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 Carlos Drummond de Andrade  Fazedor de homens William Shakespeare  Coletânea escolhida Giuseppe Guiaroni  A palavra querida Manuel Bandeira  O inútil luar Manuel Bandeira  Vou-me embora pra Pasárgada Raquel de Queiroz  Telha de vidro Giuseppe Guiaroni  A máquina de escrever  Giuseppe Guiaroni  Dia das mães Carlos Drummond de Andrade - Resíduo J. G. de Araújo Jorge  O verbo amar  J. G. de Araújo Jorge  Existo Carlos Drummond de Andrade  Declaração em juízo Vicente de Carvalho  Cair das folhas Vicente de Carvalho  Velho Tema II Álvares de Azevedo  Tristeza Olegário Mariano  O enamorado das rosas Olegário Mariano  As duas sombras Mário de Sá Carneiro Quase Mário de Sá Carneiro - Dispersão  José Saramago  Não me peçam razões Olavo Bilac - Remorso Manoel Bandeira  Crepúsculo d e Outono J. G. de Araújo Jorge - Outono Fernando Pessoa  Uma névoa de outono o ar raro vela Cecília Meireles  Canção de Outono Gregório de Matos  Coletânea escolhida  9 (nove) poemas Olavo Bilac  Velhas árvores Jorge Luís Borges  El soneto Del vino Pietro Gambore  Entre o céu e a terra Henriqueta Lisboa  Coletânea escolhida 

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Carlos Drummond de Andrade  – Fazedor de homens William Shakespeare  – Coletânea escolhida 

Giuseppe Guiaroni  – A palavra querida Manuel Bandeira  – O inútil luar  

Manuel Bandeira  – Vou-me embora pra Pasárgada Raquel de Queiroz  – Telha de vidro Giuseppe Guiaroni  – A máquina de escrever  

Giuseppe Guiaroni  – Dia das mães Carlos Drummond de Andrade - Resíduo J. G. de Araújo Jorge  – O verbo amar  J. G. de Araújo Jorge  – Existo Carlos Drummond de Andrade  – Declaração em juízo Vicente de Carvalho  – Cair das folhas Vicente de Carvalho  – Velho Tema II 

Álvares de Azevedo  – Tristeza Olegário Mariano  – O enamorado das rosas 

Olegário Mariano  – As duas sombras Mário de Sá Carneiro – Quase Mário de Sá Carneiro - Dispersão José Saramago  – Não me peçam razões Olavo Bilac - Remorso Manoel Bandeira  – Crepúsculo de Outono J. G. de Araújo Jorge - Outono 

Fernando Pessoa  – Uma névoa de outono o ar raro vela Cecília Meireles  – Canção de Outono 

Gregório de Matos  – Coletânea escolhida  – 9 (nove) poemas Olavo Bilac  – Velhas árvores Jorge Luís Borges  – El soneto Del vino Pietro Gambore  – Entre o céu e a terra Henriqueta Lisboa  – Coletânea escolhida 

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Fazedor de Homens

Todo homem é uma ilha...É bom ser uma ilha distante

tanto quanto é bom ser um homem.

Todo homem possui uma pontepois é preciso sair da ilha, seguro.

 A ponte de um homem é um braço estendido.

Todo homem é um mundo.O mundo roda no sistema egocêntrico

de suas realidades,pequenos alumbramentos,

medos e coragens.

E quando o homem encara omundo e se depara

- homem-mundo,mundo-homem,volta à ilha:

Todo homem ama sua ilha.

II

O homem faz o homem.E porque fez o homem, sem nem o

homem querer aufere direitos do homem.Diz a ele: Cresça!

E ele fica mais alto.

Diz ao homem: Trabalhe!

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E ele usa o corpo.Diz ao homem: Viva!E ele respira e existe.Diz ao homem: Ame!E ele não sabe como.

Mas diz ao homem: Procrie!

E ele faz homens.

Um dia ele morre.Se a vida foi longa para viver -

é curta para morrer -porque o homem não fez, não escolheu,

não pensou nada.

III

O que faz um homem diferente de

outro homem é o que ele pensa.O que o transforma, também,

de um simples fazedor de homens,num criador de homens.

Todo homem é uma vontade.E se deixa de ser vontade

teme a perda de sua posse.Todo homem é uma consciência.

Nela inclui o seu saber e a parte maior do não saber,

e se aceita o fato, é com ela que ele se entende.

Todo homem é seu corpo.E sabe dele em contraste com outro corpo,

tal é a sua medida.Como também, a medida de um homem é a sua carência:

porque é assim que ele se assume,porque é assim que ele se liberta.

Quanto mais ele precisa

mais ele é maior. E dá.Pede. Reivindica. Exige, quanto pode.Luta e sofre.

Todo homem quer deixar sua ilha.Temeroso de ter que voltar um dia, entretanto,

não destrói as pontes.Enquanto isso, a ilha fica ali, só ilha.

 A ponte fica ali, só ponte.E o homem fica ali, só homem.

Car los Drumm ond de And rade 

Publicado no Jornal Última Hora (RJ) de 23/04/73

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Soneto 18 - Shakespeare

Devo igualar-te a um dia de verão?Mais afável e belo é o teu semblante:O vento esfolha Maio inda em botão,

Dura o termo estival um breve instante.

Muitas vezes a luz do céu calcina,Mas o áureo tom também perde a clareza:

De seu belo a beleza enfim declina, Ao léu ou pelas leis da Natureza.

Só teu verão eterno não se acabaNem a posse de tua formosura;

De impor-te a sombra a Morte não se gabaPois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.

Enquanto houver viventes nesta lida,Há-de viver meu verso e te dar vida.

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Se Nada Há de Novo

Se nada há de novo e tudo o que há já dantes era como agora é,

só ilusão a criação será:criar o já criado para quê?

Que alguém me mostre, sobre um livro antigocomo quinhentas translações astrais,a tua imagem, na inscrição, no abrigo

do espírito em seus signos iniciais.Que eu saiba o que diria o velho mundo

deste milagre que é a tua forma;se te viram melhor, se me confundo,

se as translações seguem a mesma norma.Mas disto estou seguro: antigos textos

louvaram mais com bem menores pretextos.

William Shakespeare, in "Sonetos"  Tradução de Carlos de Oliveira 

A Noite não me Deu nenhum Sossego

Como voltar feliz ao meu trabalhose a noite não me deu nenhum sossego?

 A noite, o dia, cartas dum baralhosempre trocadas neste jogo cego.

Eles dois, inimigos de mãos dadas,me torturam, envolvem no seu cercode fadiga, de dúbias madrugadas:

e tu, quanto mais sofro mais te perco.Digo ao dia que brilhas para ele,

que desfazes as nuvens do seu rosto;digo à noite sem estrelas que és o mel

na sua pele escura: o oiro, o gosto.Mas dia a dia alonga-se a jornada

e cada noite a noite é mais fechada.

William Shakespeare, in "Sonetos"  Tradução de Carlos de Oliveira

Meus Olhos Veem Melhor se os Vou Fechando

Meus olhos veem melhor se os vou fechando.Viram coisas de dia e foi em vão,

mas quando durmo, em sonhos te fitando,são escura luz que luz na escuridão.Tu cuja sombra faz a sombra clara,

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como em forma de sombras assombravasledo o claro dia em luz mais rara,

se em sombra a olhos sem visão brilhavas!Que benção a meus olhos fora feita

vendo-te à viva luz do dia bem,

se a tua sombra em trevas imperfeitaa olhos sem visão no sono vem!Vejo os dias quais noites não te vendo,e as noites dias claros sonhos tendo.

William Shakespeare, in "Sonetos (43)"  

Soneto 107 

Medos, nem alma capaz de prever 

Medos, nem alma capaz de prever Os sonhos de porvir do mundo inteiro,

Podem o meu amor circunscrever,Nem dar-lhe fado triste por certeiro.

 A Lua seu eclipse superou,Os agourentos de si podem rir, A incerteza agora se firmou,

 A paz proclama olivas no porvir.Com o orvalho dos tempos refrescadoO meu amor a própria morte prendeE em meus versos vivo consagrado,

Enquanto as tribos mudas ela ofende. Aqui encontrarás teu monumento,

E o bronze dos tiranos vai com o vento.

Soneto 54 

Oh, como a beleza parece mais belacom o doce ornamento que a verdade produz!

 A rosa tão bela, mas mais bela a julgamosPelo doce aroma que nela seduz.

 As rosas silvestres têm a cor tão profundaQuanto a tintura das rosas perfumadas,

Têm os mesmos espinhos e brincam tão vivamenteQuando o sopro do verão expõe os botões velados;

Mas exibem-se apenas para si mesmas,Vivem esquecidas e murcham obscuras;Morrem sozinhas. As doces rosas, não;

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 De suas doces mortes surgem as mais doces essências.

e assim também a ti, a bela e adorável mocidade,Fenecido o frescor, revela em versos tua verdade.

Soneto 73

Em mim tu vês a época do estio 

Em mim tu vês a época do estioNa qual as folhas pendem, amarelas,De ramos que se agitam contra o frio,

Coros onde cantaram aves belas.Tu me vês no ocaso de um tal dia

Depois que o Sol no poente se enterra,

Quando depois que a noite o esvazia,O outro eu da morte sela a terra.Em mim tu vês o brilho da pira

Que nas cinzas de sua juventudeComo em leito de morte agora expira

Comido pelo que lhe deu saúde.Visto isso, tens mais força para amar 

E amar muito o que em breve vais deixar.

William Shakespeare

Resumo

William Shakespeare foi um poeta e dramaturgo inglês, tido como o maior escritor do idioma inglês e o maisinfluente dramaturgo do mundo. É chamado frequentemente de poeta nacional da Inglaterra e de "Bardo do Avon" (ou simplesmente The Bard , "O Bardo").

Nasceu em 26 de abril de 1564 em Stratford-upon-Avon onde também foi criado.

Foi um poeta e dramaturgo respeitado em sua própria época, mas sua reputação só viria a atingir o nívelem que se encontra hoje no século XIX. Os românticos, especialmente, aclamaram a genialidade deShakespeare, e os vitorianos idolatraram-no como um herói, com uma reverência que George BernardShaw chamava de "bardolatria". No século XX sua obra foi adotada e redescoberta repetidamente por novos movimentos, tanto na academia e quanto na performance. Suas peças permanecem extremamentepopulares hoje em dia , e são estudadas, encenadas e reinterpretadas constantemente, em diversoscontextos culturais e políticos, por todo o mundo.

William Shakespeare morreu em 23 de Abril de 1616, mesmo dia de seu aniversário.É bem conhecida acoincidência das datas de morte de dois dos grandes escritores da humanidade, Miguel de Cervantes eWilliam Shakespeare, ambos com data de falecimento em 23 de Abril de 1616. Porém, é importante notar que o Calendário gregoriano já era utilizado na Espanha desde o século XVI, enquanto que na Inglaterra

sua adoção somente ocorreu em 1751. Daí, em realidade, Miguel de Cervantes faleceu dez dias antes deWilliam Shakespeare.

Título 

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A palavra Querida... 

Giuseppe Ghiaronni  

 A palavra "querida", está para a garganta,como o mel para a boca e a mulher para o olhar.Quando um santo do céu, se dirige a uma santa,

de face imaculada e expressão comovida,é assim, penso, que ele a deve chamar:

oh!querida! 

Querida é um substantivo espiritual, é um nome.É um fio emocional de um ouro cristalino,

que se estende e que atrai um destino e um destino...Que alinhava e que enleia uma vida e uma vida.

Não é somente um modo de tratar, é um nome, Assim como Izabel, Marina, Margarida...

No entanto é mais que isso, é um nome divino,que em si define um sonho, um sentimento e um bem.

Querida, não é só uma palavra, é alguém,alguém que tem a vida em nossa própria vida.Querida quer dizer eu mesmo e mais alguém...

oh! querida! 

Querida é um adjetivo estranhamente feitode carinho, ciúme, adoração, ternura.

Ninguém dirá "querida" a uma mulher impura,

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pois parte da expressão fica em ecos no peito daquele que a usou...

 A expressão querida não é bem para ser falada, nem ouvida.É para que uma alma pense e outra a sinta.

Sempre será maldita uma mulher que minta, em silêncio atendendoa alguém que assim a chama,

se não se ouviu chamar, antes que ele falasse,por um tic no peito e um carinho na face,se não é profundamente a querida que o ama!

Que cruel, que infiel esta mulher fingida,que se deixa chamar de querida e, não ama,

oh!querida!

Querida, quer dizer a que eu amo e estremeço,a que é a minha amante, a minha amiga e irmã,

conheço-a mais que a mim e a tudo que conheço,e com ela eu esqueço o ontem e o amanhã.

 A palavra querida é a articulação do primeiro vagido instintivo e inconsciente.

É Deus na nossa boca e o céu na nossa frente,é ter mundos no olhar, ter estrelas na mão,é ser um fio d´água e uma constelação...

é partilhar da grande Vida Universal,é viver, mas viver como anjo e animal,é encontrar o espaço e resumir a vida,

é trilhar confiante uma senda perdidaé ser quase divino é ser quase brutal,é ter uma utopia entre a sala e o quintal

é prender-te, sentir-te integrada, diluída em meus braços, em mim,infiltrada em meus poros, depois que eu derrubei os gigantes e os toros

da floresta do mundo e a transpus triunfante!

É te chamar "querida" e ver o teu semblantetranstornado de luz, uma luz comovida...

É chegares o ouvido ao meu peito anelante

e ouvir meu coração dizer de instante em instante:Oh! querida... querida... 

Título 

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 Manuel Bandeira O inútil luar  

É noite. A Lua, ardente e terna,Verte na solidão sombria

 A sua imensa, a sua eternaMelancolia...

Dormem as sombras na alameda Ao longo do ermo Piabanha.E dele um ruído vem de seda

Que se amarfanha. . .

No largo, sob os jambolanos,Procuro a sombra embalsamada.

(Noite, consolo dos humanos!Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado.Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .

Talvez se lembre aqui, coitado!De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel . . .Dobra-o direito, ajusta as pontas,

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E pensativo, a olhar o anel,Faz umas contas . . .

Com outro moço que se cala,Fala um de compleição raquítica.

Presto atenção ao que ele fala:— É de política.

 Adiante uma senhora magra,Em ampla charpa que a modela,Lembra uma estátua de Tanagra.

E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:

— "Mamãe não avisou se vinha.Se ela vier, mando matar 

Uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna,Verte na solidão sombria

 A sua imensa, a sua eternaMelancolia . . .

Título 

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 Manuel Bandeira Vou-me embora pra Pasárgada 

Vou-me embora pra PasárgadaLá sou amigo do reiLá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolhereiVou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventuraDe tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de EspanhaRainha e falsa dementeVem a ser contraparente

Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica Andarei de bicicleta

Montarei em burro braboSubirei no pau-de-seboTomarei banhos de mar!

E quando estiver cansadoDeito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

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Pra me contar as históriasQue no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudoÉ outra civilizaçãoTem um processo seguroDe impedir a concepçãoTem telefone automáticoTem alcalóide à vontadeTem prostitutas bonitasPara a gente namorar 

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeitoQuando de noite me der 

Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — 

Terei a mulher que eu queroNa cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada 

Título 

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Telha de Vidro

Por Rachel de Queiroz 

Quando a moça da cidade chegouveio morar na fazenda,

na casa velha...Tão velha!Quem fez aquela casa foi o bisavô...Deram-lhe para dormir a camarinha,uma alcova sem luzes, tão escura!

mergulhada na tristurade sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,mas mandou buscar na cidade

uma telha de vidro...Queria que ficasse iluminadasua camarinha sem claridade... 

Agora,o quarto onde ela mora

é o quarto mais alegre da fazenda,tão claro que, ao meio dia, aparece umarenda de arabesco de sol nos ladrilhos

vermelhos,que — coitados — tão velhos

só hoje é que conhecem a luz doa dia...A luz branca e fria

também se mete às vezes pelo clarão

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da telha milagrosa...Ou alguma estrela audaciosa

careteiano espelho onde a moça se penteia. Que linda camarinha! Era tão feia!

— Você me disse um diaque sua vida era toda escuridão

cinzenta,fria,

sem um luar, sem um clarão...Por que você na experimenta?A moça foi tão vem sucedida...

Ponha uma telha de vidro em sua vida! 

Título 

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Giuseppe Ghiaroni  

A Máquina de Escrever 

Mãe, se eu morrer de um repentino mal,

vende meus bens a bem dos meus credores:a fantasia de festivas cores

que usei no derradeiro Carnaval.

Vende ese rádio que ganhei de prêmiopor um concurso num jornal do povo,e aquele terno novo, ou quase novo,

com poucas manchas de café boêmio.

Vende também meus óculos antigosque me davam uns ares inocentes.

Já não precisarei de duas lentespara enxergar os corações amigos.

Vende , além das gravatas, do chapéu,meus sapatos rangentes. Sem ruído

é mais provável que eu alcance o Céue logre penetrar despercebido.

Vende meu dente de ouro. O Paraísorequer apenas a expressão do olhar.

Já não precisarei do meu sorrisopara um outro sorriso me enganar.

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Vende meus olhos a um brechó qualquer que os guarde numa loja poeirenta,

reluzindo na sombra pardacenta,refletindo um semblante de mulher.

Vende tudo, ao findar a minha sorte,

libertando minha alma pensativapara ninguém chorar a minha mortesem realmente desejar que eu viva.

Pode vender meu próprio leito e roupapara pagar àqueles a quem devo.

Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupaesta caduca máquina em que escrevo.

Mas poupa a minha amiga de horas mortas,de teclas bambas,tique-taque incerto.

De ano em ano, manda-a ao consertoe unta de azeite as suas peças tortas.

Vende todas as grandes pequenezasque eram meu humílimo tesouro,

mas não! ainda que ofereçam ouro,não venda o meu filtro de tristezas!

Quanta vez esta máquina afugentameus fantasmas da dúvida e do mal,

ela que é minha rude ferramenta,o meu doce instrumento musical.

Bate rangendo, numa espécie de asma,mas cada vez que bate é um grão de trigo.Quando eu morrer, quem a levar consigo

há de levar consigo o meu fantasma.

Pois será para ela uma torturasentir nas bambas eclas solitáriasum bando de dez unhas usurárias

a datilografar uma fatura.Deixa-a morrer também quando eu morrer;

deixa-a calar numa quietude extrema,à espera do meu último poema

que as palavras não dão para fazer.

Conserva-a, minha mãe, no velho lar,conservando os meus íntimos instantes,

e, nas noites de lua, não te espantesquando as teclas baterem devagar. 

Título 

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Giuseppe Ghiaroni 

Dia das Mães

Mãe! eu volto a te ver na antiga sala

onde uma noite te deixei sem faladizendo adeus como quem vai morrer.

E me viste sumir pela neblina,porque a sina das mães é esta sina:amar, cuidar, criar, depois... perder.

Perder o filho é como achar a morte.Perder o filho quando, grande e forte, já podia ampará-la e compensá-la.

Mas nesse instante uma mulher bonita,sorrindo, o rouba, e a velha mãe aflita

ainda se volta para abençoá-la

 Assim parti, e nos abençoaste.Fui esquecer o bem que me ensinaste,

fui para o mundo me deseducar.E tu ficaste num silêncio frio,

olhando o leito que eu deixei vazio,cantando uma cantiga de ninar.

Hoje volto coberto de poeira

e te encontro quietinha na cadeira,a cabeça pendida sobre o peito.Quero beijar-te a fronte, e não me atrevo.

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Dia das Mães! É o dia da bondademaior que todo o mal da humanidade

purificada num amor fecundo.Por mais que o homem seja um mesquinho,enquanto a Mãe cantar junto a um bercinho

cantará a esperança para o mundo!

Título 

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Resíduo 

Car los Drummond de An drade 

De tudo ficou um poucoDo meu medo. Do teu asco.

Dos gritos gagos. Da rosaficou um poucoFicou um pouco de luz

captada no chapéu.Nos olhos do rufião

de ternura ficou um pouco(muito pouco).

Pouco ficou deste póde que teu branco sapatose cobriu. Ficaram poucasroupas, poucos véus rotos

pouco, pouco, muito pouco.Mas de tudo fica um pouco.

Da ponte bombardeada,de duas folhas de grama,

do maço- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.Fica um pouco de teu queixo

no queixo de tua filha.De teu áspero silêncio

um pouco ficou, um pouco

nos muros zangados,nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo

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no pires de porcelana,dragão partido, flor branca,

ficou um poucode ruga na vossa testa,

retrato.Se de tudo fica um pouco,

mas por que não ficariaum pouco de mim? no tremque leva ao norte, no barco,

nos anúncios de jornal,um pouco de mim em Londres,

um pouco de mim algures?na consoante?

no poço?Um pouco fica oscilandona embocadura dos riose os peixes não o evitam,

um pouco: não está nos livros.De tudo fica um pouco.

Não muito: de uma torneirapinga esta gota absurda,meio sal e meio álcool,salta esta perna de rã,este vidro de relógio

partido em mil esperanças,este pescoço de cisne,este segredo infantil...

De tudo ficou um pouco:de mim; de ti; de Abelardo.Cabelo na minha manga,de tudo ficou um pouco;

vento nas orelhas minhas,simplório arroto, gemidode víscera inconformada,e minúsculos artefatos:

campânula, alvéolo, cápsulade revólver... de aspirina.De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.Oh abre os vidros de loçãoe abafa

o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,e sob as ondas ritmadas

e sob as nuvens e os ventose sob as pontes e sob os túneis

e sob as labaredas e sob o sarcasmoe sob a gosma e sob o vômito

e sob o soluço, o cárcere, o esquecidoe sob os espetáculos e sob a morte escarlatee sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes

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e sob tu mesmo e sob teus pés já durose sob os gonzos da família e da classe,

fica sempre um pouco de tudo.

 Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Título 

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O verbo amar JG de Araujo Jorge 

Te amei: era de longe que te olhavae de longe me olhavas vagamente... Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente,

que a alma da gente faz escrava.

Te amava: como inquieto adolescente,tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava

adivinhando esse mistério ardentedo mundo, em cada beijo que te dava.

Te amo: e ao te amar assim vou conjugando

os tempos todos desse amor, enquantosegue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...

Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,e é por ti que o repito no meu canto:

te amei, te amava, te amo e te amarei!

(Poema de JG de Araujo Jorge do livro -Bazar de Ritmos- 1935)

Título 

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"Existo"JG de Araujo Jorge 

Seu amor me fez real, e me deu sentidoda alegria de ser, total, completamente...

Fez de um pobre poeta em sonhos consumidoalguém que tem nas mãos um mundo! e sofre, e sente!

Seu amor foi a vida a irromper da sementede um velho coração cansado e ressequido,o verde que voltou ao ramo nu, pendente,a imprevisível flor, o fruto inconcebido...

Seu amor foi milagre a cantar pelo chão

como a água, no agreste, a acenar ao viajantea esperança, o prazer, a vida, a salvação...

Passo a existir, quem sabe ? apenas porque amei...E ela existe talvez, a partir deste instante

porque ela e o seu amor... em versos transformei!

Título 

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Declaração em juízo 

Carlos Drummond de Andrade

Peço desculpas de ser o sobrevivente.

Não por longo tempo, é claro,tranquilizem-se.

Mas devo confessar, reconhecer que sou sobrevivente.

Se é triste/cômicoficar sentado na plateia

quando o espetáculo acaboue fecha-se o teatro,

mais triste/grotesco é permanecer no palco,ator único, sem papel,

quando o público já virou as costase somente baratas

circulam no farelo.Reparem: não tenho culpa.Não fiz nada para ser 

sobrevivente.Não roguei aos altos poderes

que me conservassem tanto tempo.Não matei nenhum dos companheiros.

Se não saí violentamente,se me deixei ficar ficar ficar,foi sem segunda intenção.

Largaram-me aqui, eis tudo,e lá se foram todos, um a um,

sem prevenir, sem me acenar,sem dizer adeus, todos se foram.(houve os que requintaram no silêncio).

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Não me queixo. Nem os censuro.Decerto não houve propósito

de me deixar entregue a mim mesmo,perplexo, desentranhado.

Não cuidaram que um sobraria,foi isso. Tornei, tornaram-me

sobre - vivente.

Se admiram de eu estar vivo,esclareço: estou sobrevivo.viver, propriamente, não vivi

senão em projeto. Adiamento.Calendário do ano próximo.

 jamais percebi estar vivendoquando em volta viviam quantos! Quanto.

 Alguma vez os invejei.Outras, sentia pena de tanta vida

que se exauria no viver enquanto o não viver,o sobreviver duravam, perdurando.e me punha a um canto, à espera,

contraditória e simplesmente,de chegar a hora de também viver.

Não chegou. Digo que não.Tudo foram ensaios,

testes, ilustrações. a verdadeira vidasorria longe, indecifrável. Desisti.

Recolhi-me cada vez mais,concha à concha. Agora sou sobrevivente.

Sobrevivente incomodamais que fantasma.Sei a mim mesmo

incomodo-me.O reflexo é uma prova feroz.Por mais que me esconda, projeto-me,

devolvo-me, provoco-me.não adianta ameaçar-me.

Volto sempre,todas as manhãs me volto, viravolto

com exatidão de carteiro que distribui más notícias.O dia todo é dia

de verificar o meu fenômeno.Estou onde não estão

minhas raízes, meu caminho

onde sobrei,insistente, reiterado, aflitivo

sobreviventeda vida que ainda

não vivi, juro por deus e o diabo, não vivi.Tudo confessado, que pena

me será aplicada, ou perdão?Desconfio nada pode ser feito

a meu favor ou contra,nem há técnica de fazer, desfazer 

o infeito infazível.Se sou sobrevivente, sou sobrevivente.

Cumpre reconhecer-me esta qualidadeque finalmente o é.

Sou o único, entendem?

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De um grupo muito antigode que não há memória nas calçadas

e nos vídeos.Único a permanecer, a dormir,

a jantar, a urinar,a tropeçar, até mesmo a sorrir 

em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio,

como neste momento estou sorrindode ser - delícia? - sobrevivente.É esperar apenas, está bem?

Que passe o tempo de sobrevivênciae tudo se resolve sem escândalo

ante a justiça indiferente. Acabo de notar, e sem surpresa:

não me ouvem no sentido de entender,nem importa que um sobrevivente

venha contar seu caso, defender-seou acusar-se, é tudo a mesma

nenhuma coisa, e branca.

Fonte: Blog Café Brasil01.11.2011

Título 

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CAIR DAS FOLHAS Vicente de Carvalho*

 “Deixa-me, fonte”! Dizia A flôr, tonta de terror.E a fonte, sonora e fria,Cantava, levando a flor.

 “Deixa-me, deixa-me, fonte!””  Dizia a flor a chorar:

 “Eu fui nascida no monte...  “Não me leves para o mar”. 

E a fonte, olo e fria,Com um sussurro zombador,Por sobre a areia corria,

Corria levando a flôr.

 “Ai, balanços do meu galho,  “Balanços do berço meu; 

 “Ai, claras gotas de orvalho  “Caídas do azul do céu!...”  

Chorava a flor, e gemia,Branca, branca de terror,E a fonte sonora e fria,Rolava, levando a flor.

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  “Adeus, sombra das ramadas, 

 “Cantigas do rouxinol;  “Ai, festa das madrugadas, 

 “Doçuras do pôr do sol; 

 “Caricia das brizas leves  “Que abrem rasgões de luar...  “Fonte, fonte, não me leves, 

 “Não me leves para o mar!...”  *

As correntezas da vidaE os restos do meu amorResvalam numa descida

Como a da fonte e da flor...

POEMAS E CANÇÕES (SEGUNDA EDIÇÃO) 

Porto: Livraria Chardon, 1909250 p. 18 cmx 12 cm. 

(Conservamos a ortografia antiga, original)

*Vicente Augusto de Carvalho , o “Poeta do Mar ”    , nasceu em Santos (SP),em 05/04/1866, lá faleceu no dia 22/04/1924. Poeta, contista, advogado, jornalista, político e magistrado. Foi grande artista do verso, da fase criadorado Parnasianismo. Ocupou a Cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras,tendo sido eleito em 1º de maio de 1909, na sucessão de Artur Azevedo. 

Título 

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Velho Tema II 

Vicente de Carvalho 

Eu cantarei de amor tão fortemente

Com tal celeuma e com tamanhos bradosQue afinal teus ouvidos, dominados,

Hão de à força escutar quanto eu sustente.

Quero que meu amor se te apresente- Não andrajoso e mendigando agrados,Mas tal como é: risonho e sem cuidados,Muito de altivo, um tanto de insolente.

Nem ele mais a desejar se atreve

Do que merece: eu te amo, e o meu desejoApenas cobra um bem que se me deve.

Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;E vou de olhos enxutos e alma leveÀ galharda conquista do teu beijo.

Título 

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TRISTEZA

Álvares d e Azevedo*  

Eu deixo a vida como deixa o tédioDo deserto o poente caminheiro;

Como as horas de um longo pesadelo

Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como um desterro de minha alma errante,Onde o fogo insensato a consumia...

Só levo uma saudade — é desses temposQue amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade — é dessas sombrasQue eu sentia velar nas noites minhas...

De ti, ó minha mãe, pobre coitada,Que por minha tristeza te definhas!

Descansem o meu leito solitárioNa floresta dos homens esquecida,

 À sombra de uma cruz — e escrevam nela:Foi poeta, sonhou e amou na vida...

(Do livro: “ Antologia Nacional”, Livraria Francisco Alves, 1963, RJ)

*Álvares de Azevedo (1831-1852) foi um poeta, escritor e contista, da segunda geraçãoromântica brasileira. Suas poesias retratam o seu mundo interior. É conhecido como “o

poeta da dúvida”.A figura da mulher aparece em seus versos, ora como um anjo, oracomo um ser fatal, mas sempre inacessível. Álvares de Azevedo é Patrono da cadeira nº2, da Academia Brasileira de Letras.

Título 

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O enamorado das rosas 

Olegári o Mar iano*  

Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,Ouvindo a água da fonte que murmura,Rego as minhas roseiras com ternura,

Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.

Cada um tem um suave movimentoQuando a chamar minha atenção procura

E mal desabrochada na espessura,Manda-me um gesto de agradecimento.

Se cultivei amores às mancheias,Culpa não cabe às minhas mãos piedosas

Que eles passassem para mãos alheias.

Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas, Alimento a ilusão de que essas rosas, Ao menos essas rosas, sejam minhas.

*Olegário Mariano Carneiro da Cunha, poeta, diplomata, deputado federal e constituinte, nasceu no Poço daPanela, arrabalde da cidade do Recife, estado de Pernambuco, no dia 24 de março, no mesmo ano daProclamação da República, em 1889. Segundo os biógrafos da Academia Brasileira de Letras, da qual foimembro, “sua poesia lírica é simples, correntia, de fundo romântico, pertinente à fase do sincretismoparnasiano-simbolista de transição para o Modernismo. Ficou conhecido como o “poeta das cigarras”, por causa de um de seus temas prediletos e considerado o último poeta romântico brasileiro.

Título 

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As duas sombras

Olegário Mariano

Na encruzilhada silenciosa do Destino,Quando as estrelas se multiplicam,

Duas sombras errantes se encontram .

 A primeira falou : - Nasci de um beijo.De luz, sou força, vida, alma, esplendor.

Toda a ânsia do Universo...Eu sou o Amor.O mundo sinto olo a a meus pés...Sou Delírio...Loucura...E tu, quem és?

Eu nasci de uma lágrima. Sou flama.Do teu incêndio que devora...

Vivo, dos olhos tristes de quem ama,Para os olhos nevoentos de quem chora.

Dizem que ao mundo vim para ser boa.Para dar do meu sangue a quem queira.

Sou a saudade, a tua companheiraQue punge, que consola e que perdoa...

Na encruzilhada silenciosa do Destino As duas sombras se abraçaram.

E desde então, nunca mais sesepararam.··. 

Título 

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QUASE 

Mário de Sá carneiro *  

Um pouco mais de sol — eu era brasa.

Um pouco mais de azul — eu era além.Para atingir, faltou-me um golpe de asa...Se ao menos eu permanecesse aquém...

 Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaídoNum baixo mar enganador d’espuma;

E o grande sonho despertado em bruma,O grande sonho — ó dor! — quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,

Quase o princípio e o fim — quase a expansão...Mas na minh’alma tudo se derrama...

Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... — Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,

 Asa que se elançou, mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...Templos aonde nunca pus um altar...Rios que perdi sem os levar ao mar...

Título 

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 Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;E mãos de herói, sem fé, acobardadas,

Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,Tudo encetei e nada possuí...

Hoje, de mim, só resta o desencantoDas coisas que beijei mas não vivi...

Dispersão 

Perdi-me dentro de mimPorque eu era labirinto

E hoje, quando me sinto.

É com saudades de mim.Passei pela minha vida

Um astro doido a sonhar,Na ânsia de ultrapassar,

Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,Não tenho amanhã nem hoje:O tempo que aos outros fogeCai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de ParisLembra-me o desaparecido

Que sentia comovidoOs Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,É bem-estar, é singeleza,E os que olham a beleza

Não têm bem-estar nem família).

Pobre moço das ânsias...Tu, sim, tu eras alguém!

E foi por isso também

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Que me abismastes nas ânsias.

 A grande ave doiradaBateu asas para os céusMas fechou-se saciada

 Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo:

Eu fui amante inconstanteQue se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerroNem as linhas que protejo:

Se me olho a um espelho, erroNão me acho no que projeto.

Regresso dentro de mimMas nada me fala, nada!

Tenho a alma amortalhada,Sequinha dentro de mim.

Não perdi a minha alma,Fiquei com ela, perdida.

 Assim eu choro, da vida,Eu nunca vi... mas recordo

 A sua boca doiradaE o seu corpo esmaecido,

Em um hálito perdidoQue vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudadesSão do que nunca enlacei.

 Ai, como eu tenho saudadesDos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte — 

Minha dispersão total — Existe lá longe, ao norte,Numa grande capital.

Vejo o meu último diaPintado em rolos de fumo,

E todo azul-de-agoniaEm sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,Eu beijo as minhas mãos brancas...

Sou amor e piedadeEm face dessas mãos brancas. . .

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Tristes mãos longas e lindasQue eram feitas pra se dar Ninguém mas quis apertar 

Tristes mãos longas e lindas

Eu tenho pena de mim,

Pobre menino ideal...Que me faltou afinal?Um elo? Um rastro?... Ai de mim!

Desceu-me n’alma o crepúsculo;Eu fui alguém que passou.Serei, mas já não me sou;

Não vivo, durmo o crepúsculo.

 Álcool dum sono outonalMe penetrou vagamente

 A difundir-me dormenteEm, uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,E, louco, não enlouqueço...

 A hora foge vividaEu sigo-a, mas permaneço ..

.

*Mário de Sá Carneiro foi poeta,  contista e ficcionista português, um dos grandesexpoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geraçãod’Orpheu. Nasceu em Lisboa no dia 19 de Maio de 1890 e faleceu em Paris, em 26 de Abril de 1916. Época /Gênero literário: ModernismoMagnum opus¹: Céu em Fogo

¹Magnum opus, em latim, significa grande obra. Refere-se à melhor, mais popular ourenomada obra de um artista 

Título 

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Não me Peçam Razões

Jo séSaram ago 

Não me peçam razões, que não as tenho,Ou darei quantas queiram: bem sabemosQue razões são palavras, todas nascemDa mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda A força de maré que me enche o peito,

Este estar mal no mundo e nesta lei:Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,Deste modo de amar e destruir:

Quando a noite é de mais é que amanhece A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago, in “ Os Poemas Possíveis”  

Título 

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Remorso

Olavo B ilac 

 Às vezes, uma dor me desespera...Nestas ânsias e dúvidas em que ando.Cismo e padeço, neste outono, quando

Calculo o que perdi na primavera.

Versos e amores sufoquei calando,Sem os gozar numa explosão sincera...

 Ah! Mais cem vidas! Com que ardor quiseraMais viver, mais penar e amar cantando!

Sinto o que desperdicei na juventude;

Choro, neste começo de velhice,Mártir da hipocrisia ou da virtude,

Os beijos que não tive por tolice,Por timidez o que sofrer não pude,

E por pudor os versos que não disse!

Título 

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Crepúsculo de Outono

Manoel Bandeira

O crepúsculo cai, manso como uma benção.Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito...

 As grandes mãos da sombra evangélicas pensam As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços.Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar 

O terror augural de encantos e feitiços. As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros, porém viçam, e serão breveTodo o verde que a vista espairecendo vejas,Mais negros sobre a alvura unânime da neve, Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrioDo rio, e isso parece a voz da solidão.

E essa voz enche o vale...o horizonte purpúreo...

Consoladora como um divino perdão.

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O sol fundiu a neve. A folhagem vermelhaReponta. Apenas há, nos barrancos retortos,Flocos, que a luz do poente extática semelha A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

 A sombra casa os sons numa grave harmonia.E tamanha esperança e uma tão grande paz Avultam do clarão que cinge a serrania,

Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.

Título 

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Outono

J. G. de Araújo J orge 

O outono já chegou – aos arrufos do ventoas folhas num desmaio embalam-se pelo ar...

- vão caindo... caindo... uma a uma, em desalentoe uma a uma, lentamente, vão no chão pousar...

O céu perdeu o azul – vestiu-se de cinzentoe envolveu na neblina a luz baça do luar...

- na alameda onde vou, de momento a momento,há um gemido de folha a cair e a expirar...

O arvoredo transpira as carícias dos ninhos,e o vento a cirandar na curva das estradas

eleva o folhareu no espaço em redemoinhos...

Há um córrego a levar as folhas secas em bando...- e à aragem que soluça entre as ramas curvadas,parece que o arvoredo em coro está chorando!...

Título 

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Uma névoa de Outono o ar raro vela 

Fernando Pessoa 

(5-11-1932)

Uma névoa de Outono o ar raro vela,Cores de meia-cor pairam no céu.O que indistintamente se revela,

 Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.

Mas entre mim e ver há um grande sono.De sentir é só a janela a que eu assomo.

 Amanhã, se estiver um dia igual,Mas se for outro, porque é amanhã,Terei outra verdade, universal,

E será como esta.

Título 

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CANÇÃO DE OUTONO

Cecília Mei reles 

Perdoa-me, folha seca,não posso cuidar de ti.

Vim para amar neste mundo,e até do amor me perdi.

De que serviu tecer florespelas areias do chão,

se havia gente dormindosobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!Choro pelo que não fiz.

E pela minha fraquezaé que sou triste e infeliz.Perdoa-me, folha seca!

Meus olhos sem força estãovelando e rogando aqueles

que não se levantarão...

Tu és a folha de outonovoante pelo jardim.

Deixo-te a minha saudade- a melhor parte de mim.

Certa de que tudo é vão.Que tudo é menos que o vento,menos que as folhas do chão...

Título 

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COLETÂNEA ESCOLHIDA DE GREGÓRIO DE MATOS

Inconstância dos bens do mundoGregório de Matos 

Nasce o Sol e não dura mais que um dia,Depois da Luz, se segue a noite escura,Em tristes sombras morre a formosura,

Em contínuas tristezas, a alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?Se é tão formosa a Luz, por que não dura?

Como a beleza assim se transfigura?

Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,Na formosura não se dê constância,

E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo, enfim, pela ignorância,Pois tem, qualquer dos bens, por natureza

Firmeza somente na inconstância.

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Soneto Sobre a Bahia Gregório de Matos 

 A cada canto um grande conselheiro. Que nos quer governar cabana, e vinha, 

não sabem governar sua cozinha, e podem governar o mundo inteiro. 

Em cada porta um frequentado olheiro, que a vida do vizinho, e da vizinha 

pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, para a levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, 

trazidos pelos pés os homens nobres, posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, 

todos, os que não furtam, muito pobres, e eis aqui a cidade da Bahia 

Bus cando a Cristo Gregório de Matos 

 A vós correndo vou, braços sagrados,Nessa cruz sacrossanta descobertosQue, para receber-me, estais abertos,

E, por não castigar-me, estais cravados.

 A vós, divinos olhos, eclipsadosDe tanto sangue e lágrimas abertos,

Pois, para perdoar-me, estais despertos,E, por não condenar-me, estais fechados.

 A vós, pregados pés, por não deixar-me, A vós, sangue vertido, para ungir-me, A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me

 A vós, lado patente, quero unir-me, A vós, cravos preciosos, quero atar-me,

Para ficar unido, atado e firme.

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EpílogosJuízo anatôm ico da Bahia 

Gregório de Matos 

Que falta nesta cidade?................VerdadeQue mais por sua desonra?...........Honra

 Falta mais que se lhe ponha..........Vergonha.

O demo a viver se exponha, Por mais que a fama a exalta,numa cidade, onde faltaVerdade, Honra, Vergonha.

Quem a pôs neste socrócio*?..........NegócioQuem causa tal perdição?.............Ambição

 E o maior desta loucura?...............Usura.

 Notável desventura de um povo néscio, e sandeu,que não sabe, que o perdeu

 Negócio, Ambição, Usura.

Quais são os seus doces objetos?....PretosTem outros bens mais maciços?.....MestiçosQuais destes lhe são mais gratos?...Mulatos.

 Dou ao demo os insensatos,dou ao demo a gente asnal,

que estima por cabedal  Pretos, Mestiços, Mulatos.

Quem faz os círios* mesquinhos?...MeirinhosQuem faz as farinhas tardas?.........GuardasQuem as tem nos aposentos?.........Sargentos.

Os círios lá vêm aos centos,e a terra fica esfaimando,

 porque os vão atravessando Meirinhos, Guardas, Sargentos.

 E que justiça a resguarda?.............Bastarda É grátis distribuída?.....................VendidaQue tem, que a todos assusta?.......Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa,o que El-Rei nos dá de graça,que anda a justiça na praça

 Bastarda, Vendida, Injusta.

Que vai pela clerezia?..................Simonia* E pelos membros da Igreja?..........InvejaCuidei, que mais se lhe punha?.....Unha.

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Sazonada caramunha*!enfim que na Santa Séo que se pratica, éSimoni*, Inveja, Unha*.

 E nos frades há manqueiras*?.........Freiras

 Em que ocupam os serões?............Sermões Não se ocupam em disputas?.........Putas.

Com palavras dissolutasme concluís na verdade,que as lidas todas de um Frade

 são Freiras, Sermões, e Putas.

O açúcar já se acabou?..................Baixou E o dinheiro se extinguiu?.............Subiu Logo já convalesceu?.....................Morreu.

 À Bahia aconteceuo que a um doente acontece,cai na cama, o mal lhe cresce,

 Baixou, Subiu, e Morreu.

 A Câmara não acode?...................Não pode Pois não tem todo o poder?...........Não quer  É que o governo a convence?........Não vence.

Que haverá que tal pense,que uma Câmara tão nobre

 por ver-se mísera, e pobre Não pode, não quer, não vence.

*Interpretação de alguns vocábulos:

Socrócio – emplastro, alivio, bálsamo ( o poeta usou-o no sentido antitético, irônico).Círios – sacos de farinha (a grafia correta é sírios).Simonia  – venda de coisas sagradas.Unha  – roubalheira, avareza, tirania, opressão.Caramunha – lamentação experiente. Manqueiras – vícios, defeitos.

1. Gregório de Matos Guerra (Salvador, 23 de dezembro de 1636¹   – Recife, 26 de novembro de 1695),alcunhado de Boca do Inferno ou Boca de Brasa, foi um advogado e poeta do Brasil colônia. É considerado o maior poeta barroco do Brasil e o mais importante poeta satírico da literatura emlíngua portuguesa, no período. 

¹Por haver di vergências a respeito da data de n ascimento de Gregório de Matos, foi ado tado a uti l izada pelo pesquisador Fernando d a Rocha Peres, no l i vro de sua auto r ia Gregório de Mattos e Guerra: Uma Revisão Biográfica e em no ta biográfica public ada no si te da 

Univers idade Federal da B ahia/UFBA ( http:/ /www.ufba.br/~gmg/gregorio.html  )  

Título 

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Velhas Árvo res 

Olavo Bilac 

Olha estas velhas árvores, mais belasDo que as árvores novas, mais amigas:Tanto mais belas quanto mais antigas,Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delasVivem, livres de fomes e fadigas;

E em seus galhos abrigam-se as cantigasE os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!Envelheçamos rindo! EnvelheçamosComo as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade, Agasalhando os pássaros nos ramos,

Dando sombra e consolo aos que padecem!

Olavo B i lac, in “  Poesias ”   

Título 

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Soneto al vino

Jorge Luis Borges*¿Quase qué reino, quase qué siglo, bajo qué silenciosa

conjunción de ol astros, quase qué secreto ol que o mármol no quase salvado, surgió o valerosa

y singular olo de inventar o olo a? 

Quase otoños de oro o inventaron. El vinofluye rojo a o largo de ol generaciones

como o ol ol tiempo y quase o olo caminonos prodiga su música, su fuego y ol leones.

Quase o noche ol júbilo o quase o jornada adversaexalta o olo a o mitiga o espanto

y o ditirambo nuevo que este ol o canto

otrora o cantaron o árabe y o persa.Vino, enséñame o arte de ver mi propia historiacomo si ésta ya fuera ceniza quase o olo a.

*Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, 14 de junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino.

Título 

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Entre o Céu e a Terra

Encontraram-se um dia uma lágrima, uma estrela, uma pérola e um orvalho: 

Falou primeiro a estrela: 

Quem diria que eu tivesse o trabalho de descer das alturas

luminosas para vir conversar com vocês três?

Não sabem que sou mais alta que as nuvens,

e que minha altivez fulgura entre mil

chamas radiosas na infinita amplidão ?

Não é a minha existência transitória.

Desde que existe o mundo, acendo ofirmamento por entre o universal deslumbramento.

Qual de vocês terá tamanha glória,

se não passam do chão ?

Mas respondeu a pérola vaidosa: 

Quem te dará valor entre milhões de

lâmpadas no espaço ?

Tu não passas de um grão de explendor 

metido na poeira do infinito.

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Ninguém se lembra de te por no braço,

enquanto eu, lá no fundo dos oceanos

sou buscada e vendida aos soberanos

para enfeitar com minha limpidez “A Coroa dos Reis”.

Vivo no colo explendido dos nobres,

e sobre o rico seio das Rainhas.Não como tu que sob o olhar dos pobres

poetas vagabundos te encaminhas...

Valho mais que tu, e mais ainda valho

do que um simples orvalho e uma lágrima,

pois ambos gotas d’água sem o mínimo valor 

Disse o orvalho com mágoa. 

Nenhuma de vocês tem esse encanto

de transformar-se em gozo na

boca imaculada de uma flor.

Eu venho lá de cima, radiante

nos braços da alvorada

para cobrir de beijos uma rosa

que se sente tão doce nesse instanteque vale a pena vê-la tão ditosa,

E trazer riso ao coração da terra

“engolfada no pranto” 

Eis como sou feliz... Ou na campina

ou no cimo da serra

sou sempre uma esperança cristalina

nos lábios sorridentes de uma flor.

Calou-se o orvalho.

E a lágrima coitada!

Esta nada dizia... 

E que responde tu ?

E ela rolada nada ousava falar...

Porém sublime, com calma respondeu: 

Sou o perdão no crime

e a vibração no amor 

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bailo no olhar risonho da alegria

moro no olhar tristíssimo da dor 

sou a alma da saudade e da harmonia

sou até estribilho

na lira soluçante dos poetas...

sou oração no pito dos ascetas,sou relíquia de mãe em coração de filho,

sou lembrança de filho em coração de mãe.

Não vivo sobre seios perfumosos

e colos orgulhosos

na ostentação efêmera do luxo...

Porém, penetro o espírito do mundo:

seja do rei, do sábio mais profundo,

do rústico mais vil, do pecador,

do santo e até na face do Senhor 

Um dia já rolei...

Eu, lágrima, pequena, penetrei

no coração de Deus,

e fiz estremecer e abrir-se extasiado

o pórtico dos Céus !Não sei quantos pecados já lavei...

A lágrima calou-se humildemente...

Deslumbrado

O Silêncio a tudo isto contemplou

Serenamente

Na vastidão vazia

A estrela se ocultou

por detrás duma nuvem... e chorava...A pérola desce à profundez dos mares

E chorava também...

O orvalho tremulando sobre a relva...

Também chorava...

E a lágrima

SORRIA !!!

Autor: Pietro Gambore

Título 

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que doce aroma trescalando então,que me desperte brandamente o ser um beijo suave sobre a minha mão.

Henriqueta Lisboa, in “Senhorita X!...”: revista mensal, social e ilustrada, ano 1, n. 1, out. 1932.

Noturno Meu pensamento em febre

é uma lâmpada acesaa incendiar a noite.

Meus desejos irrequietos,à hora em que não há socorro,

dançam livres como libélulasem redor do fogo.

Publicado: Prisioneira da Noite (1941)

Do supérfluo

Também as cousas participamde nossa vida. Um livro. Uma rosa.Um trecho musical que nos devolve

a horas inaugurais. O crepúsculo

acaso visto num paísque não sendo da terra

evoca apenas a lembrançade outra lembrança mais longínqua.O esboço tão-somente de um gesto

de ferina intenção. A graçade um retalho de lua

a pervagar num reposteiro A mesa sobre a qual me debruço

cada dia mais temerosa

de meus próprios dizeres.Tais cousas de íntimo domíniotalvez sejam supérfluas.

No entantoque tenho a ver contigo

se não leste o livro que linão viste a rosa que plantei

nem contemplaste o pôr-do-solà hora em que o amor se foi? 

Que tens a ver comigose dentro em ti não prevalecem

as cousas — todavia supérfluas — do meu intransferível patrimônio? - Henriqueta Lisboa, in “Pousada do Ser ”, 1982.

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Tempestade

— Menino, vem pra dentro.Olha a chuva lá na serra,

Olha como vem o vento!

— Ah! Como a chuva é bonitaE como o vento é valente!

— Não sejas doido, menino,Esse vento te carregaEssa chuva te derrete

— Eu não sou feito de açúcar Para derreter na chuva.

Eu tenho forças nas pernasPara lutar contra o vento!

E enquanto o vento sopravaE enquanto a chuva caia

Que nem um pinto molhadoTeimoso como ele só.

Gosto de chuva com ventoGosto de vento com chuva!

Segredo Andorinha no fio

Escutou um segredoFoi à torre da Igreja.Cochichou com o sino.

E o sino bem altoolo -demolo -demolo -dem

olo -dem!Toda a cidadeFicou sabendo.

Os lírios

Certa madrugada friairei de cabelos soltos

ver como crescem os lírios.

Quero saber como crescem

simples e belos — perfeitos! – ao abandono dos campos.

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 Antes que o sol apareça,neblina rompe neblina

com vestes brancas, irei.

Irei no maior sigilo para que ninguém perceba

contendo a respiração.

Sobre a terra muito friadobrando meus frios joelhos

 farei perguntas à terra.

Depois de ouvir-lhe o segredodeitada por entre líriosadormecerei tranquila.

Em: Nova Lírica, Henriqueta Lisboa, Belo Horizonte, Imprensa Oficial: 1971.

Olhos tristes

Olhos mais tristes ainda do que os meus são esses olhos com que o olhar me fitas. Tenho a impressão que vais dizer adeus 

este olhar de renúncias infinitas. 

Todos os sonhos, que se fazem seus, tomam logo a expressão de almas aflitas. 

E até que, um dia, cegue à mão de Deus, será o olhar de todas as desditas. 

Assim parado a olhar-me, quase extinto, esse olhar que, de noite, é como o luar, vem da distância, bêbedo de absinto... 

Este olhar, que me enleva e que me assombra, vive curvado sob o meu olhar 

como um cipreste sobre a própria sombra. 

 Minha história romântica 

No jardim do meu sonho, outr’ora, quando entrava na vida, ao resplendor de um sol de cereja,

tive a promessa de uma flor que despontava,na ilusão de quem vai possuir o que deseja.

E, ardente, do calor da minha alma que é lava fulgida, à luz do olhar que nunca mais se veja,

tendo por humildade o pranto que eu chorava,a flor se abriu, sorrindo, à sombra de uma igreja.

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Uma tarde, porém, sinto que me envenena...E na volúpia de augmentar a própria pena,

espedaço-a nas mãos! Ó Dor, que me confortas!

Hoje, a sós no jardim, às horas lardas, quedo,vendo entre um gozo estranho e uma impressão de medo

boiarem na piscina umas pétalas mortas.Henriqueta Lisboa, in “Fogo fátuo”, 1925

 Azul profundo

 Azul profundo, ó belanoite inefável dos

 pensamentos de amor!

Ó estrela perfeita

sobre o espesso horizonte!

Ó ternura dos lagosrefletindo montanhas!

Ó virginal dor da primavera derradeira!

Ó tesouro desconhecido por toda a eternidade!

Ó luz da solidão,ó nostalgia, ó Deus!

- Henriqueta Lisboa, in “ Azul profundo”, 1956.

Chuva

Chuva torrencial carregadade frutos. Chuva exausta

de longos braços

 pendentes.

Chuva nos campos da fatalidadeentregando bandeiras.

Música opulenta de riosque se despenham.

Durante noites e noites.

 As criaturas estão à esperaProtegidas pelas paredes

E a palavra — solUnge todos os lábios.

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Só eu na minha imensidade sem teto,só eu te suporto o peso,

só eu te sorvo esse gosto,de morte.

Chuva, plenitude amarga

de derrota.

Sinto que és retorno,corpo cansado de espírito,

corpo vencido,corpo

que se entrega pesadamente

à terra.

Henriqueta Lisboa, in “ A face lívida”, 1945.

Expectativa

Neste instante em que esperouma palavra decisiva,

instante em que de pés e mãosacorrentada estou,

em que a maré montante de meu ser se comprime no ouvido à escuta,

em que meu coração em carne viva

se expõe aos olhos dos abutresnum deserto de areia,— o silêncio é um punhal

que por um fio se pendurasobre meu ombro esquerdo.

E há uma eternidadeque nenhum vento sopra neste deserto!

Henriqueta Lisboa, in “Prisioneiro da noite”, 1941.

O poçoCom minhas frágeis

e frias mãosCavei um poço

no fundo do hortoda solidão

Cavei um poçomas bem profundocom minhas mãos.

Henriqueta Lisboa, in “ A face lívida”, 1945.

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O tempo é um fio

O tempo é um fiobastante frágil

Um fio finoque à toa escapa.

O tempo é um fio.Tecei! Tecei!

Rendas de bilrocom gentileza.

Com mais empenho franças espessas.

Malhas e redescom mais astúcia.

O tempo é um fioque vale muito.

Franças espessascarregam frutos.Malhas e redes

apanham peixes.

O tempo é um fio por entre os dedos.

Escapa o fio, perdeu-se o tempo.

Lá vai o tempocomo um farrapo jogado à toa.

Mas ainda é tempo!

Soltai os potrosaos quatro ventos,

mandai os servosde um olo a outro,

vencei escarpas,voltai com o tempo

que já se foi!...

Henriqueta Lisboa, in “ Antologia Poética Nestlé”, [org. Vera Lúcia de Carvalho Marchezi, Ana Maria T.Borgatto Teresinha Costa H. Bertin]. São Paulo: Fundação Nestlé de Cultura, 2002.

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Ó noite

Ó noite, ensina-meo teu magno

segredo:iluminar da sombra.

Da sombra permitir 

a visão mais profunda.Projetar pela sombrao roteiro dos astros.

Quanto mais te recolhes,ó noite, nos teus véus,

tanto mais fulgemas constelações.

Serás acaso humilde,

 generosa,ou apenas criadorade beleza? 

Ó noite, ensina-meo teu magno

segredo.

Henriqueta Lisboa, in “ Azul profundo”, 1985.

Tesouros 

Quero ser fruta maciaDoce, amarela, madura

Para saciar a fomeDos passarinhos

Que ficamFamintos

Sem ter um ninho.

Quero ser fonte fresquinha,Descendo a pé da montanha

Sarando a sedeCom beijos Aos litros,

E com farturaToda secura das almas.

Quero ser chuva fininhaCaindo mansa

Na hortaFazer crescer,Bem viçosa,

O rabanete, agrião,Cenoura, batata doce.Cebolinha, caridade,

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Chocolate de bombom.

Quero ser sol de tardinhaCrepusculando

 A toadaCom café quente na trempe

Cheiro de biscoito fritoE conversaNa soleira.

 Até dar sonoNa gente.

Quero ser plena portanteDessa riqueza imensa

ChamadaSimplicidade.

Presépio 

Eu inda quero sentir O branco olor d’açucena Passar os olhos espertosSobre o manto de flanela Azul, mesclado de tons

De um berçoCom criança.

Eu inda quero escutar 

O cantoninar serenoDe uma Callas esquecida

Em bairro de classe médiaEsquentando a mamadeira

Nanar o nenémDormir.

Quero tecer sapatinho

De tricô em ponto-cruzCasaco, meia, futuroEnxoval de esperançaRosa, azul e amarelo.

Sete diasCai o umbigo.

Por quê? Porque há ais...Há sim longa fila

De espera.E nela

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Serpenteante

De tão longaEstá um rapaz formoso, A bela moça prendada,No velho brota bondade,

Uma menininha lindaCom vestidinho engomado,

Seres querendo ser.Que não conseguem nem ser 

 Já que ninguém mais quer ser  Josés e Marias ou Marias A montar rudes presépiosDe deixar vir para o mundo

O Menino de Amor Um pouco viver 

Mesmo que um diaMorrer 

Crucificado...

Horizonte

 Alma em suspiro pelo encontro

do que ficasempre mais longe

Em Reverberações (1976)

*Henriqueta Lisboa

Henriqueta Lisboa (1901-1985), poeta mineira considerada pela crítica um dos grandes nomes dalírica modernista, dedicou-se à poesia, ensaios e traduções. Nasceu em Lambari, Minas Gerais, em 15 de julho de 1901 formou-se normalista pelo Colégio Sion de Campanha, MG, e, em 1924, mudou-se para oRio de Janeiro.

Henriqueta manteve-se sempre atuante no diálogo com os escritores e intelectuais de sua geração

e angariou muitos leitores ilustres durante sua vida, dentre eles Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Gabriela Mistral.

Sobre sua poesia, Drummond nos deixou o seguinte testemunho: “Não haverá, em nosso acervo poético, instantes mais altos do que os atingidos por este tímido e esquivo poeta.” 

Foi a primeira mulher eleita para a Academia Mineira de Letras em 1963, onde ocupou a cadeira denº 26 Sua poesia tornou se conhecida no exterior sendo traduzida em várias línguas como o francês