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Estratégias metacognitivas e o trabalho com gêneros discursivos: questões de leitura e ensino Kelli da Rosa RIBEIRO 1 Resumo Levando em consideração a importância social da leitura e da escrita, este artigo pretende discutir caminhos para se pensar o ensino de leitura e de produção textual, tendo em vista concepções psicolinguísticas no que tange às estratégias cognitivas e metacognitivas em leitura, por um lado, e concepções interacionistas de linguagem de cunho bakhtiniano no que se referem ao conceito de gênero discursivo, por outro lado. Para tanto, elaboramos, a partir dos estudos de Bonini (2002), Coscarelli e Novais (2010), Kato (1990), Kleiman (2011), Marcuschi (2008) e Bakhtin (2003) uma proposta teórico-metodológica que evidencia essa interface e, em seguida, aplicamos essa proposta em uma atividade de leitura de um anúncio publicitário. Buscamos, assim, observar as contribuições das duas áreas em estudo e de que forma essa interface contribui para a formação de leitores críticos. Palavras-chave: Leitura; Produção textual; Gêneros discursivos; Estratégias de leitura. Abstract Considering the social importance of reading and writing, this article intends to discuss the paths for thinking about teaching reading and textual production, bearing in mind psycholinguistic conceptions regarding cognitive and metacognitive strategies in reading, on the one hand, and Bakhtinianinteractionist conceptions of language with respect to the concept of discourse genre, on the other. To this end, we have elaborated a theoretical-methodological proposal based on studies by Bonini (2002), Coscarelli and Novais (2010), Kato (1990), Kleiman (2011), Marcuschi (2008) and Bakhtin (2003) 1 Mestre e Doutoranda em Letras na área de concentração em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista de doutorado CNPq. Endereço: Av. Ipiranga, 6681, Porto Alegre - RS. CEP: 90619-900. E-mail: [email protected]

Estratégias metacognitivas e o trabalho com gêneros ... · a psicolinguística experimental, uma área que se interessa sobretudo pelos processos que envolvem a produção de textos

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Estratégias metacognitivas e o trabalho com gêneros discursivos: questões de

leitura e ensino

Kelli da Rosa RIBEIRO 1

Resumo

Levando em consideração a importância social da leitura e da escrita, este artigo

pretende discutir caminhos para se pensar o ensino de leitura e de produção textual,

tendo em vista concepções psicolinguísticas no que tange às estratégias cognitivas e

metacognitivas em leitura, por um lado, e concepções interacionistas de linguagem de

cunho bakhtiniano no que se referem ao conceito de gênero discursivo, por outro lado.

Para tanto, elaboramos, a partir dos estudos de Bonini (2002), Coscarelli e Novais

(2010), Kato (1990), Kleiman (2011), Marcuschi (2008) e Bakhtin (2003) uma proposta

teórico-metodológica que evidencia essa interface e, em seguida, aplicamos essa

proposta em uma atividade de leitura de um anúncio publicitário. Buscamos, assim,

observar as contribuições das duas áreas em estudo e de que forma essa interface

contribui para a formação de leitores críticos.

Palavras-chave: Leitura; Produção textual; Gêneros discursivos; Estratégias de leitura.

Abstract

Considering the social importance of reading and writing, this article intends to discuss

the paths for thinking about teaching reading and textual production, bearing in mind

psycholinguistic conceptions regarding cognitive and metacognitive strategies in

reading, on the one hand, and Bakhtinianinteractionist conceptions of language with

respect to the concept of discourse genre, on the other. To this end, we have elaborated

a theoretical-methodological proposal based on studies by Bonini (2002), Coscarelli

and Novais (2010), Kato (1990), Kleiman (2011), Marcuschi (2008) and Bakhtin (2003)

1 Mestre e Doutoranda em Letras na área de concentração em Linguística pela Pontifícia Universidade

Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista de doutorado CNPq. Endereço: Av. Ipiranga, 6681,

Porto Alegre - RS. CEP: 90619-900. E-mail: [email protected]

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which evidence this interface, and then we apply this proposal to a reading activity

using an advertisement. Thus, we intend to observe the contributions from both areas of

study and the way in which this interface contributes to the development of critical

readers.

Keywords: Reading; Textual production; Discourse genres; Reading strategies.

1. Introdução

A atividade de leitura e produção de textos na escola brasileira é permeada por

vários problemas tanto do ponto de vista teórico, quanto do ponto de vista

metodológico. Se de um lado há alunos com problemas de compreensão em leitura e

dificuldades em escrever um texto, por outro lado também existem professores que não

propõem atividades reflexivas, significativas, que explorem e desenvolvam essas

habilidades.

Entretanto, na esfera acadêmica universitária, há pesquisas em diversas áreas da

linguística que discutem, propõem, investigam questões que envolvem a linguagem e

seu ensino escolar. Dentre as diferentes áreas que se dedicam aos estudos da linguagem,

duas nos chamam a atenção pelo potencial de aplicabilidade didática: a Psicolinguística

e os estudos sobre gêneros discursivos com base nas concepções do filósofo russo M.

Bakhtin.

Assim, levando em consideração que no processo de leitura e produção de textos

estão imbricados aspectos linguísticos, discursivos, cognitivos, contextuais e de

organização de textos, procuramos, neste artigo, elaborar uma discussão em torno de

caminhos para se pensar o ensino de leitura e de produção textual baseando-se em

concepções psicolinguísticas no que tange às estratégias cognitivas e metacognitivas em

leitura, por um lado, e na concepção dialógica da linguagem de cunho bakhtiniano no

que se referem ao conceito de gênero discursivo, por outro lado.

Nessa direção, Bonini (2002, p. 37) aponta que os “temas psicolinguísticos como

estratégias cognitivas de leitura escritura, bem como de metacognição relacionada a

estes processos” são temas pertinentes para a intervenção didática do professor no

processo de ensino e aprendizagem de leitura e produção de textos. Acreditamos, além

disso, que os temas psicolinguísticos destacados pelo autor são pontos de contato e

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caminhos possíveis para a construção de uma interface com a abordagem dialógica da

linguagem proposta por Bakhtin.

Se para Bakhtin/Volochinov ([1929] 2010, p. 38) a linguagem é dinâmica, viva e

“acompanha e comenta todo o ato ideológico” na sociedade, um método de ensino de

leitura e produção de textos que se baseie nessa concepção deverá levar em conta a

situação contextual e interacional em que dado texto foi escrito, evidenciando-se, dessa

maneira, a complexidade que envolve a produção e a recepção de textos na esfera

social.

Pensando nessas questões, partimos de duas perguntas para elaboração da

interface: de que forma contribuem a psicolinguística e as concepções de M. Bakhtin

sobre gêneros do discurso para as atividades de leitura e produção textual? Quais os

elementos necessários para a elaboração de uma proposta que aponte para um caminho

de interface entre essas áreas? Tendo em vista tais indagações, dividimos nossas

reflexões em três seções seguidas das considerações finais. Na segunda seção, expomos

aspectos de cada uma das teorias postas em interface, na terceira seção, apresentamos a

metodologia e, na quarta, construímos um percurso que nos leva a um esboço de uma

proposta de ensino de leitura e produção textual, levando em conta pressupostos

interacionistas baseados na concepção dialógica da linguagem e pressupostos

psicolinguísticos.

2. Pressupostos teóricos

2.1. Leitura e estratégias: o que tem a dizer a Psicolinguística?

Criada a partir da interface entre Linguística e Psicologia, a Psicolinguística tem

contribuído com inúmeras pesquisas a respeito do ensino de língua no Brasil. Segundo

Scliar-Cabral (2008, p. 5), uma das grandes contribuições da psicolinguística foi a de

investigar, “através de métodos experimentais, como o ouvinte transforma o sinal

acústico da fala em significado e como, ao falar, percorre o caminho inverso, o mesmo

se aplicando ao sinal luminoso da cadeia escrita”. Nesse âmbito do conhecimento, surge

a psicolinguística experimental, uma área que se interessa sobretudo pelos processos

que envolvem a produção de textos. Desse modo, conforme nos explica Leitão (2008, p.

6), a psicolinguística experimental busca construir modelos teóricos e metodológicos

que descrevam e analisem “como o ser humano compreende e produz linguagem,

observando fenômenos linguísticos relacionados ao processamento da linguagem”.

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É importante destacar que nesse processamento de linguagem estão em jogo

muitos aspectos cognitivos, linguísticos e contextuais, tais como processos fonológicos,

morfológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos que ocorrem simultaneamente no

momento da produção/compreensão de linguagem. Tendo em vista essa complexidade,

Coscarelli e Novais (2010, p. 36) chamam a atenção para as diversas operações que

envolvem o processo de leitura, de compreensão dos textos. São operações lexicais,

sintáticas, discursivas, pragmáticas. As autoras ressaltam que essas operações se tornam

complexas “não por serem complicadas”, mas por que ocorrem “de forma aberta,

recursiva, gerando estruturas emergentes nem sempre previsíveis”. Além disso, a

situação de interlocução, ou seja, a enunciação, bem como os sujeitos e seus projetos

comunicativos fazem parte do dinâmico processo de leitura (COSCARELLI e NOVAIS

2010, p. 36).

Segundo Kleiman (2011), o processo de compreensão exige um conjunto de

recursos, atividades, estratégias mentais que são próprias do ato de compreender.

Assim, tornar o processo de leitura um objeto de reflexão amplia a possibilidade de se

criar um leitor maduro, um leitor capaz de usar atividades de metacognição para

compreender um texto. A metacognição refere-se ao ato de refletir sobre o próprio

saber, tornando-o mais acessível a mudanças, a ajustes que melhorem a compreensão

(KLEIMAN, 2011, p. 09).

Se de um lado do processo de leitura existem estratégias metacognitivas, as

quais são responsáveis pela desautomatização de processos inconscientes no ato de ler,

de outro lado, conforme Kato (1990, p. 102), existem estratégias que designam

princípios que regem justamente o contrário, ou seja, o comportamento automático e

inconsciente do ato de ler. A esse tipo de estratégias chamamos de estratégias

cognitivas, as quais, seguindo as reflexões de Kato (1990, p. 105), explicam

comportamentos do tipo:

Princípio da Canonicidade → esse princípio refere-se a estratégias cognitivas de

natureza sintática e semântica, as quais levariam o sujeito a compreender as sentenças

levando em conta no nível sintático a ordem natural (Sujeito-Verbo-Objeto), a oração

principal antes da subordinada, etc; no nível semântico, o sujeito tem a tendência de

entender o animado antes do inanimado, agente antes do paciente, a causa antes do

efeito, a tese antes da antítese, etc.

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Princípio da Coerência → esse princípio refere-se a estratégias cognitivas que regem o

comportamento de leitores e autores dos textos. Ele relaciona-se aos objetivos do texto e

sua ligação com o mundo e, além disso, com a forma de organizar o que se diz no texto

de modo a seguir-se uma sequência coerente, lógica.

Passando-se ao nível da desautomatização desses processos, Kato (1990) sugere

dois tipos de estratégias metacognitivas, as quais podem ser desdobradas ainda em

muitas atividades de leitura. Primeiramente, Kato (1990, p. 108) destaca que é preciso o

“estabelecimento de um objetivo explícito para a leitura” e, em segundo lugar, a autora

orienta que deve acontecer a “monitoração da compreensão tendo em vista esse

objetivo.” De forma sistemática, os dois níveis de estratégias podem ser assim

apresentados:

Estratégias Cognitivas Estratégias Metacognitivas

1. Pressuponha que o texto apresente ordem

canônica

1. Explicite os objetivos para a leitura, procurando o

tema do texto, comparando o que o texto diz com seus

conhecimentos prévios, analisando a consistência interna

do texto, etc.

2. Pressuponha que o texto seja coerente 2. Monitore sua compreensão tendo em mente esses

objetivos

Tabela 1: Estratégias Cognitivas e Metacognitivas

Fonte: Adaptado de Kato (1990)

Cabe destacar que essas estratégias acontecem sob duas formas diferentes de

esquemas de leitura: um esquema é o processamento top-down, isto é, uma leitura que

evolui do todo para as partes, e outro esquema, o processamento bottom-up, que

consiste numa leitura que se encaminha das partes para o todo. O primeiro

processamento é uma leitura que se apoia mais nos conhecimentos prévios e contextuais

do leitor sobre o assunto do texto, enquanto o segundo é uma leitura que se baseia mais

nas pistas linguísticas apresentadas no texto. É importante ressaltar que os processos de

leitura são muito complexos e que em vários momentos o leitor poderá utilizar os dois

esquemas em interação.

Nesse sentido, ressaltamos que, no momento da leitura, o conhecimento

linguístico, o conhecimento textual e o conhecimento de mundo são ativados. Segundo

Kleiman (2011, p. 26), o aluno precisa aprender a ler de modo ativo, fazendo com que

essa atividade seja caracterizada pelo “engajamento e uso do conhecimento, em vez de

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uma mera recepção passiva”, uma vez que “recipientes não compreendem”. O aluno,

sujeito que está se formando na escola como um leitor, não é um mero recipiente vazio

pronto a adquirir um conhecimento que lhe complete. Esse sujeito vem à escola

carregado com seu conhecimento de mundo, com seus valores sociais, familiares,

culturais e, no momento da leitura, articula o seu repertório aos conhecimentos técnicos

de leitura, a fim de compreender o texto.

É nessa direção, a respeito do aluno como “construtor de linguagem”, que

discute Bonini (2002, p. 37). Conforme explica o autor, por meio de uma visão

psicolinguística de processos de leitura e de uma visão interacionista dos processos que

envolvem a enunciação, o professor passa a considerar em suas atividades de leitura e

produção textual uma visão de aluno como integrante ativo na interação, “na qual seu

conhecimento de língua será uma decorrência”. Assim, entendemos que é preciso

pensar nos processos que envolvem a leitura do ponto de vista cognitivo e do ponto de

vista da interação social que engendra essa leitura. É por esse caminho que nossas

reflexões continuam na próxima seção.

2.2. Tipos textuais e Gêneros textuais/discursivos: abordagem enunciativa

(dialógica)

A organização da nossa vida cotidiana é viabilizada por textos que se

configuram nas mais diversas formas e servem a distintas finalidades sociais. A essas

“formas” nas quais os textos são/estão organizados chamamos de gêneros do discurso.

Bakhtin (2003, p. 262) nos explica que os gêneros são “tipos relativamente estáveis de

enunciados” que circulam nas diferentes esferas de comunicação na sociedade. Esses

tipos são tão diversos quanto são as atividades humanas, e sua diversidade está

relacionada à situação de interação, às relações entre os participantes e à esfera de

comunicação discursiva.

Os gêneros apresentam relativa estabilidade, pois apresentam alguns aspectos

que se repetem (tema, estilo verbal e forma composicional) e, dessa forma, garantem a

estabilidade social do gênero, para que os locutores possam se entender e assim se

organizar socialmente. No entanto, prevendo a dinamicidade e criatividade das

atividades humanas, Bakhtin ressalta, sobretudo, o caráter flexível dos gêneros, que

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admite o estilo de criação verbal individual de cada usuário da língua na relação com o

outro.

Por isso, podemos considerar, conforme o filósofo da linguagem, que os gêneros

se apresentam numa inesgotável diversidade, porque as possibilidades de atividade

humana nas relações sociais são igualmente inesgotáveis. Tal observação deve-se ao

fato de o gênero e a atividade humana (verbal ou não verbal) serem indissociáveis das

esferas sociais nas quais os indivíduos interagem.

Decorre dessas reflexões o fato de que ao estudar a linguagem a partir de

gêneros discursivos estamos lidando com a língua em seu uso real, vivo e concreto.

Segundo Marcuschi (2008, p. 155), gêneros são “textos materializados em situações

comunicativas recorrentes”. Se a língua se materializa em gêneros discursivos, os quais

são elementos concretos circulantes na sociedade, há também subjacente a essa

materialidade uma parte linguística abstrata, a qual Marcuschi denomina de tipos

textuais. Os tipos textuais, segundo o autor, designam construções teóricas, ou seja, são

sequências linguísticas ou retóricas de como é organizada a linguagem num texto

(MARCUSCHI, 2008, p. 154).

Conforme aponta Marcuschi (2008, p. 155) os tipos textuais, como são de ordem

abstrata, se constituem em poucas categorias: narração, descrição, argumentação,

exposição, injunção. Já os gêneros discursivos, como são de ordem concreta e

organicamente vinculados à situação concreta de enunciação, aparecem na esfera social

em inúmeras formas: notícias, reportagens, palestras, cartas pessoais, teses, dissertações,

artigos, charges, tirinhas, telefonema, torpedos etc. É interessante notar que cada gênero

pode ser constituído de vários tipos textuais. Assim, um texto poderá conter, por

exemplo, momentos de descrição, seguido de momentos de argumentação, e esses

momentos se interconectam ao longo do tecido textual.

Essas questões só reafirmam a complexidade que envolve os gêneros

discursivos. Bakhtin, em seu ensaio Os gêneros do discurso, chama a atenção para o

papel ativo dos sujeitos participantes da situação comunicacional. O autor (2003, p.

265) explica que os enunciados refletem as individualidades de cada falante, ou seja,

cada sujeito, ao utilizar sua língua, deixa em seu discurso pistas de sua história, além de

sua visão sobre o mundo. Nessa perspectiva, destaca o autor que alguns gêneros não são

muito propícios a mostrar a individualidade do falante no enunciado, pois a construção

composicional própria do gênero não permite tal abertura. Ordens militares e muitas

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modalidades de discursos oficiais são mostradas como exemplo por Bakhtin para

ilustrar formas de enunciados mais padronizados que não abrem muito espaço ao falante

e a seu estilo.

Outros gêneros, no entanto, concedem maior liberdade às particularidades dos

locutores, como é o caso de anúncios publicitários, reportagens, artigos de opinião,

entre outros. Fica evidente, nesse contexto, que a maior elasticidade ou não do gênero

está relacionada com a esfera discursiva a qual está filiado. A esfera midiática, esfera

discursiva em que se inscreve a publicidade, por exemplo, permite uma abertura, uma

vez que trabalha com diversos tipos de produtos, serviços, ideias, sendo uma esfera que

dirige e atinge um vasto e diferente público consumidor.

Compreendemos que no processo de compreensão da interação, do gênero e

suas tipologias estão envolvidos processos de compreensão leitora. Por isso, torna-se

um terreno fértil trabalhar com uma metodologia de ensino de leitura e produção textual

que considere as diferentes estratégias cognitivas e metacognitivas mobilizadas para se

compreender melhor este ou aquele gênero, levando em conta o objetivo da interação.

Assim, destacamos que, se por um lado existe um gênero materializado numa situação

de interação social concreta, existe, por outro lado, tanto um sujeito que o produziu

mobilizando diversos aspectos cognitivos que compõem o seu estilo, tomando a

nomenclatura bakhtiniana, quanto um sujeito leitor que também mobiliza aspectos

cognitivos e contextuais para compreender o que lê. Tendo em vista essas reflexões,

situamos nossa proposta de interface no limiar entre a materialização do gênero e os

processos cognitivos de produção e de compreensão que envolvem esse gênero.

3. Procedimentos metodológicos

A fim de levantarmos reflexões teóricas e práticas quanto ao processo de leitura

e produção textual, partindo de gêneros discursivos, a análise neste artigo se divide em

dois momentos. Primeiramente, elaboramos uma discussão teórica e metodológica que

envolve a construção de um caminho para a interface entre os estudos de gêneros

discursivos e a perspectiva de leitura e estratégias da psicolinguística. Para construir

essa interface, utilizamos os estudos de Bonini (2002), Coscarelli e Novais (2010), Kato

(1990), Marcuschi (2008) e Bakhtin (2003). No segundo momento, buscamos

visualizar os caminhos que levam o leitor a compreender os sentidos do texto,

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observando: a) a compreensão do gênero lido e a identificação desse gênero; b) a

compreensão da função social desse gênero; c) a relação dos aspectos verbais e não

verbais para construir sentidos; d) a mobilização de conhecimentos prévios para

compreender o gênero.

Para levar a efeito o segundo momento, selecionamos um anúncio publicitário

da Apple e mostramos a um sujeito que está cursando Administração pela Universidade

Federal de Rio Grande (FURG). Escolhemos o anúncio publicitário por ser um gênero

que tem uma fluente circulação na esfera midiática e por acreditarmos que seu estudo

em sala de aula possibilita a reflexão crítica sobre o consumo na contemporaneidade e

essa reflexão, por sua vez, poderá contribuir para a formação de leitores críticos. O

aluno de Administração foi escolhido por estar cursando um nível superior de ensino,

cuja etapa necessita de um aprendiz maduro, ou seja, essa etapa de ensino exige um

leitor crítico e capaz de explicitar os processos que utilizou para entender um texto.

Mostramos, primeiramente, ao sujeito, o anúncio e a primeira pergunta que o

questiona sobre o gênero lido. Logo após, identificado o gênero pelo sujeito, seguem as

outras doze perguntas que o questionam quanto: i) à coerência interna do texto e à

coerência das partes do texto em relação ao gênero; ii) à relação entre verbal e não-

verbal; iii) à composição do gênero no que tange aos seus elementos linguísticos e no

que tange à sua função social. Elaboramos perguntas escritas ao sujeito, pois tais

questões são propostas como uma possibilidade de trabalho de leitura e estratégias em

sala de aula. Nosso roteiro servirá também de sugestão de trabalho prático com gêneros

discursivos autênticos e estratégias de leitura que visam à compreensão dos aspectos

lexicais, sintáticos e semânticos do texto. A lista com as perguntas, o anúncio

publicitário lido pelo sujeito e suas respostas às questões aparecem na próxima seção,

juntamente às reflexões teóricas e metodológicas levantadas.

Por fim, fomentamos uma discussão que nos permite relacionar essa aplicação

prática de análise de um texto à nossa proposta metodológica de interface entre os

estudos de gêneros discursivos e a psicolinguística, no que se refere ao processo de

leitura e estratégias.

4. Construindo caminhos para a interface: discussão dos métodos e a contribuição

da psicolinguística e da concepção dialógica da linguagem

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Iniciamos nossas reflexões em busca de um caminho que possibilite a construção

de uma interface entre psicolinguística e a concepção dialógica da linguagem com a

seguinte questão apontada em Coscarelli e Novais (2010, p. 38): considerando a leitura

um processo individual e subjetivo de compreensão, como nos entendemos? Em outras

palavras: como os textos funcionam em nosso meio, se as leituras são múltiplas,

diferentes e tão singulares?

As autoras, ao colocarem essa questão, sugerem em seguida que uma possível

resposta seja o fato de a comunicação acontecer baseada em elementos nos textos que

“encaminham para direções semelhantes”. Tais elementos podem ser entendidos como a

própria tipologia textual, que é a base de todos os textos, e a noção de gênero, que

também é importante para que haja entendimento social de determinado texto.

Assim, vários fatores influenciam o processamento dos textos e seu

entendimento no âmbito social. Coscarelli e Novais (2010, p. 37) elencam alguns

elementos necessários para que haja uma leitura bem–sucedida de um texto, dentre os

quais citamos: familiaridade do leitor com o campo semântico das palavras utilizadas no

texto; familiaridade com o gênero textual; familiaridade com a função do gênero

textual.

É importante notar, nessa perspectiva, que atividades de leitura e escrita que se

centrarem somente em uma dessas questões isoladamente correrão o risco de não

apresentar resultados satisfatórios. Bonini (2002) apresenta várias metodologias de

ensino de produção textual que surgiram dos anos 60 para cá e aponta justamente para a

problemática de alguns métodos que focalizam um aspecto do processo em detrimento

de outros. O autor mostra o método retórico-lógico, o método textual-comunicativo, o

método textual-psicolinguístico e o método interacionista. Para os objetivos deste

artigo, em especial, faremos uma breve discussão dos dois últimos métodos por

entendermos que nossa proposta se encaixa no limiar entre essas duas visões.

Vinculando o processo de escrita ao processo de leitura, o método textual-

psicolinguístico focaliza, nas técnicas acessórias, o processo de planejamento e revisão

do texto, pois, conforme explica Bonini (2002, p. 32), esses momentos são os “mais

propícios para a intervenção didática”. A seguir, podemos visualizar o quadro com a

síntese do modelo:

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Percebemos nesse modelo pelo menos duas lacunas que também poderiam fazer

parte do desenvolvimento de estratégias: a primeira lacuna diz respeito ao processo de

leitura que se constrói na interação social, ou seja, a relação de quem escreve para quem

escreve e em que situação o faz. A segunda lacuna refere-se ao trabalho com aspectos

do gênero que balizaria, por exemplo, a tarefa de planejar, uma vez que cada gênero

prevê um planejamento diferente tanto no processo de leitura, quanto no processo de

escrita de produção de um texto. Já o modelo interacionista focaliza sua atenção

somente na situação de produção, priorizando, conforme explica Bonini (2002, p. 34)

“uma autêntica produção de sentido, mediante uma ação de linguagem”. Vejamos o

quadro abaixo que sintetiza o objetivo central, as etapas e os procedimentos acessórios

desse método de ensino:

OBJETIVO

CENTRAL

ETAPAS PROCEDIMENTOS ACESSÓRIOS

Reprodução de

jogos cênicos.

SITUAÇÃO DE

INTERACAO

*desenvolvimento de atividades ligadas a um projeto

didático proposto pelo professor;

Pesquisar e buscar de auxilio

técnico;

*desenvolvimento de procedimentos de pesquisa;

Desenvolver ações de

linguagem;

*desenvolvimento da análise linguística a partir da própria

produção.

Avaliar feedback da

audiência.

Tabela 3: Componentes do método interacionista.

Fonte: Retirado de Bonini (2002)

OBJETIVO CENTRAL ETAPAS TECNICAS

ACESSORIAS

TA RE FA * organização tópica;

Planejar a tarefa;

* ordenação de

fragmentos textuais;

Desenvolver capacidades através de processos e

estratégias, tornando os conhecimentos automáticos

ou conscientes.

Textualizar;

* revisão colaborativa;

Revisar;

* revisão individual;

Reescrever;

* revisão com feedback

do professor

Redigir o texto final;

Tabela 2: Componentes do método textual-psicolinguístico.

Fonte: Retirado de Bonini (2002).

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É interessante observarmos, neste modelo, que os aspectos linguísticos e os

processos que envolvem a ação de linguagem não aparecem evidenciados. No único

momento em que aparece o componente “análise linguística”, parte-se da própria

produção, ficando as seguintes questões pendentes: qual o lugar da análise dos aspectos

linguísticos do gênero lido e produzido? Para produzir o texto, que elementos

discursivos foram mobilizados?

Tentando nessa direção apontar um caminho de contato entre os modelos

psicolinguístico-textual e interacionista, elaboramos, no quadro abaixo, um modelo de

leitura e escrita que contemple os seguintes aspectos: processos cognitivos e

metacognitivos utilizados pelo sujeito leitor, situação de interação (esfera de

comunicação e interlocutores), gênero discursivo, organização textual (pistas

linguísticas e coerência textual).

Abaixo, podemos analisar o quadro síntese de nossa proposta, que apresenta

objetivo central, etapas e procedimentos:

Objetivo central Etapas Procedimentos

Desenvolver a habilidade de

leitura e escrita,

considerando:

- Delimitação da situação de interação:

contexto e participantes da comunicação

- Identificar o gênero discursivo,

utilizando pistas verbais, não-

verbais e conhecimentos prévios

- Os processos cognitivos e

metacognitivos mobilizados

pelo leitor na compreensão de

diferentes gêneros discursivos

- Seleção do(s) gênero(s) discursivo(s)

envolvidos na leitura e na escrita

- Explicitar a partir de que

elementos do texto é possível

fazer relação com os

conhecimentos prévios

- A situação de comunicação

envolvida no processo de

leitura e escrita

- Seleção de estratégias de leitura

adequadas aos objetivos e ao(s) gênero(s)

- Analisar se as partes do texto

são coerentes entre si e coerentes

em relação ao gênero

- Analisar como se compõe o

gênero estudado: suas

características recorrentes, seu

público-alvo, sua esfera de

produção e circulação

- Verificar se houve

compreensão do sentido das

partes do texto em relação ao seu

todo.

Tabela 4: Componentes de um modelo interacionista-psicolinguístico proposto neste artigo.

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A partir da análise do quadro, ressaltamos que a escolha de estratégias de leitura

necessita de uma direção para que os processos de leitura e escrita sejam bem

sucedidos. A escolha de uma ou mais estratégias precisa levar em conta objetivos de

leitura previamente estabelecidos pelo professor. Além disso, conforme nos mostra o

quadro, é necessário estabelecer um objetivo central que envolva o desenvolvimento de

habilidades de leitura. Um objetivo precisa ser formulado em função dos complexos

processos que estão em jogo na leitura e escrita, tanto do ponto de vista cognitivo,

quanto do ponto de vista sócio interacional.

No que tange à compreensão de um texto, a leitura é uma atividade cognitiva

que requer esforço cognitivo, envolvendo: percepção, memória, inferência e dedução. A

leitura, nesse sentido, é também um processo interativo, em que o sujeito leitor e o

sujeito autor se relacionam mutuamente, sendo o texto o ponto de contato desse vínculo.

Assim, o autor, no processo de produção de seu texto, estabelece uma coerência textual

que é recuperada no momento da leitura pelo leitor. Além disso, nesse processo, há de

se considerar também que a coerência estabelecida internamente no texto, ou seja, a

coerência entre suas partes precisa também se harmonizar à coerência com o gênero

discursivo no qual esse texto está materializado.

Desse modo, um texto necessita ser coerente em seus aspectos linguísticos

(lexicais, sintáticos, semânticos) e coerente em seus aspectos discursivos-situacionais

(esfera de produção, gênero, interlocutor). Pensando na proposta exposta no quadro

acima, ressaltamos que, no processo de produção textual, torna-se importante para o

aluno ter consciência do processo de estabelecimento da coerência textual, uma vez que

a coerência é um princípio cognitivo das atividades de leitura e escrita. Ao tomar

consciência da organização coerente de um texto, o sujeito desautomatiza um processo

cognitivo de pressupor que o texto é coerente quanto ao tema, organização e gênero e

passa a regular seu ato de leitura e escrita, tendo em vista a coerência.

Considerando essas questões, tomamos como base esse quadro para a elaboração

de uma atividade prática de leitura e escrita, de modo a discutir sobre as estratégias

cognitivas e metacognitivas apresentadas por Kato (1990) expostas anteriormente na

tabela 1. Essas estratégias se referem diretamente à coerência textual e são de duas

naturezas: as metacogitivas, que se referem à procura do tema do texto, comparando o

que é dito com seus conhecimentos prévios, analisando a consistência e a coerência

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interna do texto; e as cognitivas, que é o princípio de que o texto tenha uma ordem

canônica e que tenha coerência interna e coerência com o gênero discursivo no qual se

materializa.

Buscamos, nessa direção, entender de que forma acontece a leitura de um

anúncio publicitário, considerando o objetivo de compreender o funcionamento do

gênero, levando em conta seus aspectos linguísticos e sua função social. Para tanto, foi

mostrado um anúncio publicitário a um aluno do curso de Administração e foi solicitado

a ele que fizesse a leitura do anúncio respondendo a treze questões.

Abaixo, seguem o anúncio e as perguntas:

Figura 1: Anúncio da Apple

Fonte: http://macmagazine.com.br/wp-content/uploads/2011/04/14-apple_ag.jpg

1) Você sabe identificar que tipo de texto é este? Se sim, qual é o tipo2?

2) Como você identifica um anúncio publicitário/propaganda?

3) Todas as pessoas que visualizarem essa propaganda entenderão que se trata de uma

propaganda? Por quê?

4) O que você conhece sobre a marca anunciada na propaganda?

5) Você conhece a história a qual se refere a primeira maçã? O que você sabe sobre isso?

6) Se retirarmos a parte verbal, o sentido ficará comprometido? Por quê?

7) Se retirarmos a parte não-verbal, o sentido ficará comprometido? Por quê?

8) Se invertermos as posições das maçãs em relação aos seus enunciados que aparecem

embaixo de cada uma, o anúncio continua coerente? Por quê?

2 Chamamos de tipo textual, a fim de não causar dificuldade na resposta do aluno. Como o sujeito não é

aluno de Letras e talvez não estivesse inteirado das diferenças entre tipo textual e gênero textual,

consideramos mais eficiente elaborar a questão com uma nomenclatura mais comum a todos os

estudantes, tendo em vista todos os ensinamentos da tradição escolar em torno de gênero e tipo.

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9) Que diferença de sentidos há entre as duas maçãs apresentadas?

10) O que você entende por paraíso?

11) Que relação tem a palavra paraíso com as maçãs?

12) Qual a função social de uma propaganda?

13) Que relação tem a palavra paraíso e as maçãs com a função social da propaganda?

Com este questionário, objetivamos construir um percurso de compreensão

textual que contemplasse um trabalho com um texto real materializado num gênero

discursivo e que contemplasse estratégias de leitura que esquadrinhassem a construção

da coerência textual. Na tabela 5, abaixo, sistematizamos a relação entre as questões

aplicadas e os procedimentos propostos na tabela 4, os quais consideram a situação de

interação, aspectos linguísticos e cognitivos no que tange ao processo de leitura.

Procedimentos

Questões

- Identificar o gênero discursivo, utilizando

pistas verbais, não-verbais e conhecimentos

prévios.

Você sabe identificar que tipo de texto é este? Se sim, qual é

o tipo?

Como você identifica um anúncio publicitário/propaganda?

O que você conhece sobre a marca anunciada na

propaganda?

- Explicitar a partir de que elementos do texto é

possível fazer relação com os conhecimentos

prévios

Você conhece a história a qual se refere a primeira maçã? O

que você sabe sobre isso?

Que diferença de sentidos há entre as duas maçãs

apresentadas?

O que você entende por paraíso?

- Analisar se as partes do texto são coerentes

entre si e coerentes em relação ao gênero

Se retirarmos a parte verbal, o sentido ficará comprometido?

Por quê?

Se retirarmos a parte não verbal, o sentido ficará

comprometido? Por quê?

Se invertermos as posições das maçãs em relação aos seus

enunciados que aparecem embaixo de cada uma, o anúncio

continua coerente? Por quê?

Que diferença de sentidos há entre as duas maçãs

apresentadas?

Que relação tem a palavra paraíso com as maçãs?

- Analisar como se compõe o gênero estudado:

suas características recorrentes, seu público-

alvo, sua esfera de produção e circulação

Qual a função social de uma propaganda?

Todas as pessoas que visualizarem essa propaganda

entenderão que se trata de uma propaganda? Por quê?

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- Verificar se houve compreensão do sentido

das partes do texto em relação ao seu todo

Que relação tem a palavra paraíso e as maçãs com a função

social da propaganda?

Tabela 5: Relação entre procedimentos e questões propostas

Ao ser questionado quanto à identificação do gênero lido, no caso, o anúncio

publicitário da Apple, o sujeito deixa claro que sabe identificá-lo e o nomeia:

Resposta 1: Sim, trata-se de um anúncio de publicidade

O sujeito explicita, na questão 2, a maneira como ele identifica, ou seja, como

ele sabe que o texto lido se trata de um anúncio publicitário, e responde:

Resposta 2: Pois usa uma linguagem curta, mas inteligente, clara e de certo modo

reflexiva.

Para o sujeito, anúncios publicitários apresentam linguagem curta, ou seja, é um

gênero que possui poucas palavras, tem uma linguagem inteligente, clara e reflexiva,

mas não enfatiza, ou melhor, não explicita em sua resposta a característica desse

discurso de ter uma marca de um produto a ser vendido. A princípio, se não fizéssemos

as outras perguntas, ficaríamos com uma ideia de que o sujeito compreende o gênero

mais no nível de sua estrutura, de sua forma, de sua linguagem e menos no nível de sua

função social. No entanto, na resposta à questão 3, quando é perguntado se outras

pessoas identificariam que o texto se trata de um anúncio, ele vincula o processo de

compreensão do anúncio a conhecimentos prévios a respeito da marca do produto:

Resposta 3: Pois é um anúncio claro e objetivo, embora só quem conheça o logo da

Apple é capaz de entender o significado da propaganda e o que ela busca ao relacionar

as maçãs.

Por meio da questão proposta, induzimos o sujeito a fazer dois movimentos

metacognitivos: pensar por si próprio, o que o levaria a compreender o anúncio, e, em

seguida, colocar-se na posição de outro e pensar como se fosse outra pessoa. Somente

no segundo movimento, ou seja, no movimento de aproximação da compreensão do

outro, percebemos que ter conhecimentos sobre a Apple é importante para a

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compreensão do anúncio. O sujeito também é levado a explicitar se ele próprio tem

conhecimentos sobre a marca e ele afirma na questão 4:

Resposta 4: Conheço a marca Apple primeiramente pela divulgação na mídia, que é

bem expressiva. E também por ter estudado em algum momento no ensino médio sobre

as empresas de grandes potências do ramo cibernético. Porém, nunca tive um produto

dessa marca.

Os conhecimentos prévios mobilizados pelo sujeito sobre o produto anunciado

na publicidade são resultado de informações de duas naturezas: já-ditos sociais que

circulam na mídia sobre o produto, talvez outros anúncios publicitários na TV, internet;

o outro conhecimento que tem sobre a empresa, que o sujeito aprendeu na escola,

estudando sobre empresas do ramo anunciado na publicidade. É interessante notar a

importância de possuir tais conhecimentos que entram em ação para que os sentidos se

construam para o leitor. A quinta questão também se refere a conhecimentos anteriores

que contribuem para a leitura bem-sucedida do texto, no que tange às relações

dialógicas a respeito da história bíblica de Adão e Eva e a expulsão do paraíso. O sujeito

revela, então, que conhece basicamente a história da primeira maçã:

Resposta 5: Conheço o básico (bem básico mesmo) sobre a história da criação do

homem pela visão Católica. A referência da maça é em relação a Eva e Adão, que

pecaram (comeram o fruto proibido) e, em consequência, foram expulsos do Paraíso.

Possuir o conhecimento prévio da história de Adão e Eva permite ao sujeito

construir um caminho para a compreensão da relação de sentidos que ocorre entre as

duas maçãs, conforme é questionado na nona pergunta. Vejamos o percurso que o

sujeito faz sobre essa questão:

Resposta 9: A primeira maçã (inteira) faz alusão ao símbolo do pecado, da tentação, o

motivo pelo qual o homem foi expulso do paraíso. Já a segunda (mordida) tem o intuito

de nos fazer acreditar que, para chegar ao paraíso, basta optar por ela, e assim, o

paraíso estará ao nosso alcance.

O sujeito explicita nesta resposta não só que entende a relação entre as duas

maçãs, mas também que essa relação coerente tem um propósito: convencer o

interlocutor a adquirir o produto para que ele consiga ter o paraíso a seu alcance. Nesse

momento, percebemos que a leitura da palavra paraíso é um dos cernes para essa leitura.

Pensando na construção desse anúncio, fizemos então duas questões que levassem o

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sujeito a explicitar seu processo de compreensão através da leitura da palavra paraíso e a

relação dessa palavra com a parte não verbal: as duas maçãs. Abaixo, as duas respostas:

Resposta 10: Algo bom, intangível. Um ideal.

Resposta 11: Acredito que, em função da simbologia que ela tem na visão católica, de

significar o pecado, a tentação, a empresa tecnológica usou esse significado e explorou

positivamente a implícita 'tentação' para convencer o público que o ideal 'paraíso' está

ao nosso alcance, basta 'morder a maçã'. Já a primeira 'desenha' a maçã como o

motivo para saída do paraíso. Remete a uma ideia contrária a da segunda.

Fica evidente que faz parte da compreensão de um texto o conhecimento sobre o

léxico que o constrói. É preciso, no caso do anúncio lido, compreender o sentido da

palavra paraíso e quais sentidos podem emergir por meio dessa palavra na

materialidade do texto, no que se refere à coerência interna, ou seja, sua relação com os

outros signos do texto, e à coerência em relação ao gênero mobilizado. O sujeito

demonstra que compreende o sentido da palavra paraíso e na resposta 11 ele explica os

sentidos que essa palavra desempenha na relação com as maçãs, parte não verbal do

anúncio.

É importante observarmos que, pela leitura do sujeito, a palavra paraíso e sua

relação com as maçãs se articulam para convencer o público que esse ideal, esse lugar

bom está a seu alcance e é viabilizado pela Apple. Com isso, entendemos que o sujeito

compreende a função social da publicidade mesmo que não explicite isso em sua escrita.

E a esse entendimento ele chega por meio da reflexão a respeito da relação de sentidos

entre a palavra e os signos não verbais. Por isso, ressaltamos a importância de questões

que direcionem a leitura dos sujeitos, fazendo-se explicitar aspectos muitas vezes

inconscientes.

Nesse sentido, as questões que levaram o sujeito a refletir e explicitar sua

compreensão a respeito da coerência interna do anúncio também contribuíram para que

ele refletisse em relação à construção textual. Assim, questiona-se na sexta e na sétima

pergunta, respectivamente, se retirado o texto verbal e, depois, o texto não verbal, o

sentido do anúncio ficaria comprometido. Questiona-se ainda, na oitava questão, se

acontecesse a inversão nas posições das maçãs em relação aos enunciados, se o anúncio

sofreria algum problema de coerência.

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Resposta 6: Sim, ficaria. Pois é preciso ver a imagem para compreender o que há na

frase, a associação que é feita.

Resposta 7: Sim, ficaria. Pois assim como no caso anterior, a imagem da maçã inteira e

a outra 'mordida' não nos remete à ideia que o anúncio quer transmitir. Embora a

maçã 'mordida' é facilmente identificada como o logotipo da Apple, mas só a imagem

compromete o sentido.

Resposta 8: Não. Os enunciados são interligados, de certo modo, com a imagem. Ao

inverter suas posições, a mensagem será errônea e comprometeria o seu sentido.

O sujeito demonstra que compreendeu a construção da coerência interna do texto

e da coerência interna em relação ao gênero discursivo e sua função. Para ele, seria

impossível entender o texto se fossem retiradas algumas de suas parte. Quanto à

inversão de posições das maçãs, ele julga que o propósito da publicidade ficaria

comprometido, pois as pessoas não entenderiam a mensagem, demostrando, assim, que

o sucesso de um anúncio publicitário junto ao seu público-alvo depende bastante de sua

coerência textual.

Por fim, depois de fazer o sujeito leitor refletir sobre os sentidos das partes do

texto e suas relações internas, as duas últimas questões exploram os aspectos da função

social do gênero anúncio publicitário, de modo a levar o sujeito a explicitar em suas

palavras se ele compreende a função de um anúncio e se ele compreende a função das

partes do texto analisadas anteriormente em relação a essa função social. Analisemos

suas palavras:

Resposta 12: Informar. Transformar algo aos olhos das pessoas. E, se bem explorada,

faz o simples se tornar essencial.

Resposta 13: Acredito que a chave do anúncio é a evolução. Ela transmite através das

imagens e das frases, ou melhor, da relação entre elas, que as 'coisas' evoluíram. Que é

importante rever nossos conceitos e evoluirmos.

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As duas últimas questões propostas exigiram um grande esforço cognitivo, por

dois motivos: primeiro porque exige que o sujeito tenha a capacidade de sintetizar em

palavras a complexidade da função social de um texto e, segundo, porque exige que o

sujeito saiba essa função e a sintetize em relação à construção do texto. Não se trata

apenas de dizer a função, mas refletir em que sentido os elementos constituintes desse

texto contribuem para essa função. Embora o sujeito, na questão 12, não tenha escrito a

função de maneira adequada, ficou comprovado, nas outras questões, que ele sabe que a

função do anúncio é oferecer/vender um produto e ele, então, direciona seu foco de

reflexão, explicitando mais os sentidos do anúncio para a sociedade do que a função em

específico do anúncio da Apple. Para o sujeito, o anúncio transmite a ideia de evolução,

de rever conceitos, e essa compreensão só é possível por meio da análise da relação

entre as partes do texto.

Desse modo, as questões foram propostas baseando-se nos dois esquemas de

leitura (bottom-up e top-down) em relação. Em vários momentos é solicitada ao leitor

não só a utilização de seus conhecimentos prévios, mas também a explicitação de sua

compreensão das partes do texto, ou seja, a compreensão da palavra paraíso, das frases,

das maçãs e da relação entre essas partes.

Enfatizamos, dessa maneira, que conhecer o gênero e sua função social é

fundamental na leitura. Entretanto, o leitor não compreende o texto em sua

materialidade somente através desse conhecimento. O sujeito precisa compreender a

construção do texto, precisa ter consciência do sentido do léxico empregado, precisa,

além disso, organizar cognitivamente esses aspectos ao que ele já conhece sobre o

gênero e sobre o assunto tratado. Esse processo não ocorre de maneira estanque, é antes

um processo complexo, multifacetado, oriundo de um sujeito também complexo, tanto

no que se refere a sua constituição social, histórica e cultural, quanto no que se refere a

sua cognição e todos os aspectos que a envolvem.

5. Considerações finais

Diante do que foi discutido e aplicado, consideramos que a interação entre as

visões da psicolinguística e dos estudos de gêneros discursivos mostra-se bastante

frutífera para fins didáticos. Foi importante observarmos que os sentidos de um texto

são compreendidos pelo leitor a partir de vários aspectos, dentre os quais destacamos:

considerar a linguagem como viva e intrinsecamente social que se materializa em

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determinados tipos de enunciados em diferentes esferas da comunicação humana;

considerar que um texto é produto de um contexto de produção e que, no momento da

leitura, conhecimentos prévios que envolvem esse contexto são ativados pelo sujeito

leitor; considerar que um texto é constituído por uma coerência interna e em relação ao

gênero discursivo, e que o leitor precisa ter consciência dessa organização para os

processos de leitura e escrita.

Ao ponderarmos essas questões, percebemos que o principal ponto de contato

entre as duas áreas e que foi, de certa forma, explorado neste artigo, é justamente o

limiar entre a ideia de compreensão da coerência textual, desautomatizando-se

processos cognitivos e a ideia de que essa compreensão depende diretamente do

conhecimento a respeito do gênero discursivo no qual o texto está materializado. Assim,

consideramos que a compreensão da coerência textual depende fundamentalmente de

conhecimentos lexicais, sintáticos, semânticos, do gênero mobilizado e conhecimentos

prévios sobre o tema do texto.

Desse modo, tanto nossa proposta teórico-metodológica, quanto nossa aplicação

de leitura com o sujeito focalizaram o desenvolvimento da habilidade de leitura no que

se refere à coerência textual em seus dois grandes aspectos: linguísticos e contextuais.

Visualizamos, a partir disso, a maneira como o leitor construiu sentidos para a leitura,

por meio do questionário, e percebemos que o direcionamento da leitura em sala de aula

necessita de objetivos claros, situação de comunicação explicitada, análise dos aspectos

linguísticos e dos aspectos que envolvem o gênero. Enfim, percebemos que o professor

precisa orientar a atividade.

Destacamos, por fim, que nossa proposta apresenta limites, uma vez que não é

possível englobar todos os aspectos envolvidos na leitura num único modelo

metodológico. A leitura é um ato complexo e o que mostramos nesse artigo é apenas um

dos caminhos para se desenvolver habilidades de leitura e produção textual. Nesse

sentido, ressaltamos a importância de pesquisas que elaborem a interface entre

psicolinguística e estudos sobre gêneros discursivos, tendo em vista a aplicabilidade nas

aulas de língua, a fim de formarmos leitores proficientes e críticos.

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