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Ricardo Castanho, crítico e editor de gastronomia do Guia Quatro Rodas, conta como fez 1900 refeições sem ser notado 50 ESQUINAS 2º SEMESTRE 2008 à manger Às 13h30, Ricardo Castanho chega, sem despertar atenção, para avaliar mais um restaurante. Como um agente secreto, que não pode ser identificado durante a operação, ele escolhe uma mesa tranqüila, pede o cardápio e analisa a especialidade do local. Antes de dar as primeiras garfadas, o crítico analisa a apresentação do prato. Depois, checa se a temperatura da comida está adequada. Os ingredientes devem estar quentes e colocados sobre recipiente aquecido. Por fim, experimenta. Castanho pega os talheres e cutuca, corta, olha, reolha e põe na boca. Mastiga, mastiga, pensa, mastiga, reflete. Come os ingredientes separados, depois todos juntos, para avaliar a harmonia do conjunto. Com essa investigação minuciosa, ele consegue perceber quais são os erros e os acertos. Ricardo Castanho trabalha há dez anos no Guia Quatro Rodas e há quatro é editor de gastronomia. Apesar de já ter feito cerca de 1900 refeições profissionalmente, diz que não cansou da atividade: “Não canso nem de avaliar nem de fazer isso socialmente”. Com exceção dos olhos azuis, o crítico não revela seu rosto aos leitores. O anonimato garante que ele seja atendido como qualquer outra pessoa. “É importante comer a mesma comida que qualquer cliente comum comeria, para saber a qualidade”, ressalta. Castanho falou à ESQUINAS sobre quais os critérios de avaliação de um crítico de restaurantes. 007 REPORTAGEM KARINA SÉRGIO GOMES (3° ano de Jornalismo) ENTREVISTA Bia Parreiras

Esquinas #64 – 007 à manger

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Ricardo Castanho, crítico e editor de gastronomia do Guia Quatro Rodas, conta como fez 1900 refeições sem ser notado

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Page 1: Esquinas #64 – 007 à manger

Ricardo Castanho, crítico e editor de gastronomia do Guia Quatro Rodas, conta como fez 1900 refeições sem ser notado

50 ESQUINAS 2º SEMESTRE 2008

à manger

Às 13h30, Ricardo Castanho chega, sem despertar atenção, para avaliar mais um restaurante. Como um agente secreto, que não pode ser identificado durante a operação, ele escolhe uma mesa tranqüila, pede o cardápio e analisa a especialidade do local. Antes de dar as primeiras garfadas, o crítico analisa a apresentação do prato. Depois, checa se a temperatura da comida está adequada. Os ingredientes devem estar quentes e colocados sobre recipiente aquecido. Por fim, experimenta. Castanho pega os talheres e cutuca, corta, olha, reolha e põe na boca. Mastiga, mastiga, pensa, mastiga, reflete. Come os ingredientes separados, depois todos juntos, para avaliar a harmonia do conjunto. Com essa investigação minuciosa, ele consegue perceber quais são os erros e os acertos.

Ricardo Castanho trabalha há dez anos no Guia Quatro Rodas e há quatro é editor de gastronomia. Apesar de já ter feito cerca de 1900 refeições profissionalmente, diz que não cansou da atividade: “Não canso nem de avaliar nem de fazer isso socialmente”. Com exceção dos olhos azuis, o crítico não revela seu rosto aos leitores. O anonimato garante que ele seja atendido como qualquer outra pessoa. “É importante comer a mesma comida que qualquer cliente comum comeria, para saber a qualidade”, ressalta. Castanho falou à ESQUINAS sobre quais os critérios de avaliação de um crítico de restaurantes.

007REPORTAGEM KARINA SÉRGIO GOMES (3° ano de Jornalismo)

ENTREVISTA

Bia Parreiras

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ESQUINAS O que é ser um crítico de restaurantes?RIcARdO cASTANhO É ir comer antes e indicar para as pessoas o que comer depois. Um crítico honesto faz isso sempre de maneira anônima. Chega sem avisar no restaurante, faz a refeição como qualquer cliente comum para conseguir captar uma idéia da qualidade da comida. Mas você só consegue ter essa idéia visitando e revisitando o lugar. Você tem momentos diferentes no mesmo restaurante, às vezes, muito bons, às vezes ruins e para chegar a uma média do lugar só indo várias e várias vezes.ESQUINAS Qual foi sua preparação para se tornar crítico de gastronomia?cASTANhO Eu já era há quatro anos repórter do Guia Quatro Rodas quando assumi a editoria. E sempre gostei muito mais de avaliar restaurantes do que hotéis e atrações. Talvez muito mais do que eu tenha aprendido em livros, leituras especializadas, a melhor escola foi esse trabalho no Guia. Primeiro, por ter referências de uma mesma coisa exaustivamente, o que é muito bacana para você estipular o que é o padrão de excelência de cada produto. Segundo, ter a chance de comer receitas no local de origem, de onde vinham os ingredientes, de onde as pessoas tinham o domínio de fazer a receita há gerações. E o maior aprendizado veio do contato diário com chefs e donos de restaurantes, pois com as visitas à cozinha, que como repórter eu tinha que fazer, acabei aprendendo muito com a experiência prática desses profissionais. ESQUINAS Antes de ser crítico, tinha muita coisa que você não gostava de comer?cASTANhO Quando entrei no Guia tinha. Não gostava de nada com jiló, que eu passei a gostar comendo boas receitas com o ingrediente no Nordeste. Quiabo eu também não curtia muito, mas comi boas receitas em Minas Gerais, por exemplo. Aprendi que não existe comida ruim, existe comida mal feita. ESQUINAS Ainda há algo que você não goste?cASTANhO Tem coisas que eu não comeria com muita freqüência. Mas que eu diga que não gosto, nenhuma.ESQUINAS E o que você não comeria com frequência?cASTANhO Buchada de bode, por exemplo. Porque é um prato pesado e não é muito bem-feito geralmente. E acho que continuaria não comendo muito jiló e quiabo. Mas eu já comi muito essas coisas e minhas preferências não influenciam a minha avaliação. Pelo contrário, se este ingrediente estiver presente e for bem utilizado, acho que até melhora minha opinião em relação ao cozinheiro.ESQUINAS Onde você aprendeu a comer esses alimentos que não faziam parte do seu dia-a-dia?cASTANhO O jiló eu não consigo me lembrar. Quiabo, eu comi um ótimo num restaurante chamado Xapuri, em Belo Horizonte. Buchada de bode era uma coisa que eu não esperava comer na vida. Mas comi uma, na Buchada do Gato, na periferia de Garanhuns, que eu fiquei emocionado. Porque uma das coisas mais felizes da vida de um crítico é comer uma receita difícil, de alguém que você não espera que vá sair algo muito bom, e se surpreender com isso. É uma emoção acima de comer até num restaurante três estrelas [classificação máxima para um restaurante].ESQUINAS O que é essa emoção? O que você sente?cASTANhO É quando você se surpreende comendo uma receita. O que não está ligado a comer algo diferente, muito complexo. Às vezes, pode ser uma coisa prosaica, super simples, mas que tem um elemento que foge do comum, que provoca uma sensação que você não está acostumado a sentir. Uma das últimas vezes que eu me emocionei foi no Kinoshita [restaurante japonês,

“Aprendi que não existe comida ruim, existe comida mal feita”

em São Paulo]. Comi um camarão inteiro, grelhado, só temperado com sal. O chef colocou o camarão na minha frente e disse que tinha sido pescado naquela manhã. É comum dizerem isso, mas, na boca, eu ia saber se era verdade. Quando eu o coloquei na boca, estava com um frescor, assim, estúpido. É um tanto prosaico, mas para quem está acostumado a encontrar camarão congelado, com gosto de geladeira, comer só o camarão, com o sabor real, sabor de camarão, sem nenhum tempero, ou molho para enganar o cliente. Isso é uma coisa emocionante.ESQUINAS Qual foi a melhor refeição que você já fez?cASTANhO É difícil dizer a melhor refeição que eu fiz. Fiz várias ótimas. Eu brinco que há refeições que me levaram às lagrimas. Sabe quando você come quase chorando? Comi muito bem nos restaurantes três estrelas, indicados no Guia Quatro Rodas. É difícil dizer qual é a mais tocante. Mas não está ligado a comer em lugares caros ou chiques. A buchada de bode, da Buchada de Gato mesmo, foi uma das refeições mais emocionantes que já fiz, e é um lugar simples e que paguei super barato pela refeição, acho que uns R$ 5 pela buchada e uma garrafa de água.ESQUINAS Qual foi a que mais lhe decepcionou?cASTANhO Várias me decepcionam. Mas o que mais me decepciona, hoje, é comer em restaurantes em

que a comida é muito ruim e você paga muito caro. Acho que a grande decepção, não só para mim, como crítico, mas para todas as pessoas é pagar muito caro por uma comida medíocre. Eu acho que isso acontece muito, especialmente aqui, em São Paulo, o principal pólo gastronômico do Brasil. Eu já comi muito mal em várias regiões do Brasil, mas aqui também. ESQUINAS Você que está acostumado com a alta gastronomia, também vai a restaurantes fast-food?cASTANhO De vez em quando [risos]. Até por força da necessidade. A gente vive no mundo em que cada vez as pessoas têm menos tempo para se alimentar. O pior é que as pessoas comem, cada vez mais, de forma automática, apenas para saciar a necessidade primária de se alimentar, ter energia para viver. E acabam fazendo isso sem muita reflexão sobre o que estão comendo. Acho que esse é o grande inimigo do restaurante e das pessoas, que ficam menos rigorosas com o que comem, dando espaço para quem cozinha mal e que tem produto ruim.ESQUINAS Você consegue desligar o seu lado de crítico quando não está avaliando?cASTANhO É uma coisa que acaba tomando conta de você. Você põe o garfo na boca e as referências vêm, por mais que seja a comida da minha mãe. O que não significa que eu não vou gostar da comida dela. Afinal, é a comida da minha mãe, com a cara dela, com o sabor dos temperos que ela costuma usar. Eu não deixo de gostar, mas eu consigo separar. Apesar de, às vezes, pensar: “Poxa, mas o camarão podia ser de melhor qualidade, né, mãe?” [risos].ESQUINAS Afinal, depois de tantas refeições, o que é comer para você?cASTANhO Muito prazer. Mesmo a trabalho. Não canso nem de avaliar nem de comer socialmente.

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