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10> NOVEMBRO DE 2006 á cinco anos, as manhãs de domingo do centro histórico de São Paulo estão mais animadas. O roteiro turístico Túnel do Tempo devolveu ao Teatro Municipal, ao Solar da Marquesa e ao Páteo do Collégio seus principais personagens. Artistas e guias interpretam Carlos Gomes, Marquesa de Santos e Padre Anchieta na apresentação destes importantes lugares. O roteiro é uma criação do professor Mário de Moura Lacerda, diretor da escola de turismo ABL e Associados, em São Paulo. A idéia foi comprada, em 2004, pela empresa Circuito São Paulo, que organiza roteiros de turismo na cidade. As apresentações são direcionadas para grupos de turistas organizados por agências, mas as pessoas que passam pelas ruas do centro também podem assistir às performances dos personagens. A amante do impe VESTIDO VERMELHO DE MUITAS camadas de saias destaca a figura da mulher parada em frente ao Solar da rua Roberto Simonsen, no centro de São Paulo. Os cabelos desgrenhados, presos numa larga coroa de pérolas e o xale de lã preta posto nas costas lhe dão ares de desleixo. Não fosse pelas pulseiras de pérolas, pelos anéis, brincos e colar de brilhantes, ela não pareceria a nobre Domitila de Castro do Canto e Mello, ou Marquesa de Santos, como a história a consagrou. A amante do imperador Pedro I e dama da socie- dade paulistana do século XIX volta à casa que adquiriu em 1834 para contar suas histórias a tu- ristas da cidade. É a jovem atriz Ana Moraes, de 23 anos, quem dá vida à histórica personagem. Nascida e criada na cidade de Santo André, região da Grande São Paulo, Ana atua como a Marquesa de Santos em São Paulo há dois anos, desde que foi indicada para o papel pela amiga Anália, primeira intérprete da personagem no roteiro turístico. Até então, Ana conhecia muito pouco da capital paulista. “Um dia me pediram para ir ao Páteo do Collégio, e eu perguntei: ‘de qual colégio?’” diverte-se. Hoje, a atriz ainda se encanta em conhecer melhor a cidade. “Tem uma construção rústica ao lado de um prédio contem- porâneo. Dá vontade de saber por que as coisas estão onde estão”, diz. Para representar a perso- nagem, ela pesquisou a vida da Marquesa e a ci- dade de sua época, e os efeitos deste trabalho in- fluenciaram a atriz. “A Marquesa era sensual, mas andava a cavalo e era muito independente. Ela me fez ser mais feminista”, conta. Origens — Filha da costureira Eulália e do cami- nhoneiro Antonio, Ana é uma mulher de gestos tranqüilos e personalidade volúvel. Aos 12 anos, começou a participar de grupos amadores de tea- tro em Santo André. Aos 14, a educação católica que recebeu dos pais a fez pensar em se tornar frei- ra. Sempre ligada à religião, chegou a participar de um grupo católico carismático, do qual se afastou por achá-lo incoerente. “Eles pregavam uma ex- pansão que, na prática, era censurada”, diz. Ainda na juventude, flertou com os movi- mentos punk e gótico. Vestia-se apenas com roupas pretas, mas não andava acompanhada de membros destes grupos nem freqüentava lu- gares tipicamente punks ou góticos. Na mesma época, Ana começou a cursar magistério, como queria sua mãe, e começou a se sentir discrimi- nada. “Não era bem vista por causa das minhas roupas. Pensavam que não era bom para uma professora se vestir como punk”, lembra. As hesitações da juventude se estenderam à vida adulta. Ana já freqüentou templos evangéli- cos, budistas e hoje se interessa pelo espiritismo. Às transformações espirituais, somam-se as físi- cas: “Meu cabelo agora está curtinho, como o da Elis Regina, mas um dia ainda vou ser careca”, avisa. “Ela parece louca mesmo, mas chega a ser ca- reta porque é muito responsável e caseira”. É o que conta a amiga Anália, a mesma que a indi- cou para o papel da Marquesa de Santos. Duran- te a semana, Ana, que concluiu o magistério, é a “tia” de 28 crianças de 4 anos de idade, seus alu- nos na escola pública Célia Maria Teores de Sou- za, num bairro pobre de Santo André. O trabalho a deixa realizada. “Gosto de criança, mas isso não basta. Sou professora porque gosto de educação”, explica. A professora também já lecionou em es- colas particulares, mas não se adaptou: “Queria mostrar para as crianças que elas eram impor- tantes e capazes, mas na rede particular de ensi- no os eventos pareciam só servir para mostrar aos pais o que a escola era capaz de fazer”. A atriz acredita que o roteiro Túnel do Tempo concilia o talento para teatro ao gosto pela educa- ção. “Ela tem facilidade em receber as pessoas e é atenta para ouvir. Se você estiver ao lado dela as- sistindo a uma peça de teatro, ela vai colocar a mão na sua perna e perguntar o que você achou”, conta a amiga Anália. Ainda assim, um dia Ana preten- de parar de lecionar. “Quando surgir uma boa opor- tunidade de me dedicar só à dramaturgia”, explica a atriz, que se formou em artes cênicas em 2005, pela Fundação das Artes de São Bernardo. Sempre risonha e de fala mansa, Ana diz que não sonha com casamento nem com filhos, mas tem medo de “ficar sozinha quando for velhinha”. Sem fugir à sua personalidade, entretanto, ela planeja um nome para uma possível filha: Magnólia. No casarão do centro da cidade, a mulher que se apaixonou por D. Pedro I relembra histórias do Primeiro Reinado e da São Paulo da época REPORTAGEM RAQUEL PORANGABA (1º ano de jornalismo) IMAGENS JULIANA COUTO MELO (1º ano de jornalismo) O

Esquinas – Um Jesuíta de Quatro Séculos

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No Páteo do Collégio, o Padre José de Anchieta reaparece como contador de histórias e apresenta o marco da cidade de São Paulo a turistas

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á cinco anos, as manhãs de domingo do centro histórico de São Paulo estão mais animadas.O roteiro turístico Túnel do Tempo devolveu ao Teatro Municipal, ao Solar da Marquesa e ao Páteodo Collégio seus principais personagens. Artistas e guias interpretam Carlos Gomes, Marquesa deSantos e Padre Anchieta na apresentação destes importantes lugares. O roteiro é uma criação do

professor Mário de Moura Lacerda, diretor da escola de turismo ABL e Associados, em São Paulo.A idéia foi comprada, em 2004, pela empresa Circuito São Paulo, que organiza roteiros de turismo na cidade.As apresentações são direcionadas para grupos de turistas organizados por agências, mas as pessoas quepassam pelas ruas do centro também podem assistir às performances dos personagens.

A amante do impe VESTIDO VERMELHO DE MUITAScamadas de saias destaca a figura damulher parada em frente ao Solar da ruaRoberto Simonsen, no centro de SãoPaulo. Os cabelos desgrenhados, presosnuma larga coroa de pérolas e o xale de

lã preta posto nas costas lhe dão ares de desleixo.Não fosse pelas pulseiras de pérolas, pelos anéis,brincos e colar de brilhantes, ela não pareceria anobre Domitila de Castro do Canto e Mello, ouMarquesa de Santos, como a história a consagrou.A amante do imperador Pedro I e dama da socie-dade paulistana do século XIX volta à casa queadquiriu em 1834 para contar suas histórias a tu-ristas da cidade. É a jovem atriz Ana Moraes, de 23anos, quem dá vida à histórica personagem.

Nascida e criada na cidade de Santo André,região da Grande São Paulo, Ana atua como aMarquesa de Santos em São Paulo há dois anos,desde que foi indicada para o papel pela amigaAnália, primeira intérprete da personagem noroteiro turístico. Até então, Ana conhecia muitopouco da capital paulista. “Um dia me pedirampara ir ao Páteo do Collégio, e eu perguntei: ‘dequal colégio?’” diverte-se. Hoje, a atriz ainda seencanta em conhecer melhor a cidade. “Tem umaconstrução rústica ao lado de um prédio contem-porâneo. Dá vontade de saber por que as coisas

estão onde estão”, diz. Para representar a perso-nagem, ela pesquisou a vida da Marquesa e a ci-dade de sua época, e os efeitos deste trabalho in-fluenciaram a atriz. “A Marquesa era sensual, masandava a cavalo e era muito independente. Elame fez ser mais feminista”, conta.

Origens — Filha da costureira Eulália e do cami-nhoneiro Antonio, Ana é uma mulher de gestostranqüilos e personalidade volúvel. Aos 12 anos,começou a participar de grupos amadores de tea-tro em Santo André. Aos 14, a educação católicaque recebeu dos pais a fez pensar em se tornar frei-ra. Sempre ligada à religião, chegou a participar deum grupo católico carismático, do qual se afastoupor achá-lo incoerente. “Eles pregavam uma ex-pansão que, na prática, era censurada”, diz.

Ainda na juventude, flertou com os movi-mentos punk e gótico. Vestia-se apenas comroupas pretas, mas não andava acompanhadade membros destes grupos nem freqüentava lu-gares tipicamente punks ou góticos. Na mesmaépoca, Ana começou a cursar magistério, comoqueria sua mãe, e começou a se sentir discrimi-nada. “Não era bem vista por causa das minhasroupas. Pensavam que não era bom para umaprofessora se vestir como punk”, lembra.

As hesitações da juventude se estenderam àvida adulta. Ana já freqüentou templos evangéli-cos, budistas e hoje se interessa pelo espiritismo.

Às transformações espirituais, somam-se as físi-cas: “Meu cabelo agora está curtinho, como o daElis Regina, mas um dia ainda vou ser careca”, avisa.

“Ela parece louca mesmo, mas chega a ser ca-reta porque é muito responsável e caseira”. É oque conta a amiga Anália, a mesma que a indi-cou para o papel da Marquesa de Santos. Duran-te a semana, Ana, que concluiu o magistério, é a“tia” de 28 crianças de 4 anos de idade, seus alu-nos na escola pública Célia Maria Teores de Sou-za, num bairro pobre de Santo André. O trabalhoa deixa realizada. “Gosto de criança, mas isso nãobasta. Sou professora porque gosto de educação”,explica. A professora também já lecionou em es-colas particulares, mas não se adaptou: “Queriamostrar para as crianças que elas eram impor-tantes e capazes, mas na rede particular de ensi-no os eventos pareciam só servir para mostrar aospais o que a escola era capaz de fazer”.

A atriz acredita que o roteiro Túnel do Tempoconcilia o talento para teatro ao gosto pela educa-ção. “Ela tem facilidade em receber as pessoas e éatenta para ouvir. Se você estiver ao lado dela as-sistindo a uma peça de teatro, ela vai colocar a mãona sua perna e perguntar o que você achou”, contaa amiga Anália. Ainda assim, um dia Ana preten-de parar de lecionar. “Quando surgir uma boa opor-tunidade de me dedicar só à dramaturgia”, explicaa atriz, que se formou em artes cênicas em 2005,pela Fundação das Artes de São Bernardo.

Sempre risonha e de fala mansa, Ana diz quenão sonha com casamento nem com filhos, mas temmedo de “ficar sozinha quando for velhinha”. Semfugir à sua personalidade, entretanto, ela planejaum nome para uma possível filha: Magnólia.

No casarão do centro da cidade, a mulher que seapaixonou por D. Pedro I relembra histórias doPrimeiro Reinado e da São Paulo da época

REPORTAGEM RAQUEL PORANGABA (1º ano de jornalismo)IMAGENS JULIANA COUTO MELO (1º ano de jornalismo)

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A atriz Ana Morais, 23 anos,dá vida à Marquesa de Santos nocentro histórico de São Paulo

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Marquesa de Santos

Domitila de Castro do Canto e Mello nasceuem 1797, em São Paulo. Casou-se, aos 16anos, com um oficial da cidade de Vila Rica.

Dois anos depois, voltou para a casa dospais após ser agredida pelo marido.Entre 1822 e 1829, foi amante doimperador D. Pedro I, com quem tevecinco filhos e de quem recebeu o títulode Marquesa de Santos.

Em 1834, adquiriu o casarão em São Paulo.Elegante, rica e com prestígio político esocial, dedicou-se na velhice a obrasbeneficentes. Sua casa tornou-se centroda alta sociedade paulista da época.

Faleceu em 1867 e foi sepultada noCemitério da Consolação, cujas terrasforam doadas por ela.

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Maestro aos dom

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Desde a infância, Gabriel já se fantasiavacom as roupas do pai e brincava de encenar, nacasa em que mora até hoje com a família, emSão Caetano do Sul, na Grande São Paulo. Ape-sar disso, na adolescência não teve contato comas artes. Fez um curso técnico de Administra-ção de Empresas e, assim que concluiu o Ensi-no Médio, começou outro de contabilidade,apoiado pelos pais. Marisa e Sérgio Maravilli,que são policiais civis, não acreditavam que ofilho pudesse ter um bom futuro como ator.“Para eles, atuar não era trabalho de verdade”,lembra Gabriel. Mas o interesse pelas artes cê-nicas o fez desistir da profissão contábil e se-guir carreira de ator.

Nesta época, aos 19 anos, Gabriel decidiuse inscrever em um curso profissionalizante deteatro, na Fundação das Artes de São Caetanodo Sul, mesmo sem incentivo dos pais. “Quan-do contei para a minha mãe, ela deu umchilique e disse que mesmo se eu passasse noteste, não me deixaria fazer”, conta. Passou e,com o próprio dinheiro, pagou o primeiro se-mestre do curso. Logo depois, conseguiu umabolsa integral e fez os três anos restantes.

Ainda hoje, Sérgio não aceita muito bem aescolha do filho. “Minha mãe vai assistir às mi-nhas apresentações sempre que pode, mas meu

pai não”, diz Gabriel, que espera um dia ter seutrabalho reconhecido em casa. “O problema éque a profissão de ator só é valorizada quandovocê está na televisão, ganhando dinheiro. Masgraças a Deus posso continuar trabalhandocom o teatro”, declara.

Além do trabalho no centro de São Paulo, aosfinais de semana Gabriel também participa doprojeto Cia Colcha de Retalhos, da Prefeitura. Eleé um dos organizadores do programa que realizaoficinas teatrais para crianças carentes do bairroCidade Tiradentes, na zona leste da capital. Estadedicação ao teatro já lhe rendeu um prêmio. Em2005, a peça Os peregrinos, que apresentou como grupo da Fundação das Artes, venceu o Festi-val de Teatro da cidade de Americana, no interi-or de São Paulo, como melhor trabalho coletivo,e colocou Gabriel entre os indicados ao prêmiode melhor ator coadjuvante.

Comunhão com o público — Gabriel conta quegosta mesmo é de atuar na rua ou em espaçosalternativos, porque possibilita a interação comas pessoas. O teatro, para ele, deve ser “um esta-do de comunhão com o público”. Ele acredita que“cada peça é uma oportunidade de brincar e deconhecer mais a si mesmo e aos outros”.

Quando interpreta Carlos Gomes, o ator temque passar às pessoas informações históricas, masacaba adequando suas falas de acordo com o gru-po que recebe. “Às vezes, durante a apresentação,eles me fazem perguntas como ‘De onde você é?’ou ‘Quando você nasceu?’”, explica. Mas o que podecomplicar sua apresentação são algumas situaçõesinusitadas que às vezes acontecem no centro dacidade. Rindo, Gabriel conta um desses episódios:“Há duas semanas, passou um louco em cima deum muro, que pulava de lá para cá, pregando JesusCristo com a Bíblia na mão e gritando. Eu tive quecontinuar a peça e me esforçar para não deixar quea atenção ficasse voltada para ele”.

O ator, que já foi um Carlos Gomes “meioloucão e cheio de tiques”, agora, mais discreto,aguardava o momento de sua apresentação emmais um domingo. Sua gravata borboleta jáestava ajeitada, quando recebeu o único espec-tador desse dia: um turista alemão que não fa-lava português. Gabriel assumiu o papel domaestro e tentou fazer com que ele entendes-se um pouco da nossa história.

Contrariando a família,o jovem ator Gabrielabandonou o curso decontabilidade e hojedá vida a um importantepersonagem daHistória brasileira

E FRAQUE E GRAVATA BORBOLETA,o ator Gabriel Weng Maravilli, 23 anos,interpreta o maestro e compositorpaulista Carlos Gomes, no CircuitoTúnel do Tempo. Seu palco é a PraçaRamos de Azevedo, no centro de São

Paulo. O cenário tem como pano de fundo o Te-atro Municipal e 12 esculturas que representamimportantes obras do músico, como a ópera OGuarani. A primeira apresentação como CarlosGomes aconteceu há dois anos, quando foi cha-mado às pressas para substituir o ator titular que

não poderia se apresentar naquele dia. Mesmocom pouco tempo de preparo — teve apenas umdia para estudar o texto — sua atuação chamoua atenção do gerente de projetos da empresaCircuito São Paulo, que, dois meses depois, oconvidou para ocupar o lugar do primeiro ator.

REPORTAGEM NADJA BIUM (3º ano de jornalismo)e CAROLINA MONTERISE (3º ano de jornalismo)IMAGENS LIA COLDIBELLI (4º ano de jornalismo)

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Quando contei para minha mãe, ela deu um chiliquee disse que mesmo se eu passasse no teste [para o

curso profissionalizante de ator na Fundação das Artes de

São Caetano do Sul], não me deixaria fazer.

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O ator Gabriel Weng Maravilli, 23 anos, interpretao maestro e compositor Carlos Gomes em frenteao Theatro Municipal de São Paulo

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Carlos Gomes

Antônio Carlos Gomes nasceu em 11 de julhode 1836, na cidade de Campinas, em SãoPaulo. Na adolescência, se apresentavacom os irmãos em concertos e bailes nabanda do pai, o músico Manoel JoséGomes. Aos 15 anos, já compunha valsas,quadrilhas e polcas e, aos 26, encenou suacomposição Joana de Flandres, no Rio deJaneiro, chamando a atenção doimperador D. Pedro I, que oferece a CarlosGomes uma bolsa para estudar na Europa.

A consagração veio, então, com sua obra-prima O Guarani, que apresentou em 1870,no Teatro Scala, em Milão. Em 1871 casa-se, na Itália, com uma ex-colega deconservatório com quem teve cinco filhos.Em 1896, de volta ao Brasil, morre porconta de um tumor maligno na garganta.

Seus restos mortais estão enterradosem um túmulo-monumento na PraçaBento Quirino, em Campinas. O maestroe compositor é considerado o maisimportante operista brasileiro comcarreira de destaque principalmente naEuropa. Entre suas principais obras,estão Condor e Colombo.

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O jesuíta de quatro s

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OS DOMINGOS PELA MANHÃ, OPadre José de Anchieta caminha peloPáteo do Collégio, numa colina en-tre o Rio Tamanduateí e o RiachoAnhangabaú. Apoiado num cajadode madeira rústica, vestindo uma

longa batina marrom e calçando sandálias decouro, o padre anda a passos calmos e abençoaalgumas pessoas que lhe pedem a graça. A mes-ma cena poderia ser descrita no ano de 1553,quando o ainda Irmão Anchieta desembarcouna Vila de São Vicente. Mas o padre e o lugar aoredor de onde cresceu a cidade de São Paulo jánão são os mesmos. Quem caminha entre os edi-fícios do centro da maior cidade do Brasil éIvaldo Roberto Vieira, 56 anos. Ele interpreta osacerdote no roteiro turístico Túnel do Tempono centro histórico da capital paulista, e contahistórias do lugar aos visitantes.

Ivaldo foi convidado a participar do roteiropor Mário de Moura Lacerda, diretor da escolade turismo ABL e Associados, que forma guiasturísticos na capital, e criador do roteiro Túneldo Tempo. Em 2003, Ivaldo concluiu um cursode guia regional de São Paulo nessa escola, ondeacabou chamando a atenção do professorLacerda ao criar uma peça de teatro para o en-cerramento das aulas.

Mas a tarefa não era fácil como Ivaldo pen-sava. A estréia da personagem só aconteceriaem janeiro de 2004. O diretor havia pedido aele que cumprimentasse os turistas nas qua-tro línguas que o padre José de Anchieta falava(português, espanhol, tupi e latim), pesquisar

sobre o fundador da cidade e redigir o texto daapresentação. Para compor seu papel, foramseis meses de pesquisa, oito livros lidos sobre opadre e conversas com o professor EduardoNavarro, da Universidade de São Paulo, que le-ciona tupi antigo e é especialista em sua per-sonagem. Navarro, que já foi seminarista, mos-trou ao recente aluno livros e escrituras da épo-ca de Anchieta e o ensinou a dizer “seja bemvindo, estou muito feliz com a sua presença”em tupi e em latim.

Sem batina — Era a primeira oportunidadede trabalho em São Paulo para o homem queveio de São Roque. Nascido e criado na cida-de do interior do Estado, entre nove irmãos,Ivaldo é filho da dona de casa Isís Pedron e domágico Ivo Vieira, que também foi maquinis-ta da antiga Ferrovia Sorocabana, que ligavaas cidades de São Paulo e Sorocaba. A vindapara São Paulo aconteceu depois que Ivaldose divorciou de Sônia. Conheceu a esposa, comquem ficou casado por 22 anos, nos bailes dacidade. Ivaldo e outros cinco amigos, inspira-dos na banda inglesa Beatles, formavam umconjunto musical que se apresentava nessesbailes. O gosto pela música e pela dança per-manecem até hoje. O guia turístico já traba-lhou como freedance — bailarino contratadopara acompanhar mulheres solteiras em bai-les — em São Paulo, e hoje não perde um bailena capital. Solteiro, ele gosta de conhecer mu-lheres pela internet. “Quero aproveitar a‘solteirisse’, mas não quero ter envolvimentosério pelos próximos 22 anos”, avisa.

Do casamento com Sônia, nasceram três fi-lhos: Vinícius (por causa do poeta Vinícius deMoraes), de 27 anos; Karen (em homenagem àcantora Karen Carpenter), de 24; e Cléber, de 22anos (nome dado após consulta numerológica).Os três freqüentaram escola de circo e teatro du-rante a juventude, mas é Karen que hoje preten-de trabalhar com o pai, interpretando algumpersonagem criado por ele para novos roteirosna cidade. Além de guia turístico, Ivaldo traba-lha como gerente de projetos na empresa de tu-rismo Circuito São Paulo, que comprou o rotei-ro do professor Lacerda em outubro de 2004.

Entre os novos personagens que Ivaldocriou, estão um soldado da RevoluçãoConstitucionalista, apresentado no obeliscodo Parque do Ibirapuera, e a arquiteta italia-na Lina Bo Bardi, que será apresentada novão livre do Museu de Arte de São Paulo. Obairro do Ipiranga também está nos seus pla-nos: “É um lugar totalmente histórico, quemerece um roteiro”.

Antes de trabalhar com turismo, o intérpre-te de padre Anchieta era professor de geografiana escola estadual Professor Germano Negrini,em São Roque. Formado pela Pontifícia Univer-sidade Católica de Sorocaba, lecionou durante15 anos. Foi também nessa época que passou ase interessar pelo misticismo. Durante um pas-seio com alunos num parque de diversões emSão Paulo, Ivaldo consultou um tarô eletrônicopor brincadeira. “Eu tremi com o que ele disse,porque 90% era verdade”, conta. No dia seguin-te, decidiu consultar uma cartomante, que naleitura das cartas repetiu as palavras do brin-quedo do parque. “Fiquei tão intrigado que fuiestudar cartomancia”, diz Ivaldo, que freqüen-tou cursos sobre o assunto por seis meses.

Preparação — Em São Paulo, ele continua aocupar as carteiras escolares. Uma vez por se-mana, no Instituto Histórico e Geográfico deSão Paulo, ele freqüenta um curso de estudossobre o padre Anchieta. Ivaldo acorda, todosos dias, às 6h. Escolhe um livro para ler enquan-to toma café e às 10h chega à sede da CircuitoSão Paulo, que fica a dois quarteirões de suacasa, no Brooklin, região sul de São Paulo. Aosdomingos, às 8h45 já está no Páteo do Collégio,preparando-se para a apresentação deAnchieta. Ainda de calça jeans e camiseta, elecoordena, através de um rádio-comunicador ecom a ajuda da produtora Elaine, o início docircuito turístico, que acontece no bairro da Li-berdade, no centro de São Paulo.

Quando os turistas chegam à Praça da Sé,Ivaldo apressa-se para se vestir. Enquanto es-pera o grupo chegar, observa às escondidas aapresentação que acontece no Solar da Mar-quesa de Santos — e também faz parte do cir-cuito — atento para que nada saia errado.

No Páteo do Collégio, oPadre José de Anchietareaparece como contadorde histórias e apresenta omarco da cidade de SãoPaulo a turistas

REPORTAGEM KARINA SÉRGIO GOMES (1º ano de jornalismo)IMAGENS LEONARDO PARAÍSO (1º ano de jornalismo)

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Aos domingos, Ivaldo Roberto Vieira,56 anos, interpreta o Padre José deAnchieta no Páteo do Collégio

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Depois da apresentação, o guia faz questãode acompanhar o circuito até o final. Embarcanum ônibus turístico com o grupo de visitan-tes e seguem para o Teatro Municipal, onde umator representa o maestro e compositor CarlosGomes. Ivaldo observa a apresentação e repe-te em voz baixa cada fala, como um diretor deum teatro. De volta ao ônibus, ele encerra opasseio declamando um poema de sua autoriasobre a cidade de São Paulo. “Esse momento éo auge para ele”, conta Priscila Melich, 33 anos,que já trabalhou na produção do circuito. De-pois de se despedir dos turistas, volta cami-nhando ao Páteo do Collégio, com a sensaçãode mais um dia de trabalho bem cumprido.

Padre José de Anchieta

José de Anchieta nasceu em 1534, noarquipélago das Canárias, no continenteafricano. Estudou em Portugal e tornou-sejesuíta da Companhia de Jesus em 1551.Dois anos mais tarde, veio para o Brasil,recém descoberto, em missão religiosa.

Na Capitania de São Vicente, atual cidadede São Paulo, fundou um colégio para acatequese dos índios, onde a primeiramissa foi realizada na data da conversão doapóstolo Paulo, razão da origem do nomeda cidade. O local atraía muitos filhos decolonos, que construíram a vila ao redor docolégio. Anchieta foi poeta e redigiu aprimeira gramática da língua tupi. Morreuem junho de 1597, aos 63 anos.

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