11
II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010 Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR ISSN 2178-8200 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE LA CIUDAD AUSENTE FIORUCI, Wellington Ricardo (UTFPR-Pato Branco) RESUMO: La ciudad ausente, romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, situando-se diacronicamente, portanto, no espaço discursivo da pós-modernidade, linguagem representativa da contemporaneidade. Com efeito, verifica-se na imbricada tessitura narrativa do romance um acentuado jogo com as vozes narrativas, dando um caráter bastante experimental a este elaborado texto de Piglia. Levando em consideração as influências sobre a poética do autor, percebe-se o diálogo com a tradição borgeana e joyceana, expoentes, por sua vez, da narrativa ocidental do século XX, bem como o intertexto com a obra de/ outro autor argentino, a saber, Macedonio Fernández. El museo de la novela de la eterna, obra poliédrica de caráter explicitamente metaficcional, revela-se como contraponto literário essencial na composição metapoética de Piglia. Os artifícios macedonianos são colocados à prova neste espaço narrativo caudaloso que é o terreno no qual se desenvolve o romance La ciudad ausente. Assim, as metáforas que tratam da memória e do discurso no texto de Macedonio são reelaboradas por Piglia, leitor crítico por antonomásia de seu antecessor. Por meio de uma linguagem marcadamente inventiva, La ciudad ausente investe em estratégias narrativas sofisticadas para contar uma estória com traços policiais, revelando que a trama narrativa resiste ao tempo. Nos vários extratos narrativos que compõem a obra, há, no entanto, um fio condutor histórico que deixa sua indelével assinatura crítica, provocando no leitor a percepção para um olhar mais aguçado. PALAVRAS-CHAVE: La ciudad ausente; Ricardo Piglia; pós-modernismo; estratégias narrativas. Quando Ricardo Piglia publica em 1992 seu segundo romance, La ciudad ausente, o contexto histórico na Argentina, assim como na América Latina, havia mudado consideravelmente em relação à década anterior. A principal mudança era de ordem política e consistia na transição do regime ditatorial para o democrático, sob cuja égide do terror também haviam passado e amargado longos anos os países vizinhos: Chile, Uruguai e Brasil 1 . Se por um lado é possível afirmar que o território argentino encontrava-se na década de noventa diante de um novo quadro histórico-político, posto que a ditadura militar, denominada de Proceso de Reorganización Nacional, terminara havia quase dez anos, por outro é essencial a observância nos vários setores estigmatizados, perseguidos 1 Este regime ou estado de exceção foi comum na geografia da América Latina, resultado de um processo de recrudescimento dos direitos civis impetrado pelos setores conservadores, tendo o apoio do governo norte-americano e de sua principal agência de inteligência, a CIA. A bibliografia sobre o período é extensa e consolida esta versão.

ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE LA CIUDAD AUSENTE

FIORUCI, Wellington Ricardo (UTFPR-Pato Branco)

RESUMO: La ciudad ausente, romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de

1992, situando-se diacronicamente, portanto, no espaço discursivo da pós-modernidade,

linguagem representativa da contemporaneidade. Com efeito, verifica-se na imbricada

tessitura narrativa do romance um acentuado jogo com as vozes narrativas, dando um

caráter bastante experimental a este elaborado texto de Piglia. Levando em consideração

as influências sobre a poética do autor, percebe-se o diálogo com a tradição borgeana e

joyceana, expoentes, por sua vez, da narrativa ocidental do século XX, bem como o

intertexto com a obra de/ outro autor argentino, a saber, Macedonio Fernández. El

museo de la novela de la eterna, obra poliédrica de caráter explicitamente

metaficcional, revela-se como contraponto literário essencial na composição

metapoética de Piglia. Os artifícios macedonianos são colocados à prova neste espaço

narrativo caudaloso que é o terreno no qual se desenvolve o romance La ciudad ausente.

Assim, as metáforas que tratam da memória e do discurso no texto de Macedonio são

reelaboradas por Piglia, leitor crítico por antonomásia de seu antecessor. Por meio de

uma linguagem marcadamente inventiva, La ciudad ausente investe em estratégias

narrativas sofisticadas para contar uma estória com traços policiais, revelando que a

trama narrativa resiste ao tempo. Nos vários extratos narrativos que compõem a obra,

há, no entanto, um fio condutor histórico que deixa sua indelével assinatura crítica,

provocando no leitor a percepção para um olhar mais aguçado.

PALAVRAS-CHAVE: La ciudad ausente; Ricardo Piglia; pós-modernismo;

estratégias narrativas.

Quando Ricardo Piglia publica em 1992 seu segundo romance, La ciudad

ausente, o contexto histórico na Argentina, assim como na América Latina, havia

mudado consideravelmente em relação à década anterior. A principal mudança era de

ordem política e consistia na transição do regime ditatorial para o democrático, sob cuja

égide do terror também haviam passado e amargado longos anos os países vizinhos:

Chile, Uruguai e Brasil1.

Se por um lado é possível afirmar que o território argentino encontrava-se na

década de noventa diante de um novo quadro histórico-político, posto que a ditadura

militar, denominada de Proceso de Reorganización Nacional, terminara havia quase dez

anos, por outro é essencial a observância nos vários setores estigmatizados, perseguidos

1 Este regime ou estado de exceção foi comum na geografia da América Latina, resultado de um

processo de recrudescimento dos direitos civis impetrado pelos setores conservadores, tendo o

apoio do governo norte-americano e de sua principal agência de inteligência, a CIA. A

bibliografia sobre o período é extensa e consolida esta versão.

Page 2: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

e execrados pelo regime, dentre eles o grupo dos artistas e escritores, um sentimento

inescapável de revisitação e catarse daquele período. Assim, o primeiro romance de

Piglia, Respiración artificial, escrito durante o advento do regime ditatorial argentino,

entre 1976 e 1980 (GANCEDO: 2006, p.33), no cerne do qual o presente histórico da

escritura jamais se oculta, mesmo quando não se explicita, provocará ainda ecos

dissonantes nos romances posteriores, que virão a lume na década seguinte, La ciudad

ausente e Plata quemada, este último já próximo dos alvores do século XXI.

Com efeito, afloram nos dois últimos romances, a exemplo do primeiro,

referências à história argentina, seja no campo propriamente histórico-político, seja nas

diversas inserções pelo campo histórico-literário. Neste sentido, o personagem itinerante

Emilio Renzi ganha um contorno simbólico elucidativo, já que se trata de um jornalista

investigativo, cujo caráter detetivesco nos leva sempre em busca das raízes da história

argentina. Indo um pouco além na análise, conclui-se ser este personagem de papel mais

que o alter-ego do autor, nascido Ricardo Emilio Piglia Renzi. Na verdade, ele ocupa a

função de elo metaliterário, eixo intratextual ao redor do qual seus romances, além de

outras produções ficcionais, giram imantados por uma força centrípeta alimentada pelo

élan investigativo de Renzi: “O sujeito civil Ricardo Emilio Piglia Renzi torna-se

personagem de si mesmo encenando o narrador detetive Ricardo Piglia”

(PEREIRA:1998, p.39).

Apesar destes aspectos em comum, os três romances de Piglia apresentam

estratégias narrativas diferentes, as quais ajudam a compreender as fronteiras de sua

poética. Dado o interesse, neste breve artigo, de centralizar as atenções para a análise de

La ciudad ausente, faz-se necessário definir os traços constitutivos da linguagem desta

obra em contraposição às demais. Os recursos narrativos, ou ainda, os jogos de

linguagem deste romance carregam um caráter ainda mais experimental que seus pares,

tornando sua leitura tarefa hercúlea para a competência interpretativa do leitor empírico,

segundo a concepção de Umberto Eco, isto é, o leitor comum.

Para demonstrar o terreno pantanoso sobre o qual se constrói a narrativa do

romance em questão, é preciso evidenciar, primeiramente, que a temática central do

texto não se revela um argumento do mesmo quinhão de verossimilhança dos outros

dois. Junior, protagonista desta odisseia citadina, está em busca de uma máquina que

produz relatos, um museu-máquina, uma mulher-máquina, um gerador infinito de

Page 3: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

textos, de memórias. O protagonista encarna neste complexo romance o papel que

caberá a Renzi nos demais, um desdobramento anglo-saxônico, portanto, deste último, e

a primeira referência metaliterária do texto, elemento chave tanto para a poética do

autor quanto para a pós-modernidade.

A trama de La ciudad ausente começa com Renzi mostrando o ambiente de

trabalho a Junior, jornalista neófito: “[…] aterrizó una tarde en el diario, con su cara de

alucinado, y Emilio Renzi lo llevó a conocer la redacción, para que conociera a los otros

prisioneros.” (PIGLIA: 1997, p.10). Ambos são jornalistas a serviço de El Mundo,

diário de notícias que aparece no espaço ficcional com uma conotação singular, afinal,

durante as décadas de 30 a 60 houve um veículo de comunicação de ideias combativas

com este nome em Buenos Aires.

O jogo literário ao estilo pós-moderno, que começa com a referência ao jornal

editado pelo intelectual Alberto Gerchunoff, admirado por Borges, modelo para a

poética de Piglia, segue com a descrição de Junior e “su cara de alucinado”. Tendo este

traço como referência, somado ao fato de ser este personagem herdeiro de estrangeiros,

imigrantes ingleses, é possível enxergar em sua composição não mais apenas um

desdobramento de Renzi, mas também um reflexo literário de Roberto Arlt, outro

modelo literário-ideológico para Piglia. Esta aproximação é possível já que a loucura da

realidade expressa na ficção arltiana, confunde-se com seu criador, conforme relata a

própria filha do escritor, Mira Arlt: “Mi „juguete rabioso‟ [...] está conformado por un

padre a quien „los otros‟ consideraban vago, fracasado y loco” (ARLT: 2000, p.14).

Reforça-se esta leitura com a constatação de que Arlt trabalhou ativamente no

jornal El Mundo, no qual se concentravam mentes do seu quilate intelectual. Ali o

escritor publicou suas Aguafuertes porteñas, colaborando na construção da imagem do

pensador multifacetado moderno, escritor-intelectual-jornalista (SARLO: 1988). Junior,

herdeiro de Arlt, segue as pistas de Renzi, seu tutor mais direto em sua empreitada

detetivesca pela compreensão de seu passado, ligado diretamente ao passado da cidade,

por sua vez, ligado ao passado da história da literatura argentina.

Um exemplo de como estes universos se tocam surge no momento em que

Junior encontra o Museu: “En una sala Junior vio el vagón donde se había matado

Erdosain”. O leitor experiente notará que Junior acaba de entrar num mergulho

metaliterário, já que Erdosain é um personagem de Roberto Arlt, o qual se suicida, tal

Page 4: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

qual seu criador, num gesto de repúdio à sociedade no romance Los lanzallamas: “-

¡Hola!... ¿Quién está ahí?… ¿Es usted?... Vea, tome inmediatamente un fotógrafo y

váyase a Moreno. Erdosain se suicidó. Lleve a Walter. Háganle reportajes a los guardas

y maquinistas del tren, a los pasajeros que viajaban en este coche.” (ARLT: 2000,

p.595).

Com este gesto, Piglia nos conecta imediatamente a uma tradição literária da

qual se nutre, ao mesmo tempo em que nos revela a filiação genética da loucura que une

Arlt e Erdosain: “la locura como ruptura de lo posible [...] la locura arltiana es una

forma de utopía popular” (PIGLIA: 2000, p.26). Conectemo-nos novamente ao romance

de Arlt, por meio da análise crítica de Beatriz Sarlo:

La angustia de Erdosain, ese sentimiento moderno que hace la

modernidad de la ficción arltiana, es una cualidad objetiva. La

angustia está en la naturaleza social de las cosas, un sentimiento

hegemónico por el cual la subjetividad se carga con el conflicto

irresoluble que ya ha sido jugado en la dimensión objetiva. (ARLT:

2000, p.XV)

A filiação genética da loucura, fruto da angústia alucinada e vívida em Arlt e

Erdosain, cria uma nova linhagem e ramifica-se em Junior, para quem,

sintomaticamente: “Se ha invertido la sentencia de Heráclito [...] Tenía la sensación de

que todos coincidían en soñar el mismo sueño y cada uno vivía encerrado en una

realidad distinta” (PIGLIA: 1997, p.88). Piglia retoma o duplo viés da ficção arltiana,

jornalístico e detetivesco, para desenvolver, a partir de Renzi e, consequentemente, de

Junior, um outro viés, metarreferencial, que garante à sua poética o status da

autoconsciência ficcional. Redimensiona, desta forma, a poética arltiana, atualizando a

sua dimensão híbrida no espaço esquizofrênico da arte pós-moderna. A leitura que

Beatriz Sarlo faz de Arlt serve-nos como uma luz oblíqua a iluminar a ficção sucedânea

de Piglia:

Las dos muertes de Erdosain señalan las condiciones de la escritura de

las novelas de Arlt. Por un lado, el periodismo; por el otro, ese borde

donde, como en Crimen y Castigo, la novela se toca con la crónica

policial. La ficción arltiana muestra cómo un personaje de novela

termina en la página de crímenes de un diario de masas. Durante años,

el carácter plebeyo de la literatura de Arlt desconcertó a los lectores

Page 5: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

que establecían un corte nítido entre los géneros masivos y la

literatura “culta”. (ARLT: 2000, p.XVII)

A sombra de Arlt com seu quixotismo dilacerado, impossível frente à sociedade

estilhaçada, de contornos invisíveis, revive em Junior. Nesse sentido, se os escritos de

Arlt “captam o núcleo paranóico do mundo moderno: o impacto das ficções públicas, a

manipulação da crença, a invenção dos fatos, a fragmentação do sentido, a lógica do

complô” (PIGLIA: 2004, p.34), o romance de Piglia repete o gesto. Colocado agora

diante de uma nova configuração social, ditatorial, a cultura do espetáculo, a literatura

de Piglia coloca em evidência a ideia de que o poder ficcionaliza o real para apagar as

marcas da opressão (PIGLIA: 2000, p.11). Junior é um personagem-leitor e também

fruto de uma leitura, a encarnação ficcional das leituras que Piglia faz da tradição

literária argentina.

Embora a presença de Arlt seja importante para a construção do protagonista, é

Macedonio Fernández, escritor excêntrico e contemporâneo de autores como Leopoldo

Lugones e Roberto Jorge Payró, quem imanta a força do texto. A trama gira em torno de

uma busca que, em princípio detetivesca, logo vai-se revelando como uma grande

metáfora literária. Observa-se que a trama vai se constituindo num caleidoscópio

narrativo, pois, entrecortando a trama principal, na qual Junior busca respostas sobre o

“Museo”, proliferam relatos que se constroem dentro de novos relatos. A grande

metáfora do romance reside, desta forma, na simbologia representada pelo Museo, ele

próprio uma máquina de produzir relatos. Para compreender melhor estas relações

simbólicas, é preciso aventurar-se pelo magnífico texto que está por trás de toda a

trama: El Museo de la novela de la Eterna.

A onipresença de Macedonio Fernández no romance se explica pelo seu

reconhecido trabalho de exploração do universo narrativo, o qual tanto para Piglia

quanto mesmo para o exigente Borges significara uma revolução dos modelos teóricos

narratológicos. Assim, seu romance é uma espécie de antirromance, pois, ao parodiar a

ordem histórica ou o pensamento que a estrutura, acaba por transformar-se numa

linguagem em aberto, em suspenso, um “romance infinito, que inclui todas as variantes

e todos os desvios; o romance que dura o que dura a vida de quem o escreve” (PIGLIA:

2004, p.22).

Page 6: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

De fato, como sabemos hoje, Macedonio transformou esta metáfora escritural em

uma sinfonia que regeu sua vida: o autor começou a escrever El Museo em 1904 e

continuou a tarefa até sua morte, em 1952. “Durante quase cinquenta anos se enterra

metodicamente nesta obra desmesurada. O exemplo de Musil, O homem sem

qualidades. Um livro cuja própria concepção exclui a possibilidade de lhe dar fim”

(PIGLIA: 2004, p.22). Os relatos que a máquina de Macedonio produz recriam a

realidade, mantendo viva a memória de Elena, sua esposa falecida, e, mutatis mutandis,

guardando a memória deste mundo perdido. A sensação que se enraíza em Junior ao

deixar o museu é fascinante:

Había pasado dos noches casi sin dormir desde que salió del Museo.

Entraba y salía de los relatos, se movía por la ciudad, buscaba

orientarse en esa trama de esperas y de postergaciones de la que ya no

podía salir. Era difícil creer lo que estaba viendo, pero encontraba los

efectos en la realidad. Parecía una red, como el mapa de un subte.

Viajó de un lado al otro, cruzando las historias, y se movió en varios

registros a la vez. (PIGLIA: 1997, p.87)

Neste fragmento percebe-se a sobreposição dos relatos à própria concepção da

cidade, como se transitar pelas palavras fosse perambular pelas ruas. A leitura que

provoca efeitos na percepção do leitor. A literatura que promove uma nova fundação da

cidade, preenchendo os espaços vazios soterrados pelo silêncio do poder, pela nulidade

do cidadão. O mesmo Ricardo Piglia lançando mão da crítica literária complementa esta

perspectiva estabelecendo uma ponte entre a obra inaugural da consciência argentina,

Facundo (1845), e a literatura contemporânea, à qual se alinha La ciudad ausente:

El Facundo es una máquina polifacética […] trabaja con todos los

materiales y todos los géneros. En ese sentido funda una tradición. La

serie argentina del libro extraño que une el ensayo, el panfleto, la

ficción, la teoría, el relato de viajes, la autobiografía. Libros que son

como lugares de condensación de elementos literarios, políticos,

filosóficos, esotéricos. En el fondo esos libros son mapas, hojas de

ruta para orientarse en el desierto argentino. (PIGLIA: 2000, p.47)

O gesto intertextual que aproxima a tradição de Facundo ao romance de Piglia

instaura-se neste último ao final da primeira parte, intitulada a propósito de “El

encuentro”, e que está marcada por uma divisão interna, um relato dentro do relato que,

neste caso, trata-se da gravação que Renzi entrega a Junior e que dispara o gatilho da

Page 7: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

narrativa: “este es el mapa del infierno. En la tierra, como un mapa, lo que yo te cuento,

que le doy la certidumbre, era un mapa” (PIGLIA: 1997, p.37). Este relato, produto da

máquina-mulher aprisionada no museu, apresenta-se como um fluxo de memória,

plasmado de oralidade, e narra em forma de testemunho imagens de covas, de corpos,

uma clara alusão ao período ditatorial argentino e seus crimes. Segundo Gareth

Willians: “Macedonio‟s machine, producer and reproducer of myths and of images

creating and recreating collective cultural memory – has been growing increasingly

aware of its own machinations (and therefore of its own limits)” (WILLIANS: 2002,

p.162).

Com efeito, se em El Museo a metáfora do real aprisionado no universo da ficção

apresenta-se nos mais de cinquenta prólogos que preparam o leitor para o espírito

autoconsciente da obra, em La ciudad tal estratégia está contida nos inúmeros relatos de

natureza diversa que constroem o romance. De qualquer modo, fica patente a dimensão

metanarrativa em ambos os textos. Piglia apropria-se da metáfora de Macedonio e a

reinventa no espaço metaficcional da pós-modernidade, acrescentando a este

metadiálogo um outro elemento: a questão dos gêneros.

Os vários relatos que compõem La ciudad ausente formam um painel discursivo

diverso. A narrativa costura um relato a outro e, neste movimento, vai tecendo

diferentes linguagens que vão do relato policial ao poético, da ficção científica ao texto

político, do relato histórico ao fantástico. Assim pode-se depreender de um romance no

qual o personagem-detetive busca respostas para um mistério que percorre a cidade,

relato maior de uma obra polifônica onde não raro as vozes narrativas fluem líricas, de

um lirismo filosófico: “Añoramos un lenguaje más primitivo que el nuestro. Los

antepasados hablan de una época donde las palabras se extendían con la serenidad de la

llanura” (PIGLIA: 1997, p.118).

A ficção científica reside em alguns objetos do “Museo”, criações artificiais como

“Los pájaros mecánicos”, em princípio trazidos da Alemanha e, logo, reinventados por

Russo, personagem importante na trama, quem declara profeticamente:

“Los científicos son grandes lectores de novelas, los últimos

representantes del público del siglo XIX, los únicos que se toman en

serio la incertidumbre de la realidad y la forma de un relato […] El

resto del mundo se dedica a creerse en las supersticiones da

televisión.” (PIGLIA: 1997, p.141)

Page 8: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

Este personagem, Rajzarov, o Russo, amigo de Macedonio, parece representar

uma espécie de Frankestein, uma versão moderna do clássico gótico. Após uma

explosão, aparece para Macedonio desfigurado, quase transformado num fantasma:

“estaba hecho de metal más que de vida” (PIGLIA: 1997, p.152). Ele havia sido um

exímio inventor e os objetos que cria ganham vida, ainda que artificialmente. O que

importa é que a memória do mundo sobrevive nos objetos que ele cria, como num

museo, onde a vida permanece aprisionada em uma escala menor. Ao contrário, porém,

do museo, estes objetos, como a máquina de produzir relatos, vão ganhando vida

própria. Novamente eis a metáfora da literatura, a qual recria “artificiosamente” o real

por meio das palavras, as quais, depois de criadas, assumem uma personalidade própria.

É interessante lembrar que Elena, quando questionada pelo Doctor Arana o que

era ser uma máquina, responde-lhe: “Nada [...] Una máquina no es, una máquina

funciona” (PIGLIA: 1997, p.68). Elena, a mulher-máquina, não se questiona enquanto

ser, ela sabe que tem uma função a exercer, e o faz ininterruptamente. Arana é

psiquiatra, discípulo de Jung, e não se surpreende com a resposta de Elena, ao contrário,

contra-argumenta dizendo apenas “Muy ingenioso”. Entendemos a ausência de surpresa

no personagem; ele vê Elena como uma memória coletiva, um inconsciente desperto da

cidade. Elena, quando levada à Clínica, local de trabalho de Arana, assim a descreve:

“La Clínica era la ciudad interna y cada uno veía lo que quería ver. Nadie parecía tener

recuerdos propios” (PIGLIA: 1997, p.69).

O clima de mistério, de silenciamento da cidade, posto que imersa em um espaço

de vigilância, obriga os personagens a se moverem nas sombras, em diálogos

entrecortados. O fantástico reside nesta ambientação por vezes onírica, por vezes

neurótica, mas, sobretudo, sustenta-se pela constante sensação de morte que serpenteia

pelas linhas do romance do começo ao fim: “Rastro do fantástico, a morte também

ronda, na figura de Elena morta-viva, nos poços com restos mortais, no bezerro de olhos

brancos antes da degola, no cemitério de antigas tribos debaixo de uma casa, no suicídio

de um dos primeiro habitantes de uma ilha [...]” (GROTTO: 2009, p.117).

Por fim, cabe examinar a importância do personagem Renzi na poética pigliana e,

por conseguinte, no romance La ciudad ausente. Renzi aparece, sintomaticamente,

como narrador indireto, em segundo grau, do romance, afinal parte dele a gravação

Page 9: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

entregue a Junior que motiva a peripécia da ação narrativa: “Tenía la grabación que le

había dado Renzi. Era el último relato conocido de la máquina” (PIGLIA: 1997, p.30).

A partir deste gesto, a narrativa conecta Junior, protagonista deste romance, com a

figura de Renzi, seu “preceptor” no Jornal e, a partir daí, desencadeia-se uma rede

narrativa que irá culminar no mise-en-abyme pigliano. Reforça-se esta leitura genética

com o nome dado ao protagonista, Junior, etimologicamente alcunha de alguém mais

jovem (do latim junior-oris), mais novo em relação a outro, sobretudo dado um

contexto familiar. Junior está geneticamente ligado à tradição de Renzi, do escritor-

jornalista-intelectual, à qual se referia Sarlo anteriormente, tríade que também pode ser

lida, dentro da poética de Piglia, a partir do eixo jornalista-leitor-detetive. Desta forma,

o romance conecta-se à poética de outro escritor referência para Piglia, Rodolfo Walsh,

quem já desenvolvera em suas obras a figura do narrador jornalista, Daniel Hernández,

que resolve as tramas do texto pela linguagem:

For the narrator and detective, the most interesting part is the enigma.

Emilio Renzi, both narrator and detective, is aware of the fictional

structure of narrative as he unravels the mystery of the text. This

knowledge points to the device of a “story within a story”, since the

solving of the riddle functions as another story whose referent is the

fictional story being told. (LOCKHART: 2004, p.149)

Inevitavelmente, esta figura do jornalista detetive está ligada a uma tradição da

narrativa militante, já mais claramente anunciada em Respiración artificial, a qual

encontra solo fértil na escrita à flor da pele de Rodolfo Walsh. São escrituras que por

caminhos diferentes propõe-se como intervenções na realidade, golpes à base de

trincheiras de palavras e de ideias. Em Piglia, a narrativa, diferentemente de Walsh,

assume um tom mais metaficcional, articulando-se no diálogo com a tradição literária

argentina. Assim, por meio das releituras de Arlt, Macedonio, Walsh e, jamais percamos

de vista, Borges, Ricardo Piglia conecta seu leitor à história da literatura argentina.

La ciudad ausente funciona, a exemplo da poética de Macedonio, como um

microcosmos no qual o real não se projeta, mas se reconfigura em diversos planos, em

diferentes níveis. É notável a conclusão a que chega o personagem Russo: “Un relato no

es otra cosa que la reproducción del orden del mundo en una escala puramente verbal.

Una réplica de la vida, si la vida estuviera hecha sólo de palabras” (PIGLIA: 1997,

p.139). Vamos entrando neste labirinto de relatos, obstinados por encontrar uma lógica,

Page 10: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

ansiosos por ordenar o caos deste universo, na esperança de que: “Todo es posible, basta

encontrar las palabras” (PIGLIA: 1997, p.141).

Ao final, todavia, nos deparamos com a mesma nota melancólica de Macedonio,

que dialoga virtualmente com Russo: “pero la vida no está hecha sólo de palabras, está

también por desgracia hecha de cuerpos, es decir, decía Macedonio, de enfermedad, de

dolor y de muerte” (PIGLIA: 1997, p.139). Talvez resta-nos, como para Junior, Renzi,

Macedonio, Piglia, refugiar-nos na aparente segurança das palavras, esquecendo-nos,

por algum tempo, o tempo que dura o mergulho cego na ficção, que ao penetrarmos em

seu território estamos pisando ainda o terreno instável e movediço da experiência

humana.

Referências bibliográficas

ARLT, Mira. “La locura de la realidad en la ficción de Arlt”, In: PELLETTIERI,

Osvaldo. Roberto Arlt – Dramaturgia y Teatro Independiente. Buenos Aires: Galerna,

2000, p.13-24.

ARLT, Roberto. Los siete locos. Los lanzallamas. Edición crítica de Mario Goloboff.

Nanterre: ALLCA XX, 2000.

GANCEDO, Daniel Mesa (coord.). Ricardo Piglia. La escritura y el arte nuevo de la

sospecha. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2006.

GROTTO, Lívia. “O invisível em La ciudad ausente”, In: Revista Rua. Nº15-Vol.2.

Campinas: 2009, p.116-129.

LOCKHART, Darrel B. Latin American mystery writers: an A-to-Z guide. Westport:

Greenwood Press, 2004, p.147-152.

PEREIRA, Maria Antonieta. “Museu-máquina: Ricardo Piglia e seus precursores”, In:

Em tese. Vol.II. Belo Horizonte: 1998, p.31-41.

PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. Buenos Aires: Seix Barral, 2000.

PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

PIGLIA, Ricardo. La ciudad ausente. Buenos Aires: Seix Barral, 1997.

PIGLIA, Ricardo. Plata quemada. Buenos Aires: Seix Barral, 2003a.

PIGLIA, Ricardo. Respiración artificial. (1980) Buenos Aires: Seix Barral, 2003b.

Page 11: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE RESUMOcac-php.unioeste.br/eventos/iisnel/CD_IISnell/pages/simposios... · ... romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de 1992, ... museo

II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires, 1920 y 1930. Buenos

Aires: NuevaVisión, 1988.

WILLIANS, Gareth. “Hear say yes in Piglia”, In: The other side of the popular:

neoliberalism and subalternity in Latin America. Duke University Press: 2002, p.143-

173.