácio estão entre as mulheres negras mais célebres da cena

audiovisual brasileira na contemporaneidade. Ambas utilizam diariamente o Facebook

como forma de interação com o público, construindo, de diferentes maneiras, espaços

de autopercepção e afirmação de si, a partir de suas postagens.

O perfil da atriz Taís Araújo possui cerca de 4,6 milhões de seguidores76 e, no

período de nosso levantamento (janeiro a julho de 2017), teve 124 postagens, com

uma média de 31.092 curtidas, 1420 comentários e 402 compartilhamentos. O da

cantora Ludmilla conta com mais de 7 milhões de seguidores77, totalizou 174

postagens, com uma média de 22.513 mil curtidas, 344 comentários e 202

76 Dados consultados no perfil do Facebook da atriz. Link: https://www.facebook.com/taisdeverdade/ Acesso em: 10 de janeiro de 2019 77 Dados consultados no perfil do Facebook da cantora. Link: https://www.facebook.com/pg/OficialLudmilla/about/?ref=page_internal Acesso em: 10 de janeiro de 2019

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compartilhamentos por post. Já o perfil da youtuber Rayza78 e o da empreendedora

Alexandra Loras79, com números mais modestos, possuem respectivamente 532 mil

e 69 mil seguidores, 172 e 173 postagens, com uma média de 5.446 mil e 304 curtidas,

76 e 10 comentários, e 29 e 32compartilhamentos por post.

Importante salientar que as páginas de ambas se tratam de fanpages, ou perfis

voltados a empresas e marcas por oferecerem mecanismos que permitem realizar

publicidade, diferenciando-se dos perfis pessoais no Facebook. As páginas pessoais

são destinadas a pessoas físicas, voltados a usuários que desejam dividir informações

e expor detalhes da sua vida pessoal, compartilhar momentos, adicionar amigos, etc.

Já as fanpages são voltadas para os que buscam estratégias de publicização, sendo

possível realizar a customização da página e tendo a liberdade de criar enquetes,

fóruns de discussão, inserir dados sobre produtos específicos, etc., o que não são

permitidos em perfis comuns.

Assim, mesmo estas figuras midiáticas não sendo propriamente “empresas”,

suas personas no Facebook possuem foco principal em suas carreiras como artistas

e são utilizadas como instrumento de publicização de sua imagem pública. Isso não

quer dizer que suas características enquanto sujeito não sejam perceptíveis. Segundo

Polivanov (2014), os perfis nos ambientes virtuais correspondem a construções ou

versões de si, em que os sujeitos elaboram performaticamente e com certo nível de

autorreflexão, selecionando quais comportamentos se tornarão visíveis, a partir da

impressão que desejam causar em sua audiência.

Nessa dualidade entre exposição e ocultamento, no caso das figuras midiáticas

aqui analisadas, notamos que certos materiais são privilegiados e deixados à mostra,

enquanto outros são ocultados ou parcialmente mostrados (POLIVANOV, 2014).

Assim, com relação ao tipo de conteúdo, observamos uma profusão de textos verbais

e não verbais (imagens, frases e montagens) abordando, em sua maioria, assuntos

atrelados ao cotidiano das artistas, principalmente ao que é vinculado à suas

atividades profissionais, como participações em programas de TV e eventos atrelados

a marcas e divulgação de produtos dos quais são garotas-propaganda; mescladas a

78 Dados consultados no perfil do Facebook da youtuber. Link: https://www.facebook.com/rayzanicacio/ Acesso em: 10 de janeiro de 2019 79 Dados consultados no perfil do Facebook da empreendedora. Link: https://www.facebook.com/alexandraloras/ Acesso em: 10 de janeiro de 2019

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banalidades do dia a dia como como “roupa e batom do dia”, “o que comi no café da

manhã”, “lugares para onde viajei”, frases e pensamentos reflexivos, etc.

De acordo com Miller (2011 apud POLIVANOV, 2014) as atualizações triviais

sobre a vida (profissional e/ou pessoal) são os tipos de conteúdo mais postados no

Facebook. Segundo o autor, o compartilhamento de momentos do cotidiano tem a

intenção de aproximar o sujeito de sua rede de contatos, com o intuito de “estar

presente” em tempo real, expressando e construindo identidade e sociabilidade, ao se

autoexpressar no Facebook. No próximo item, buscamos evidenciar esses aspectos,

considerando as cenas midiáticas em que Taís Araújo, Ludmilla, Rayza Nicácio e

Alexandra Loras se visibilizam.

4.7.1 Taís Araújo

Taís Araújo pertence ao âmbito da dramaturgia, sua visibilidade advém,

principalmente, de suas atuações como atriz, em telenovelas da Rede Globo. O

sucesso adquirido nas novelas permitiu a ela expandir sua presença midiática para

outros campos como o cinema, o teatro e mais recentemente em apresentação de

programas de auditório. Sua construção narrativa no Facebook reflete muito dessa

visibilidade obtida na TV. Com frequência, suas postagens fazem alusão ao seu

cotidiano profissional na televisão, mas com viés informal, no intuito de criar sentidos

de proximidade e intimidade com sua audiência, mostrando aspectos dos “bastidores”

da vida como atriz. Em suas postagens, Taís procura se “despir” do status de

celebridade e se mostrar mais como uma figura popular, “gente como a gente”, que

acorda cedo para trabalhar, sempre atarefada entre as funções na “firma” e as

desempenhadas como esposa e mãe. Uma versão da mulher contemporânea, que se

divide entre a vida pessoal e o trabalho.

Alçada como ícone da representatividade negra por sua trajetória na televisão,

raramente evidencia em sua performance no Facebook um caráter mais politizado em

seus posicionamentos. De maneira geral, as postagens de Taís Araújo privilegiam o

compartilhamento de momentos de sua intimidade, sempre com conotações informais

e descontraídas, percebidas principalmente, por meio de legendas bem-humoradas.

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As imagens postadas por Taís, em sua maioria, consistem em

retratos/autorretratos, com enquadramentos que focam em ângulos da cintura para

cima, enfatizando traços do rosto e do cabelo, sempre em destaque. Ela aparece com

frequência maquiada, com figurinos que utiliza na televisão, e os cabelos cacheados,

sempre soltos e bem volumosos, chamam a atenção. Costuma dividir a cena com

outros famosos da emissora, como colegas de elenco, o marido ator, ou ainda

evidenciando aspectos como cenário, trajes, ou outros elementos que “marquem” o

seu “lugar” como artista da TV.

Com relação a aspectos da negritude, as visualidades presentes nas

autonarrativas de Taís Araújo suscitam sentidos interessantes para se pensar as

questões como a representatividade negra na mídia massiva, principalmente ao se

falar em produções televisivas. O protagonismo conquistado pela atriz, seja em

telenovelas ou como apresentadora, coloca negros ocupando lugares que

normalmente lhes são negados. Além disso, a relação com Lázaro Ramos também

traz visibilidade a elementos como a afetividade da mulher negra e o amor

afrocentrado (ALVES, 2008).

Sua transição capilar faz pensar também sobre os padrões estéticos

incorporados pela mídia televisiva e o quanto ostentar o cabelo cacheado e volumoso

como belo, em um espaço monopolizado pelos fios lisos como a TV visibiliza imagens

da diferença. Contudo, há de se pontuar que, por mais que sua visibilidade possa

significar certos deslocamentos, ela também evidencia que esses espaços ainda

continuam a privilegiar certos traços fenotípicos associados a padrões estéticos

hegemônicos, como o corpo magro e a cor da pele em tons mais claros.

4.7.2 Ludmilla

Ludmilla pertence ao âmbito musical na cena midiática brasileira. Sua

visibilidade emana, principalmente, de suas apresentações cantando em programas

de televisão de diversas emissoras. Assim como Taís, a construção narrativa do seu

Facebook reflete muito dessa visibilidade obtida na TV. Suas postagens são utilizadas

como instrumento de divulgação para suas aparições na televisão, com o intuito de

“chamar” sua audiência para vê-la cantando em atrações televisivas. Em seus

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compartilhamentos, Ludmilla procura exaltar “o status de celebridade” com fotos com

fotos em poses chamativas, figurinos elaborados, buscando evidenciar uma aparência

“glamurizada”, com cenários que evidenciam luxo e ostentação.

Assim como Taís, a visibilidade alcançada no cenário musical, evidenciado nas

mídias massivas, alçou Ludmilla a um ícone de representatividade negra. Contudo,

raramente vemos em sua presença no Facebook um caráter mais politizado em seus

posicionamentos. De forma geral, as postagens são usadas como ferramentas de

divulgação de suas aparições na TV, da agenda de shows, videoclipes lançados, etc.

As imagens, com frequência, consistem em retratos, com enquadramentos que

salientam as formas de seu corpo, como as pernas musculosas, o busto farto e o

“bumbum grande”, e pouco mostram os traços do seu rosto. As vestimentas – sempre

justas ou curtas – também são utilizadas como maneira de enfatizar as formas do

corpo e dar um sentido de sensualidade a sua figura. Ela aparece com frequência

maquiada, com figurinos que utiliza na televisão e em shows. Chama a atenção que

em quase todas as imagens ela aparece com os cabelos lisos e longos.

Com relação a aspectos da negritude, as visualidades presentes nas

autonarrativas de Ludmilla suscitam sentidos interessantes acerca da

representatividade negra em espaços hegemônicos como o cenário musical,

raramente ocupado por outras artistas negras. Além disso, pontuamos alguns

elementos acerca de sua transição capilar. Apesar de endossar a narrativa em prol do

uso do cabelo natural, Ludmilla não visibiliza os fios crespos em suas postagens,

revelando certa ambiguidade em seu discurso de autoaceitação. Nota-se também que

sua autorrepresentação privilegia sentidos de sensualidade a sua imagem,

perpetuando certas visões estereotipas acerca de mulheres negras.

4.7.3 Rayza Nicácio

Rayza Nicácio adquiriu visibilidade midiática na internet, a partir de um canal

criado na plataforma YouTube. Sua experiência de transição capilar, atrelada à

narrativa de autoaceitação dos “cachos”, a fez ter sucesso como figura de inspiração

de beleza que destoa de padrões hegemônicos associados aos cabelos lisos. Sua

construção narrativa no Facebook reflete muito dessa visibilidade alcançada no

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YouTube. De forma geral, as postagens de Rayza Nicácio evidenciam autorretratados

atrelados a legendas reflexivas sobre a importância da autoaceitação e do

reconhecimento do cabelo crespo e cacheado como belo, algo que intitula como sua

“missão” no mundo. Sua experiência de transição capilar é constantemente

recuperada na narrativa, no intuito de construí-la como uma espécie de conselheira

junto as suas seguidoras, se levantando como uma incentivadora do “se ame como

você é”.

Contudo, apesar de possuir um discurso que visa “desconstruir padrões de

beleza”, sua presença no Facebook não aprofunda discussões políticas acerca das

assimetrias raciais; ao contrário, sua construção narrativa procura mostrar o

preconceito aos fios afro e “a ditatura do cabelo liso” como algo superado.

Os enquadramentos escolhidos privilegiam o rosto, enfatizando seus traços e

o cabelo sempre em destaque, solto e com volume. As demais partes do corpo quase

não são mostradas. Chama a atenção ainda que Rayza escolhe sempre filtros e

efeitos que “clareiam” o seu tom de pele, criando um sentido de dubiedade, pois, ao

mesmo tempo em que aspectos de negritude são exaltados em sua narrativa, ela

parece querer se aproximar de uma estética “embranquecida”.

Com relação a aspectos ligados à negritude presentes nas autonarrativas de

Rayza Nicácio, notamos que suas autorrepresentações aludem a questões

interessantes para se pensar elementos como a mestiçagem na constituição das

identidades de indivíduos negros no contexto brasileiro. O tom de pele de Rayza influi

na forma como ela é lida socialmente, estabelecendo uma linha racial não nítida, que

a coloca como “parda” ou “morena”, promovendo um apagamento de sua negritude.

Por outro lado, a textura crespa do cabelo jamais a permitiu se enxergar enquanto

branca, e foram motivos de preconceito durante sua vida. O entendimento como

mulher negra só veio após assumir o cabelo cacheado. Sua transição capilar, deste

modo, visibiliza uma consciência racial a partir da desconstrução de padrões estético.

4.7.4 Alexandra Loras

A visibilidade de Alexandra Loras emana, principalmente, de suas participações

e entrevistas em programas de mídia massiva, como programas de TV. Ao discutir

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temas como a diversidade e negritude, que vêm ganhando espaço na mídia, a figura

de Alexandra surge como a de uma “especialista”. Ou aquela que, por ser uma mulher

negra e por ter se especializado academicamente em assuntos ligados à negritude,

possui tanto a propriedade da experiência como a do conhecimento científico para

discutir tais assuntos, o que lhe confere legitimidade no espaço midiático.

Sua construção narrativa no Facebook adquire um viés institucionalizado, com

linguagem formal e alinhado a uma lógica empreendedora. O conteúdo compartilhado,

diferentemente das outras figuras midiáticas analisadas até aqui se distância das

vivências pessoais e se aproxima mais de temas associados a questões sobre

negritude, tratados a partir de um caráter politizado.

De maneira geral, as visualidades presentes nas postagens de Alexandra

Loras, evidenciam aspectos sobre sua vida pessoal, por se tratar de experiências que

a atingem diretamente enquanto mulher negra, mas estão focadas em abordar o negro

enquanto grupo, aludindo ao aspecto coletivo. Assim, imagens que tratam da

representatividade do negro na mídia, pautas sobre o feminismo negro e o mercado

de trabalho para negros são recorrentes em suas autonarrativas. Aspectos referentes

à transição capilar especificamente não foram evidenciados no Facebook no período

da análise. Contudo, o cabelo black power de Alexandra está ostentado em sua foto

do perfil nesse site de rede social.

Podemos aqui, com relação aos aspectos relacionados à negritude, notar que

as autonarrativas de Alexandra Loras “ecoam” diversas questões que atravessam as

vivências de indivíduos negros. A empreendedora procura explorar suas vivências

individuais enquanto mulher negra, sempre atreladas ao contexto social que a

envolve, utilizando as redes sociais como forma de engajamento em prol de debates

acerca da diversidade e inserção do negro em espaços comumente excludentes.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa se propôs a desconstruir elementos essencialistas derivados de

discursos e práticas hegemônicos que legitimam a construção social estigmatizada

que inferioriza os corpos negros, em especial, o que se refere aos cabelos crespos de

mulheres negras. Neste ensejo, as narrativas autobiográficas de transição capilar,

compartilhadas por mulheres negras com visibilidade midiática oportunizaram

discussões acerca de símbolos identitários da negritude, salientando as significações

que emergem desses signos corpóreos, como o cabelo e os sentidos a ele atrelados.

Segundo Gomes (2012, p. 7), “o cabelo não é um elemento neutro no conjunto

corporal. Ele é maleável, visível, passível de alterações e transformado pela cultura

em uma marca de pertencimento étnico racial”. Desta forma, pudemos compreender

as trajetórias capilares como importantes ferramentas para analisar as experiências

socializantes das mulheres negras e suas relações com os espaços midiáticos.

Considerando a concepção de Pierry Lévy (1999) quanto à potencialidade

democratizante decorrente da universalização dos meios de comunicação, temos que

o âmbito midiático se faz central às comunicabilidades humanas, ao englobar os

corpos e suas expressões e o consumo enquanto promotor de vínculos sociais, que

emprega sentidos aos bens e aos indivíduos, por meio de práticas discursivas e

simbólicas articuladas ao nosso cotidiano.

Assim, nossa pesquisa considera a mídia um espaço privilegiado para se

pensar os fluxos identitários e culturais que emergem das narrativas midiáticas de

transição capilar, e que, por sua vez, dialogam com realidades sociais e contextos

culturais atrelados às disputas simbólicas e aos imaginários sociais.

Por estas razões, estudar as narrativas de mulheres negras articuladas a suas

práticas nos espaços midiáticos contribui para as pesquisas no campo das ciências

sociais e, em particular, ao campo da comunicação, uma vez que nos propomos a

refletir e produzir conhecimentos relacionando à diversidade, identidades, relações

raciais e culturas midiáticas, demonstrando o quanto a corporeidade e suas

expressões são potenciais instrumentos para compreender os significados e sentidos

sociais atrelados ao racismo e às resistências que permeiam a negritude no contexto

brasileiro. Nesse sentido, pudemos ainda evidenciar o quanto o cabelo crespo,

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vinculado à negritude, é capaz de identificar aspectos culturais e sociais ligados a

traços étnicos, que refratam e refletem sentidos individuais e coletivos.

Pudemos observar, a partir das reflexões acerca de nosso objeto de estudo,

que a presença de mulheres negras continua a ser uma exceção nos espaços

midiáticos, mesmo considerando distintos contextos da mídia. O processo de

celebrização de Taís Araújo, Ludmilla e Alexandra Loras se concentra nas mídias ditas

massivas, todas as três adquiriram notoriedade a partir de produções televisivas. Já

Rayza Nicácio se popularizou e consolidou seu processo de celebrização na internet,

mas especificamente a partir de seu canal no YouTube.

Nos chama a atenção, por exemplo, que Taís é a única atriz negra a

protagonizar mais de uma novela, além de ser a primeira e única com papel central

em uma novela das 20h, principal horário da emissora Rede Globo. A expressão

“única” é ainda recorrente nas narrativas de Rayza Nicácio e Ludmilla. Não há

nenhuma outra youtuber negra no Brasil a possuir 1,5 milhões de seguidores no

YouTube. No cenário musical, Ludmilla é a única artista negra com mais de 10 milhões

de seguidores no site de rede social Instagram, além de ser a única a figurar, por

exemplo, no ranking de músicas mais tocadas em rádios brasileiras nos últimos anos.

Esses indicativos observados revelam que os espaços midiáticos ainda são pouco

ocupados por mulheres negras, evidenciando que a mídia persiste como território de

invisibilidades a certas minorias.

A partir de nossas análises, observamos também alguns aspectos acerca das

corporalidades que emergem de Taís Araújo, Alexandra Loras e Rayza Nicácio. Nota-

se que todas elas apresentam um tipo de corpo magro, celebrado em discursos

midiáticos como correspondente a beleza, o que nos permite inferir que, ao falarmos

em visibilidades de mulheres negras, podemos observar que ainda predominam nos

âmbitos midiáticos certos padrões corporais tidos como hegemônicos, como o corpo

magro.

Com relação à cor da pele e traços do rosto, à exceção de Ludmilla, todas as

demais são consideradas negras de pele clara e apresentam traços afilados. Inclusive,

evidenciamos que Rayza costuma se valer de filtros de imagem para parecer ainda

mais clara. Isso enfatiza certos ideais de branqueamento estético, privilegiando

elementos fenotípicos como a pele clara e os traços finos, que continuam a se

perpetuar em contextos da mídia. Aspectos percebidos na narrativa de Ludmilla

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corroboram também com esta afirmação. Em seus relatos, a cantora demonstra como

o formato negróide80 do nariz tinha um peso negativo em sua autoestima e o quanto

a cirurgia plástica para o seu afinamento significou pra ela uma forma de evolução em

sua estética, que a permitiu se sentir mais bonita.

As texturas capilares possuem também aspectos a serem pontuados nas suas

visibilidades. Em suas páginas do Facebook, Rayza e Taís exibem com maior

frequência os cabelos soltos e com volume, ambas possuem cachos largos, definidos

e longos. Ludmilla e Alexandra possuem texturas mais crespas, próximas ao chamado

black power, e pouco aparecem com o cabelo natural. Mesmo com uma maior

presença de texturas cacheadas e crespas nos espaços midiáticos, ainda se observa

um certo preterimento em relação às texturas muito crespas, que se aproximam do

aspecto black power. Tais elementos observados reforçam essas invisibilidades.

Com relação aos conteúdos compartilhados por elas, evidenciamos que

apenas Alexandra Loras se utiliza do perfil pessoal nas redes sociais como forma de

engajamento político acerca das questões raciais. As demais, costumam usar o

espaço na internet apenas como forma de dividir com sua audiência questões

pessoais sobre o cotidiano como atriz, cantora ou youtuber.

Por fim, mesmo não evidenciando, na maior parte das atuações midiáticas, um

engajamento na abordagem de questões sociais referentes a mulheres negras,

percebe-se que o compartilhamento das experiências de transição capilar trazem

visibilidade para temas como a estética negra e suas representações nos espaços

midiáticos, além de refletir também em como o cabelo se constitui enquanto marcador

importante nos sentidos de socialização de mulheres negras. Relatos presentes em

suas narrativas, como, por exemplo, o racismo sofrido na infância por terem um cabelo

distante do que era tido como belo, os processos de alisamento como um esforço em

se tornarem aceitas e a transição capilar entendida como uma forma de resgate de

suas identidades étnicas, são utilizados como estratégia para problematizar

elementos vinculados a modelos hegemônicos de aparência, reforçando a estética

como possibilidade de negociação de sentidos e o papel da mídia como lugar em que

emergem essas disputas, constituindo-se como arena do visível.

80 Possui uma forma mais achatada e larga, com as narinas grandes e arredondadas, com pouca projeção.

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