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Universidade Federal do Rio de Janeiro ETERNOS DESCOMPASSOS... FACES DO TRÁGICO EM ABDULAI SILA Erica Cristina Bispo Rio de Janeiro 2013

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

ETERNOS DESCOMPASSOS... FACES DO TRÁGICO EM ABDULAI SILA

Erica Cristina Bispo

Rio de Janeiro

2013

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ETERNOS DESCOMPASSOS... FACES DO TRÁGICO EM ABDULAI SILA

por

Erica Cristina Bispo

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Letras Vernáculas, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

requisito para a obtenção do título de Doutor em

Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e

Africanas, especialidade em Literaturas Africanas

de Língua Portuguesa).

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia

Tindó Ribeiro Secco

Faculdade de Letras / UFRJ

Rio de Janeiro, agosto de 2013

Universidade Federal do Rio de Janeiro

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ETERNOS DESCOMPASSOS... FACES DO TRÁGICO EM ABDULAI SILA

Erica Cristina Bispo

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas

(Literaturas Portuguesa e Africanas)

Examinada por:

______________________________________________________________________

Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco ― UFRJ

(Orientadora)

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Moema Parente Augel ― Universität Bielefeld

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Laura Cavalcante Padilha ― UFF

____________________________________________________________________

Professor Doutora Renata Flávia da Silva ― UFF

____________________________________________________________________

Professora Doutora Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva ― UFRJ

____________________________________________________________________

Professora Doutora Vanessa Ribeiro Teixeira ― UFRJ

____________________________________________________________________

Professora Doutora Edna Maria dos Santos ― UERJ

Rio de Janeiro

Agosto de 2013

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BISPO, Erica Cristina.

Eternos descompassos... Faces do trágico em Abdulai Sila. / Erica Cristina

Bispo. Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2013. 195p. 31cm

Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas (Literaturas

Portuguesa e Africanas), 2013.

Referências bibliográficas pp. 171-195.

1- Literaturas Africanas de Língua Portuguesa 2- Literatura guineense – crítica.

3- Abdulai Sila. I- Secco, Carmen Lucia Tindó Ribeiro (orientadora) II-

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras. Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas) III-

Título.

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SINOPSE

As configurações do trágico na obra romanesca de

Abdulai Sila. A recuperação crítica e a

ficcionalização da história recente da Guiné-Bissau.

O discurso irônico como mecanismo de realce e

disfarce do trágico. Silêncios como forma narrativa.

A permanência dos discursos políticos de Amílcar

Cabral na obra ficcional guineense contemporânea.

Estratégias de não silenciamentos por meio do

alegórico e do grotesco.

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RESUMO

ETERNOS DESCOMPASSOS... FACES DO TRÁGICO EM ABDULAI SILA

Erica Cristina Bispo

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas

(Literaturas Portuguesa e Africanas)

O objeto de estudo desta tesesão os três romances do escritor guineense Abdulai

Sila que formam a Trilogia: A última tragédia, Eterna paixão e Mistida. Desde os

títulos, essas obras chamam atenção para a presença do trágico que se manifesta não

apenas em relação a um desventurado herói, mas se configura como metáfora da

construção histórica da Guiné-Bissau. Num trajeto diegético, que tem início ainda no

período colonial e chega à contemporaneidade, as narrativas de Sila ficcionalizam

tragédias de múltiplas dimensões.

Nossa hipótese é a de que Abdulai Sila (d)escreve a nação, apontando as faces

do trágico que marcaram a história da Guiné-Bissau. Evidenciaremos, entretanto, que a

concepção comum do trágico dialoga, também, com o conceito clássico e com os

conceitos filosóficos do termo, bem como com a noção de trauma. Por essa razão, para

nossa fundamentação teórica, recorreremos a Aristóteles, Glenn Most, Gerd Bornheim,

Marcio Seligmann-Silva, Fabrice Schurmans, entre outros.

Para construir a diegese romanesca, em que ocorrem diferentes formas de

tragédias, observamos que o autor se utilizou de estratégias narrativas e recursos

estéticos específicos, como: o uso de silêncios; a criação de personagens metafóricos e

metonímicos; a adjetivação ora excessiva, ora escassa; a ironia; as alegorias; o grotesco;

a recuperação de discursos políticos de Amílcar Cabral e Paulo Freire, que traduziam as

utopias ideológicas dos tempos da luta pela independência.

O que pretendemos comprovar ao final da tese é que, por meio da

ficcionalização de diferentes facetas do trágico vivenciadas pela Guiné-Bissau, as obras

de Abdulai Sila efetuam uma profunda crítica do país, problematizando as fraturas da

sociedade guineense.

Palavras-chave: Literatura guineense, trágico, Abdulai Sila

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ABSTRACT

ETERNOS DESCOMPASSOS... FACES DO TRÁGICO EM ABDULAI SILA

Erica Cristina Bispo

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Abstract de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas

(Literaturas Portuguesa e Africanas)

This thesis’s object are the guinean writer Abdulai Sila´s three romances that

compose the Trilogia: A última tragédia, Eterna paixão e Mistida. From their titles on,

these works draw attention to the tragedy’s presence that manifests not only in relation

to the unfortunate hero, but configure itself as a metaphor for Guinea-Bissau´s historical

construction. In a diegetic´s route, that begins in the colonial period and reaches

contemporaneity, Sila´s narrative fictionalize tragedies of multiple dimensions.

Our hypothesis is that Abdulai Sila describes the nation, pointing out the faces of

the tragic that marked Guinea-Bissau’s history. We will evidence, however, that the

conception common of the tragic dialogues, as well, with the classical concept and with

the philosophical concepts of the term. For this reason, our theoretical foundations, we

resort to Aristoteles, Glenn Most, GerdBornheim, MarcioSeligmann-Silva,

FabriceSchurmans, among others.

To build the romantic diagesis, in which occur different forms of tragedies, we

observe the author had utilized specific narrative strategies and aesthetical resources,

such as: the use of silence; the creation of metaphorical and metonymical characters; the

adjectives, sometimes excessive, sometimes scarce; the irony; the allegories; the

grotesque; the recovery of Amílcar Cabral and Paulo Freire´s political discourses,

whose translated the ideological utopias from the fight for independence ´s time.

What we intend to confirm by the end of this thesis is that, by the fictionalization

of different aspects of the tragic experienced by Guinea-Bissau, Abdulai Silas´s work

perform a deep critique of the country, problematizing fractures and traumas of the

guinean society.

Keywords: Guinean literature, tragic, Abdulai Sila

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RESUMÉ

ETERNOS DESCOMPASSOS... FACES DO TRÁGICO EM ABDULAI SILA

Erica Cristina Bispo

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Resumé de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas

(Literaturas Portuguesa e Africanas)

L´object d´étude de cette thèse-ci sont les trois romans du écrivain guinéen

Abdulai Sila que forment la Trilogie: A última tragédia, Eterna paixão e Mistida.

D´après les titres, les oeuvres attirent l´attention por la présence de la tragique, que se

manifèste pas seule en relation le facheux héro, mais se configure comme une

métaphore de la construction historique de la Guinée-Bissau. Dans un traject diagetic,

que commence dans le période colonial et atteindre jusqu´à la contemporaneité, les

narratives de Sila romancent tragédies de multiples dimensions.

Notre hipothèse est-ce que Abdulai Sila (d)écrit la nation, montrant les faces de

la tragique que marquent l´histoire de la Guinée-Bissau. Nous evidéncerons, toutefois,

que la commun conception de la tragique dialogue, aussi, avec le concept classique et

avec les concepts pilosophiques du terme, ainsi comme la notion de trauma. Pour cette

raison, pour notre fondement théorique, nous recourrons a Aristóteles, Glenn Most,

Gerd Bornheim, Marcio Seligmann-Silva, Fabrice Schurmans, parmi les autres.

Pour construire la diegèse romanesque, dans laquelle occur différentes façons de

tragèdie, nopus observons que l´auteur a utilisé stratégies narratives et ressources

esthétiques especifiques, comme : l´usage du silence ; la création des personnages

métaphoriques ou métonymiques; l´adjectivation parfois excessive, parfois faible ;

l´ironie ; les allegories; le grotesque ; la récuperation des discours idéologiques du

temps de lalutte pour l´indépendence.

Ce que nous avons l´intention de démontrer au but de la thèse est-ce que, grâce à

la fiction des différentes facettes de le tragique vécues par la Guinée-Bissau, les oeuvres

de Abdulai Sila effectuent une critique profonde du pays, en problematizant fractures et

traumatisme de la societé guinéen.

Mots-clé: Literature guinéen, tragique, Abdulai Sila

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À minha mãe

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Agradecimentos

A Deus, porque d’Ele, por Ele e para Ele são todas as coisas.

À minha mãe e aos meus irmãos, que tanto me incentivam e colaboram para que eu

cumpra a minha mistida.

À Carmen, que tem sido, nos últimos dez anos, muito mais do que orientadora.

À Moema, pelo tão intenso incentivo para que eu continue a enveredar pelas letras

guineenses.

À Laura, por apontar o caminho do trágico para a escrita desta tese.

À Renata, pela companhia ao longo da jornada.

À Teresa, por sempre ser entusiasta deste trabalho.

A Abdulai, pelos livros, pelos esclarecimentos e pelas conversas.

À Luciana e ao Osmar, por tanta coisa...

Às amigas Cintia e Fernanda, pelas terapias em grupo.

A Andreza e Sidney, pelas horas de almoço.

A Carlos e Bayron, que me ajudam a ter equilíbrio.

A Marcelo e Marcos, que vão além das suas funções.

À minha outra família: Anna, Dayse, Fabrícia e Selene.

Ao Bruno, pela ajuda.

Aos da Casa Verde, pelo apoio.

Aos do Colégio Estadual Professora Luiza Marinho, pela colaboração.

À UFRJ, na figura de seu pró-reitor de pessoal Roberto Gambine, que me concedeu o

afastamento funcional para o término desta tese.

A tantos que não foram mencionados, mas sabem que participaram deste meu processo.

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SUMÁRIO:

1- Introdução ........................................................................................................... 14

1.1- Guiné-Bissau, Abdulai Sila e a crítica literária brasileira .................. 23

1.2- O trágico .................................................................................................. 29

1.3- Memória e trauma .................................................................................. 37

2- O trágico colonial e as ironias do “destino” ..................................................... 43

2.1-O contexto ................................................................................................ 44

2.2- Os silenciamentos ................................................................................... 52

2.3- Das ironias ............................................................................................... 55

2.3.1- Das identidades ............................................................................. 57

2.3.2- Da Igreja e dos esportes................................................................ 62

2.3.3- Do colonialismo ............................................................................ 73

2.4- De Amílcar Cabral ................................................................................. 77

3- Dicotomias do trágico: discursos e práticas...................................................... 80

3.1- Colonial e nacional................................................................................ 84

3.2- Trágicas dicotomias.............................................................................. 90

3.2.1-Casamento e traição....................................................................... 93

3.2.2- O individual e o coletivo............................................................... 99

3.2.3- Entre discursos e práticas........................................................... 108

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4- A presença do alegórico e do grotesco na construção do trágico ................. 116

4.1- O trágico pós-colonial..............................................................................130

4.1.1- Decadência e desgoverno.............................................................. 132

4.1.2- “Queriam ver a justiça, a camaradagem, a solidariedade”.......139

4.1.3- A política e seus demônios............................................................ 144

4.2- “Teimosa esperança”.............................................................................. 152

4.2.1- “Tudo nesta terra vai ficar claro”................................................ 153

4.2.2- Os vivos e os mortos...................................................................... 160

5- Uma trilogia trágica: considerações finais ..................................................... 165

6- Referências bibliográficas ................................................................................ 173

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A tragédia do pensamento africano tem a ver com a

ausência de ideologia, dizia Amílcar Cabral.

Carlos Lopes*

* LOPES. In.: LOPES, 2012, p. 192.

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1- Introdução

A literatura possibilita pôr a descoberto os veios do

inconsciente coletivo, veicula o que escapa à observação

sociológica ou à documentação histórica, desvenda aspirações,

fareja e antecipa as tensões subjacentes. A literatura é sem

dúvida o espelho da sociedade em que se desenvolve e é uma

das suas manifestações mais vivas.

Moema Parente Augel1

A Guiné-Bissau é um pequeno país da costa noroeste africana que, atualmente,

ocupa o lugar de 5º país mais pobre do mundo. Nossa atenção em relação a este país,

bem como as suas cultura e literatura, surgiu há alguns anos, resultando na dissertação

de mestrado intitulada Gestos e vozes de papel: Odete Semedo e a reinvenção de

passadas e histórias da tradição oral guineense, defendida em 2005. Neste novo

estudo, nos debruçaremos sobre a obra do primeiro romancista guineense: Abdulai Sila.

Abdulai é engenheiro eletrônico, formado pela Universidade de Dresden (1979-

1985), na Alemanha, além de economista, investigador social e escritor. Nascido em

Catió, cidade da região sul da Guiné-Bissau, em 1958; mudou-se para Bissau, em 1970,

a fim de frequentar o Liceu. Devido a seu grande interesse pelas tecnologias de

informação e comunicação, criou, em 1987, a Sitec (Sila Tecnologies), uma empresa de

1 AUGEL, 1998, p. 19.

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informática gerida por ele, ao lado de seu irmão. Em 19952, tornou-se cofundador e

diretor executivo da Eguitel Comunicações, que é a principal fornecedora de internet na

Guiné-Bissau.

Além de sua atenção no campo da tecnologia, Abdulai desempenha também

importante papel no âmbito da cultura, sendo um dos fundadores do Instituto Nacional

de Estudos e Pesquisas (INEP); cofundador da primeira editora privada do país, a Ku Si

Mon Editora e da revista cultural Tcholona.

Sua paixão pela literatura vem da juventude, quando foi incentivado por uma

professora a continuar escrevendo. É conhecido por ser o primeiro romancista da Guiné-

Bissau com a publicação da obra Eterna paixão, em 1994. Nos anos seguintes, publicou

A última tragédia (1995) e Mistida (1997), todos editados pela Ku Si Mon. Além dos

romances citados que serão objeto de estudo desta tese, publicou também duas obras

dramáticas: As orações de Mansata (2007), que visa a ser uma versão africana do drama

shakespeariano Macbeth, e Dois tiros e uma gargalhada (2013).

O livro Contos da cor do tempo (2004) também vale a menção. A obra

comemora o aniversário de 10 anos da editora e contém contos dos sócios Teresa

Montenegro, Fafali Koudawo e Abdulai Sila, sob pseudônimos. Além de sua carreira

literária, Abdulai também produz crítica social, tendo diversos trabalhos sobre

Economia, Política, Sociologia, Educação e Tecnologia.

Recentemente, no último dia 14 de julho, durante os festejos pelo Dia da França,

o Embaixador francês na Guiné-Bissau anunciou que o governo francês decidiu

conceder a medalha “Chevalier de l'Ordre des Arts et des Lettres”3 a Abdulai Sila. A

2 O processo de criação da Eguitel teve início 1995, mas a empresa só começou, de fato, a operar em

2001, uma vez que a concretização desta foi dificultada pelo regime de monopólio que vigorou até 1999,

no país. 3 Cavaleiro da Ordem das Letras e Artes, em tradução livre.

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nota esclarece que o mérito é concedido às “pessoas que se distinguem por sua criação

no domínio artístico ou literário ou por sua contribuição ao desenvolvimento das Artes e

das Letras na França e no mundo”4.

O olhar sempre atento de Abdulai e seu compromisso com a Guiné-Bissau

revelam um autor que escreve no seu tempo e para os seus contemporâneos. Sua

produção ficcional se apresenta como uma espécie de “espelho crítico da sociedade”,

como menciona Moema Augel, no trecho destacado como epígrafe desta introdução.

Seus romances ajudam a lançar luz sobre o inconsciente coletivo da população e prever

tensões e conflitos que serão, em breve, desencadeados no país.

Tal traço não é exclusividade de Sila. Depreendemos uma demanda significativa

na produção literária guineense contemporânea, cuja publicação, nas duas últimas

décadas do século XX, voltou seu olhar à situação do país, apontando para problemas,

mazelas, improbidades administrativas, descompassos entre o discurso e a prática.

Obras como Não posso adiar a palavra (1982); Eco do pranto (1992) e Noites de

insônia na terra adormecida (1996), por exemplo, alegorizam, desde o título, situações

trágicas depreendidas a partir da realidade social. Ou seja:

a produção literária contemporânea [da Guiné-Bissau] reflete, na sua

variedade e de forma muito especial, os anseios e as preocupações da elite

intelectual urbana, sobretudo na fase histórica atual do país. (AUGEL, 1998,

p. 19)

A última tragédia (1995), Eterna paixão (1994) e Mistida (1997)5, de autoria de

Abdulai Sila, não só trazem, nos títulos, pontos de contato com a semântica do

4 Livre tradução de “les personnes qui se sont distinguées par leur création dans le domaine littéraire ou

par la contribution qu'elles ont apportée au rayonnement des arts et des lettres en France et dans le

monde”. 5 Os três romances foram publicados individualmente na Guiné-Bissau pela editora Ku Si Mon. Em 2002,

as obras ganharam nova edição, sendo publicadas juntamente, sob o título Mistida (Trilogia).

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infortúnio, como também ficcionalizam em seus enredos aspectos da realidade trágica

da Guiné-Bissau.

Em nossa tese, estudaremos o trágico, concebendo-o no sentido corrente da

palavra, conforme registram diversos dicionários da Língua Portuguesa. Tal escolha de

abordagem foi conduzida pelos próprios romances que serão nosso objeto de estudo.

Nosso objetivo principal é analisar as estratégias utilizadas por Abdulai Sila, autor da

mencionada Trilogia, a fim de denunciar as diferentes faces do trágico que se revelam

em cada romance. Nossa hipótese aponta para um movimento dialético, que ora disfarça

e ora acentua a dor e o horror que compõem a situação trágica, ficcionalizada pelas

narrativas, valendo-se, para tanto, de recursos específicos, a saber: a ironia, a

intertextualidade6, a alegoria e o grotesco.

Sobre a presença do trágico nos romances, vale dizer que o primeiro livro, já no

título, traz a palavra “tragédia”, repetida, também, em diferentes momentos da obra. Na

maioria das incidências do uso do vocábulo, há a alusão à maldição enunciada acerca da

protagonista Ndani, em cujo corpo habitava um mau espírito e cuja vida estava fadada a

ser uma “sucessão de tragédias” (SILA, 2006, p. 41). Expressões e comentários como

esses – “o presságio de uma tragédia que se avizinhava” (ibidem, p. 27) ou “no

desespero daquela noite trágica” (ibidem, p. 148) – nos levam a constatar que a acepção

do trágico neste primeiro romance é a do senso comum, ou seja, está intimamente

associada a acontecimentos tenebrosos.

Há ainda outro dado relevante, sem o qual nossa fundamentação não se

sustentará: a constatação da recorrente realidade trágica da própria história guineense.

Tanto o período colonial quanto o nacional apresentam uma tragicidade peculiar. O país

6 A obra de Sila mantém claras alusões aos escritos políticos de Amílcar Cabral.

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foi invadido e subjugado por um povo estranho que transformou a população autóctone

em estrangeira em sua própria terra, tendo, até mesmo, o seu trânsito controlado e

restringido. A independência livrou os guineenses do sistema de semiescravidão, mas

não conseguiu diminuir as diferenças sociais; na verdade, pôs no poder representantes

da elite nativa que oprime, até hoje, a maior parcela da população, mantendo-a em

condições de pobreza, falta de saúde e carência de educação de qualidade.

Na obra de Sila, a tragédia adquire acepções próprias que são consequência da

mundivivência guineense, fruto de traumas antigos e recentes, tais como a colonização e

as distopias do pós-independência. Edward Said ressalta que

a invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns nas interpretações do presente. O que inspira tais apelos não é apenas a

divergência quanto ao que ocorreu no passado e o que teria sido esse passado,

mas também a incerteza se o passado é de fato passado, morto e enterrado, ou

se persiste, mesmo que talvez sob outras formas. (SAID, 1995, p. 34)

Sendo assim, urge conhecer e invocar o passado.

Hélder Macedo, em artigo sobre os relatos dos descobrimentos, declara que

“toda a linguagem é feita de passados” (MACEDO, 1998, p. 203); ou seja, a escrita

sempre se baseia em algo que já foi visto, lido e/ou experimentado. Nos romances de

Sila, isso se verifica, especialmente, ao observarmos os contextos históricos que eles

ficcionalizam. Há a representação, na escrita literária, de acontecimentos traumáticos

recentes. Sila olha para o passado e mergulha em sua própria memória e na de seu povo;

como resultado, suas três produções romanescas metaforizam e metonimizam a

conturbada história e a trajetória de seu país.

Entretanto, na contramão do que proferiu Hélder Macedo, Sila também escreve

futuros... Lendo os sinais dos tempos, o romancista adianta acontecimentos do porvir

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guineense, tais como a guerra de 1998 ou os assassinatos em 20097, que estão

prenunciados em Mistida (1997) e em Orações de Mansata (2007), respectivamente.

Com base nos ensaios de Márcio Seligmann, podemos dizer que Abdulai é um

sobrevivente das guerras na Guiné-Bissau e, por isso, consegue olhar para o passado

traumático e ressignificá-lo, para, assim, renascer, já que, de acordo com o teórico

brasileiro, narrar o trauma é uma forma de renascimento (SELIGMANN-SILVA,

2008)8. O trabalho exercido por Sila é o de “dar esta nova dimensão aos fatos antes

enterrados” (SELIGMANN-SILVA, 2008), valendo-se, para tanto, da “linearidade da

narrativa, suas repetições, a construção de metáforas” (SELIGMANN-SILVA, 2008).

O texto de Sila é repleto de rememorações. Apesar de manter, nos três romances,

um narrador que controla o que e o momento em que é dito, a voz enunciadora penetra a

mente das personagens e narra suas histórias pessoais, por meio do discurso indireto

livre. Em alguns momentos, contudo, o narrador permite que a personagem assuma o

discurso por várias páginas, mesmo que isso ocorra após um travessão, como acontece

com a história de infância e juventude de Daniel, em Eterna paixão (SILA, 2002, pp.

252-257) ou mesmo com o registro do testamento do Régulo Bsum, em A última

tragédia (SILA, 2002, pp. 103-107). A memória do autor se ficcionaliza, adquirindo

novas formas e versões, de modo que a história do país vai ganhando uma vida

ficcional, ao longo das páginas. O que se apreende em livros de história da Guiné-

7 Em março de 2009, o então presidente Nino Vieira e o general Tagme Na Waie, Chefe do Estado Maior

das Forças Armadas do país, à época, foram assassinados em Bissau. Este fato desencadeou uma série de

outros assassinatos de figuras proeminentes na política, como o de Hélder Proença e o de BaciroDabó,

candidato à presidência na ocasião, ambos mortos em junho de 2009; além de denúncias de golpes de

Estado. 8 Alguns dos artigos de Márcio Seligmann-Silva por nós consultados estão disponíveis em revistas

eletrônicas na internet. Por essa razão, a referenciação a essas citações se dará apenas pelo ano de

publicação, sem paginação.

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Bissau9 pode ser lido nos romances, em versões individualizadas, embora

ficcionalizadas: a escola para indígenas, por exemplo, em A última tragédia, é cenário

dos percursos das personagens Dona Linda, Ndani, o Professor e o Régulo. As histórias

individuais estão inseridas, portanto, em uma história mais ampla: a história do país –

ambas reinventadas pela ficção de Sila.

Antes de investigarmos as faces do trágico em Abdulai Sila, começaremos com

um pequeno levantamento da produção crítica acerca da literatura da Guiné-Bissau.

Essa fortuna crítica nos permitiu constatar um interesse crescente em relação a essas

letras, especialmente após as publicações, no Brasil, de obras de autores guineenses.

A seguir, efetuaremos uma apresentação de algumas conceituações de tragédia e

de trágico, observando tais conceitos na Literatura, na Filosofia e no senso comum.

É nossa pretensão analisar como a narração de um acontecimento trágico e

traumático se configura ficcionalmente. Para tanto, nos valeremos das análises

filosóficas de Glenn Most e Gerd Bornheim acerca do trágico, dos artigos sobre trauma

desenvolvidos por Márcio Seligmann-Silva e da tese de Fabrice Schurmans, intitulada

O trágico do Estado pós-colonial10

, defendida em 2012, na Universidade de Coimbra,

orientada por Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi.

Após a conceituação teórica, procederemos à análise dos romances. Apesar de

Eterna paixão ter sido a primeira obra a ser publicada, ela será a segunda a ser

examinada. Seguiremos a ordem em que os livros foram escritos, uma vez que estes

acompanham a sequência cronológica dos fatos históricos.

9 Não há livros sistemáticos de História da Guiné-Bissau. Referimo-nos aqui às obras que trazem

conteúdos históricos, mesclados a sociais, como as obras de René Pelissier, Peter Mendy, Carlos Lopes e

Fafali Koudawo. 10 Esta tese nos foi indicada como leitura importante pela Professora Doutora Laura Padilha, em nossa

Qualificação.

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No primeiro capítulo, “O trágico colonial e as ironias do ‘destino’”,

analisaremos o romance A última tragédia. A obra se debruça sobre o período colonial e

narra o trauma vivido pelos nativos. Estudaremos as estratégias utilizadas pelo narrador

para enunciar situações traumáticas e dolorosas que compuseram a história guineense.

Fatos como a implantação da escola indígena, a interferência da igreja na rotina colonial

ou a administração regional são discutidos, silenciados e ironizados no romance e, por

isso, serão alvo da nossa leitura crítica.

Em nosso capítulo seguinte, intitulado “Dicotomias do trágico: discursos e

práticas”, abordaremos a memória do que pregavam os líderes da luta pela

independência e como essa ressonância discursiva afeta as personagens, fazendo-as agir

e se pronunciarem de diferentes maneiras. Nossa hipótese, em Eterna paixão,é que a

tragédia se encontra na não concretização do sonho; a obra abarca uma série de marcas

textuais que constroem e desconstroem os discursos libertários. Sendo assim, o autor

desenvolve um enredo, cujo fim é idealizado, de modo a sublimar a decepcionante

realidade histórica da década de 1980. Para a análise do romance e cotejo da construção

e desconstrução do sonho da liberdade, recorreremos aos escritos de Amílcar Cabral e

Paulo Freire.

Por fim, em nosso último capítulo, nos centraremos na leitura do romance

Mistida, que recupera as duas obras anteriores, criando uma trama que é uma rede de

acontecimentos, na qual as histórias se entremeiam. O sentimento trágico, na obra,

funciona como uma alavanca para ação e para a reflexão. A fragmentada e irônica

estruturação romanesca, por sua vez, zomba do real, recriando personagens semelhantes

a alguns políticos e a figuras de expressão da sociedade guineense. Por meio de uma

elaboração hiperbólica do narrado, a tragédia assume dimensões alegóricas e grotescas,

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que levam, por vezes, a um riso amargo e ferino. Valer-nos-emos dos estudos de

Wolfgang Kayser na discussão teórica que fundamentará este capítulo, cujo título será

“A presença do alegórico e do grotesco na construção do trágico”.

Abdulai Sila usa, em seus romances, várias palavras e expressões em crioulo

guineense, ora apresentando glossário, ora dispensando-o. Como, por vezes, não há

sinônimos perfeitos em português que consigam representar claramente o dado do real a

que a palavra em crioulo se refere, incluímos essas palavras em nosso vocabulário,

explicando-as em notas de rodapé11

.

Em suma, o que desejamos provar, ao final, é que a Trilogia, de Sila,

ficcionalmente, apresenta uma percepção trágica da sociedade guineense. Essa é a nossa

hipótese principal, levantada como fio condutor de nossa análise: as obras de Abdulai

Sila refletem, por meio do trágico, sobre a história de seu país e funcionam como

críticas possíveis aos mandos e desmandos dos governos que presidiram essa nação.

Tais questionamentos são ficcionalizados, textualmente, por meio de sinais trágicos. A

escrita de Abdulai se vale de estratégias que ora atenuam, ora acentuam a tragicidade

romanescamente representada. É o que comprovaremos em cada um dos capítulos de

nossa tese.

11 Na primeira ocorrência, marcaremos em nota o significado contido no dicionário KriolTen: termos e

expressões (2007), de Teresa Montenegro, e manteremos a palavra em itálico nas demais aparições.

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1.1- Guiné-Bissau, Abdulai Sila e a crítica literária brasileira

O que foi é o que será: o que acontece é o que há de acontecer.

Não há nada de novo debaixo do sol. Se é encontrada alguma

coisa da qual se diz: Veja: isto é novo, ela já existia nos tempos

passados.

Rei Salomão12

Antes de prosseguirmos, devemos dar crédito aos que nos precederam nas

pesquisas sobre a literatura guineense. Quando iniciamos nosso Mestrado, em 2003,

havia poucos trabalhos críticos, no Brasil, que se dedicassem às letras da Guiné-Bissau.

Nossa dissertação, concluída em agosto de 2005, e a tese de Doutorado da professora

Moema Augel, defendida em dezembro do mesmo ano, foram os primeiros estudos em

nível de pós-graduação sobre autores guineenses. Um trabalho muito valioso é o

desenvolvido por Rogério Andrade Barbosa, que mantém, há anos, uma pesquisa

pessoal iniciada com sua estada na Guiné-Bissau, durante dois anos, como professor

voluntário das Nações Unidas, cujo resultado foi a autoria de uma série de livros

infanto-juvenis, contendo recolhas recriadas de histórias tradicionais africanas, em

especial dos povos que habitam o território guineense.

Em 1999, a professora Carmen Tindó selecionou 22 poemas de 14 autores da

Guiné-Bissau para compor a seção guineense da obra Antologia do mar na poesia

africana de língua portuguesa do século XX: volume III: Moçambique, São Tomé e

Príncipe e Guiné-Bissau, que apresenta, também, uma introdução com dados histórico-

12 Eclesiastes 1.9-10, extraído de www.bibliacatolica.com.br, acesso em 10 de janeiro de 2013.

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geográficos sobre o referido do país e um breve panorama das letras na Guiné-Bissau.

Este livro integra uma série de três antologias poéticas, sob a temática do mar nas

literaturas dos países africanos de língua portuguesa.

A lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que insere no currículo da educação

básica o ensino de História e Cultura da África, dos africanos e dos afro-brasileiros,

certamente colaborou para o aumento do interesse dos estudantes de Letras em relação à

produção africana como um todo13

. A lei colaborou para um aumento significativo da

procura por nossa área de estudos no ambiente acadêmico, bem como para a inserção da

cadeira de Literaturas Africanas em grande parte dos cursos de Letras e, também, para a

expansão das publicações sobre África por editoras brasileiras.

A produção guineense é não só escassa, mas é aquela cujos livros estão entre os

de mais difícil obtenção no Brasil. Ainda assim, a tese de Doutorado da professora

Moema Parente Augel constata o estudo de autores guineenses em algumas dissertações

de Mestrado e teses de Doutorado em universidades brasileiras (cf. AUGEL, 2007, p.

113). Desde a publicação da tese de Augel em livro (2007), notamos um real

crescimento do número de comunicações sobre obras literárias guineenses em

congressos, seminários e simpósios. Exemplo disso é visível no aumento da quantidade

de trabalhos apresentados nos encontros de professores de Literaturas Africanas.

O I Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa,

organizado pela Universidade Federal Fluminense, ocorrido em Niterói, em 1991,

contou com o artigo da Professora Doutora Simone Caputo, intitulado “A presença de

Amílcar Cabral na Literatura Africana de Língua Portuguesa e Crioula”. No artigo, ela

investiga a ressonância de ideais do líder político na escrita poética de Alda do Espírito

13 As pesquisas sobre África foram ampliadas em diversas áreas do conhecimento, mas interessa-nos aqui

o efeito da lei apenas nos estudos literários.

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Santo (de São Tomé e Príncipe), Emanuel Braga Tavares e Tacalhe (ambos de Cabo

Verde). Esse texto foi publicado nos Anais do evento, em 1995.

O II Encontro, ocorrido em 2003, na USP, contou com apenas um trabalho que

mencionava a Guiné-Bissau. Referimo-nos ao texto da Professora Doutora Suzana

Rodrigues Pavão, intitulado “África-Brasil: uma ponte sobre o Atlântico. A literatura

popular e oral no Brasil e na Guiné-Bissau”, que foi posteriormente publicado na revista

Scripta, nº 13. O artigo tratou dos pontos de contato existentes entre as narrativas orais

brasileiras e guineenses, ou seja, não houve nesse evento nenhum trabalho sobre textos

de autoria identificada.

O III Encontro de Professores de Literaturas Africanas, em 2007, sediado no Rio

de Janeiro, resultou em dois livros, que contaram com muitos artigos, sendo três deles

sobre a literatura guineense. O primeiro, da autoria da professora Moema Augel, se

intitulou “A função simbólica e social da língua guineense na prosa e na poesia”.

Acerca de A última tragédia, o professor Robson Lacerda Dutra produziu o segundo

artigo, intitulado “O romance guineense e a redenção do presente”. Foi de Odete

Semedo, autora convidada para o evento, o terceiro artigo. Este, intitulado “Guiné-

Bissau, mulheres e letras: vozes femininas... por detrás dos escritos...”, foi um embrião

de seu trabalho de Doutorado, defendido em 2010, na PUC/MG, a respeito das cantigas

de mandjuandadi14

das mulheres guineenses.

Além dos textos publicados nos livros, o evento contou, ainda, com três

comunicações sobre a literatura guineense: “A escolha do nome: análise onomástica da

Trilogia, de Abdulai Sila”, de nossa autoria; a de Karin Lilian Hagermann Backes, “A

14 O dicionário Kriolten: termos e expressões, de Teresa Montenegro, define, assim, mandjuandadi:

“classe de idade, grupos dos que foram iniciados na mesma altura; grupo de coetâneos”

(MONTENEGRO, 2002, p. 53). As cantigas de mandjuandadi são, na Guiné-Bissau, canções folclóricas

entoadas por mulheres, durante a realização de suas tarefas ou em eventos rituais.

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aprendizagem de Ndani, por Abdulai Sila”; e o texto “Odete Semedo, mar e poesia”, de

Evelyn Blaut Fernandes, uma análise do poema “Poemar”, de Odete Semedo. Esses

trabalhos estão disponíveis na íntegra no CD-ROM do III Encontro de Professores de

Literaturas Africanas: Pensando África (2008).

Os textos sobre literatura guineense inscritos no IV Encontro, em 2010,

possibilitaram a formação de uma mesa-redonda e uma sessão de comunicações,

totalizando seis apresentações resultantes de teses de Doutorado, pesquisas em

andamento em nível de pós-graduação, além do depoimento da escritora Odete Semedo.

Dentre esses, os trabalhos da professora doutora Francisca Zuleide Duarte de Souza

(UFPB), do professor doutor Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN) e da professora

doutora Angélica Maria Santos Soares (UFRJ) evidenciam, a nosso ver, a expansão da

crítica literária sobre a produção guineense. A professora Angélica Soares, por exemplo,

em seu texto “Odete Costa Semedo: poética ecológica (uma leitura de Entre o ser e o

amar)”, insere a produção da poetisa guineense em sua pesquisa “Horizontes ecológicos

da memória poética feminina (momentos selecionados das literaturas brasileira,

portuguesa e africana contemporâneas)” e apresenta uma bela e emocionante análise da

poesia de Semedo.

Notamos o significativo aumento no número de trabalhos sobre a produção

guineense, a partir do advento das edições brasileiras de três obras, uma de crítica e

duas literárias, respectivamente: O desafio do escombro (2007), de Moema Augel; A

última tragédia (2006), de Abdulai Sila; No fundo do canto (2007), de Odete Semedo.

Já é perceptível certa quantidade de trabalhos de conclusão de curso de

Graduação e de Especialização sobre esses dois autores; há também alguns de Iniciação

Científica. Salientamos a monografia de conclusão do curso de Especialização de

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Monaliza Rios Silva, intitulada A Guiné-Bissau no fundo do canto: o épico identitário

de Odete Semedo, apresentada em 2010, na Universidade Estadual da Paraíba; o

trabalho de conclusão de curso de Graduação de Aldaneide Silva Pereira, intitulado

Conflitos identitários em A última tragédia de Abdulai Sila, apresentado em 2010, na

Universidade Estadual da Paraíba; a tese de Doutorado em andamento de Severino do

Ramo Correia, intitulada O sotaque da representação subalterna em Abdulai Sila,

Buchi Emecheta e Paulina Chiziane, na Universidade Estadual da Paraíba; e o Mestrado

também em andamento de Jusciele Conceição Almeida de Oliveira, estudante da

Universidade Federal da Bahia, cuja dissertação se intitula Tempos de guerra e de paz

guineenses: dilemas da pós-colonialidade no cinema de Flora Gomes.

Dentre os trabalhos mais recentes, merece realce a dissertação de Mestrado

defendida em 2011 por Leticia Valandro, na Universidade Federal do Rio Grande do

Sul, intitulada A difícil mistida guineense: nação, identidade da Guiné-Bissau através

da Trilogia de Abdulai Sila. Leticia Valandro já havia apresentado outros trabalhos

sobre Abdulai Sila. Seu primeiro texto sobre o autor data de 2007 e se intitula

“(Re)construção e afirmação: a identidade da Guiné-Bissau em A última tragédia, de

Abdulai Sila”, apresentado no XIX Salão e XVI Feira de Iniciação Científica da

UFRGS. Em 2010, a estudante apresentou a comunicação “Literatura, Memória e Nação

na Guiné-Bissau”, no IV Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua

Portuguesa. E, no mesmo ano, publicou o artigo “Memória e Construção da Nação

Guineense”, na Revista Veredas, nº 14.

O livro Literaturas da Guiné-Bissau: cantando os escritos da história,

organizado pelas professoras Margarida Calafate e Odete Semedo, publicado em 2011,

pela Editora Afrontamento, na cidade do Porto, conta com 18 artigos acerca da

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produção literária guineense, sendo sete deles textos de autores guineenses e outros sete

de professores brasileiros.

Em 2012, o professor João Adalberto Campato Júnior publicou, pela Arte e

Ciência Editora, o sexto volume da coleção Literaturas de Língua Portuguesa: marcos

e marcas, intitulado A poesia da Guiné-Bissau: história e crítica. A professora Suely

Flory, organizadora da coleção, observa: “este livro vem suprir uma lacuna nos estudos

comparados de literaturas em língua portuguesa, sendo a primeira obra de investigação

científica de um autor brasileiro sobre a poesia da Guiné-Bissau” (FLORY, 2012. In.:

CAMPATO JR., 2012, p. 8).

Além dos que pusemos em evidência, há uma série de outras comunicações,

artigos e trabalhos não citados aqui que têm sido apresentados nos meios acadêmicos

brasileiros e exemplificam o paulatino crescimento dos estudos sobre as letras

guineenses no Brasil.

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1.2- O trágico

Toda problemática do trágico [...] parte sempre do fenômeno

da tragédia ática e a ele volta.

Albin Lesky15

O conceito de tragédia mudou ao longo da história. As mais antigas referências à

palavra remontam à Antiguidade Clássica. Em A Poética, Aristóteles associa esse

vocábulo a uma manifestação artística específica: uma forma dramática largamente

cultivada pelos gregos e que, provavelmente, surgiu em homenagem a Baco, tendo sido

particularizada pelo filósofo helênico que lhe destacou como característica o fato de

suscitar “a compaixão e o terror” (ARISTÓTELES, 2003, p. 35). Ainda que, em suas

considerações sobre a poética, Aristóteles elenque as partes componentes da tragédia: “a

fábula, os caracteres, a elocução, o pensamento, o espetáculo apresentado, o canto

(melopeia)” (ARISTÓTELES, 2003, p. 36), fica evidente que “a parte mais importante é

a da organização dos fatos, pois a tragédia é a imitação, não de homens, mas de ações,

da vida, da felicidade e da infelicidade” (ARISTÓTELES, 2003, p. 36). Podemos notar,

com isso, que o filósofo grego define esse gênero literário não a partir da sua forma,

mas dos conteúdos e dos efeitos causados sobre o receptor. Acreditamos que essa última

acepção culminou por desencadear o sentido popular que temos hoje para “tragédia”.

Etimologicamente, esta palavra tem origem no vocábulo grego tragoedia, constituído

dos radicais tragos, que significa “bode”, e ode, que significa “canto”. Tragoedia era o

evento em celebração a Dionísio, composto por uma série de cantos, entoados por atores

15 LESKY, 2006. p. 23.

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que se fantasiavam de sátiros, cuja concepção imaginária era a de um “homem-bode”, e

por encenações diversas. A associação de Dionísio aos sátiros advém da narrativa

mitológica que relata ter sido o deus do vinho criado por Ninfas e Sátiros.

O professor Junito Brandão acrescenta ainda outra versão: a de que o próprio

Dionísio era representado por um bode, cujo sacrifício ocorria durante a festa; segundo

uma lenda muito difundida, “uma das últimas metamorfoses de Baco, para fugir dos

Titãs, teria sido em um bode” (BRANDÃO, 1985, p. 10).

O professor Brandão também esclarece que, durante a festa a Dionísio, os

devotos caíam desfalecidos, após vertiginosa dança, e acreditava-se que, neste estado, se

uniam, assim, ao deus; ou seja, adoradores e divindade tornavam-se um só; ou ainda, o

ser mortal desfrutava da imortalidade. Essa configuração de igualdade entre mortal e

deuses desencadeia a hybris, cuja tradução é “desmedida” e pode ser entendida como

“uma violência feita a si próprio e aos deuses” (BRANDÃO, 1985, p. 11). Como o

homem ultrapassa sua própria medida, sofre o ciúme divino, uma vez que, embora

humano, consegue desfrutar da condição de deus. A ira divina se manifesta

punitivamente de duas maneiras: por meio da até – a cegueira da razão – e da moira – o

destino cego. Ou seja, a personagem que, antes, tenta se assemelhar aos deuses acaba

vítima dos mesmos, tendo de arcar com as consequências de ter a razão cegada ou ainda

sofrer a imposição de um destino cruel.

Na representação artística da desmedida, o consequente sofrimento do herói

desperta compaixão e temor no espectador. A agnórise (ou anagnórise), por sua vez,

que consiste no reconhecimento de um fato inesperado, desencadeia o clímax, ou seja, o

desfecho ou a mudança do estado da personagem. Como resultado, há a catarse –

reflexão purificadora ou purgadora das emoções.

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Uma alternativa à presença da hybris é a hamartia ou “falha trágica”, que surge,

no dizer de Aristóteles, não como uma falta moral, mas como um “erro grave”

(ARISTÓTELES, 2003, p. 52), que tem por consequência a transformação da

“felicidade para o infortúnio” (ARISTÓTELES, 2003, p. 52).

O gênero literário mais difundido na Antiguidade Clássica recebeu diferentes

atribuições e críticas advindas dos pensadores da época. Platão, por exemplo, foi uma

das figuras que mais enfaticamente condenou a apreciação da tragédia. Na voz de

Sócrates, em A república, asseverou que esse gênero dramático era um “veneno para os

ouvintes” (PLATÃO, 2006b, p. 138) e, por isso, deveria ser banido da república ideal.

Os males causados pela tragédia, consoante a avaliação platônica, advêm, dentre

outros elementos, do fato de a obra literária ser uma imitação em terceiro grau, em que o

primeiro grau é a verdade vivida pelos deuses; o segundo, o universo sensível em que

vivemos; o terceiro, a invenção do artista. Dessa forma, o objeto literário, segundo essa

concepção, não reflete a verdade, mas é uma imagem distorcida do real, não sendo,

portanto, um bom material para a formação dos jovens.

Chama-nos a atenção não só a relação entre mundo real e mundo sensível, mas,

principalmente, como Platão avalia o efeito das emoções humanas. Para este filósofo, a

recepção da tragédia conduz o leitor à irracionalidade, o que pode arruinar os homens de

bem. A constituição da república ideal passa pela negação das idiossincrasias e

assunção das necessidades comuns, o que faz o sofrimento individual menos importante

do que o sofrimento coletivo. Para sanar o sofrimento coletivo, às vezes, são necessários

sacrifícios individuais, mas que são justificados em função do bem comum. A tragédia

põe sob os holofotes o sofrimento individual, o que leva à lamentação e rejeita a

coletividade em prol da individualidade. É por isso que, para Platão, a tragédia, de

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modo específico, e a literatura, de maneira ampla, não tornam o homem melhor,

porquanto tais manifestações sobrepõem a individualidade à coletividade. Além disso, a

tragédia não deveria apresentar os vícios dos deuses ou a superação dos homens, nem

tampouco a fragilidade dos heróis.

Um dos discípulos de Platão, Aristóteles, contrariou o mestre e avaliou a

tragédia positivamente. Para ele, a obra trágica consiste em um “belo espetáculo

oferecido aos olhos” (ARISTÓTELES, 2003, p. 35) e o efeito da tragédia sobre o

espectador é benéfica e necessária. A definição aristotélica da tragédia é muito

difundida:

A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma das suas

formas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma

narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por

efeito obter a purgação dessas emoções. (ARISTÓTELES, 2003, p. 35)

Em função da ênfase dada por Aristóteles ao conteúdo da tragédia, Albin Lesky

e Fabrice Schurmans concluem que o filósofo já anunciava uma “acepção em que se

prepara[va] o emprego posterior e simplificado do termo” (LESKY, 2006, p. 29): o de

um acontecimento catastrófico, triste. Já no século V a.C., esse sentido estava imbricado

na tragédia.

A tragédia clássica exerceu uma função política. Segundo o professor Junito

Brandão, “o Estado se apoderou da tragédia e fê-la um apêndice da religião política da

pólis” (BRANDÃO, 1985, p. 12). O enredo trágico consistia, basicamente, na

interferência de um homem naquilo que fora estabelecido pelo destino, ou seja, o

indivíduo ousa mudar o que estava estabelecido e, por isso, era punido. Tal noção era

usada na pólis para manter a ordem estabelecida, uma vez que aquele que intentasse

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modificar a situação poderia também incorrer em punição idêntica à sofrida pelo herói

trágico.

No termo “tragédia” estão presentes os conflitos filosóficos do existir humano.

Estudando os sentidos do trágico nos últimos séculos, Glenn Most e Gerd Bornheim nos

trazem reflexões importantes. No livro O sentido e a máscara, o professor Bornheim

parte das premissas clássicas e conclui que o trágico é inerente à realidade humana.

Segundo ele,

toda tragédia quer saber qual é a medida do homem. Toda tragédia pergunta

se o homem encontra a sua medida em sua particularidade ou se ela reside em

algo que o transcende; e a tragédia pergunta para fazer ver que a segunda

hipótese é a verdadeira. O não reconhecimento dessa medida do homem acarreta, pois, o trágico. (BORNHEIM, 2007, p. 80)

Temos, portanto, na voz do filósofo, a explicação da hybris do herói: o sujeito

trágico não cabe em sua função humana e a transcende se igualando aos deuses; esses, a

fim de mostrarem ao herói que ele não pertence à ordem divina, o punem. Entretanto,

Bornheim acrescenta à leitura clássica o dado da contemporaneidade:

A experiência “trágica” fundamental do século XX é que a tragédia se

transfere da esfera humana, ou da hybris do herói, para o sentido último da

realidade, confundindo-se, assim, com uma objetividade ontológica esvaziada

de sentido – qualquer coisa como uma ontologia do nada. (BORNHEIM, 2007, p. 89)

A problemática do sujeito atual não decorre mais da desmedida, mas deriva dela.

Se, na tragédia clássica, o herói era vítima da moira por ultrapassar o espaço que lhe

cabia, hodiernamente o sujeito torna-se trágico por não saber qual espaço lhe é próprio;

em outras palavras, há uma crise do sujeito. Bornheim explica isso da seguinte maneira:

Objeto precípuo da tragédia seria muito mais a aparência que envolve toda

existência humana, acompanhada da densidade que se alia a tal aparência. O

desenvolvimento da ação trágica consistiria na progressiva descoberta da

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verdade – verdade no sentido de aletheia: manifestar-se, descobrir-se,

“desesconder-se”. (BORNHEIM, 2007, p. 79)

Se tomarmos Édipo Rei, de Sófocles, como exemplo, veremos que a vida de

Édipo era envolta na aparência, e a emersão da verdade levou o protagonista e sua

família ao infortúnio: Jocasta se suicidou, Édipo furou os próprios olhos e seguiu

errante; Etéocles e Polinices, seus filhos, se mataram pelo trono. Na acepção clássica, a

aletheia surge para revelar o que está oculto e, no caso da tragédia, para afastar a

aparência e fazer emergir a “verdade”.

Num movimento reflexivo, a aletheia contemporânea se expressa na revelação

do ser a si mesmo. Esse movimento de autodescobrimento, simultaneamente, deriva e

gera a separação ontológica que é, segundo Bornheim, “o elemento possibilitador do

trágico [...], aquele rasgo na natureza humana que em tais e tais circunstâncias adquire

ou não uma coloração trágica” (BORNHEIM, 2007, p. 79). Se o exemplo for A última

tragédia, a percepção de que o Professor, mesmo sendo cristão e assimilado, é

identificado como negro pelos colonizadores e, como tal, recebe o mesmo tratamento

que qualquer nativo, o autodescobrimento, ou a revelação da aletheia desencadeia o fim

trágico da personagem.

Bornheim também nos lembra que, ao fim do acontecimento trágico, há uma

tentativa de restabelecer-se a harmonia inicial. Contudo, tanto no contexto clássico

quanto no contemporâneo, não há possibilidade de uma harmonia preestabelecida,

porque o conhecimento gera um novo estado que é, por si só, diferente do anterior.

Glenn Most, no artigo “Da tragédia ao trágico”, diferencia dois usos do vocábulo

“trágico”: o uso corrente e outro que, segundo ele, está “limitado a contextos filosóficos

e eruditos” (MOST, 2001, p. 22). O professor também ensina que o termo grego

tragikon, na Grécia antiga, era “muito mais frequentemente aplicado à literatura do que

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à vida” (MOST, 2001, p. 23), diferentemente do que ocorre hoje, quando o substantivo

“tragédia” e o adjetivo “trágico” reportam a “acidentes de trânsito fatais, à morte de

crianças pequenas e outras calamidades” (MOST, 2001, p. 22). Para que um evento seja

considerado trágico, no uso corrente, é necessário que seja algo extrema e nobremente

triste, envolva uma perda irreparável ou, talvez, a morte, que não a natural; o

acontecimento além de ocasionar tristeza aos ouvintes também é excepcional. Essa é a

acepção de Ndani, protagonista de A última tragédia, ao saber por um djambakus16

que

sua vida seria uma sucessão de tragédias (cf. SILA, 2006, p. 27).

A tragédia, no senso comum, tem a ver tanto com o fato que gera terror e

compaixão, quanto com aquilo que demonstra a falibilidade humana. Popularmente,

uma tempestade forte (e seus efeitos) é trágica, porque gera medo e piedade. Um

discurso político ou um midiático, construído a partir do fato, pode transformar o

mesmo acontecimento em algo que está além da força humana: o homem não tem poder

de controlar a chuva. O discurso político, por exemplo, pautar-se-á na imprevisibilidade

da natureza, ainda que uma série de medidas possa ser tomada para minimizar as

consequências. Se, por um lado, o que causa terror e compaixão é o efeito da chuva, esta

também é o que prova a falibilidade humana. Ou seja, o trágico também é fruto dos

discursos. Conforme é enunciado, desencadeia comoção ou uma crise existencial.

Por intermédio dessa análise de Glenn Most, notamos que a aplicação do

conceito de trágico à vida, e não mais exclusivamente à Literatura, passa pela Filosofia.

No sentido filosófico, Most define o trágico como sendo “uma categoria metafísica

desenvolvida a fim de descrever a condição humana” (MOST, 2001, p. 24), de onde

advém a noção de que a vida humana é trágica, na medida em que o sujeito não pode

16 Vidente.

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controlá-la inteiramente. Esse conceito lembra-nos Nietzsche, para quem a existência

humana é trágica, uma vez que o homem está lançado à sorte, sem algo ou alguém que

lhe dê alguma garantia. Nas palavras de Most, “a vida só pode parecer trágica quando,

por um lado, nós ainda mantemos a expectativa de que o mundo deveria ter sentido,

mas, por outro, não estamos mais certos de que há um deus que garante o seu sentido”

(MOST, 2001, p. 35). Verificamos, portanto, que a falta de sentido ou algo que garanta

um sentido caracteriza essa acepção de “tragédia”.

Fabrice Schurmann, na tese de Doutorado intitulada O trágico do Estado pós-

colonial, fez um levantamento em periódicos contemporâneos para identificar o

significado da palavra “trágico”. Quando aplicamos esse método aos noticiários on-line

brasileiros, notamos que são consideradas “tragédias” a morte prematura e súbita de um

jovem, um incêndio em área carente, acidentes de trânsito com vítimas fatais e outros

acontecimentos semelhantes.

Para nomear a triste constatação de que o Rio de Janeiro apresenta um dos piores

índices de educação do Brasil ou um alto número de natimortos, a palavra “tragédia” é

adjetivada pela mídia: “tragédia educacional” ou “tragédia social”. Observamos ainda

que “trágico”, o adjetivo correspondente à “tragédia”, apresenta, na mídia, a mesma

lógica, ou seja, não há nenhum sentido adicionado.

Se considerarmos que os discursos são construções sociais que servem à

sociedade falante, podemos concluir que, modernamente, no senso comum, temos uma

nova acepção do vocábulo tragédia, que se distingue do conceito clássico, que associava

o termo a um gênero do teatro grego, sendo, assim, enunciado pelo dicionário Houaiss:

“ocorrência ou acontecimento funesto que desperta piedade ou horror; catástrofe,

desgraça, infortúnio” (HOUAISS, 2001, p. 2746).

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1.3- Memória e trauma

crianças ansiosas

quiseram conhecer a história

da sua terra

mesmo que inglória

Odete Semedo17

A partir da análise dos romances de Sila, nosso objeto de estudo, podemos

observar que muitas das tragédias narradas derivam do contexto social guineense e

também se relacionam com situações traumáticas, pois, afinal, “nunca houve um

monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie”

(BENJAMIN, 1994, p. 225).

Se, como afirmam Theodor Adorno, Jeane-Marie Gagnebin e Marcio

Seligmann, o holocausto (ou Shoah) foi a grande agressão à humanidade do século XX,

o que se dirá, então, da presença europeia em solo africano, de forma ostensiva e

certamente agressiva, ao longo de cinco séculos? Ki-Zerbo é enfático em defender que

não houve “grupos humanos que tenham sido mais inferiorizados do que os negros”

(KI-ZERBO, 2006, p. 32). Sendo assim, é indiscutível a existência de traumas e de

narrativas necessárias para realizarem uma catarse crítica. Os resultados de muitas das

histórias africanas são escritas derivadas da dor. Em vários países africanos, há o

reincidente tema dos traumas coloniais, das guerras nacionais, dos sistemas econômicos

de exploração. Tal constatação permite analisar e repensar os acontecimentos

17 SEMEDO, 2007. p. 160.

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traumáticos e, assim, compreendê-los melhor, além de fixá-los na memória ou esquecê-

los, a fim de que não se repitam.

Da mesma maneira que a Shoah deu origem a uma série de narrações

traumáticas, o processo colonial também o fez; contudo, a negação da educação formal

nas ex-colônias portuguesas durante séculos postergou a concretização desse discurso

por meio da escrita, mas não o silenciou. A escritora guineense Odete Semedo

exemplifica o desejo de narrar o trauma, como podemos observar no poema “Em que

língua escrever”. Nesses versos, ela exprime uma série de anseios próprios da escrita

guineense, entre os quais, citamos a escolha da língua em que a literatura será produzida

e a preservação da mensagem por intermédio da escrita. Ouçamos a poetisa:

Deixarei o recado

Num pergaminho

Nesta língua lusa

Que mal entendo No caminho da vida

Os netos e herdeiros

Saberão quem fomos

(SEMEDO, 1996, p. 11, 13)

O registro escrito numa língua, cuja estrutura e grafia já estejam consolidadas e

cuja comunidade de falantes consiga decodificar a mensagem, pode ser o diferencial

para manter viva uma determinada memória, principalmente quando esta se configura a

partir de um trauma. Entendemos, portanto, que a escolha de Sila em olhar o passado do

seu país é uma missão assumida a fim de fixar, pela escrita, uma determinada versão

dos acontecimentos e uma necessidade de dizer algo, embora, no local em que este

recado seja deixado, não exista ainda propriamente uma comunidade de leitores18

.

18 Nossa afirmação acerca do parco público leitor está associada ao fato de apenas 40% da população

adulta ser alfabetizada. Além disso, o livro é um artigo de luxo no país. Ainda assim, o livro circula entre

a elite cultural nacional, tanto em território guineense quanto na diáspora. Há, também, um pequeno

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A produção literária do século XX, segundo Seligmann-Silva, “foi em grande

parte uma literatura marcada pelo seu presente traumático” (SELIGMANN-SILVA,

2005, p. 77), de modo que o tempo da diegese não se limita a identificar um “quando se

narra”, mas funciona também como uma marcação espacial: “de onde se narra”. Sendo

assim, há uma série de traços presentes no discurso de Sila, que compõem o que se

convencionou chamar de “literatura do trauma”. Os primeiros escritos identificadamente

africanos possuem um perfil semelhante: são obras que surgiram a partir de um evento

significativo para uma pessoa ou grupo humano, capaz de desencadear comportamentos,

emoções e atitudes diferentes dos anteriores ao ocorrido; como consequência, temos

uma escrita que reflete isso por meio de silêncios, lacunas, estruturação sintática

própria, apropriação e transgressão vocabular, dentre outros traços.

Por ter uma produção literária considerada tardia, a Guiné-Bissau só apresentou

uma literatura que repensasse a colonização e a trajetória do país, na década de 1990. As

primeiras obras guineenses datam dos anos 1970 e, apenas vinte anos mais tarde, a

maior parte das produções ganhou versão impressa por meio da coleção Kebur19

. Em

1996, enfim, Sila publicou um romance, no qual representou, ficcionalmente, o trauma

da colonização dos primeiros anos de governo nacional.

Abdulai Sila tece, literariamente, uma memória que é sua e, ao mesmo tempo,

coletiva; focaliza dois momentos diferentes do país: a década de 1950 e a de 1980-

199020

, respectivamente período colonial e do pós-independência.

público formado por estudiosos e acadêmicos, na Europa e no Brasil, que também consome a arte

literária. 19 A coleção Kebur foi uma coletânea publicada, na década de 1990, com fomento oriundo da União

Europeia e conta com oito obras, sendo sete literárias e um ensaio crítico, este de autoria de Moema

Parente Augel. As publicações literárias reúnem poetas de momentos diferentes da Guiné-Bissau, dentre

os quais estão Tony Tcheka, Felix Siga, Odete Semedo, Jorge Cabral, entre outros. 20 Nossa leitura aponta para o fato de que os enredos dos romances Eterna paixão e Mistida podem ser

localizados temporalmente entre 1980 e 1998.

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De acordo com o professor Márcio Seligmann-Silva, “a memória do trauma é

sempre uma busca de compromisso entre o trabalho e a memória individual e outro

construído pela sociedade” (SELIGMANN-SILVA, 2008 – grifo do autor). O

compromisso a que se refere esse autor talvez seja a razão que leva o escritor a produzir

literatura, mesmo sem leitores.

Os dois momentos são escolhidos por Abdulai Sila por serem emblemáticos na

história do país. A década de 1950 marcou o período final de implementação do que

ficou conhecido como “pacificação”21

– processo de tomada lusitana do território

guineense, de modo a limitar o trânsito de nativos, garantir o pagamento de impostos e

estabelecer postos de controle. Após a independência, o governo nacional não exerceu a

democracia, nem defendeu a liberdade propalada nos anos de luta, gerando, assim,

diferentes posturas: aqueles que se conformaram com as poucas mudanças, os que

usufruíram do poder e os que se indignaram contra o estabelecido. Sila compõe este

último grupo.

Sendo assim, na função de provocar a reflexão, ocupando uma posição entre o

ficcionista e o historiador, Sila escreve sobre “o que poderia ter acontecido”

(ARISTÓTELES, 2003, p. 43), a partir da observação de uma série de histórias

coletivas, ficcionalizadas por algumas poucas personagens exemplares e metonímicas,

que representam parte da população guineense, mesmo que em diferentes aspectos ou

fora do protagonismo.

21 Pacificação é o nome dado ao processo de estabelecimento da ordem pelos portugueses no território

guineense, que perdurou de 1879 a 1959. Nos primeiros anos da década de 1950, os portugueses já

tinham conseguido fixar postos de controle em quase toda a colônia. O processo, diferente do que aponta

o nome, não contou com passividade, mas foi resultado de um grande massacre de muitas populações

locais.

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Sendo um compromisso com a manutenção da memória, a análise do trauma é

necessária, ainda que isso exija revivenciar fraturas e feridas provocadas pela história.

Nas palavras de Seligmann-Silva,

relacionar o nosso passado histórico com o trauma implica tratar desse

passado de um modo mais complexo que o tradicional: ele passa a ser visto

não mais como um objeto do qual nós podemos simplesmente nos apoderar e

dominar, antes essa dominação é recíproca. (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 83)

Concluímos que a memória, antes de tornar-se linguagem, passa por uma análise

interna, na qual a rememoração e o sujeito que lembra se apossam reciprocamente; de

acordo com Walter Benjamin, “articular historicamente o passado não significa

conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como

ela relampeja no momento de perigo” (BENJAMIN, 1994, p. 224). A narração do

trauma, portanto, passa pela apropriação da reminiscência, que emerge como uma

centelha, porque o apagamento da dor a anestesia, da mesma forma que resistir ao

esquecimento é dolorido. Temos, então, um duplo movimento, no qual lembrar e

esquecer são ações dialéticas, opostas e complementares:

Se é verdade que no campo da memória ocorre uma seleção dos momentos

do passado e não o seu total arquivamento, ou seja, a memória só existe ao

lado do esquecimento, por outro lado cabe ao historiador – assim como

individualmente a cada um de nós – não negar ou denegar os fatos do passado, mesmo os mais catastróficos. (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 84)

A reinvenção artística é utilizada, uma vez que “a memória não pode ser

confundida com a realidade: esta não pode ser totalmente recoberta por aquela”

(SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 86); Sila se vale das angústias dos tempos coloniais e

nacionais e as representa ficcionalmente em sua Trilogia. Como vimos anteriormente,

se para Benjamin os monumentos culturais são também símbolos de violência,

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percebemos que, a partir da barbárie, a arte pode se desenvolver, exorcizando, nessa

circunstância, “um martírio, uma passagem pela dor, pelo sofrimento e pela morte –

para garantir a vida” (SELIGMANN-SILVA, 2003).

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2- O trágico colonial e as ironias do “destino”

Pode até ser só complexo do preto que sempre aceita que

branco é superior. Nunca pensa por que é que as coisas são de

uma maneira e não de outra maneira.

Abdulai Sila22

O romance A última tragédia foi publicado em 1996, na Guiné-Bissau, mas foi

escrito em 1986, quando, segundo o autor, não havia condições propícias para sua

edição. A obra ficcionaliza o país de origem de Sila durante o período colonial, a partir

de meados do século XX, quando se inicia na Guiné-Bissau a criação das escolas para

os nativos, o desenvolvimento de movimentos associativos de cultura e desportos e a

presença dos postos de controle.

A obra conta a história de três personagens: Ndani, o Régulo Bsum e o

Professor. Ndani é uma adolescente de 13 anos, sobre quem paira uma maldição: sua

vida seria, sempre, marcada por tragédias. O Régulo Bsum, líder de uma tabanca em

Quinhamel, resolve promover resistência ao governo lusitano, se valendo, para tanto, de

estratégias dos brancos. O Professor é um assimilado que se percebe num entrelugar

identitário: ao se identificar com os negros, sofre as consequências por deixar o mundo

dos brancos.

22 SILA, 2006, p. 78.

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Para garantir a manutenção do governo lusitano, os anos de colonização se

caracterizaram por intenso uso da força, aliado este à difusão de uma ideologia

autoritária.

Na epígrafe que abre este capítulo, o Régulo de Quinhamel expressa seu desejo

de modificar a situação estabelecida. Para tanto, ele parte do pressuposto, imposto pelos

colonizadores, de que o negro é inferior ao branco e nenhum negro questiona isso. A

ideologia que distinguia, nessa época, brancos e negros é um dos fatores instituintes do

que designamos como “trágico colonial”, ou seja, a aceitação da condição de subalterno

e inferior pelos colonizados. A tragédia imposta à colônia pela metrópole se torna,

então, incontestável, na medida em que o medo, as punições, a opressão impedem

qualquer reação por parte dos habitantes locais.

Antes de analisar o romance, queremos justificar e explicar o que chamamos de

trágico na história colonial da Guiné-Bissau. Para tanto, convidamos ao diálogo Franz

Fanon, Michel Foucaul, Peter Mendy e Amílcar Cabral.

2.1- O contexto

Frantz Fanon é categórico ao afirmar que o complexo de inferioridade do negro

foi impingido por um duplo processo que, primeiramente, era econômico e, em seguida,

passou a ser epidérmico (cf. FANON, 2008, p. 28). A partir da assunção dessa

subalternidade, milhares de negros tiveram suas línguas, culturas e conhecimentos

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relegados a ser “qualquer coisa de atrasado” (SILA, 2002, p. 203). Ainda hoje, tal

conceito compõe o imaginário de várias pessoas no mundo. O ensaísta antilhano

complementa sua ideia, definindo um povo colonizado como aquele “no seio do qual

nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento da sua originalidade

cultural” (FANON, 2008, p. 34).

Michel Foucault aponta para um modo específico de dominação por meio do

discurso. Segundo ele,

em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,

selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos

que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu

acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2008, pp. 8-9)

Ou seja, o discurso lusitano de soberania e construção de um império – aliado ao

poderio bélico – colaborou para que os africanos fossem subjugados e assumissem uma

determinada posição de submissão ideológica. Não ignoramos aqui os movimentos de

resistência dos povos africanos que lutaram a fim de não sucumbirem à dominação

europeia; mas ressaltamos que os colonizadores venceram esta batalha e impuseram seu

poder.

Um outro intenso recurso usado pelos colonizadores foi a assimilação de seu

idioma pelos colonizados. O conhecimento da língua europeia e a habilidade em seu

emprego eram as chaves para o colonizado ser admitido no mundo dos brancos.

Segundo Peter Mendy, os nativos tinham que passar por um teste de civilização que

visava a atestar “a capacidade de ler, escrever, e falar português ‘corretamente’”

(MENDY. In.: LOPES, 2012, p. 22).

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Amílcar Cabral, pai da nacionalidade guineense, também discute as estratégias

de poder colonial, denunciando a repressão como meio de manutenção do domínio dos

colonizadores:

A história ensina-nos que, em determinadas circunstâncias, é fácil ao

estrangeiro impor o seu domínio a um povo. Mas ensina-nos igualmente que,

sejam quais forem os aspectos materiais desse domínio, ele só se pode manter

com uma repressão permanente e organizada da vida cultural desse mesmo povo, não podendo garantir definitivamente a sua implantação a não ser pela

liquidação física de parte significativa da população dominada. (CABRAL

In.: SANCHES, 2011, p. 357)

O colonialismo português foi “certamente o pior conhecido de todos”

(CASTRO, 1980, p. 28), pois se valeu de violência demasiada, de imposições de

trabalhos forçados, do controle de deslocamento, do extermínio de populações nativas.

Teorias como a de que os negros tinham mais habilidades para o exercício de

atividades braçais, enquanto os brancos possuíam competências para atividades

intelectuais foram disseminadas entre colonizados e colonizadores. Entretanto, discursos

como os de Amílcar Cabral atuaram na desconstrução desse tipo de mentalidade:

O domínio cultural imperialista tentou criar teorias que, de facto, não passam

de grosseiras formulações de racismo [...] É, por exemplo, o caso da pretensa teoria da assimilação progressiva das populações nativas, que não passa de

uma tentativa, mais ou menos violenta, de negar a cultura do povo em

questão. (CABRAL In.: SANCHES, 2011, p. 358)

Prova disso é a série de princípios que incluíam, além do conhecimento da

língua portuguesa, o abandono de “usos e costumes tribais” (MENDY. In.: LOPES,

2012, p. 22), para que um africano fosse considerado civilizado.

A geração de escritores da qual Abdulai Sila faz parte viveu o período colonial e

carrega lembranças cruéis desse tempo traumático, uma vez ter vivenciado o processo

de assimilação, tendo de negar suas crenças e deixar silenciada sua língua.

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Segundo Seligmann-Silva, as vítimas de eventos catastróficos e/ou de traumas e

imposições, nunca abordam diretamente os dramas vividos. Assim, autores como

Abdulai Sila, Tony Tcheka, Odete Semedo e Hélder Proença nunca discorrerão frontal e

diretamente acerca do colonialismo. Sempre usarão artifícios alegóricos ou metafóricos

para lembrar o passado. Contudo, após a libertação, a política dos que lutaram por um

novo país passou a ser a denúncia dos males coloniais, tornando-se esta uma tônica

previsível e esperada dentre os escritores guineenses.

Para Seligmann-Silva, “o testemunho cumpre um papel de justiça histórica”

(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 85), ou seja, narrar é uma forma de desequilibrar a

versão oficial, apresentando outra versão, que não se centra na visão do vencedor, mas

dá voz aos vencidos. Seligmann-Silva assevera também que “o testemunho encontra-se

no vértice entre a literatura e a historiografia” (ibidem, p. 93); sendo assim, na

contemporaneidade, a revisitação da memória e a ficcionalização do real histórico pela

ficção literária são procedimentos que funcionam como uma espécie de “comissão da

verdade”, cuja ação é, por meio do narrar, uma forma de lançar luz sobre momentos

obscurecidos da história colonial.

A última tragédia, de Abdulai Sila, não é um romance testemunhal; as

intempéries vividas e relatadas pelos três protagonistas são ficcionalizadas; se

relacionam intrinsecamente ao processo colonial e ao discurso utilizado para manter o

poderio lusitano em terras guineenses, como, por exemplo, a defesa de uma

inferioridade congênita negra. A fim de exorcizar alguns dos traumas gerados pela

colonização, a ficção de Abdulai problematiza momentos opressivos do outrora,

sabendo, entretanto, que não pode reviver o passado, nem tampouco recriá-lo,

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inteiramente, a não ser alegoricamente. Portanto, às letras cabe a ficcionalização dos

resquícios de memória que possuem, também, muito de imaginação e criação autoral.

Havemos que considerar, no entanto, que a memória do trauma apresenta suas

peculiaridades: ela não pode ser totalmente apreendida pela escrita. Marcio Seligmann-

Silva chama atenção para tal fenômeno, mostrando ser impossível “narrar o

inenarrável”; ele também declara:

a imaginação apresenta-se a ele como meio para enfrentar a crise do

testemunho. [...] A imaginação é chamada como uma arma que deve vir em

auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma. O

trauma encontra na imaginação um meio para sua narração. (SELIGAMNN-SILVA, 2008)

Ou seja, por meio de recursos imagéticos que se manifestam por vias

linguísticas, a memória pode ser ficcionalizada. Como “toda escritura do passado é uma

reinscrição penosa e nunca total” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 83), a linguagem

tratará de amenizar os eventos e também a memória.

No caso de Abdulai Sila, em A última tragédia, há dois mecanismos

predominantes que iremos estudar: os silêncios e a ironia. Associados a esses, se

encontram o discurso político de Amílcar Cabral e sua figura, seu exemplo e a sua

memória.

Abdulai Sila evita se referir diretamente à guerra; os sofrimentos vivenciados

bloqueiam-lhe as lembranças. Em entrevista publicada na revista O Marrare, o escritor

revela seu ponto de vista:

Não é fácil para mim falar da guerra de libertação. As minhas

lembranças são horríveis! Perdi o meu melhor amigo de sempre, o meu irmão

Idrissa, que numa manhã de fevereiro de 1972 foi gravemente ferido. Tinha na altura oito anos de idade, ficou paraplégico, viveu mais 6 anos. No mesmo

dia, uma outra irmã minha, que tinha 10 anos, perdeu uma perna. Ela era a

melhor futebolista de Catió… podes imaginar como foi a vida dela depois? O

meu pai morreu pouco tempo depois em consequência do choque que teve ao

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ver metade da família a sangrar. A minha mãe foi quem aguentou mais, mas

perdeu a alegria da vida. Tomou conta do meu irmão paraplégico. No dia em

que ele morreu, ela passou a ser muito mais reservada. Quase que não falava

com ninguém… Bem, tudo isso é o resultado de uma bomba, que caiu em

frente de casa. Antes e depois desse dia houve muita coisa que aconteceu.

Vi muita gente morrendo na sequência de ataques e

bombardeamentos. Convivi com muita gente que sofreu, no corpo e na alma,

os efeitos da guerra. Saí de Catió tinha doze anos para frequentar o Liceu, em

Bissau. Mas ia todos os anos, no fim de cada trimestre, a Catió para estar com

a minha gente. Tendo começado em 1963, quando tinha 5 anos, a guerra só

acabou em abril de 1974, pouco tempo depois de eu completar os 16 anos. (SILA. In.: BISPO, 2010, p. 3-4)

Mencionar a dor não é difícil apenas para o escritor; é também para o narrador

de A última tragédia.

É fato que

o uso sistemático da coerção e da violência para controlar os “indígenas

irrequietos” não era uma característica exclusiva do colonialismo português,

mas de fato um traço comum a todos os regimes coloniais da África.

(MENDY. In.: LOPES, 2012, p. 21)

Em obras de historiadores sobre o continente africano – da mesma forma que em

diversos livros sobre a colonização da América – temos descrições de instrumentos de

tortura, ações políticas e discursos coercivos que assolaram a população. São

conhecidas algumas frases usadas para justificar o uso de castigos físicos para

escravizar, disciplinar e “civilizar” africanos, mas que, hoje, soam não apenas

preconceituosas, mas também cruéis e desumanas:

É inevitável e até desejável que alguns indígenas sejam mortos. (Louis-

Gabriel Angoulvant, governador francês da Costa do Marfim)

Não se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos. (Joseph Chamberlain,

secretário colonial britânico) (Apud.: MENDY. In.: LOPES, 2012, p. 21)

Na doutrina cristã, o homem não deve temer a escravidão do homem pelo

homem, e sim sua submissão às forças do mal (discurso corrente entre

europeus, durante os séculos XVI e XVII)

(Apud.: MUNANGA, 2012, p. 29)

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Esses tipos de controle colonial são também representados pelo romance de

Abdulai tanto no nível do enredo, como no do pensamento das personagens, conforme

podemos observar no seguinte trecho:

se fosse apanhado sem carta de imposto, era palmatória e prisão, tudo junto.

Apanhado mais que uma vez, podia apanhar as duas coisas mais trabalho

forçado e então a sua família podia não voltar a vê-lo nunca mais. (SILA,

2006, p. 75)

Outras cenas construídas por Sila revelam situações semelhantes a estas, como,

por exemplo, a que descreve as atitudes e reações do Régulo diante do questionamento

do imposto. Como discutiremos mais adiante, Sila opta por não descrever um evento em

que haja aplicação de punição, havendo, contudo, denúncia às ações discriminatórias.

A fim de justificar a postura de tão acentuado preconceito, diversas teorias

científicas e religiosas balizaram o racismo, partindo do pressuposto de que ser branco

era a condição normativa humana; logo, “ser negro necessitava de uma explicação

científica” (MUNANGA, 2012, p. 28). Kabengele Munanga aponta hipóteses

espirituais, biológicas, sociais e conclui que essas serviram, apenas, para justificar e

“esconder os objetivos econômicos e imperialistas da empresa colonial” (MUNANGA,

2012, p. 33).

Diante das condições que o colonialismo impôs aos povos africanos autóctones,

revoltas e resistências tornaram-se ações previsíveis e esperadas. O governante pepel de

Bissau, capturado em 1915 pelo capitão João Teixeira Pinto, declarou, por exemplo, que

“nunca se renderia, porque odiava brancos”, e “se viesse a morrer e no outro mundo

encontrasse brancos, declararia guerra contra eles” (PINTO, 1936. Apud.: MENDY. In.:

LOPES, 2012, p. 18). Amílcar Cabral, em Unidade e Força, se manifestou de modo

mais emocional e se identificou com a população local:

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vi gente morrer de fome em Cabo Verde e vi gente morrer a pauladas na

Guiné (com surras, pontapés e trabalho forçado), entende? Essa é a razão da

minha revolta (CABRAL, 1980. Apud.: MENDY. In.: LOPES, 2012, p. 21).

Maurice Halbwarchs explica que a memória é fruto daquilo que “vimos,

fizemos, sentimos, pensamos num momento do tempo” (HALBWARCHS, 1990, p. 54);

os eventos históricos dos quais não participamos, por sua vez, compõem aquilo que

Halbwarchs chama de “memória da nação”, esse conhecimento é-nos transmitido de

diversas formas, além de podermos escolher obter mais ou menos informações. Ele

mesmo testemunha acerca do resultado deste conhecimento:

estou engajado no grupo, de modo que nada do que nele ocorre, enquanto

dele faço parte, nada daquilo o preocupou e transformou antes de que nele

entrasse me é completamente estranho. (HALBWARCHS, 1990, p. 54)

Os estudos das histórias de líderes negros norte-americanos, de reinos africanos

e dos males coloniais compuseram, certamente, a formação de vários guineenses da

geração de Sila. O movimento contra a opressão colonial e o racismo, do qual Amílcar

Cabral foi um dos proeminentes pensadores críticos, tornaram-se muito caros aos

militantes do PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde),

bem como aos envolvidos na luta de libertação. Portanto, a ficcionalização e a revisão

crítica desses momentos históricos se fazem necessárias para a exorcização dos traumas

introjetados pelo regime fascista imposto pelo colonialismo.

Abdulai Sila, tendo vivenciado o período colonial e as lutas de libertação, se

identifica, por vezes, com suas personagens e seus narradores, acumpliciando-se às

dores de seus compatriotas, o que nos leva a concluir com Booth que:

enquanto escreve, o autor não cria, simplesmente, um “homem em geral”,

impessoal, ideal, mas sim uma versão implícita de “si próprio”, que é

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diferente dos autores implícitos que encontramos nas obras de outros

homens. (BOOTH, 1980, p. 88)

2.2- Os silenciamentos

Em A última tragédia, a dor traduzir-se-á por intermédio de silenciamentos; o

principal exemplo disso está na violência sofrida pela protagonista. Ndani foi estuprada

ao final do segundo capítulo do romance pelo senhor Leitão, proprietário da casa em

que ela trabalhara como criada. O estupro da personagem é metonímia do próprio

estupro colonial, cuja violência foi imensa em terras africanas.

O romance apresenta um narrador que não se revela inteiramente onisciente,

apesar de narrar em 3ª pessoa. Mesmo conhecendo as histórias, ele escolhe a partir de

qual personagem vai contar; para tanto, ele se vale do discurso indireto livre para relatar

os pensamentos das personagens. Com isso, esse narrador de Sila se torna muito

humano e se assemelha a um ideal explicitado por Wayne Booth:

O processo mais semelhante ao processo da vida é o da observação dos acontecimentos através duma mente humana convincente e não duma mente

divina desligada da condição humana. (BOOTH, 1980, p. 63)

Ao descrever o que acontece a partir de uma determinada personagem, realiza

uma construção de cena bastante curiosa. O primeiro passo para silenciar a dor da

agressão sofrida pela protagonista é tirá-la do protagonismo; o narrador escolhe, então,

mudar o ponto de vista, passando este a ser o de Dona Linda, que não estava em casa no

momento e, por isso, obviamente, não participara da violência. Esse tipo de artifício

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narracional é explicado por Wayne Booth: “o ‘autor implícito’ escolhe, consciente ou

inconscientemente, aquilo que lemos” (BOOTH, 1980, p. 92).

Com a narrativa centrada em Dona Linda e em sua “missão salvadora”, Ndani

sai da cena central e torna-se, neste momento, um apêndice da patroa, bem como do

senhor Leitão:

As exigências da missão e os sucessos contínuos da sua acção

afastavam-na cada dia mais do seu lar. As suas preocupações pelas almas a

salvar levaram-na a esquecer um vício antigo do marido: violar criadas.

Lembrou-se disso um dia à tarde, quando regressou à casa antes da hora habitual e ouviu gemidos no quarto da criada. Não foi necessário entrar

no quarto, soube logo o que tinha acontecido. O que não soube foi o que

dizer ao marido, que naquele preciso momento abandonava o quarto da

criada com o rosto a sangrar de arranhões, a camisa aberta, as calças

desabotoadas, os pés descalços...

Dona Linda ficou parada no meio da sala como uma estátua. Estava

com as faces todas molhadas de lágrimas, que rolavam abundantes e

apressadas até a extremidade do queixo, despenhando-se depois sobre a

papelada que ela mantinha apertada sobre o peito, como se pretendesse tapar

uma ferida profunda na zona do coração... (SILA, 2006, p. 66)

Antes da violação da criada, o narrador estava tratando das homenagens

recebidas por dona Linda e de suas modernas ideias de oferecer educação aos nativos;

fora esse o assunto que transferira o protagonismo da criada para a patroa.

Ao tornar Dona Linda o centro da cena, o narrado não é o estupro em si, mas,

sim, a sensação da patroa portuguesa diante do ocorrido. Enquanto Ndani é referida

apenas como “criada”, dona do quarto de onde vinham os gritos e de onde saiu o senhor

Leitão, Dona Linda teve seus sentimentos minunciosamente descritos e sua dor

compartilhada com o leitor. A criada fora vítima de um estupro físico, que foi

subentendido pelo leitor, mas não foi descrito pelo narrador; já a patroa fora vítima de

um estupro emocional; ela, sim, tinha “as faces molhadas de lágrimas” e “uma ferida

profunda na zona do coração”...

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Ndani foi limitada a um ofício da casa; na verdade, ela só fora vítima, porque

estava no exercício da função de criada. Pouco sabemos da reação da moça; ela se

tornou coadjuvante da narrativa e objeto de posse de outras personagens. O leitor sabe

que ela gemeu, porque Dona Linda ouviu seus gemidos; sabe também que ela reagiu,

machucando o rosto do patrão, porque este estava a sangrar de arranhões. O narrador se

vale de uma construção extremamente emblemática para representar um momento em

que a protagonista do romance sofre uma das grandes tragédias de sua história. Ao

saber-se objeto de posse de outra pessoa com quem não mantinha nenhuma relação

sentimental, Ndani não é “sujeito” oracional nem mesmo das frases que continham os

gemidos e os arranhões, frutos de suas ações.

De acordo com o contexto histórico colonial, o Senhor Leitão exercia seu

“direito” de patrão e proprietário da negra que servia à sua família; textualmente, esse

comportamento é ressaltado pela escolha da palavra “vício”, usada para se referir à

atitude por ele tomada. Ele violentou Ndani e, certamente, também fizera o mesmo com

outras criadas, anteriormente. Seu ato é justificado pela reação da esposa que se afastava

“cada dia mais do seu lar”. Além disso, o patrão também era a razão para a saída de

dona Linda. No início da cena, ela estava em busca de uma melhor colocação política

para o marido. A voz narradora se faz irônica, quando comenta que a “ferida profunda

na zona do coração” não tinha abalado as intenções de dona Linda em tornar o marido

um administrador:

Qual devia ser, naquelas circunstâncias tão dramáticas, a decisão

certa a tomar? Qual devia ser, naquele momento concreto, a atitude mais

correcta de uma mulher cuja tarefa fundamental era salvar almas perdidas e levá-las ao rumo certo? Qual devia ser a posição de uma mulher católica e

civilizada, cujo marido cometia sistematicamente actos indecentes, crimes

repugnantes, pecados imperdoáveis?

Devia perdoá-lo?

Devia condená-lo?

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Devia comprometer a sua promoção a Administrador? (SILA, 2006,

p. 66)

Fazendo uso do discurso indireto livre, o narrador deixa transparecerem as

inquietações de Dona Linda. A personagem, caracterizada como uma católica devota,

vê-se dividida diante da atitude a tomar. Sua posição social e influência eclesiástica a

levam a refletir e são consideradas para sua decisão final. Fica claro que ela condena o

comportamento do marido, entretanto, isso não a motiva a buscar o divórcio.

O questionamento que fecha o capítulo 2 soa irônico ao leitor do século XXI,

pois faz perceber o interesse econômico que não só guiara a escolha de dona Linda, mas

também o processo colonial em África.

2.3- Das ironias

Ao procurar disfarçar as dores mais intensas, uma das estratégias usada por Sila

para enfrentar as tragédias é a ironia, figura de retórica utilizada para dizer algo por

meio de seu contrário ou, nas palavras de Linda Hutcheon, “a identidade semântica

básica da ironia se constitui principalmente em termos de diferença” (HUTCHEON,

2000, p. 99). A ironia difere da metáfora e da alegoria por estas conterem pontos de

contato com o objeto referido; pelo distanciamento semântico e referencial, a ironia se

torna uma figura de linguagem de difícil interpretação, sendo somente compreendida, a

princípio, em seu contexto. Para Linda Hutcheon, “a ironia é uma estratégia discursiva

que não pode ser compreendida separadamente de sua corporificação em contexto”

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(HUTCHEON, 2000, p. 135). A mencionada teórica ainda completa: “a ironia envolve

as particularidades de tempo e espaço, de situação social imediata e de cultura geral”

(idem, ibidem). Sendo assim, para que o efeito pretendido pelo autor (ou ironista, no

dizer de Hutcheon) seja obtido, o receptor (ou interpretador) precisa, dentre outras

coisas, estar ciente das condições comunicativas, como tempo, espaço, assunto, situação

sócio-político-econômica. Diante disso, concordamos com a estudiosa canadense nesse

questionamento: “existe algum modo para um ironista garantir a compreensão – isto é,

prevenir a má compreensão – da ironia intencional?” (HUTCHEON, 2000, p. 214).

No contexto discursivo da fala, a sinalização de aspas no ar com os dedos, a

alteração da voz, um sorriso ao final da frase podem ser as marcas que conduzem o

ouvinte a apreender o sentido irônico de um enunciado. Entretanto, isso não ocorre na

escrita. À exceção do uso de aspas ou itálico – que não são sinais de uso exclusivo da

ironia –, esta figura de retórica não possui um marcador gráfico. Ainda assim, Linda

Hutcheon conseguiu identificar alguns sinais estruturalmente perceptivos:

(1) várias mudanças de registro; (2) exagero/ abrandamento; (3) contradição/

incongruência; (4) literalização / simplificação; (5) repetição/ menção

ecoante. (HUTCHEON, 2000, p. 224)

A mudança de registro ocorre por meio da introdução de um termo em estilo

diferente do contexto, como uma expressão popular num artigo científico. O exagero

(hipérbole) ou abrandamento (lítotes) são “dois extremos comuns de sinalização

irônica” (ibidem, p. 224). A contradição e a incongruência se estruturam a partir da

inserção de um “objeto estranho” no texto, como “a impropriedade de coisas aladas

mergulhando na água” (ibidem, p. 225). A quarta categoria – literalização /

simplificação – trabalha com o processo de “tornar literal o figurativo” (ibidem, p. 226),

surpreendendo o interpretador/leitor, de modo que apenas a interpretação irônica caiba

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no contexto. O último sinal é, segundo Linda Hutcheon, o mais comum; uma vez que a

repetição de um termo e/ou de uma frase aponta diretamente para a carga irônica

existente.

A narrativa de Sila aborda, ironicamente, alguns dos fatos históricos caros aos

colonizadores. As motivações coloniais, a vocação lusitana para a salvação dos povos e

a assimilação dos negros africanos, por exemplo, são temas que funcionam como pano

de fundo da trama e que são tratados de modo especial pelo narrador. A última tragédia

é um romance irônico e é, também, uma obra de cunho trágico, que narra traumas do

colonialismo, valendo-se da ironia para ressaltar determinados malefícios da

colonização. Nossa leitura, portanto, irá investigar o tratamento irônico que o narrador

dá à Igreja, à cultura autóctone, à agremiação desportiva, à educação dos nativos e à

escrita da História. Para tanto, vamos verificar como esses fatos históricos foram

ficcionalizados, qual foi a abordagem linguística dada pelo narrador e qual ou quais

traços dos elencados por Linda Hutcheon foram utilizados. Ao lado desses momentos,

frases, palavras ou cenas irônicas, há, também, a discussão sobre as identidades

formadoras do contexto cultural guineense e a rememoração crítica de sonhos e

discursos em prol da liberdade nacional.

Nossa compreensão é a de que nem sempre as ironias de Sila são percebidas

pelo leitor exógeno; afinal,

não importa quão familiar cada um desses possa ser em seu papel, sua

existência como um “marcador” bem sucedido dependerá sempre de uma

comunidade discursiva para reconhecê-lo, em primeiro lugar, e, então, para ativar uma interpretação irônica num contexto particular compartilhado: nada

é um sinal irônico em si e por si só. (HUTCHEON, 2000, p. 227)

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2.3.1- Das identidades

Por muitos anos, o pensamento colonial ignorou o fato de os povos autóctones

terem uma cultura, língua e religião próprias; além disso, mesmo anos depois dos

grandes descobrimentos, a leitura portuguesa do outro permaneceu limitada. Nas

palavras de Hélder Macedo, referindo-se à época dos grandes descobrimentos, “a

percepção do desconhecido só podia ser uma modulação do conhecido” (MACEDO,

1998, p. 203). Tal visão do outro, no século XX, já não é mais justificável com o uso do

mesmo argumento. E, por essa razão, o estranhamento de Dona Linda em relação à

identidade de Ndani é construído ironicamente no romance. Ainda no primeiro contato

com os portugueses, Ndani tem seu nome trocado:

– Como é que te chamas?

– Hmm?

– O teu nome, caramba! – Aahm Ndani, sinhora. Ndani.

– Como é que é? Dánia? Dánia... mas este é um nome russo, nome

comunista. Ave Maria! Você arranjaram cada uma... Com tanto nome bonito

português que há por aí, o teu pai escolhe para ti um nome russo! É assim que

começa a insurreição comunista. Com coisas simples com estas. Não quer

nome português, mas nome russo quer, não é isso? Quer dizer então que a

propaganda comunista já chegou até às vossas aldeias! Até nas florestas há

agora agentes do comunismo! Mas que desgraça, meu Deus! Como é que

vocês conseguem ser tão ingratos? Como? Sim, isso não é outra coisa senão

ingratidão. Ingratidão e estupidez! A gente vem para este inferno civilizar-

vos e vocês a criarem confusão... Mas nome comunista a minha casa é que

não vou tolerar. Nunca! O teu nome vai ser Daniela, ouviste? A partir de hoje, tu és Daniela, Da-ni-e-la. Maria Daniela e mais nada.

Levou muito tempo para descobrir que Maisnada não era apelido.

(SILA, 2006, p. 31)

O discurso indignado de dona Linda foi gerado, em primeiro lugar, pela

incompreensão de um nome que não lhe soou familiar. Devido à semelhança fônica com

o russo, a patroa concluiu que assim o era; daí, inicia-se um silogismo mal elaborado,

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do qual se conclui que ― uma vez ter a criada nativa um nome russo e por serem os

russos comunistas ― a moça é comunista e o comunismo chegou às florestas da Guiné-

Bissau. De acordo com a classificação de Linda Hutcheon, a ilação de dona Linda

exemplifica a ironia por simplificação (cf. HUTCHEON, 2000, p. 224).

A noção simplificada da problemática leva dona Linda a uma conclusão risível,

mas nem por isso totalmente falsa. Sabemos que o PAIGC era de base comunista23

e

que a luta de libertação teve início com a tomada das aldeias, a fim de conscientizar os

povos e arregimentá-los para o combate. Ou seja, de fato, o comunismo chegara às

aldeias, mas isso não se relacionava com o nome da criada.

Para Ndani, a recepção de seu novo nome também foi interessante. Ela não

conhecia a cultura dos brancos, tampouco sua língua, mas tinha ciência de que não era

igual a eles; mais do que isso, ela se sentia inferior; seu comportamento e seus

pensamentos confirmavam isso: “o criado nunca deve olhar o patrão no rosto quando

este olha para o criado” (SILA, 2006, p. 23). Assim, receber um nome novo não diferia

de tantas outras coisas novas que entraram em sua vida com a chegada a Bissau. O

desconhecimento da língua, naquele momento, não permitira que ela distinguisse “mais

nada” como sinônimo de “sem nenhum acréscimo”. Sua leitura foi a de um conjunto

fônico único, que, posposto ao novo nome, poderia ser o sobrenome (ou apelido).

Se num primeiro momento o nome soara-lhe estranho, com o passar do tempo,

no entanto, Ndani assumiu não só o nome, como também a nova identidade. Já vivendo

23 Não consta dos documentos do PAIGC, por nós pesquisados, a informação explícita da orientação

política comunista. No entanto, é sabido que a guerra de independência foi financiada pela antiga União

Soviética. Alexis Wick afirma que “a análise leninista do imperialismo influencia de maneira decisiva o

discurso das independências africanas” (WICK. In.: LOPES, 2012, p. 73) e que a maioria dos dirigentes

dos países africanos em processo de independência foram “influenciados por uma ideologia marxista-

leninista”(idem, ibidem). Tomás Medeiros declara, por sua vez, que “Amílcar adota, duma maneira

acrítica, a cópia do modelo bolchevique de partido” (MEDEIROS, 2012, p. 125). Sendo assim, mesmo

sem uma declaração explícita, é possível afirmar que há uma relação clara entre a orientação comunista-

socialista e o PAIGC.

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há três anos em Bissau, ela relembra a maldição do djambakus, desacreditando desta: “a

vida de Maria Daniela, empregada de dona Maria Deolinda Leitão, nunca seria uma

sucessão de tragédias” (SILA, 2006, p. 44). Nesse trecho, ela se apresenta e se define,

usando um nome e uma função. Como a condição de empregada e, posteriormente, a de

assimilada não lhe garantiam um fim afortunado, o narrador ironiza, por meio da

repetição dos nomes Ndani e Maria Daniela, a dupla identidade da personagem. A

construção “Ndani, aliás Daniela” (SILA, 2006, p. 36, p. 41, p. 58) brinca com a

protagonista que ainda não escolhera quem seria. A imagem da capa da edição brasileira

do romance traz justamente a concretização pictórica da figura de Ndani bipartida, na

qual uma metade é negra e a outra é branca ou embranquecida. Temos, à esquerda,

Ndani, e, à direita, Maria Daniela.

Enquanto Ndani está em Bissau, as duas personalidades coexistem, mesmo que

em conflito. A partir do segundo deslocamento, quando segue para Quinhamel, há

momentos de alternância e conciliação. A figura assimilada, culta, alfabetizada leva o

Régulo a torná-la sua sexta esposa. Ao lado de Maria Daniela, o Régulo pretendia ser

um homem mais proeminente do que o Chefe do posto. Ndani ressurge como pessoa –

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não apenas como nome – no terceiro movimento do romance, ao lado do professor,

vivenciando com ele o amor e sua última tragédia. Antes disso, no entanto, ela mesma

se dá conta de sua falta de lugar no mundo, como reflexo de sua identidade fraturada:

Tinha que encontrar um meio onde pudesse viver em paz, sem ter aquela

ideia a persegui-la, sem o pesadelo da tragédia iminente. Era humana e tinha

que viver entre seres humanos, no mundo dos Homens. Tinha feito tudo para

encontrar um lugar num mundo dos existentes. Tinha sonhado encontrar um lugar no mundo dos brancos. Acordou num pesadelo. (SILA, 2006, p. 124)

Intencionalmente ou não, o nome português atribuído à protagonista também é

irônico e brinca com o destino da criada. “Daniela” é um nome de origem hebraica, cujo

significado é: “Deus é o meu juiz” ou “Deus é minha justiça”. Tal sentido destoa da

sucessão de tragédias que marcam a vida de Ndani, excetuando-se a hipótese de que

Deus a tenha julgado e a condenado a um destino trágico.

Ndani não é a única pessoa que tem o nome trocado para se adequar aos padrões

portugueses; isso ocorre também com as demais criadas que aparecem no romance.

É de conhecimento geral que Maria é o nome da mãe de Jesus, figura esta que dá

origem ao cristianismo. A repetição do nome “Maria” sugere, ironicamente, a estratégia

de evangelização: tanto criadas quanto patroas têm, no romance, esse nome:

Um dia, uma criada nova chamada Maria Esperança, criada de

Maria dos Anjos, tinha perguntado aflita à Maria Clara, criada da Dona Maria

Clarice, que levara mais tempo naquelas andanças e conhecia melhor aquelas

coisas de catequese e Sacristão. (SILA, 2006, p. 46)

A Maria Epifânia é a criada da Dona Maria Joana, uma das amigas

de Dona Maria Deolinda. (ibidem, p. 49)

Não é necessário grifar a repetição da palavra “Maria” para notar o excesso, são

sete recorrências em duas frases. Seja por gosto ou por devoção, a recorrência da

palavra chama a atenção, reforçando, mais uma vez, a dicção de denúncia do narrador

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que aponta para a imposição da religião e de uma nova identidade, pelo emprego de um

mesmo recurso estético.

2.3.2- Da Igreja e dos esportes

É conhecida a tradicional devoção cristã da sociedade portuguesa em geral.

Desde Camões, a expansão da “Fé e do Império” marcou a narrativa histórico-literária

lusitana. A presença do catolicismo, portanto, em território guineense, integrava a

proposta colonizadora. Como a evangelização dos nacionais compunha a meta

imperialista, “as autoridades coloniais procuravam estigmatizar [as] crenças religiosas

tradicionais” (APPIAH, 1997, p. 26).

A Igreja, por sua vez, validou, ao longo da história, atitudes de opressão e

submissão de um grupo humano em relação a outro. Para Appiah, “se há um modo

normal de a Bíblia explicar as características distintivas dos povos, [esta o faz] contando

uma história em que um ancestral é abençoado ou amaldiçoado” (APPIAH, 1997, p.

31). A partir dessa herança, repensada ao lado dos discursos da Negritude e do Pan-

africanismo, muitos escritores africanos do século XX questionam “verdades” usadas

pelo colonialismo, no que diz respeito à religião imposta.

Desde a primeira cena em que a Igreja é citada, há uma incongruência entre o

tratamento dado por dona Linda e o oferecido por Ndani. Este descompasso é o recurso

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de que se vale o narrador para ironizar a presença e a influência do discurso religioso do

colonizador:

– Sabes, Daniela, estive ontem a conversar sobre o assunto com o

meu marido; tens que começar a ir à igreja comigo. Waah! Afinal esta é que era a conversa daquele dia. Mas igreja era

coisa de branco, o Deus deles é que estava lá dentro. Lembrou-se de um dia

ter dado uma espreitadela para o interior da igreja que fica no centro da praça.

As figuras que viu no sítio onde disseram ser o lugar do Padre eram todas

figuras de brancos. Não havia nada de preto lá. Até ela sabia que a igreja do

preto era na baloba e o Deus dos pretos era o Yran. Agora confundir as duas

coisas... (SILA, 2006,p. 39)

Ndani ou Maria Daniela não explicita seus pensamentos para a patroa, porém o

leitor os conhece por intermédio do narrador. Com a frase “Waah! Afinal esta é que era

a conversa daquele dia” (idem, ibidem), ela percebe as reais intenções da patroa ao

convidá-la para tomar chá: levá-la à igreja. Ndani avalia o convite com estranhamento,

achando que já havia entendido quais eram os lugares dos brancos e os dos negros. Ou

seja, havia uma ordem estabelecida pelo colonialismo e a ida à igreja junto com a

patroa, em princípio, romperia com essa separação. Como “o fio da ironia é sempre

cortante” (HUTCHEON, 2000, p. 33), a incongruência dos discursos – o

segregacionista da colonização e o conciliador e fraterno de dona Linda – aponta para a

denúncia que é feita. O tom irônico com que é descrito o ingresso de Ndani na igreja se

revela um afiado instrumento de crítica aos métodos coloniais de assimilação e de

cristianização dos povos africanos.

A ida de Ndani à igreja não era uma ordem, como tudo o mais que dona Linda

sentenciava à empregada. Para converter esta, a patroa usava, neste momento, um tom

calmo, bem diferente da maneira cotidiana.

Eu vou explicar-te uma coisa, Daniela. Presta bem atenção que é

um assunto muito importante.

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Era só o que faltava! Agora a patroa também lhe ia explicar assuntos

importantes. Até ali só lhe tinha explicado assuntos de cozinha e de higiene.

Mais nada. Até há pouco tempo mesmo isso tinha sido aos berros. Agora ia

ouvir assunto muito importante, explicado calmamente, ela sentada à mesma

mesa que a patroa, com um bolo fofo à mercê. (SILA, 2006, p. 39)

Se, por um lado, o discurso da patroa se mostrava, agora, sério e compenetrado,

a criada tratava, então, essa formalidade de dona Linda jocosamente. Pela segunda vez,

o discurso da portuguesa vem seguido por uma expressão de espanto de Ndani (“Era só

o que faltava!”), frase esta que denota como ela desdenhava o assunto.

Notamos também uma gradação da importância do que era explicado por dona

Linda. Quando Ndani chegara à casa desta, o principal era cozinhar e limpar ao gosto

dos patrões; num segundo momento – adjetivado pela criada como “diferente” –,

compreender a razão da presença dos portugueses e a relevância de ir à igreja passam a

ser as metas fundamentais. Essa mudança para Ndani, como aparece mais adiante na

narrativa, se efetivara, na prática, com a agregação da tarefa de ir à igreja a outras que já

existiam: “o patrão quer que o criado vá à igreja, o criado vai; se for durante a hora do

serviço, tanto melhor” (SILA, 2006, p. 45).

Ndani, a partir dessa conversa com a patroa, se torna uma personagem diferente

da suplicante e submissa empregada da primeira cena do romance. Ela aqui já tem

opinião e também tira vantagens das situações, quando pode. Esse processo de diálogo

entre a criada e a patroa termina com um presente: dona Linda oferece um crucifixo à

Ndani.

A seguir [Dona Linda] disse “um momento” e dirigiu-se para o seu

quarto. Voltou instantes depois com um fio que parecia de prata ao qual

estava pendurado um crucifixo. Manteve-se de pé junto a Ndani, aliás

Daniela, e mandou-a levantar-se. Com toda calma, colocou-lhe o fio a volta

do pescoço. Ajeitou o crucifixo por forma a ficar bem à vista, no centro do

peito da rapariga, entre os dois seios. Olhou para ela com um sorriso de

triunfo no rosto, com as mãos apoiadas nos ombros dela, como se pretendesse

abraçá-la. Ficou um bom tempo naquela posição, ora fitando Ndani, ora o

crucifixo. Só a libertou quando a rapariga disse, num tom baixo: “Obrigada”.

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Na verdade, parecia que só estava faltando esse agradecimento para levar o

prazer que devia estar sentindo ao auge. Dir-se-ia até que a patroa adorou a

maneira como a criada agradeceu a oferta: falara baixo, com os olhos no

chão, com muita humildade. Ampliou o sorriso e deu duas palmadas

amigáveis nos ombros dela. (SILA, 2006, p. 41)

Este é um momento de choque de culturas. Para dona Linda, o crucifixo

simboliza a fé cristã e aceitar usá-lo de bom grado representa a adesão ao catolicismo.

Sob o olhar de Ndani, o colar parece ser valioso para a patroa; seu sorriso e sua clara

satisfação faziam-na crer que havia ali um significado, contudo, não havia clareza de

sentido para ela.

O êxtase atingido por dona Linda ao ouvir o “obrigado” de Ndani é risível, uma

vez que a moça agradece o presente, entretanto não há nela nenhuma consciência cristã

ao receber o crucifixo. Além disso, a fala de Ndani é acompanhada de um gestual que,

aos olhos da patroa, significa conversão e profunda contrição. Dona Linda se porta

como alguém que não só descobriu seu propósito de vida, mas também obteve sucesso

em seu cumprimento, levando ao caminho da salvação sua primeira alma.

Impensável é para dona Linda saber que Ndani comparara o crucifixo a um

chifre de cabra-mato, “que seu pai lhe colocara ao pescoço poucos dias depois de o

djambakus ter dito que ela era portadora de um mau espírito no corpo” (SILA, 2006, p.

41). A fim de manter seu emprego e, mais recentemente, os privilégios que obtivera, a

moça limitara suas dúvidas à própria mente: “E aquele objeto que acabara de receber de

Dona Linda tinha também algum poder? Qual? Devia perguntar logo ou aguardar por

uma outra ocasião?” (SILA, 2006, p. 42).

Dona Linda acreditava no discurso da igreja que se pautava por levar salvação

aos africanos; ela mesma reproduzia os sermões do padre para explicar suas intenções a

Ndani:

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Dantes esta salvação consistia em levar os negros para longe, lá para as

Américas, onde não teriam nem máscaras, nem as estatuetas que veneravam,

e muito menos as árvores sagradas... Mas depois viu-se que este não era o

melhor método e então tivemos nós os europeus que vir para a África ensinar

a religião cristã e salvar as vossas almas. (SILA, 2006, p. 40-41)

Os discursos de dona Linda e suas crenças são ironizados pela enunciação

romanesca que evidencia seu comportamento imbuído da ideologia cristã pregada pelo

colonialismo. A patroa pouco demonstra interesses econômicos; o que busca é a

salvação dos africanos e, se for possível, ser lembrada pela história e por seus feitos em

prol da fé católica e do domínio português na Guiné-Bissau:

Ela servia a Deus e à pátria ao mesmo tempo. Tal como os descobridores

portugueses [...] Se tudo corresse como esperava e com alguma ajuda de Deus, o nome dela também poderia um dia aparecer nos livros da história de

Portugal. (SILA, 2006, p. 56)

Lembremos que não foram poucas as pressões para que Portugal desocupasse os

territórios africanos. A manutenção de sua presença foi feita pela mudança do discurso

religioso que, então, imputava a Deus novos métodos de evangelizar os negros.

Frantz Fanon nos revela uma intencionalidade outra: ele aponta para a

metodologia da aculturação empregada pela Igreja:

A Igreja nas colônias é uma Igreja de Brancos, uma igreja de estrangeiros.

Não chama o homem colonizado para a via de Deus, mas para a via do

Branco, a via do patrão, a via do opressor. E como sabemos, neste negócio

são muitos os chamados e poucos os escolhidos. (FANON, 1979, p. 31)

Ou seja, de acordo com Fanon, a Igreja funcionou como um meio para chegar à

cultura dos colonizados, silenciando-a; o primeiro passo no processo de assimilação

consistia em levar o negro a negar suas crenças; juntamente a isso ele também deixava

penteados, vestimentas, sua língua e assumia os costumes do colonizador, porém em

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posição subalterna. Assim, o colonizado assimilado adquiria uma nova função: a de

agente do colonialismo. O Régulo de Quinhamel percebeu que a Igreja era uma força

intensa na vida da colônia; ele deixara de buscar uma esposa num convento para evitar o

contato com a Igreja; nas palavras do Régulo,

os padres têm muita força. Aliás, problema com tudo quanto é branco de praça é bom evitar, sobretudo pessoal da igreja. Tem uma força... ninguém

sabe de onde é que ela vem (SILA, 2006, p. 89).

Em A última tragédia, dona Linda se dera conta de que não conseguiria sozinha

cristianizar todos os guineenses; então, ela e a amiga Maria da Glória buscaram

convocar os novos convertidos a juntar-se a elas na missão salvadora:

– Ou nos limitamos aos pequenos centros urbanos, aos poucos que existem na Província, ou então temos que preparar gente daqui para fazer o

nosso trabalho. Mas fazê-lo como queremos.

– Explique-me isso melhor.

– Temos que criar escolas...

– Escolas?

– Sim, escolas.

– Mas... Estás a falar de escolas para os indígenas?

– Como é que vão pregar o Evangelho se não sabem ler?

– Mas escola mesmo?

– Claro que só vamos formar o número que acharmos razoável.

Esses depois vão formar outros... e assim sucessivamente. Vai ser uma bola de neve, com a vantagem de que vamos poder controlar seu tamanho e

velocidade a cada momento.

[...]

Depois de alguns meses, passou a haver escolas para muitos

indígenas, alguns deles criados. Recebiam dispensa de trabalho para irem à

escola, o que era uma grande novidade. (SILA, 2006, p. 58)

Esse trecho pode soar romântico, perverso ou irônico. Uma leitura mais inocente

vê duas católicas que querem cumprir sua missão, valendo-se de uma estratégia, que é,

até mesmo, bíblica: “o que de mim ouviste em presença de muitas testemunhas, confia-

o a homens fiéis que, por sua vez, sejam capazes de instruir a outros” (II Timóteo 2.2)24

.

24 O trecho bíblico foi extraído de http://www.bibliacatolica.com.br, acesso em 10/01/2013, às 14h.

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Dona Linda e dona Maria da Glória acreditam ter sido iluminadas por Deus para

desenvolverem a ideia de educação para nativos.

O leitor um pouco mais atento se dá conta da perversidade da educação colonial

imposta aos colonizados: limita a gama de conhecimentos ao mínimo necessário para

formar “soldados missionários”. A escola para nativos, no formato proposto, nada mais

é do que mais um dos braços do colonialismo. Por meio dessa educação criar-se-ia uma

nova categoria de cidadão, que, na estrutura social colonial, estaria acima dos negros,

mas abaixo dos portugueses. Porém, esse novo assimilado seria diferenciado, pois seria

um cidadão religioso.

Contudo, não é difícil compreender que, para o colonizador português, “preto

que sabe ler é anarquista” (SILA, 2006, p. 59), uma vez que o risco oferecido pelo

desenvolvimento de uma escola de qualidade poderia propiciar a expulsão dos

portugueses do território guineense.

A leitura do trecho destacado passa a ser irônica, na medida em que o

interpretador conhece a versão oficial da implantação da escola colonial destinada aos

negros colonizados.

As investidas anticoloniais de grandes nações que visavam a estabelecer vias

livres de comércio também desencadearam, por parte dos países colonizadores,

mudanças de nomenclatura de “colônia” para “territórios não autónomos” ou “territórios

sob tutela” e, em Portugal, “Províncias Ultramarinas” (cf. SILVA, 1997, p. 23). Junto a

isso, houve também

o estreitamento dos laços entre metrópole e colónias, através do

desenvolvimento dos meios de comunicação, aumento da interdependência

económica e aprovação de medidas de defesa dos indígenas, visando

defender “a unidade de Portugal com as colónias” e reforçar “a missão da

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metrópole” como “missão civilizadora e de auxílio aos povos indígenas”.

(SILVA, 1997, p. 24-25 – grifos do autor)

O que na versão oficial era uma medida para dirimir, falsamente, a diferença

entre colonizador e colonizado, na ficção, é denunciado como intervenção divina. Um

dado que nos chama a atenção, no decorrer do romance, é que a versão oficial da

história integra-se às histórias individuais das personagens que reduplicam valores da

ideologia colonial. Na conversa entre dona Linda e dona Glória, há comentários sobre a

implementação da educação dos nativos; num outro momento, há o registro do controle

excessivo da população local.

Segundo o Régulo de Quinhamel, “as coisas importantes têm que ser repetidas

às vezes. Às vezes, não, sempre; pelo menos até que todos entendam” (SILA, 2006, p.

114). Por isso é que, mesmo já tendo ironizado a intervenção eclesiástica no processo

colonial, o narrador coloca na voz de personagens africanos, em especial, na do

Professor, questionamentos a respeito do papel da Igreja e do descompasso entre as

teorias socialistas e suas práticas.

O Professor surge no romance, no segundo deslocamento de Ndani, em

Quinhamel; ele viera para a cidade por intermédio do Régulo Bsum; este acabara de

construir uma escola e o escolhera para docente. Elegê-lo para a função fora pensado

cuidadosamente; o Professor era filho de Obem Ko, um morador da tabanca de Ilondé

que fora enganado por um comerciante branco e reagira a isso, o agredindo. Como

consequência, Obem fora preso, torturado e enviado para o trabalho forçado; lá, matara

o capataz e dois assistentes (cf. SILA, 2006, p.107). O Régulo acreditava que a presença

de um professor negro, que já sofrera com a agressão dos colonizadores, poderia ajudá-

lo em seu plano de vingança contra o Chefe do posto.

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O Professor não tinha sido formado a partir das lembranças dos traumas

diretamente sofridos com a colonização, mas, sim, de preconceitos e crenças

decorrentes do sistema colonial. Aos 25 anos, idade com que chegara a Quinhamel, ele

passara por escolas católicas e ingressara muito novo na Missão dos padres italianos. O

Professor era um católico piedoso, que não questionava os métodos do império

português e rejeitava “certas coisas em que a gente acredita na tabanca” (SILA, 2006, p.

108). Contudo, é esta a personagem que emerge para questionar e desconstruir “as boas

intenções” da Igreja.

A mudança de pensamento e atitude do Professor tem início a partir de seu

contato com Ndani e a descoberta de seus desejos amorosos por ela. Diante da

iminência do adultério, o Professor adverte para si mesmo: “um bom cristão, e professor

ainda por cima, não devia cometer pecado” (SILA, 2006, p. 130); entre o ensinamento

aprendido e o desejo que o aflige, o Professor começa a justificar a atitude que está para

ser realizada: “não havia motivos para justificar a marginalização da pobre mulher.

Também era pecado!” (SILA, 2006, p. 132). O adultério se justifica para ele por meio

da relativização dos mandamentos bíblicos. O Professor considera, por exemplo, que

Ndani não era realmente casada com o Régulo, já que este a rejeitara e o casamento fora

arranjado.

A questão que desejamos ressaltar, no entanto, é que este foi o primeiro passo

para que outros mandamentos também fossem relativizados e que seu discurso se

efetivasse na prática.

Estar apaixonado por Ndani provocara uma série de mudanças no Professor.

Este é um aspecto recorrente na obra de Sila, podendo ser observado também em Eterna

paixão. É a paixão que move a vida de Daniel. Tanto ele quanto o Professor descobrem-

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se apaixonados por uma mulher e esse sentimento ganha novas proporções, eclodindo

numa paixão social por uma causa coletiva.

Após escrever o testamento do Régulo, rasgá-lo e encontrar uma outra cópia do

documento, o Professor deu conta de que era preciso expulsar os brancos e se recordou

de que o Régulo tinha um plano. Em seus pensamentos, ele concluiu:

Castigar gente inocente era pecado, como é que aqueles brancos não sabiam?

Iam à missa todos os domingos, mas durante a semana não faziam outra coisa

senão pecado. Pecado em cima de pecado... [...] Ou será que os brancos que

mandavam na terra não consideravam talvez os pretos seus semelhantes?

(SILA, 2006, p. 141)

O Professor toma consciência da incongruência entre os discursos e as práticas

cristãs que os colonizadores trouxeram às terras africanas. O catolicismo que aprendera

na Missão dos padres italianos era benevolente e fraterno, enquanto o colonialismo,

ironicamente, usando o nome de Deus, se manifestava cruel e injusto.

Por caminhos e razões diferentes, o Professor chegara a uma semelhante

conclusão, exposta por Antero de Quental, em seu discurso de abertura das

Conferências do Cassino. Entendemos que há no romance de Abdulai uma crítica

parecida à iniciada no século XIX. Em 1871, o escritor Antero de Quental apontara a

“transformação do catolicismo, pelo Concílio de Trento” (QUENTAL, 1871- grifo do

autor)25

como uma das causas da decadência dos povos peninsulares; para o poeta

português,

a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, [era]

rigorosamente o oposto do catolicismo do Concílio de Trento, para quem a

razão humana e o pensamento livre [eram] um crime contra Deus.

(QUENTAL, 1871)

25 Foram consultadas três fontes para a obtenção do discurso “Causas da decadência dos povos

peninsulares”, a versão que contém o texto completo é eletrônica e sem paginação, por isso não usamos

aqui a indicação de página.

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Valendo-se da “liberdade moral” e da “consciência individual”, o Professor

avaliava e concluía que não era preciso ser católico para fazer coisas boas ou pensar no

bem comum. O Régulo não era católico, mas, para o Professor, era quem melhor

expressara o discurso cristão, bem como seus planos para libertação: “ninguém vai

poder garantir que todos os planos que irão surgir serão tão católicos como o do

Régulo” (SILA, 2006, p. 143). O Professor, assim, chegara, de certa forma, à conclusão

parecida com a enunciada por Antero de Quental: “o cristianismo é sobretudo um

sentimento: o catolicismo é sobretudo uma instituição” (QUENTAL, 1871).

Ao lado das instituições de educação para os nativos, o desenvolvimento de

agremiações esportivas também foi um método para promover a “unidade de Portugal

com as colónias” (SILVA, 1997, p. 24); brancos, civilizados, assimilados e negros

uniam-se em torno de um mesmo objetivo. O historiador António Duarte Silva

esclarece, no entanto, que a frequência a clubes ou associações formais era restrita aos

“civilizados”, “embora a quase totalidade dos jogadores fosse africana” (SILVA, 1997,

p. 32). Ou seja, o futebol, principalmente, funcionou para unir e segregar

simultaneamente; em Catió, era o esporte de prática semanal:

Todos os domingos eram sempre duas e as mesmas equipas que se

defrontavam: a dos Casados e a dos Solteiros. No início, achou aqueles

nomes muito divertidos. Depois, quando conheceu melhor os atletas, achou-

os produto da falta de imaginação daquela gente. Agora estava convicto de

que era uma forma de discriminação, embora muito subtil.

Casados eram todos os brancos e mestiços, funcionários e

comerciantes, todos os civilizados e alguns assimilados. Solteiros era tudo

quanto era preto, independentemente da idade ou do número de mulheres que

tinha; às vezes era também um assimilado que não sabia, mas queria jogar.

No início, jogou pelos Solteiros. Marcava sempre muitos golos. Talvez por

isso alguém tinha descoberto que afinal ele era Casado, era professor. Tinham-lhe reconhecido o estatuto do assimilado. (SILA, 2006, p. 154 –

grifos do autor).

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A descrição que o Professor faz das duas equipes de futebol, por si só, já aponta,

gradativamente, para a ironia na nomeação dos times. O narrador oferece as chaves de

leitura para que o leitor perceba a discriminação e o racismo existentes nas colônias

portuguesas em África.

Linda Hutcheon declara: “pode ser que a ironia não crie comunidades, mas

venha a existir porque valores e crenças comunitários já existam” (HUTCHEON, 2000,

p. 142). Assim, a construção da ironia, presente na denominação “solteiros e casados”,

passa, primeiramente, por uma comunidade comunicativa preexistente, repleta de

preconceitos, crenças e costumes. Os nomes das equipes não têm qualquer relação com

a identidade dos times, no entanto são nomes corriqueiros na formação de equipes de

futebol em situações informais, como também o é a expressão “com camisa e sem

camisa”. Então, a escolha “solteiros e casados” compõe o universo dos jogos de futebol.

Outro dado preexistente nas comunidades era a segregação entre brancos e

negros nas colônias; contudo, usar os nomes “brancos e negros” ou “civilizados e

indígenas” contrariaria a tentativa governamental em estabelecer “a unidade de Portugal

com as colônias”. Logo, a adoção de um nome que não expusesse as relações pouco

amigáveis entre colonizado e colonizador foi feita, o que traduzia uma forma sutil de

discriminação.

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2.3.3- Do colonialismo

O epílogo do romance foi acrescentado à narrativa, em 1994. A intenção inicial

do autor fora esclarecer alguns pontos do narrado. Entretanto, o que temos ao fim de A

última tragédia soa-nos muito mais como um desabafo do que como uma explicação.

Além disso, há o questionamento da versão oficial da história, que, nesse epílogo, ganha

diversas versões. Este começa assim: “há coisas que de facto só acontecem uma vez. Há

outras que nem esse acontecer merecem” (SILA, 2006, p. 185). As frases de abertura

nos remontam aos finais trágicos das três personagens centrais: Ndani morre afogada; o

Professor é degredado para São Tomé e Príncipe; o Régulo morre de desgosto, não

tendo transmitido o plano para expulsar os portugueses. Histórias tão trágicas como

essas não merecem acontecer, mas acontecem. Segundo Seligmann-Silva, “não contar

perpetua a tirania do que passou” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 9); assim, é melhor

repeti-las para que as ações tirânicas possam ser denunciadas e não voltem, outras

vezes, a ser praticadas.

Usando um discurso metalinguístico, o narrador discute o seu próprio fazer

literário, comparando-o à contação de uma passada26

, que, na Guiné-Bissau, também

pode significar um fato ocorrido, ou uma “fofoca”. Assim, justifica-se a própria escrita

romanesca que não só rememora a história do país, mas também estas histórias

individuais, vivenciadas pelas personagens representativas do povo guineense.

26 Em crioulo guineense, significa conto, notícia, acontecimento, conversa, anedota; também há o

significado “contar uma história com um pouco de sal”. No dicionário Kriol Ten, Teresa Montenegro

define “passada” – que também é grafada “pasada” – assim: “acontecimento, caso, episódio, passagem”

(MONTENEGRO, 2002, p. 163).

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Por exemplo, em Bissau, dizem que não foi na casa de Dona Maria Deolinda

que a Ndani esteve, foi numa outra casa, porque aquela nunca existiu; dizem

ainda que o Antoninho nunca teve aquelas relações com Dona Lili, que é só

calúnia, porque Dona Lili é mulher de respeito. (SILA, 2006, p. 186)

O narrador põe em questão a própria narrativa, quando contrapõe o narrado ao

que ouve dizer acerca das referidas personagens. Não há provas da existência de Ndani,

dona Linda ou senhor Leitão; contudo, é fato que houve várias moças que saíram do

interior do país em direção a Bissau para se empregarem como criadas na casa de

senhoras portuguesas.

A crítica principal pretendida pelo epílogo é a seguinte: “há até pessoas que

andam todo o tempo a fazer masturbação intelectual, a dizer que o colonialismo nunca

existiu” (SILA, 2006, p. 186). Temos aqui uma frase de intensa força irônica. Segundo

Linda Hutcheon,

a ironia possui uma aresta avaliadora e consegue provocar respostas

emocionais dos que a “pegam” e dos que não a pegam, assim como dos seus

alvos e daqueles que algumas pessoas chamam de suas “vítimas”

(HUTCHEON, 2000, p. 16)

A ideia de que o colonialismo nunca ocorrera soa ilógica. Quando o narrador

levanta a hipótese de que o colonialismo nunca existira, percebemos uma construção

provocadora e irônica, a partir da qual o leitor mais atento depreende a mensagem

oculta nas entrelinhas do texto.

A estrutura “há quem diga” e outras semanticamente equivalentes dão o tom

irônico, pois não é o narrador quem diz, há um enunciador indeterminado. Nem tudo o

que está sendo questionado é de fato a negação do que se quer dizer, mas também nada

do que está sendo exposto compõe o que o narrador quer dizer. Temos, então, uma série

de construções “desarranjadas” que dizem e desdizem, ao mesmo tempo, as propostas

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do romance. Lembramos que a ironia diz sempre pelo contrário do que quer dizer.

Portanto, evidenciamos, aí, a denúncia irônica e crítica da existência do colonialismo.

Alguns poucos leitores se darão conta de que, de fato, há quem diga que “o

colonialismo nunca existiu”. René Pelissier, por exemplo, estudou o processo de

ocupação das três colônias continentais portuguesas: Angola, Moçambique, Guiné-

Bissau e concluiu que “falar de ‘cinco séculos de colonização’ seria uma burla!”

(PELISSIER, 2010)27

. Segundo o historiador, a colonização portuguesa em África só

ocorreu, de fato, nos séculos XIX e XX; até a metade do século XIX, apenas algumas

poucas cidades eram ocupadas por portugueses. O percurso palmilhado por Pelissier

consistiu em verificar a história militar da conquista. Por meio dessa investigação, ele

constatou que houve 180 operações militares, a partir de 1845, em Angola; e outras 150,

em Moçambique.

Fiz, assim, o conjunto das três colónias continentais que nunca tiveram cinco

séculos de colonização, que existiu unicamente em Cabo Verde, São Tomé e

Príncipe, e Goa e territórios adjacentes. (PELISSIER, 2010)

Entendemos ser necessário fazer uma diferenciação entre colonização e

ocupação. Intuímos que o que Pelissier chamou de colonização é o que consideramos

ser ocupação; os portugueses, de um modo geral, não construíram, em grande parte,

cidades ou impuseram regras de conduta nos territórios africanos continentais até

meados do século XIX; entretanto, desses mesmos territórios extraíram riquezas e

levaram pessoas para trabalho escravo no Brasil, São Tomé e Príncipe ou para as ilhas

de Cabo Verde. Nossa percepção é a de que houve cinco séculos de perseguição,

27 Fonte eletrônica. O texto foi consultado está disponível em < http://expresso.sapo.pt/rene-pelissier--

falar-de-cinco-seculos-de-colonizacao-portuguesa-e-uma-burla=f597300>, acesso em 13/01/2013, às 11h.

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tortura, trabalho forçado, escravidão e imposição cultural. Essas ações nos levam a crer

que houve colonização, antes de haver ocupação.

O epílogo não discute apenas a existência ou não da colonização, mas também a

sua permanência, mesmo após a independência:

se aquelas tragédias e matanças e torturas e misérias e corrupções e poderes

de abuso que foram contados é que caracterizaram aquilo que se chama de

colonialismo, então o colonialismo não acabou. (SILA, 2006, p. 186)

O uso de tantas conjunções aditivas expressa a soma total de tragédias. O

narrador aponta também para a presença de um “neocolonialismo”, de acordo com o

qual há novas colônias para novas metrópoles; essa relação se estabelece pelo viés

econômico, por intermédio de um novo pacto colonial, de modo que os países pobres

não conseguem nunca deixar a pobreza. Essa é uma face do trágico colonial que deixa o

seu legado, mesmo após as independências dos países africanos, como a Guiné-Bissau.

2.4- De Amílcar Cabral

Antes de fecharmos este capítulo, vale a pena retornar a Marcio Seligmann: “na

literatura, como nas demais artes, a resposta oscila entre extremos de distanciamento e

engajamento, sempre em torno a um confronto absoluto e impossível” (SELIGMANN-

SILVA, 2000, p. 11). Ao tratar de episódios históricos catastróficos que geram traumas,

o teórico prevê mais uma alternativa de combate à opressão: o engajamento. Diante dos

traumas e das tragédias oriundos do colonialismo, a lembrança mais intensa na Guiné-

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Bissau é a figura de Amílcar Cabral que faz parte da memória coletiva do país, com

seus discursos políticos de reação às imposições coloniais. Por isso mesmo, A última

tragédia é um livro bastante comprometido com a luta de libertação.

Amílcar Cabral aparece, nesse romance de Abdulai Sila, por meio de suas ideias

e também como um aceno de esperança futura:

O branco veio, tem que ir um dia. Ainda há de aparecer um preto com

coragem para pensar nisso. Um preto que vai descobrir todos os pontos

fracos e pontos fortes do branco para depois combatê-lo. (SILA, 2006, p.

101)

Peter Mendy nos conta que Amílcar Cabral voltou à África como funcionário do

governo lusitano, tendo em mente claros objetivos políticos: fazer um censo agrícola

para recolher informações relevantes sobre o cultivo da terra e as condições do solo;

identificar o “nível de descontentamento com a situação colonial” e as “prováveis

respostas a um esforço de mobilização anticolonial pela independência” (MENDY. In.:

LOPES, 2012, p. 24). Conhecendo o sistema colonial sob o ponto de vista lusitano e

ciente das opiniões populares, Cabral estudou os pontos fortes e fracos, como nos

relatou o Régulo, para, a partir daí, convocar e iniciar a luta pela libertação.

Abdulai Sila é um dos últimos idealistas, sua escrita reflete isso. O discurso de

Amílcar Cabral impregna seus três romances. Sila não poupa críticas aos sistemas de

governo anteriores e posteriores à independência. A maior parte de referências a esses

discursos políticos está presente no testamento do Régulo.

Um capítulo de A última tragédia é dedicado a esse documento. O Régulo fixa,

através da escrita de seu testamento, suas ideias que, no epílogo, são chamadas de

“Código de conduta para novos régulos” (SILA, 2006, p. 187). Tal documento registra

os hábitos que os líderes deviam cultivar:

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Um Régulo tem que ser conselheiro. [...] quando uma pessoa manda numa

terra tem que ter bons conselheiros. [...] Mandar não é qualquer pessoa que

pode. [...] Pode mandar só quem sabe pensar. [...] Eleição ganha sempre

quem tem mais dinheiro, enquanto que neste caso a população escolhe quem

sabe que serve. [...] Eleição é como batota e eu não gosto de batoteiro. [...] Régulo deve ser aquele que sabe pensar melhor, aquele que consegue ir até à

essência das coisas. Régulo só pode ser quem tem as mãos limpas, sem rabo

de palha. (SILA, 2006, pp. 114-115)

Além de incentivar os líderes a pensarem sobre o que iam fazer, a cercarem-se

de conselheiros e a darem ouvidos à população, o Régulo também alertava os pretensos

chefes acerca de tentativas de golpe, caso governassem à base da força: “quem toma um

couro à força, ou pensa que pode ficar com ele à força, sempre perde o couro à força”

(SILA, 2006, p. 114).

A importância do pensamento é ressaltada e enfaticamente repetida. Para o

Régulo, “quem não tem cabeça para pensar, não serve: não pode ser chefe, não pode ser

professor e nem vai poder ter filhos, que é para evitar o problema de herança” (SILA,

2006, p. 101). O sentido que o Régulo dá ao pensamento é o da reflexão que deve estar

presente na rotina de toda a população. Isso aponta para a importância da educação

formal, de transmissão da cultura, tônicas do discurso de Cabral.

Leopoldo Amado comenta o pensamento de Amílcar Cabral acerca da liderança

política com as seguintes palavras:

O papel do dirigente deveria ser apenas o de um intérprete fiel da vontade das massas. No entendimento de Cabral, a democracia revolucionária implicava

que à frente do PAIGC estivessem os melhores filhos da nação, ou seja, os

mais bem preparados para a luta de libertação nacional. (AMADO, 2011, p.

369)

Há uma clara coincidência entre os discursos. Abdulai Sila, utilizando-se da voz

do Régulo, relembra o leitor guineense da alocução do líder político. Ao fazer isso, o

autor apela para a memória coletiva da população, de modo a mostrar o descompasso

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entre o que foi propalado durante a luta pela independência e a situação atual da Guiné-

Bissau.

Abdulai é um contador de histórias, daqueles que narram o que outrora ouviram.

Para tentar disfarçar a dor, ele se vale, em vários momentos, da ironia e do riso, porém

não compreender as ironias de Sila não impede a leitura da obra, nem afasta o leitor da

intencionalidade do autor. Todavia, entender suas ironias e o contexto histórico

representado ampliam muito o entendimento do romance.

Em A última tragédia, a ironia funciona como uma estratégia para denunciar

criticamente as inúmeras tragédias vividas pelo povo guineense durante o colonialismo.

Ironicamente, o romance de Sila atesta que o grande mal provocado pelo trágico

colonial é, principalmente, a submissão e a inferioridade introjetadas nos colonizados

que buscam se assimilar e perdem a consciência dos imensos prejuízos causados pelo

colonialismo.

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3- Dicotomias do trágico: discursos e práticas

Quando te propus

Um amanhecer diferente

A terra ainda fervia em lavas

e os homens ainda eram bestas ferozes

[...]

Foi assim que te propus

no circuito de lágrimas e fogo, Povo meu

o hastear eterno do nosso sangue para um amanhecer diferente

Hélder Proença28

Já não sei

se o poeta

falou a verdade

[...]

Confesso Já não sei

Quando amanhece

Esse amanhã.

Tony Tcheka29

O romance Eterna paixão foi o segundo romance escrito por Abdulai Sila,

entretanto, o ficcionista escolheu-o para ser “a primeira tentativa séria de publicar prosa

na Guiné-Bissau” (LOPES. In.: SILA, 2002, p. 178). Tendo sido produzido e editado

em 1994, sua escrita e seu enredo estão intimamente ligados ao contexto histórico do

país à época. A escolha em lançar esta obra antes de A última tragédia ou mesmo de Sol

28 PROENÇA, 1982, pp. 15-16. 29 TCHEKA, 1996, p. 93.

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e suor30

se deve às condições políticas ligadas à liberdade de expressão e censura. Em

entrevista à Fernanda Cavacas, publicada na abertura da edição cabo-verdiana de

Mistida (Trilogia), Abdulai Sila define 1993 como o ano em que “houve liberdade de

expressão” e que “Eterna paixão reflectia de certa forma aquela vivência do momento”

(SILA, 2002, p. 9).

A obra “Buscar a felicidade”. Democratização na Guiné-Bissau (1997), na qual

Lars Rudebeck analisa o ano de 1993, ajuda a compreender a escolha de Sila em

publicar Eterna paixão, bem como esclarece o que o ficcionista chama de liberdade de

expressão. O pesquisador sueco distingue três períodos na era nacional da Guiné-

Bissau: o período de planificação estatal, que se iniciou com a independência e se

estendeu até 1982; o período de liberalização e o início da democratização, de 1982 a

1990; e o período de democratização, que teve início com as primeiras eleições

multipartidárias, em 1994 (cf. RUDEBECK, 1997, p. 4).

Os primeiros anos após a independência – “planificação estatal” – contou com

uma série de medidas de estruturação do país, dentre elas o desenvolvimento de um

sistema em que só era permitido um partido único, uma vez que “o sistema

multipartidário iria criar uma dispersão desnecessária e dificultar o desenvolvimento”

(RUDEBECK, 1997, p. 6). Esse governo, liderado por Luiz Cabral, irmão mais novo de

Amílcar Cabral, se manteve às custas das ajudas estrangeiras, principalmente da Suécia,

e foi alvo de grandes críticas e descontentamentos da população, que se via sem novos

investimentos na agricultura.

30Sol e suor é uma das obras não publicadas por Abdulai Sila, por opção. O título faz alusão às primeiras

duas palavras do Hino Nacional da Guiné-Bissau, cuja letra é de autoria de Amílcar Cabral. A obra é

aludida no final do romance Mistida.

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Diante da situação insustentável e incontrolável, ocorreu um golpe de Estado em

14 de novembro de 198031, que conduziu João Bernardo “Nino” Vieira ao poder. O

novo presidente apresentou uma política mais popular e mais voltada para a agricultura,

contudo “não se verificou qualquer democratização da vida política” (RUDEBECK,

1997, p. 7). Manteve-se o partido único, mas, a partir de 1982, começou a haver a

adoção de uma série de medidas neoliberais para atender exigências do FMI (Fundo

Monetário Internacional).

Fafali Koudawo denomina “um sistema de controle do poder” (KOUDAWO,

2001, p. 133) aquele adotado por Nino Vieira e complementa, defendendo que a

empresa hegemônica do PAIGC na Guiné-Bissau traduziu-se por “uma estrita

arregimentação, um abafamento da sociedade civil, um Estado policial e uma violência

repressiva” (KOUDAWO, 2001, p. 157). Temos, então, ao longo dos anos em que se

manteve o sistema monopartidário, certo controle que incluía o conteúdo das

informações veiculadas, a disseminação de um pensamento crítico ao governo

estabelecido e, consequentemente, a publicação de obras que discutissem questões

ligadas ao poder32

.

O cadastramento de outros partidos começou em 1991, mas somente em 1993,

se constatou que, de fato, haveria a primeira eleição multipartidária – o que ocorreu em

1994. A expectativa de um novo governo ou simplesmente de uma possibilidade de

mudar o paradigma político por meio de novas ideologias políticas ou novas figuras no

31 O golpe de 14 de novembro ficou conhecido como Movimento Reajustador e foi resultado de uma crise

que se arrastava desde a independência. Dentre as principais causas estavam as lutas fratricidas entre a ala

militar e os dirigentes do PAIGC; as contradições entre guineenses e cabo-verdianos: o projeto do Partido

previa um Estado binacional, que fora “mal aceite” e “mal vivido” (KOUDAWO, 2001, p.131) por ambos

os países; e o descompasso entre a prática administrativa e a teoria do Estado revolucionário. 32 Não encontramos, ao longo de nossa pesquisa, dados que comprovem uma censura como a que houve

no Brasil, durante a ditadura militar, por exemplo, em que as obras artísticas eram analisadas antes de

chegar ao público. Ainda assim, fica claro, para nós, que os romances de Sila criticam o governo da época

da publicação, de modo que editá-los poderia reverberar em acusações de crime contra o Estado e/ou

prisão.

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cenário governamental desencadearam um discurso próprio, especialmente em Abdulai

Sila, que trouxe a público Eterna paixão, romance que se passa, justamente, entre os

anos de afirmação política até a abertura para novos partidos. Mesmo sem identificar

nominalmente a Guiné-Bissau, o leitor atento percebe que o autor trata de seu próprio

país. A possibilidade de um novo governo e a chegada ao poder de figuras

marginalizadas socialmente pelos antigos dirigentes colaboram para identificar o tempo

da diegese.

O enredo versa sobre o afro-americano Daniel Baldwin, um jovem estudante de

Agronomia, que conheceu, na universidade, uma África diferente daquela de que

outrora ouvira falar; esta nova África era a terra para onde “a gente pode regressar”

(SILA, 2002, p. 204). Em contato com escritos sobre essa nova África, Daniel produziu

a monografia que venceu o concurso “As Vias para o Desenvolvimento”. Na ocasião da

premiação e nos eventos que se seguiram, conheceu e se apaixonou pela africana Ruth,

estudante com quem viria a se casar e a se mudar para a África.

Em território africano, o casal vivia num bairro nobre uma vida bastante

confortável e ambos mantinham empregos no governo. Com o tempo, Daniel começou

a perceber que o discurso e as práticas de Ruth se afastaram de tudo que ela defendia e

cultivava nos tempos de universitária. O casamento terminou após a consumação da

traição sexual da esposa.

Daniel conheceu as agruras da tortura e da injustiça promovidas pelo governo.

Entretanto, conseguiu se reerguer, encontrando uma nova paixão na aldeia de

Woyowayan, onde implementou as ideias desenvolvidas na monografia de sua

juventude; colaborou com a alfabetização de crianças, jovens e adultos; promoveu

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encontros com a juventude e desenvolveu um sistema que tornou a aldeia agricolamente

autossustentável.

Ao fim do romance, os amigos que o ajudaram em seus momentos de dor

formaram um novo tempo com um novo governo, no qual “as pessoas eram quase as

mesmas. Mas a política era diferente” (SILA, 2002, p. 311).

O final esperançoso, que narra um novo tempo para o país e para a aldeia de

Woyowayan, tem função análoga à da ironia em A última tragédia: ora disfarça a

tragicidade, ora a acentua. Ao buscar dissimular a tragicidade, a atenua de certa forma,

uma vez que aponta para uma esperança e para um caminho: o investimento na

agricultura e na educação. Contudo, a construção de um espaço em que há educação e

alimentos para todos se choca com o contexto social do país, ressaltando o caráter

trágico da sociedade guineense. Como o romance descreve os métodos de plantio e de

captação e produção de energia elétrica, além de explicitar estratégias de envolvimento

da população, fica patente para o leitor que, como o próprio narrador declara, “os

governos africanos não têm a intenção de combater as causas da fome, mas sim usá-la

para pedir mais ajuda do Ocidente” (SILA, 2002, p. 225).

3.1- Colonial e nacional

Acreditamos que Eterna paixão estabelece uma relação especular com A última

tragédia, havendo espelhamentos em diferentes partes das representações romanescas.

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A começar pelo nome dos protagonistas: Daniel e Maria Daniela, cujos significados já

foram discutidos no capítulo anterior.

Em ambos os enredos, o protagonista muda-se para outra cidade: Ndani sai de

Biombo para Bissau, e Daniel deixa Atlanta em direção à capital de um país africano

não nomeado. Considerando que o país em que se passa Eterna paixão é Guiné-Bissau,

os protagonistas vivem, em épocas diferentes, no mesmo espaço. Seus deslocamentos

têm direções opostas, uma vez que Ndani segue da periferia para a capital, enquanto

Daniel parte de um grande centro urbano mundial (Estados Unidos) para um país

periférico (a Guiné-Bissau); nesse caso, o espelhamento se mostra invertido, na medida

em que opera por movimentos contrários.

Daniel e Daniela também trazem consigo marcas do passado que os

impulsionam para seus deslocamentos. Daniela sai de Biombo por causa da maldição

anunciada pelo djambakus. Daniel vagueia pelos Estados Unidos, antes de seguir para

África, devido ao assassinato de seu pai, vítima do racismo da Ku-klux-klan; tal morte

desencadeou a destruição de sua família: a mãe enlouqueceu, Daniel e a irmã foram

para o orfanato e, mais tarde, a menina suicidou-se por não suportar conviver com a

memória do estupro sofrido.

Os momentos de harmonia para as duas personagens ocorrem quando seguem

para o interior do país. Para Ndani, Catió, terra natal do autor do romance, cidade na

qual ela cria seus filhos, é um lugar de paz, onde alcança bons relacionamentos com os

demais moradores e vive sem ter diante de si a maldição anunciada. Para Daniel,

Woyowayan é esse local utopicamente desejado, é a cidade imaginária, cujo nome foi

inspirado em Woyowayan-Ko, lugarejo situado na atual Guiné-Conacri, que se tornou

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famoso por ser considerado um marco da resistência negra frente à dominação branca

(cf. AUGEL, 1998, p. 339).

Nos dois romances, A última tragédia e Eterna paixão, a relação patroa-

empregada se configura difícil, autoritária e desrespeitosa. Mbubi, por exemplo, tivera o

mérito de “agradar ambas as gerações dessa classe: a colonial e a nacional” (SILA,

2002, p. 183), porque a vida dela não contou com grandes modificações.

Na relação entre Dona Linda e Ndani, houve a tentativa de extirpar tudo o que

lembrasse a origem africana e fosse passível de eliminação: o nome, as roupas, o

penteado, a fé...

Entre Ruth e Mbubi, a criada, a relação se mostra tensa desde as primeiras

referências desta àquela. Ainda nas primeiras páginas, o narrador registra a palavra

“Senhora”, com letra maiúscula, para aludir a Ruth: “desde que a mãe da Senhora”

(ibidem, p. 183); “a Senhora se casara com ele” (ibidem, p. 185); “fotos que a Senhora

trazia” (ibidem, p. 185). A marcação gráfica pelo uso da inicial maiúscula por si só já

assinala a diferenciação e a deferência à patroa; quando posta em oposição ao trato com

Daniel, temos delineada a posição superior de Ruth em relação ao marido, referido

como “senhor” ou, simplesmente, “Dan”, e à própria Mbubi.

O romance narra uma cena de conflito, pois a palavra empenhada pela patroa

fora alterada. Mbubi houvera acordado com Ruth uma folga no sábado para participar

de uma cerimônia em sua aldeia, entretanto a senhora negara o combinado, “recusando-

se a deixá-la ir à sua tabanca de origem” (ibidem, p. 195).

O descumprimento da palavra não é algo simples no romance. Colocam-se

diante do leitor duas cosmovisões diferentes. Para Ruth, mudar de ideia era um direito

seu, bem como não liberar Mbubi, uma vez que as circunstâncias para ela se alteraram

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e, agora, ela receberia visitas. Isso não se coaduna, no entanto, com a visão de Mbubi,

para quem, como diz um adágio malês, “aquele que corrompe sua palavra, corrompe a

si próprio” (HAMPATÉ-BÂ, 1982, p. 187). Mbubi não apenas metaforiza a África

tradicional, mas também reflete uma atitude comum na Guiné-Bissau até os dias de

hoje: a permanência de tradições na vida cotidiana. A palavra falada assumia, assim,

para a empregada um valor documental. Amadou Hampaté-Bâ esclarece que

na África tradicional, aquele que falta à palavra mata sua pessoa civil,

religiosa e oculta. Ele se separa de si mesmo e da sociedade. Seria preferível

que morresse, tanto para si próprio como para os seus. (HAMPATÉ-BÂ,

1982, pp. 186-187)

Desse modo, sob a perspectiva de Mbubi, a palavra dada não poderia ser

mudada. Se Ruth descumpre o combinado, ela se torna uma pessoa indigna e não

confiável.

Uma outra atitude de descaso para com a tradição pode passar despercebida para

o leitor exógeno: a de Ruth não responder à saudação de Mbubi.

― Boa tarde, senhora Ruth – saudou Mbubi à sua patroa, ao mesmo

tempo que se detinha, libertando a passagem.

― Pensei que já não te ia encontrar em casa, Mbubi – disse a patroa,

sem se preocupar em retribuir a saudação. (SILA, 2002, p. 193)

Ao leitor ocidental, o registro do narrador acerca da ausência da saudação pode

soar como má educação. Entretanto, na Guiné-Bissau, saudar os passantes, além de

demonstrar respeito e compor uma recorrente prática social, inclui uma série de

perguntas sobre as pessoas da família e suas rotinas de trabalho. Ou seja, não responder

não é apenas um ato de falta de educação; é um comportamento que distingue Ruth do

restante de seu povo. Suas atitudes em relação à empregada são o indício de que ela não

faz mais parte daquela comunidade.

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Ao fim da cena, a memória de Mbubi revela que a reação da patroa se somava a

outros episódios semelhantes. Deixando a casa, sem saber se a ela retornaria ou não, o

narrador relata:

As recordações de situações idênticas no passado, os factos que havia já

algum tempo a inquietavam e tornavam as lides com aquela mulher um

autêntico pesadelo, também tinham ajudado a fazer crescer aquela dúvida.

(SILA, 2002, p. 195)

Mbubi qualifica a convivência com a patroa como “autêntico pesadelo”. Ruth é,

para Mbubi, a personificação da maldade. Retomando a metáfora do país presente no

romance, podemos inferir que o que está expresso na obra não é apenas um

desentendimento entre patroa e empregada, mas temos uma representação ficcional da

traição ao nativo por parte daqueles que assumiram o poder e se distanciaram do seu

povo, não se identificando mais com ele. Aprofundaremos melhor esta questão mais

adiante, ao discutirmos a tese de Amílcar Cabral acerca do suicídio da pequena

burguesia guineense.

Notamos que tanto Dona Linda quanto Ruth, mesmo tendo origens bastante

diferentes, têm atitudes semelhantes. Isso aponta para a grande denúncia feita em Eterna

paixão: os tempos da pós-independência obscureceram o discurso de igualdade que

ecoava durante a luta de libertação. O trágico ficcionalizado por esta obra é a distopia

que se instala, é a perda dos antigos sonhos libertários, é a percepção do grande abismo

que se cava entre a teoria e a prática.

O último ponto de contato que queremos destacar entre A última tragédia e

Eterna paixão é a punição. O Professor foi preso e degredado, sob a acusação de

assassinar o Administrador, sem tê-lo feito. Condenado injustamente e sem julgamento,

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Daniel também foi detido. A culpa de ambos é semelhante: agredir uma autoridade. O

Professor desferiu golpes no Administrador; já Daniel agrediu David, amante de Ruth e

funcionário do governo33

. O Professor e Daniel sofrem com as condições subumanas

das instalações carcerárias, com os métodos criminosos de tortura e com a manipulação

da justiça.

Como em A última tragédia, o sofrimento, em Eterna paixão, é acentuado e

disfarçado, simultaneamente, por meio dos silêncios. A narração acerca da prisão de

Daniel é bastante reticente. Graficamente, há apenas um espaço entre a cena em que o

protagonista agride David e o momento em que ele acorda na prisão. Não fica claro

como ele chegou ali e o que, de fato, aconteceu, embora o narrador dê voz aos

pensamentos da personagem:

Mais doloroso que o recordar das cenas de violência a que fora submetido, o

impacto que as mãos calosas e os cacetes compridos provocavam no seu

corpo; mais doloroso que o sentimento de injustiça, a mágoa da humilhação

na alma. (SILA, 2002, p. 269)

A violência nos tempos do pós-independência é velada e limitada a quatro

paredes; é bem diferente do que acontecia no período colonial, como relata A última

tragédia, no episódio de Mbunh Lambá, que fora assassinado em praça pública, após

ser torturado por dias, culpado também por agredir uma autoridade. Em níveis de

exposição diferentes, o poder autoritário é exercido por meio do uso do controle e da

punição exemplar.

33 Não fica explícito, mas é possível inferir que David foi o responsável pela prisão do Embaixador

Kinsumah, um idealista que pregava a reestruturação do país, utilizando-se das ideias dos jovens e que

fora preso sob a acusação de preparação de um golpe de estado.

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Os pontos de semelhança entre os romances acentuam algumas proximidades

entre os períodos colonial e nacional. Queremos ressaltar, entretanto, que, mesmo diante

de muitos descompassos, não se podem negar os avanços e conquistas decorrentes da

independência.

A libertação trouxe ganhos para o país: o fim da submissão a Portugal; o término

do regime de semiescravidão que servia aos patrões lusitanos; a possibilidade de

valorização das culturas nacionais. Contudo, a luta pela independência fora conduzida

sob um discurso utópico, que descrevia um idealizado futuro sem fome, com escola e

igualdade para todos. Em vez disso, a severa carência alimentícia, a subnutrição, a falta

de sistemas de saúde e de educação permaneceram. Desenvolveu-se o que Amílcar

Cabral previra em 1966: uma pequena burguesia nacional, que herdara e tomara para si

os privilégios aprendidos com os colonizadores.

3.2- Trágicas dicotomias

Eterna paixão apresenta uma escrita urgente, que não revela o mesmo esforço

estético presente em A última tragédia e em Mistida. A obra foi redigida e publicada,

tendo em vista a necessidade premente de denunciar e conscientizar. Mesmo havendo

esse caráter de urgência no discurso de Eterna paixão, o romance realiza um trabalho

ficcional, através do qual a tragicidade da perda das utopias libertárias é problematizada

no nível do narrado.

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A começar pelos pontos de contato entre A última tragédia e Eterna paixão, este

último romance dialoga com histórias, poemas, discursos políticos e a história

guineense do período pré e pós-libertação. Entendemos que, como declarou Julia

Kristeva, todo texto é uma retomada de outros textos (cf. KRISTEVA, 2012, p. 109).

Ou seja, o autor produz a partir do que leu; igualmente, o leitor compreende com base

em sua bagagem de leitura. No caso de Eterna paixão, nossa percepção é a de que ler

essa obra sem nenhum ou pouco conhecimento prévio da história da Guiné-Bissau pode

gerar estranhamento ou incompreensão. Nossa reação, à época do primeiro contato com

o livro, foi de um certo repúdio. Após ouvirmos o autor acerca de sua experiência como

produtor de literatura na Guiné-Bissau, por ocasião do lançamento da edição brasileira

de A última tragédia, em 2006, é que conseguimos lançar um novo olhar sobre Eterna

paixão. Assim, “o mesmo texto lido, em épocas diferentes, [tornou-se] outro”

(PAULINO, 1998, p. 57).

Essa possibilidade de inferências de diversas leituras não é uma exclusividade

desses romances de Abdulai Sila; é inerente a qualquer obra literária:

toda literatura é necessariamente intertextual, pois, ao ler, estabelecemos

associações desse texto do momento com outros já lidos. Essa associação é

livre e independente da intenção do autor. Os textos, por isso, são lidos de

diversas maneiras, num processo de produção de sentido que depende do

repertório textual de cada leitor, em seu momento de leitura. (PAULINO,

1998, p. 54)

A produção de sentido criada pelas diversas leituras chama-se, para Roland

Barthes, “Babel feliz”, uma vez que para ele “a confusão de línguas não é mais

punição” (BARTHES, 1987, p. 8). De acordo com o teórico francês, é pela

multiplicidade de interpretações e inferências que se produz o prazer do texto. Nesse

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jogo de fruição, ao escritor cabe a tarefa de promover o espaço da linguagem, já que

“não é a ‘pessoa’ do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma

dialética do desejo” (BARTHES, 1987, p. 9), declara Barthes. Seguindo a lógica

explicitada por ele, a discussão que empreenderemos baseia-se nas chaves de leitura que

tornaram prazeroso, para nós, o texto de Eterna paixão. Os diálogos que temos travado

a partir da leitura do romance advêm da história e da literatura guineenses, além do

conhecimento dos discursos políticos de Amílcar Cabral. No que tange ao eixo principal

desta tese – a presença do trágico na Trilogia, de Abdulai Sila –, inferimos que alguns

ecos dos discursos dos tempos da luta libertária ainda ressoam em Eterna paixão,

embora se esbatam no vazio de uma época distópica, na qual os antigos sonhos perdem

os sentidos éticos.

Eterna paixão veicula o que “precisava ser dito”34

(cf. SILA, 2002, p. 9); por

isso, cremos que este romance, além de promover uma experiência estética, também

cumpre uma função ideológica, trazendo o pensamento político de Amílcar Cabral que

serviu de “arma” e “teoria” da libertação não só na Guiné-Bissau, mas também nas

demais antigas colônias portuguesas em África.

Queremos discutir a traição de Ruth a Daniel, vendo-a como metáfora da traição

do sonho e dos ideais libertários pregados por Amílcar Cabral durante a luta pela

criação da nação guineense.

34 Em entrevista à Fernanda Cavacas, Abdulai Sila fala sobre a escrita de Eterna paixão e declara que,à

época, sentia “uma vontade de dizer certas coisas...” (SILA, 2002, p. 9), que são as denúncias que depõem

contra o governo, no que diz respeito à má administração, ao mau uso do dinheiro público, aos

favorecimentos.

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3.2.1- Casamento e traição

No prefácio de Eterna paixão, Carlos Lopes declara:

O casamento é um acto de respeito. [...]

O casamento com o país, a terra, a pretensa nação em construção.

Essa é uma ligação tão forte, amorosa, afectiva e emocional, que nos levou

uma boa parte da vida e das vontades. É dessa relação que Abdulai Sila nos dá conta. (LOPES. In.: SILA,

2002, p. 177)

Esse foi o primeiro romance guineense e tratou de paixão35

, buscou uma relação

em que esse sentimento fosse eterno. Para tanto, o autor partiu do casamento, para, em

seguida, experienciar outras paixões: pelo país, pela terra e pela nação. O casamento de

Ruth e Daniel representava, metaforicamente, a relação entre o governo e os ideais

utópicos difundidos durante os anos de luta. A traição a esse casamento significa a

morte das utopias, a tragédia de ingressar em tempos distópicos.

O narrador de Eterna paixão dá a saber poucas cenas de harmonia entre o

mencionado casal. Num discurso indireto livre, a narração conduz o leitor através dos

pensamentos de Daniel que comparam o passado ao presente:

Partilhavam tudo, as alegrias do dia a dia, as dificuldades de relacionamento

no serviço, os problemas pessoais, os sonhos e planos para o futuro, os

prazeres do corpo... Tudo era tão pacífico e harmonioso. Tão maravilhoso! (SILA, 2002, p. 236)

Mesmo sem muitos comentários acerca do idealismo de Ruth, o texto é claro em

dizer que havia sonhos compartilhados entre ela e Daniel. A esta altura do romance, o

leitor sabe que Dan é um idealista e seu maior desejo é ajudar o desenvolvimento dos

35 Na obra, as palavras “paixão” e “amor” funcionam como sinônimos.

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países africanos, colaborando com o fim da fome. Logo, presumimos que Ruth também

já sonhara com um país melhor e mais igualitário. Ou seja, em algum momento, algo

mudara na moça, levando-a a deixar as crenças de outrora.

Outro dado já sabido é a maneira como o casal se conheceu: durante uma festa

oferecida por dois embaixadores africanos aos jovens vencedores do concurso “As Vias

para o Desenvolvimento”. Daniel tinha sido o primeiro colocado; Ruth era uma das

jovens africanas que estava nos Estados Unidos para estudar. Durante a recepção, Ruth

ouvira atentamente as propostas de Dan, veiculadas na monografia vitoriosa.

O namoro e o casamento que se seguiram não espantaram ninguém, mas foi

surpreendente “quando Dan foi buscar o visto de entrada, na véspera do dia de partida

para África” (SILA, 2002, p. 231). Fica implícito que este não era o caminho mais

comum, o que, provavelmente, se esperava era que Ruth se radicasse definitivamente

nos EUA, em vez de retornar à África. O regresso ao continente pode ser entendido

como a assunção de uma posição política pelo casal que, ao invés de gozar de uma vida

confortável nos Estados Unidos, optou por seguir para um lugar onde os conhecimentos

adquiridos na universidade poderiam ter maior impacto social.

A forma como se conheceram e as memórias de Daniel revelam que Ruth, ainda

que em menor grau, também militava em prol de um futuro mais promissor e

igualitário. Sendo assim, a moça acaba por trair o marido em vários níveis. A traição

sexual é, em última instância, consequência de uma traição que já ocorrera no nível

ideológico.

O tratamento dado por Ruth a Mbubi já demonstra a mudança de discurso e de

atitude da patroa. É a partir desse ponto que fica claro para o leitor que o casamento de

Daniel e Ruth atravessa um momento de turbulências.

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As lembranças de Mbubi revelam que os abalos na relação do casal tinham-se

iniciado quando Ruth “decidira, sem lhe dar conhecimento, tratar dos documentos do

filho, para mandá-lo ter com a mãe na Europa, onde devia, na sua opinião, iniciar sua

instrução escolar” (SILA, 2002, p. 236). O menino Kwame tinha apenas seis anos, ou

seja, estava ainda na fase da alfabetização. A opção de Ruth suscita algumas questões.

A primeira, que foi o argumento de Daniel diante da decisão da esposa, diz respeito à

terceirização da educação. Para ele, o lugar dos filhos era junto dos pais. A segunda

questão tem cunho político. A atitude de Ruth fora inspirada no exemplo dos “Altos

Dignatários da Nação”36, “cujos filhos estavam todos nos melhores colégios da Europa”

(ibidem, p. 236). O comportamento adotado pelos ocupantes de altos cargos do governo

dava mostras de que a educação oferecida pelo sistema educacional local não era boa;

ou ainda, não necessitava ter qualidade, uma vez que seus filhos não precisavam utilizá-

la, pois estudavam fora.

A primeira cena que se segue à partida de Mbubi narra Daniel questionando

Ruth acerca de suborno:

― Ainda vais ter que me dizer quanto é que te pagaram por este

crime. [...] Só quero saber quanto é que ganhaste com tudo isso, com esta

porcaria de contrato sujo. [...] Ou será que assinaste desta vez o contrato sem teres fixado o valor da comissão? [...]

― Pois bem, eu assinei o contrato, sim. E depois? E mesmo que

tenha recebido comissão, onde é que está o mal? Quem é o anjo neste país

que não recebe comissões?

― Mas será que não sabes que existem diferenças? Ou será que

vocês não se deram ao trabalho de ler os pareceres que foram emitidos pelas

diferentes instituições envolvidas? Este contrato é uma burla, não traz

nenhum benefício ao país. (SILA, 2002, pp. 197-198)

36 Expressão irônica usada por Abdulai Sila para se referir aos grandes líderes do país. A ocorrência do

termo se dá tanto em Eterna paixão, quanto em Mistida.

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Notamos, nesse excerto, que Ruth não só se envolvia em contratos fraudulentos,

mas depreendemos também que esta era uma prática comum entre os integrantes do

governo. A expressão “desta vez” revela que a moça já assinara outros contratos

impróprios. Está patente, portanto, a efetivação da traição ideológica tanto em seu

discurso quanto em sua prática. O questionamento final do discurso de Ruth, por sua

vez, coloca à mostra a improbidade administrativa, em nível nacional (“Quem é o anjo

neste país que não recebe comissões?”). Essa pergunta aponta para uma realidade que

não se limita ao universo diegético, mas, também, extratextual. A denúncia sobre o mau

uso do dinheiro público é uma das coisas que Sila precisava dizer (cf. SILA, 2002, p. 9);

por isso, Ruth não poderia ser a única autora e beneficiada, uma vez que esse não era

um problema isolado, porém uma constante em variadas esferas de poder.

A atitude de Ruth metaforiza as ações inconsequentes questionadas por Daniel,

nos tempos de juventude:

Eu, depois de ler o tal relatório, fiquei com uma impressão, que é uma

pergunta que me veio assim à cabeça, e me fez pôr em dúvida se os governos

africanos tinham consciência da verdadeira dimensão e também das implicações futuras de certas coisas que estão a fazer. (SILA, 2002, p. 225)

A enunciação e o enunciado do romance caminham no sentido de apontarem,

criticamente, para a perda dos ideais utópicos da Revolução. Em momentos diferentes, o

narrador traz à tona a denúncia das consequências das atitudes negativas

governamentais. No presente da diegese, Daniel, por exemplo, se refere a um pequeno

grupo beneficiado de pessoas que assinam um contrato. A associação desse caso à má

administração de Ruth evidencia a traição ideológica ocorrida, pois a moça rompe com

o que havia de mais íntegro e sincero nos ideais e valores éticos e ideológicos de Dan.

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Por isso, o relacionamento entre os dois se limita a um diálogo monossilábico a partir

daí. E nenhum deles estava disposto a buscar a reconciliação.

Em casa as coisas iam de mal a pior. Os seus encontros com Ruth

eram cada vez menos frequentes, as conversas cada vez mais curtas e banais.

[...]

Não era possível imaginar que aqueles dois seres algum dia se

amaram e comungaram os mesmos valores sociais e morais. (SILA, 2002, p. 266)

O que ocorreu com Ruth na ficção metaforiza cenas reais que se repetiram com

vários líderes políticos e estudantes guineenses. Carlos Lopes afirma que o pudor de

Sila – e, acrescentaríamos, seu senso de sobrevivência – “o inibe de utilizar nomes que

identifiquem os seus personagens” (LOPES. In.: SILA, 2002, p. 178). Não vamos aqui

identificá-los, pois não é esse o interesse de nossa tese.

Os ideais que ora Ruth trai foram sonhados por toda uma geração. O convite

para o novo amanhecer cantado por Hélder Proença, como consta na epígrafe deste

capítulo, exemplifica os ideais libertários da geração de Cabral. Nesses versos, é clara a

convocação da juventude para o engajamento político e trata da necessidade do

sacrifício de alguns para a conquista de um bem maior.

Em Mantenhas para quem luta! (1977), antologia poética comemorativa da

independência, Agnelo Regalla imaginou um futuro promissor, no poema “Juventude”,

no qual o poeta compara a juventude ao sol, símbolo do novo tempo que seria

instaurado com a independência. No poema, os jovens têm o poder de modificar a

realidade de dor e miséria do povo:

Nós...

Somos a juventude Da Guiné e Cabo Verde

Somos o sol que raia

Em todas as madrugadas revolucionárias

E ilumina

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Todas as noites esquecidas

Da vida de um povo

Dormindo no seu catre de miséria e escravidão.

(REGALLA. In.: CONSELHO NACIONAL DE CULTURA, 1977; 1993, p.

17)

António Cabral, sob o pseudônimo Morés Djassy, também anunciou os bons

tempos que viriam com o fim da guerra de independência e prenunciou que as crianças

que ouviram as bombas seriam os últimos cidadãos guineenses a suportarem a dor e a

miséria.

Somos crianças inocentes

Que o nascer e o pôr do sol

Trazia mensagens de coragem e esperança

Somos do tempo que o explodir das bombas

Fazia ressuscitar os mortos prematuros

Últimos a suportar a dor e a miséria submetida.

(CABRAL. In.: CONSELHO NACIONAL DE CULTURA, 1977; 1993, p.

22)

Esses poemas suscitam-nos sentimentos semelhantes aos expressos pela

população guineense, à época da independência, e que, também, certamente,

compunham o imaginário político de Daniel, quando decidiu seguir para a África, bem

como o do próprio Abdulai Sila, no momento em que participou, durante a juventude,

das brigadas de alfabetização.

Lembremos que, mesmo que ficcionalmente, a Trilogia contém muito das

vivências do autor e de seu inconformismo com a situação do país. Como Daniel foi

traído por Ruth, Sila – como também boa parte da população guineense – teve seus

antigos sonhos traídos. Os questionamentos feitos pelos embaixadores (cf. SILA, 2002,

p. 217) são os que a geração do ficcionista faz a si e aos outros: “onde ficaram as nossas

esperanças?” (ibidem, p. 217).

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À traição ideológica de Ruth, como já mencionamos, seguiu-se a consumação de

sua traição sexual-afetiva:

Dan dirigiu-se para o quarto. Entrou no momento em que Ruth

tentava com a ajuda de um homem abrir a janela do quarto. [...] David estava

visivelmente atrapalhado e parecia inclusive ter perdido a voz. [...]

― Olha, Dan, não é o que estás a pensar... [...]

Finalmente se dera conta do que estava a passar naquele quarto com a cama toda desfeita, com algumas almofadas ainda no chão. (SILA, 2002, p.

267)

Daniel agride o amante de sua esposa e não volta para casa. Analogamente,

alguns dos guineenses que sentiram seus ideais traídos optaram por “sair

definitivamente de casa”, escolhendo a diáspora.

Reafirmamos que a história e o romance nos mostram que os anos que se

seguiram à independência se caracterizaram pelo descompasso entre o discurso e a

prática.

3.2.2- O individual e o coletivo

O poeta santomense Tomás Medeiros, na obra A verdadeira morte de Amílcar

Cabral, defende que Amílcar, cujos ideais e discursos embalaram a luta pela

independência, foi assassinado porque não poderia assumir o poder, melhor dizendo,

vários dos próprios companheiros de luta não se submeteriam às propostas que ele

apresentava; nas palavras de Medeiros,

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quando mataram Amílcar Cabral, ele já estava morto. Morto, pelas teorias

que defendia, sobretudo o suicídio da pequena burguesia, morto pelo

enunciado político que apresentou na formação do Partido, morto pelas

conferências que proferiu. [...] Tudo isso são textos interessantes, mas que

não se coadunam com a realidade guineense. Quando enuncia todas estas

teses, elas não têm aceitação, caem mortas, não têm continuidade prática.

(MEDEIROS, 2012, p. 143)

A análise pessimista do poeta santomense é semelhante à feita por vários

escritores e poetas guineenses durante as décadas de 1980 e 1990, como, por exemplo,

Tony Tcheka, lido na epígrafe deste capítulo:

Confesso

Já não sei

Quando amanhece

Esse amanhã

(TCHEKA, 1996, p. 93).

É fato que, mesmo com diversas forças contrárias às ideias de Cabral, houve

também uma parcela considerável da população que acreditou em seu discurso e que se

mobilizou em prol da concretização do sonho de libertação. Por isso, para nós, é difícil

aceitar, plenamente, o discurso de Medeiros, em especial, quando ele afirma: “todas

estas teses, elas não têm aceitação, caem mortas” (MEDEIROS, 2012, p. 143).

Acreditamos que o discurso de Cabral ainda ecoa, particularmente entre uma pequena

parte da elite cultural guineense que insiste em evocar as palavras do líder, embora

saibamos também que uma grande parte da sociedade corrupta da Guiné-Bissau

assassinou os ideais de Amílcar.

Em Eterna paixão, temos a ficcionalização da situação social da pequena

burguesia guineense representada nas figuras de Ruth, David e Daniel. Suas atitudes e

posicionamentos recuperam a tese de Cabral mais debatida por Medeiros: o suicídio da

pequena burguesia, denunciado no discurso “A arma da teoria”, proferido por Amílcar,

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em Havana, em 1966, por ocasião da 1ª Conferência de Solidariedade dos Povos da

África, da Ásia e da América Latina.

Nesse discurso, Amílcar Cabral defendia que a burguesia nacional ― formada

por nativos assimilados, funcionários do governo colonial, guineenses e cabo-verdianos

que tiveram a oportunidade de estudar em Portugal ― formava o grupo capaz “tanto de

conscientizar em primeiro lugar a realidade da dominação imperialista, como de

manipular o aparelho do Estado, herdado dessa dominação” (CABRAL, 2008, p. 197-

198). Sendo assim, sua teoria partia do papel que esta classe social deveria desempenhar

tanto na luta em prol da independência, quanto após esta, a fim de garantir o nascimento

de uma nova nação.

De acordo com a teoria de Cabral, a pequena burguesia nacional tinha a

incumbência de “interpretar fielmente as aspirações das massas em cada fase da luta e

de se identificar com elas cada vez mais” (CABRAL, 2008, p. 199), o que exigia,

consequentemente, maior consciência revolucionária. Caso a burguesia se negasse a

assumir as responsabilidades a ela dirigidas, a consequência seria a “traição dos

objetivos da libertação nacional” (CABRAL, 2008, p. 200), desencadeando, assim, uma

situação neocolonial, na qual seriam mudados os dirigentes, mas persistiria uma outra

espécie de colonização. Diante disso, Cabral sugeria que

para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação

nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar-se

como classe, para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que

pertence. (CABRAL, 2008, p. 200 – grifo do autor)

E concluía seu pensamento, convocando seus interlocutores a um exame moral:

“se a libertação nacional é essencialmente um problema político, as condições do seu

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desenvolvimento imprimem-lhe algumas características que são do âmbito da moral”

(CABRAL, 2008, p. 201).

Retomando a figura de Ruth, no que se refere ao uso do dinheiro público,

observamos que esta personagem sintetiza o que previu Cabral em 1966. É notório que

Ruth preferiu trair os objetivos da libertação nacional: não se identificar com as massas,

não se suicidar como classe. O romance dá mostras de que, ao trair os objetivos da luta,

a personagem abre mão da assunção do papel revolucionário e da consciência anti-

imperialista, por que Amílcar Cabral tanto se bateu.

Há, no romance, personagens, cujas aparições são pequenas e que já indiciam a

não identificação com o papel revolucionário: Alex e David. Ambos são africanos que

moram nos Estados Unidos, na época em que Daniel vence o concurso de monografias.

O protagonista os conhece na recepção para a qual foi convidado pelo embaixador

Kinsumah. Alex, apelido de Alexandre Nkike, é secretário da embaixada em

Washington. Durante o evento, se repete o comportamento a que muitos dos presentes

já estavam habituados:

― Então você não quer cumprimentar o pobre Alex que está

marginalizado aqui neste canto sem poder beber à vontade, nem nada...

― [...] Vai um uísque? [...] ― Não, obrigado. [...]

― Aaahhh! Você não imagina o que está a perder... – interferiu

outra vez Alex, fazendo uma careta. Voltou a pegar no copo de que se parecia

ter esquecido e bebeu de um trago todo o seu conteúdo. Manteve-se de pé

com aparente dificuldade, só o tempo para dizer a Dan: Eu juro pela alma

da minha avó, que neste momento deve estar a queimar no inferno, que... que

você não tem a mínima ideia... a mínima ideia do que está a perder. Oh, meu

Deus! Eu juro... (SILA, 2002, pp. 214-215)

A cena de embriaguez protagonizada por Alex não seria um problema se as

circunstâncias fossem outras. O encontro proposto pelos embaixadores Kinsumah e

Ntmawogo visava a conhecer as propostas dos jovens estudantes que pudessem ser

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usadas para o bem de seu país. Ambos tinham como missão “tornar a embaixada num

instrumento que efetivamente [servisse aos] interesses supremos do [país]” (SILA,

2002, p. 217). Ou seja, o encontro não era apenas a celebração do concurso, mas serviria

de ponte para a implantação das propostas dos jovens estudantes. Sendo assim, tornava-

se inadmissível a atitude de Alex, que se embriagava e maculava a imagem da

embaixada frente aos jovens presentes. Nas palavras do embaixador Ntamawogo, Alex

fazia parte do grupo que ele qualificava como “cambada de inúteis” que “pensa[va] que

[vinha] para a América para passear” (ibidem, p. 221).

Ntamawogo e Kinsumah compunham a geração que conquistara a

independência, mas tiveram seus sonhos apagados com o tempo. Ainda assim,

buscavam “reacender a chama” do “Espírito de Luta pela Dignidade do Africano”

(ibidem, p. 241).

David pertencia à geração seguinte, à daqueles que nasceram no pós-

independência ou eram muito novos na independência. David, que posteriormente se

tornara amante de Ruth, estudava Química e também fora convidado por Mark Garvey,

como Daniel, para integrar o “Africa Commitee” (AC), mas declinara do convite. A

falta de interesse político já apontava para o não compromisso com o espírito

revolucionário combatido por Amílcar Cabral.

O que mais nos chamou a atenção em David foi sua reação à explicação da

proposta de Daniel:

― Uma bela obra de ficção! – exclamou David. [...] Bem, eu não sei

muito bem, mas... Eu acho que tudo está bonito, mas não vai dar. É

impossível... [...] Ora bem, Dan, eu não quero fazer nenhuma crítica ao teu trabalho nem ferir a tua sensibilidade de maneira nenhuma. Eu estou muito

longe disso, acredita-me. Mas tu tens que ver uma coisa... Estas tuas ideias,

na prática, são impossíveis!... (SILA, 2002, p. 228)

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A monografia de Daniel versava sobre a maior problemática do continente

africano: a fome. A proposta incluía a transposição de rios para garantir que houvesse

sempre água para a agricultura e a pecuária; produzir mais de uma colheita ao ano, sem

depender da ocorrência ou não das chuvas. Além disso, ele propunha a união dos povos

africanos na luta pelo fim definitivo da fome.

Notamos que David não era um revolucionário, tampouco um crédulo. Na

verdade, seu olhar partia da realidade conhecida por ele sobre seu continente. David

considerava as idiossincrasias dos governantes e dos povos governados. Enquanto o

discurso de Daniel encontrava eco no de Tomás Medeiros, a quem Cabral confessara

que “queria alargar as asas, chegar ao pan-africanismo” (MEDEIROS, 2012, p. 149),

David antevia os interesses econômicos pessoais, suplantando as necessidades coletivas

e optando por duvidar da proposta de Dan; posteriormente, escolheu o lado dos que

obtinham vantagens e mantinham privilégios.

David era fruto de um sistema alienante e divergente da proposta de Amílcar

Cabral que desejava formar um cidadão completo, um homem novo. O governo

nacional tentara, sob a tutela de Mario Cabral, Comissário de Educação e Cultura,

estabelecer um projeto educacional em que se enfatizasse “o caráter político da

alfabetização”, valendo-se, para tanto, de educadores cientes de “sua opção política e

uma coerência com esta opção” (FREIRE, 1978, p. 94). Desde a luta pela

independência, estava clara para os líderes do PAIGC a importância da educação para a

construção de uma nação que mantivesse a unidade, a despeito das diferenças étnicas.

Segundo Amílcar Cabral,

a dinâmica da luta exige também a prática da democracia, da crítica e da

autocrítica, a participação crescente das populações na gestão da sua vida, a alfabetização, a criação de escolas e de serviços sanitários, a formação de

quadros vindos dos meios camponeses e operários, e muitas outras

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realizações que implicam uma verdadeira marcha forçada da sociedade no

caminho do progresso cultural. (CABRAL, 2008, p. 231)

A nova sociedade guineense deveria ser composta por um povo educado e ciente

de seu papel social que participasse das ações políticas, conhecesse sua história e seu

país, exercesse sua cidadania, emitisse sua opinião e se contrapusesse ao governo, caso

fosse necessário. David, por sua vez, não metaforizava essa figura preocupada com o

bem comum do país, fruto da perspectiva libertadora da educação, mas o seu oposto.

Retomando a leitura do projeto de Daniel, notamos que as semelhanças entre o

protagonista de Eterna paixão e Amílcar Cabral são incontestes. Em 2011, a professora

Laura Padilha registrou isso em seu artigo “Os romances de Abdulai Sila e o abraço

entre gerações”:

O leitor atento percebe, nas obras de Sila, muitas vezes, as palavras de ordem

do líder revolucionário que, ora se projetam de forma quase explícita, ora se escamoteiam as suas fissuras discursivas. (PADILHA. In.: RIBEIRO, 2011,

p. 177)

Convocar Amílcar Cabral para um diálogo narrativo não é gesto inocente

e/ou aleatório. (ibidem, p. 181)

Abraçam-se, assim, o sonho de Cabral e o de Dan que, unidos, mostram a

força de uma “eterna paixão”. (ibidem, p. 183)

As malhas a ligarem o líder a Sila se tornam, por pequenos detalhes, sempre

muito claras e sólidas. (ibidem, p. 184)

A mencionada professora assinala os vínculos discursivos entre Daniel, Sila e

Cabral. Há uma progressão de laços: os primeiros de deferência, por parte do ficcionista

a Cabral, figura sempre presente na ficção de Sila; em seguida, a transferência dos

próprios sentimentos e expectativas do autor para Daniel, que consegue, finalmente,

concretizar a utopia. Assim, como esta personagem,

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Cabral estava fora do seu tempo, não tinha nada a ver com o que se

desenhava no xadrez político e, pela sua visão utópica, que, sabemos agora,

era a verdadeira, estava acima, quer dos seus pares, quer do contexto

ideológico em que se desenrolou todo o processo de independência das

colónias, porque o seu pensamento não se enquadrava com o que estava na

mente dos “libertadores” africanos. (OLIVEIRA. In.: MEDEIROS, 2012, p.

12)

Em Eterna paixão, o Ministro da Agricultura, na esfera do poder, apresenta um

procedimento semelhante ao de David. Mais velho e melhor conhecedor da máquina do

Estado, o Ministro funciona como a ferramenta que mantém os países africanos sem

combater as causas da fome, conforme comentário de Daniel. O próprio Ministro assim

se define:

Que fique claro de uma vez por todas, que eu, eu e mais ninguém, tenho a

liberdade de tomar as medidas que achar mais apropriadas para pôr esta

máquina a andar. Está claro? (SILA, 2002, p. 264)

Seu discurso se pauta por sua vontade individual, não pelo bem comum.

Contudo, tal fala fora provocada pelo questionamento de Daniel diante da nova ordem

do Ministério. O protagonista, após visitar o ex-embaixador Kinsumah, questionar as

razões de sua prisão e a veracidade da denúncia, foi afastado do Serviço Nacional de

Promoção das Culturas de Exportação que ele mesmo houvera criado; em seu lugar,

assumiria um jovem que ainda não terminara sua formação. A arbitrariedade da ação do

Ministro baseava-se na seguinte premissa: se Daniel estava associado a um “traidor da

nação”, não deveria ocupar um cargo de confiança, mesmo que para isso fosse

substituído por alguém menos capacitado e desconhecedor da função.

A luta, cuja consequência fora o afastamento do protagonista do cargo, é

legítima: a libertação do embaixador, contra quem pesava uma denúncia,

provavelmente, falsa, uma vez que “em África aquela era uma acusação que tinha

sempre um backgroud falso, era quase sempre o pretexto para eliminar os dissidentes”

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(SILA, 2002, p. 238 – grifo do autor). Entretanto, Dan não imaginava que “aquelas

atividades todas que anunciara empreender não iam ficar impunes” (ibidem, p. 265).

O Ministro é metonímia da engrenagem do governo que mantém abafados os

desmandos, abusos, falsas denúncias e outras estratégias, cuja intenção é macular a

imagem ilibada dos poderosos.

O romance também nos apresenta figuras nacionais da Guiné-Bissau que

fizeram a opção indicada por Amílcar Cabral e abraçaram o desejo de viver e promover

um novo tempo. Então, Daniel não estava sozinho em sua empreitada. Após sair da

prisão, ele foi resgatado por Mukedidi, ou Didi, que o abrigou e cuidou de seu

restabelecimento.

Didi é uma das personagens que, como Mbubi, fala a Daniel sobre a importância

do amor, mas sua maior influência sobre o protagonista tem a ver com seu gesto como

resgatador. Didi simplesmente vira Daniel caído na calçada próxima à prisão, colocara-

o no carro e levara-o para casa. “Como podia ele acolher e manter em sua casa alguém

de quem não sabia absolutamente nada, além de que fora espancado pela polícia?”

(SILA, 2002, p. 289). Didi era um pouco mais velho que Daniel e David, ainda assim,

podemos afirmar que eles faziam parte da mesma geração. Diferente de David, Didi

fora um jovem inconformado com a situação do país:

Falou outra vez dos seus tempos de estudante na universidade. Falou dos

panfletos que confeccionavam para denunciar tanto o que se passava dentro

da universidade como algumas medidas do governo com as quais discordavam. Descreveu a agitação política daqueles tempos e depois as

manifestações. Recordou a sua fuga e os dias de clandestinidade. Falou da

denúncia que fez com que fosse preso e encarcerado naquela mesma prisão.

(SILA, 2002, p. 290)

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Didi sofrera a falta de liberdade de expressão. Considerando que o local onde se

passa o romance é a Guiné-Bissau, temos Didi e Daniel vítimas do sistema de controle

de que trata Fafali Koudawo e a que já nos referimos.

Didi assumiu uma postura revolucionária, como incentivava Amílcar Cabral, que

“desafiou dirigentes oportunistas a corrigirem as suas práticas” (LOPES. In.: LOPES,

2012, p. 191).

A tortura infringida a Daniel e a Didi foi “uma estratégia bem conhecida de toda

a administração impopular” – reprimir pela força qualquer manifestação contrária. Tal

modelo de governo desenvolve “diferentes níveis de opressão” (WICK. In.: LOPES,

2012, pp. 80-91) com vistas a diluir a rejeição. Ou seja, o grupo ao qual Mbubi

pertencia era oprimido pela falta de saneamento, educação, saúde ou condições de

trabalho. Já o grupo de Daniel e Didi pode pagar pela saúde ou enviar os filhos para

estudar no exterior, mas tinha a liberdade de expressão cerceada.

3.2.3- Entre discursos e práticas

A retomada do discurso cabralino nas obras de Abdulai Sila sempre apresenta a

função de denunciar, mas não se limita a ela. O escritor também se incumbe de apontar

esperanças. Assim como a monografia de Dan, a aldeia de Woyowayan metaforiza a

esperança presente tanto em Sila, quanto nos discursos revolucionários de Amílcar

Cabral. A ida de Daniel para o interior possui um sentido emblemático, pois, nas

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palavras de Tomás Medeiros, que sintetizam a ideia cabralina, “a partir do interior é que

se formará o tal homem novo” (MEDEIROS, 2012, p. 107).

No momento em que o narrador se refere à aldeia de Woyowayan, surge na

narrativa um professor, que houvera trocado seu “Land Cruiser por uma velha bicicleta”

(SILA, 2002, p. 301), e que “aprendeu com espantosa facilidade a língua e os costumes.

Escrupulosamente, respeitava as tradições e os anciãos.” (ibidem, p. 301), “viam-no

sempre vestido com roupas tradicionais locais” (ibidem, p. 302). O comportamento

adotado por Daniel tão logo chegara à aldeia, em primeiro lugar, nos remete à prática de

Cabral, que, “muito antes de ter sido considerado como ‘Pai da Nacionalidade’, [...] se

fez ‘Filho do Povo’” (FREIRE, 1978, p. 36). O discurso desse líder também é retomado

no romance, afinal, a burguesia deveria, após se suicidar como classe, se identificar com

as massas.

Em segunda instância, percebemos que os discursos presentes no romance

também se aproximam da proposta do professor Paulo Freire: “foi aprendendo com eles,

com os trabalhadores dos campos e das fábricas, que nos foi possível ensinar também”

(FREIRE, 1978, p. 16). A figura desse professor brasileiro, que esteve na Guiné-Bissau,

é marcante nas primeiras intervenções de alfabetização da sociedade guineense, bem

como o é na mente e na memória de Sila.

Acho que foi em 1976 que tive a ocasião de conhecer Paulo Freire. Eu fazia

parte (de fato era o chefe) de uma Brigada de Alfabetização, que tinha por

missão ensinar a ler e escrever aos nossos concidadãos mais velhos. Pessoalmente, achava e continuo a achar uma grande injustiça uma criança

não ter a oportunidade de ir à escola. Como tinha familiares que foram

vítimas dessa injustiça e tinha a consciência de que a construção do país

requeria o envolvimento de todos, cada um dando o melhor de si (o que

requeria certo nível de instrução), pus muito entusiasmo na alfabetização de

adultos. O método de ensino que adotamos foi o que o professor Paulo Freire

desenvolveu. Não era só o ler/escrever que estava em causa, mas todo um

processo educativo, que desembocava na capacitação do concidadão para a

assunção cabal das suas responsabilidades, para o exercício pleno da

cidadania. E podes imaginar qual é uma das minhas maiores decepções?

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Quase trinta anos depois, esse objetivo tão nobre continua sendo uma

miragem. (SILA. Apud.: BISPO, 2010)

Como, na realidade, “esse objetivo tão nobre continua sendo uma miragem”, ele

se delineia na ficção. Depois de Daniel se identificar com o povo e passar a fazer parte

dele, “a escola foi seu primeiro empreendimento” (SILA, 2002, p. 301). De forma

semelhante à revolução em Quinhamel, que foi iniciada pelo Régulo, em A última

tragédia, foi começada pela construção de uma escola e pela escolha de um professor,

cuja história estava entrelaçada à do povo guineense.

A conscientização política da população de Woyowayan foi promovida por

Daniel, como observamos no trecho a seguir:

O clube da juventude foi o passo seguinte. Foi um grande êxito. Depois foi a

cooperativa dos agricultores e falou-se num tractor. E a máquina chegou

antes que pudessem acreditar na ideia. (SILA, 2002, p. 301)

Lembremo-nos de que o sentido primeiro de “político” é aquilo que diz respeito

à pólis, que tem a ver com o viver em sociedade; esse é o sentido na aldeia de

Woyowayan. Segundo o Régulo de Quinhamel, “duas cabeças valem mais que uma

cabeça” (SILA, 2006, p. 67); desse modo, as mentes jovens aprendem a pensar na

coletividade e na promoção do bem comum. O clube da juventude evoca, ainda, a

imagem do Centro de Estudos Africanos, que promoveu, inclusive, em 1951, um Ciclo

de conferências, organizado por Amílcar Cabral (cf. MEDEIROS, 2012, pp. 49-50).

Como o grande líder revolucionário da Guiné-Bissau propusera e sonhara, a

transformação de Woyowayan foi contagiante.

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A vida de Woyowayan mudou. Mudou profundamente. Depois foi a

vida das tabancas vizinhas. Era como o fogo numa lala37

na estação seca.

(SILA, 2002, p. 301).

Muitos viam no exemplo de Woyowayan um incentivo para explorar

as potencialidades do país e procurar novas vias para um real

desenvolvimento. (ibidem, p. 302)

A proposta de Daniel incluía unir, sob a tutela da Organização da Unidade

Africana (OUA), todos os países africanos, em prol do combate à fome. Em menor grau,

as aldeias se uniram e copiaram o modelo uma das outras. Em seguida, o partido

político de Didi, que chegara ao poder, demonstrou interesse em usar o mesmo método

em todo o país.

Ampliando o alcance do projeto – conhecido como pan-africanismo – , podemos

inferir que o espírito de cooperação e solidariedade, que irmanava todos os africanos em

diáspora, aparece mais uma vez nesta obra de Sila. Segundo Medeiros, Cabral sonhava

não apenas com a unidade entre Cabo Verde e Guiné-Bissau, seus objetivos visavam a

“uma teoria para o Terceiro Mundo, de libertação do Terceiro Mundo” (MEDEIROS,

2012, p. 145).

O movimento de Daniel que sai de seu país e se identifica com os africanos38

também evoca a noção de reparação, segundo a qual se reconhece “o erro cometido

contra a espécie humana através dos negros” (KI-ZERBO, 2006, p. 32). A reparação

conta com várias etapas, uma vez que “é preciso conhecer e reconhecer o que se passou,

assumir a responsabilidade que se teve no que se passou” (idem, ibidem). A figura do

norte-americano que segue para a África, num movimento bem diferente da exploração

ocorrida nos séculos passados, metaforiza a responsabilização de que trata Ki-Zerbo. No

nível da diegese, o Africa Commitee, suas discussões, seus concursos e ações também

37 Planície de vegetação rasteira, região geralmente usada para pecuária. 38 O uso de “africanos” em vez da referência a um país ou povo específico se deve à noção pan-africanista

que subjaz a todo o romance, a partir da identificação da África como terra para onde se pode regressar.

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apontam para a ação reparatória e atendem ao convite feito pelo poeta Tony Tcheka, no

poema “Sonho-caravela”, de 1977, publicado no livro Noites de insónia na terra

adormecida:

Sonhei caravelas

as mesmas que dobraram o Adamastor

Deveras! Eram caravelas

Vinham com outros homens

pelos mesmos mares

agora navegáveis

Não traziam santos na mão

nem espadas embainhadas

Vinham de braços abertos

com cravos vermelhos

calando os fuzis

São luso-irmãos

caras-brazucas

nórdicos... vikings...

Tudo gente de nação valente ajudando a construir

a minha pátria-tabanca

(TCHEKA, 1996, p. 53)

Diferentemente do poema de Tcheka, Sila escolhe, propositalmente ou não, um

norte-americano. Tal escolha pode estar relacionada ao registro de Amílcar Cabral

acerca da reivindicação de uma identidade africana pelos negros americanos, no período

em que a grande maioria dos povos africanos conquistou suas independências (cf.

CABRAL, 2008, pp. 215-216).

O último comentário que desejamos fazer a respeito das mudanças em

Woyowayan refere-se ao currículo escolar: “História era uma disciplina que naquela

escola tinha um programa algo diferente do das restantes escolas do país [...] História da

África nos séculos quinze a dezoito” (SILA, 2002, pp. 303-304). O professor Daniel,

também diretor da escola, defendia que era necessário conhecer o próprio passado para

compreender melhor o presente e projetar o futuro. Da mesma forma que ele encontrara

uma solução para a fome em documentos velhos, que tratavam do Egito antigo,

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incentivava seus alunos a olharem para o passado de seus povos, a fim de formarem

uma identidade própria. Enfim, o novo currículo exercia uma função política; como

pensava Paulo Freire, “a reformulação dos programas de Geografia, de História e de

Língua Portuguesa, ao lado da substituição dos textos de leitura, carregados de

ideologia colonialista, era um imperativo” (FREIRE, 1978, p. 25). Além de ser

importante para Paulo Freire, esse também era um valor para Amílcar Cabral, para

quem

o “retorno às fontes” não [era] pois uma “démarche” voluntária, mas a única

resposta viável à solicitação imperiosa de uma necessidade determinada pela

contradição irredutível que [opunha] a sociedade colonizada à potência

colonial, as massas populares exploradas à classe estrangeira exploradora. (CABRAL, 2008, p. 216)

A ideia de adotar um currículo que incluísse a História da África retoma a

própria trajetória de Amílcar Cabral, em seus tempos de estudante em Portugal, quando

participara de grupos de estudos sobre o assunto, ao lado de Alda do Espírito Santo,

Mário de Andrade, Francisco Tenreiro e outros (cf. TOMÁS, 2008, p. 73).

A inserção de História da África no currículo escolar suscita outra questão: a

língua a ser usada na escola. O romance Eterna paixão é omisso em relação a isso,

embora fique claro que o professor falava a língua local e que a escola ensinava uma

língua estrangeira (especificamente o inglês) como parte integrante do currículo.

Segundo a UNESCO, a alfabetização deve ser feita nas línguas nacionais; por

isso, durante alguns anos, a Guiné-Bissau promoveu o ensino das primeiras letras em

seis línguas, mesmo não atendendo a todas as etnias e havendo preferência pelo crioulo,

uma vez que “desempenhou, na luta de libertação, e continua a desempenhar um papel

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unificador, de língua veicular” (CABRAL. In.: FREIRE, 2003, p. 180)39

. Vale registrar

que a iniciativa de educar, atentando para o plurilinguismo, não foi bem recebida por

parte da população, que considerava as línguas nacionais como menores frente ao

português.

Compreendemos que a lacuna, no romance, sobre em qual língua alfabetizar não

foi preenchida, uma vez que Daniel priorizou a luta para amplo acesso à educação,

tendo e vista o fato de que a escola, no período colonial, era bastante seletiva e

continuou a ser no pós-independência. O importante era adquirir o discurso e tomá-lo

para si; afinal, “um povo sela a sua libertação na medida em que ele reconquista a sua

palavra” (FREIRE, 2003, p. 29).

Em entrevista publicada na Revista O Marrare, Sila revela, quase 20 anos

depois, suas expectativas à época da escrita de Eterna paixão:

Não posso esconder que quando iniciei a construção do enredo (já lá vão

duas décadas), já era previsível o marasmo em que se encontra hoje o meu

país. Já havia provas reais de que o “espírito da luta” já não existia mais, que os nossos concidadãos, que ontem abnegadamente participaram na

concretização daquilo que para mim foi o maior feito deste povo no século

passado – acabar com a colonização, aprofundando o processo de construção

daquilo que Amílcar Cabral chamou de “Nação africana forjada na luta” –,

estavam incompreensivelmente a enveredar por uma via em todos os sentidos

oposta àquela que tinha sido anunciada. Estava acontecendo tanta coisa, tão

nociva quanto ininteligível, assistia-se ao desmoronar de tantos sonhos

“legítimos”, assistia-se a um desfasamento cada dia maior entre o discurso

político e a prática diária, que entendi por bem ir buscar alguém de fora,

(nesse caso Dan), carregado de uma boa dose daquilo que hoje se pode

chamar de utopia, mas que no contexto da época era absolutamente

exequível, para encarnar toda a desilusão e frustração que o cidadão comum sentia. Mas mais do que denunciar essa calamidade e ridicularizar os seus

principais protagonistas, era necessário passar uma mensagem positiva, de fé

e de esperança. É minha convicção que a literatura pode, sem ser doutrinaria

nem tão pouco estereotipada, contribuir para a mudança cultural que se

impõe, sem a qual continuaremos por muito tempo fazendo tanto mal a nós

mesmos. (SILA. Apud.: BISPO, 2010)

39 A declaração é de Mário Cabral, ex-Comissário de Educação e Cultura da Guiné-Bissau.

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Eterna paixão encena, assim, a tragédia da perda das utopias, quando já está

claro para os cidadãos comuns guineenses que os ideais políticos de Cabral não são

colocados em prática40

. Contudo, a par dos tempos distópicos da pós-independência, os

romances de Sila insistem em apontar para algumas saídas, uma vez que “um povo não

pode viver sem esperança” (HALL, 2004, p. 30)... Essa também foi uma das lições

legadas pelo pensamento de Amílcar Cabral.

O romance Eterna paixão, embora evidencie a distopia presente na sociedade

guineense pós-independente, acena, por intermédio da proposta de Daniel, com uma

possibilidade latente de que o “espírito africano forjado na luta” (cf. CABRAL, 2008, p.

150) possa, ainda, um dia, se reacender e se alastrar qual “fogo numa lala na estação

seca” (SILA, 2002, p. 301).

40 No período da guerra pela independência, as “zonas libertadas eram um protótipo e uma construção de

poder que se pretendia alternativa, mais democrática e participativa” (LOPES. In.: LOPES, 2012, p. 194).

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4- A presença do alegórico e do grotesco na construção do trágico

Na minha Pátria Amada trilhou-se pela via do tchumul-

tchamal41, sufocando o sagrado espírito da luta, asfixiando os

extasiantes sonhos de uma existência em paz, harmonia,

solidariedade e plena dignidade.

Abdulai Sila42

Em 1997, após a constatação de que, na Guiné-Bissau, a democratização e a

pluralidade partidária, na prática, não colaboraram para a construção de um país mais

justo, igualitário ou próximo do que fora idealizado nos tempos de luta pela

independência, veio a público Mistida, o terceiro romance de Abdulai Sila, que

apresenta um texto mais ferino e mais desencantado do que os anteriores.

“Mistida” é uma palavra do crioulo guineense, derivada do verbo “misti”, cujo

significado é “gostar”. Entretanto, não é esse o sentido adotado no romance. Russell

Hamilton esclarece, após ser elucidado por Sila, que

“Mistida” significa amor, desejo, ambição, afazer etc. No entanto

deve-se salientar que, ultimamente, este termo tem adquirido outros

significados, que não têm nada a ver com a sua origem etimológica, nomeadamente, negócio, compromisso etc. De facto, o seu significado

só pode ser determinado no contexto de uma frase específica, tantos

são seus possíveis significados e/ou sentidos. Deste modo, “safar uma

41 Complicação, confusão, desordem. 42SILA, 2010. Disponível no blog <http://mistida.blogspot.com.br/>, mantido pelo autor. Acesso em

30/05/13, às 15h.

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mistida” (esta é a expressão que se usa) pode significar tanto ir beber

um copo de vinho de caju, como concretizar um negócio, participar

numa reunião do partido ou ainda fazer amor com uma amante. Esta explicação constitui mais um exemplo do abrir de novos espaços que

caracteriza a pós-colonialidade. Naturalmente, no contexto do romance os

múltiplos sentidos do termo servem para disfarçar uma intenção anti-

governamental por parte do autor implícito. (HAMILTON, 1999, p. 20-21)

Mistida, de Abdulai, narra o roubo de uma memória. Nas palavras do autor, o

enredo “nasceu de um roubo [...] tratava-se de um roubo especial que só uma classe

diminuta consegue de facto praticar que é roubar o cérebro” (SILA, 2002, p. 10). A cena

alegórica43

que abre o livro descreve a imagem de camaleões invadindo e roubando a

memória. A partir daí, em cada um dos dez capítulos do romance, uma personagem tem

sua memória evocada e narrada. Nas palavras de Moema Augel, “o romance Mistida

tem dez capítulos, dez estórias, dez destinos, dez mistérios, como um jogo de encaixes,

com uma montagem estruturada em dez blocos diferentes de falas” (AUGEL, 1998, p.

347). Para Russell Hamilton, Mistida também oferece um viés político de leitura; de

acordo com o professor, “lido no contexto da situação política da Guiné-Bissau desde

1980, Mistida exige a derrubada do Presidente Vieira” (HAMILTON, 1999, p. 20).

Nosso ponto de vista se coaduna com este último; acreditamos que as imagens grotescas

e alegóricas44

estruturam uma mensagem contra o então presidente.

Para compor um enredo crítico em relação à política vigente no país, os dez

capítulos – também chamados de episódios, por não apresentarem linearidade narrativa

e clara continuidade – trazem personagens do cenário cotidiano da Guiné-Bissau e

figuras com comportamentos insanos e exagerados.

O primeiro capítulo narra a história do Comandante que lutara na guerra de

libertação e que, no presente da diegese, se encontra tão desencantado, que opta por

43 Entendemos alegoria no sentido dicionarizado, e no da Retórica, que, mais adiante, explicitaremos. 44 Mais adiante, conceituaremos os termos “grotesco” e “alegórico”.

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fechar os olhos para não ver o estado em que se encontra o país. O segundo capítulo tem

como cenário uma cela de prisão, onde se encontram alguns presos políticos, cujos

crimes cometidos consistiram em denunciar os descompassos entre o que já fora

apregoado e a prática de governo implantada. O terceiro narra a história de um guarda-

noturno, que tem seus sonhos assombrados por fantasmas daqueles que matara durante a

guerra de libertação.

As histórias dos homens cujas memórias remetem para a guerra de libertação e

cujas queixas apontam para contradições vividas nos tempos pós-independência são

interrompidas pelas figuras aterradoras de Nham-Nham e Amambarka, o governante do

país e seu conselheiro, protagonistas do capítulo 4. A descrição dos dois revela um

governante que desconhece a terra em que vive e as condições de vida de seu povo e um

conselheiro sedento de poder, disposto a fazer qualquer coisa para obtê-lo.

O capítulo 5 inaugura o movimento das três personagens femininas do romance.

Mama Sabel, a primeira delas, é uma mulher-grande45

, vendedora de amendoim,

carente de serviços de saúde e previdência social. O capítulo 6 recupera a figura de

Ndani, de A última tragédia46

. Após alguns dias de doença, a personagem tenta voltar

ao trabalho, vendendo seus produtos num beco, onde, no presente da diegese, surgiu,

durante sua ausência, um monturo de lixo, contra o qual ela trava uma batalha. O

capítulo 7 traz Djiba Mané, que já aparecera em Mistida, ao lado de Mama Sabel. A

protagonista descobre que o prazer proporcionado pelo poder é mais intenso do que o

advindo do sexo; por isso, busca formas de realizá-lo.

O capítulo 8 traz mais uma figura de poder, como as anteriores, sua descrição é

assustadora e desumanizada. Yem-Yem, carrasco responsável pelos presos políticos, é

45 Anciã, mulher de idade avançada, velha. Em geral, muito respeitada na Guiné-Bissau. 46 Ao longo do capítulo, a personagem é referida apenas como “ela”; somente ao final do livro, o narrador

informa que ela é Ndani.

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temido por todos que o cercam. No presente da diegese, ele se vê traído por seus

aliados, desiludido com a forma como o poder se mantém em seu país e disposto a

colaborar para mudar a situação. Ao tomar essa decisão, é assassinado.

O nono capítulo retoma a personagem Madjudho, jovem resgatado pelo

Comandante de um bombardeio aéreo durante a guerra de libertação. O protagonista é

portador de uma doença sem cura, adquirida na tentativa de compreender a mensagem

do mar, que nunca aparecera completa.

O capítulo final reúne as várias personagens, que, acompanhadas por um

exército de defuntos, conseguem depor Nham-Nham e Amambarka do poder, além de

tirarem o lixo do país, dando início a um novo tempo.

Mesmo antes do décimo capítulo, algumas personagens reaparecem em outros

momentos, como o Comandante que é mencionado nos capítulos 2 e 3; o Comissário

político, cuja história é narrada no capítulo 2, mas é referido em outros episódios; ou

ainda, Djiba Mané, cujo enredo se entrelaça ao de Mama Sabel. Ou seja, as histórias dos

capítulos estão entremeadas, mesmo sem serem inteiramente interdependentes. A

fragmentação narrativa empregada em Mistida expressa a fratura da sociedade

guineense, bem como os entremeios, ou seja, os elos e ligações efetuados pelo narrador,

apontam para a tentativa de unidade política – apregoada e defendida por Amílcar

Cabral – em meio à diversidade cultural, que caracteriza a sociedade guineense.

O romance descreve cenários urbanos da Guiné-Bissau: bairros pobres,

nightclubs, postos de controle e bunkers abandonados, celas de prisão, o palácio do

governo, bares, praças e ruas. Todos esses espaços possuem uma característica comum:

a presença do lixo, já que “quem perambula pelas ruas de Bissau não pode ignorá-lo”

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(AUGEL, 1998, p. 352). Alegoricamente, esse lixo expressa, com concretude, a situação

de deterioração do país.

Diferente dos romances anteriores, a estruturação de Mistida conta com uma

pequena narrativa (ou comentário) abrindo cada capítulo, marcada graficamente pelo

uso do itálico. Tanto o livro, quanto os capítulos começam com epígrafes: trechos de

músicas populares guineenses, canções de temática libertária, provérbios populares,

sendo apresentados em português, em crioulo guineense, em inglês ou em línguas

nacionais.

O provérbio “Si fere ala, fere bonde ko fere?” – que, traduzido do crioulo

guineense, significa: “Se não há saída, uma má saída é saída?” – abre o romance. Tal

provérbio popular é a chave para a leitura da obra, pois aponta para a dualidade dos

acontecimentos e para a atitude das personagens, cujas escolhas são resultado de uma

difícil decisão, gerada pela ausência de saída. Teresa Montenegro, no prefácio à

primeira edição, comenta o enredo também a partir da epígrafe do romance, declarando

que este traduz “estratégias individuais postas em jogo na procura de saídas e de novos

sentidos que permitam sobreviver à desestruturação” (MONTENEGRO In.: SILA,

2002, p. 328). Mistida trata do desencanto e da crise de sentidos que, segundo a referida

estudiosa, percorre o mundo e, em especial, a Guiné-Bissau. Temos, então, uma

encruzilhada, na qual as personagens se encontram embaraçadas e travadas, uma vez

que buscam um caminho que não há.

No esteio temático de Eterna paixão, Mistida também discute a situação

distópica da Guiné-Bissau da pós-independência. A estrutura episódica desse terceiro

romance traz, por meio da fragmentação da memória, lembranças esgarçadas das

histórias do período de guerra pela independência. Seis dos dez episódios apresentam

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personagens representativas do povo guineense que revelam carências e mazelas do

país.

A explicitação dos problemas, das misérias, dos desmandos e das necessidades

da Guiné-Bissau gera um texto distópico e delator. As denúncias de corrupção, traição

dos ideais da luta pela independência, o descaso dos governantes, já apontados em

Eterna paixão, reaparecem na urdidura de Mistida com mais detalhes. O que

intentaremos analisar neste capítulo são os diferentes níveis de denúncia, que podem ser

mais ou menos explícitas, valendo-se das metáforas, metonímias, alegorias e de

imagens grotescas.

Nossa análise tem como ponto de partida a declaração do autor, ao ser

perguntado acerca da sua fonte de inspiração para as personagens do romance:

É muito simples, nascem do dia a dia, das observações que faço. Eu aí não

tenho necessidade de muita imaginação. [...] O que se passa no meu país é

inacreditável, ou seja, há tanta coisa que acontece, que se a gente tenta

explicar isso a pessoas que não conhecem, elas vão dizer que “está a mentir” Há tanta barbaridade. Há tantas coisas que acontecem. E é nisso que a gente

pega e constrói o enredo. (SILA, 2002, p. 13)

O processo de ficcionalização de uma sociedade que não é apenas trágica, mas é

também absurda e bárbara, como nos revela o autor, passa pelo alegórico e pelo

grotesco. Cabe, agora, portanto, definir esses dois termos.

Alegoria, do grego allegoría (donde állos quer dizer “outro” e agoreu, “falar em

público”), etimologicamente, significa “dizer o outro”, ou seja, dizer outra coisa além

do sentido literal das palavras. De acordo com Carlos Ceia, “a alegoria é um dos

recursos retóricos mais discutidos teoricamente ao longo dos tempos” (CEIA, 2010)47

.

O uso que faremos do termo compreende seu sentido dicionarizado:

47 Conceito extraído do E-dicionário de termos literários, disponível em < http://www.edtl.com.pt>,

verbete “alegoria”.

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exposição de um pensamento sob forma figurada; ficção que representa uma

coisa, para dar ideia de outra; simbolismo concreto que abrange o conjunto

de uma narrativa, de modo que cada elemento do símbolo corresponde um

elemento significado ou simbolizado (FERREIRA, 1999, p. 90).

Tal conceito se coaduna com o retirado da Retórica, encontrado em diversos

dicionários de termos literários:

Etimologicamente, a alegoria consiste num discurso que faz entender outro,

numa linguagem outra. [...] Dado esse caráter dual, a alegoria move-se num

espaço retórico em que coexiste o símbolo. (MOISÉS, 1978, pp. 15-16)

Regra geral, a alegoria reporta-se a uma história ou a uma situação que joga

com sentidos duplos e figurados, sem limites textuais. [...] A decifração de

uma alegoria depende sempre de uma leitura intertextual, que permita

identificar num sentido abstracto um sentido mais profundo, sempre de

carácter moral. (CEIA, 2010)

Diferentemente das construções metafóricas e metonímicas que observamos nos

romances anteriores, há, em Mistida, o uso de uma construção imagética a partir do

simbolismo de elementos que, por vezes, integram a cosmogonia guineense. Um

exemplo disso é o texto que abre o romance:

Não foram anunciados nem tão-pouco desejados, mas os camaleões

chegaram. E chegaram todos de uma vez. Apressados. Poderosos e violentos.

Ah, muito violentos. Semearam a frustração e cedo transformaram a

realidade num sonho. Sonho turbulento, de pesadelos sem fim.

Roubaram. Roubaram. Roubaram e partiram. Sem glória. Sem

vergonha... E levaram a memória, quase toda a memória. Contra a razão.

E quando das cinzas se resgatou a esperança, surgiu na madrugada um outro ser. Um outro ser e uma outra vida. Uma vida que exigia ser vivida. Em

plena fraternidade. Com todo o orgulho.

Os cidadãos que disso se deram conta, ignorando as sequelas da

pilhagem, afirmaram vários anos mais tarde que foi nessa madrugada que a

verdadeira vida nasceu. Será? (SILA, 2002, p. 329)

Neste excerto, temos a evocação do camaleão, que, na cosmogonia fula – um

dos povos que habita a Guiné-Bissau –, possui várias acepções. Por mudar de cor à

vontade, o camaleão se adapta a diversas circunstâncias e, assim, é “mutável ao sabor

dos interesses sórdidos” (CHEVALIER, 1998, p. 170); ademais, sua língua comprida e

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viscosa lhe concede uma “palavra persuasiva que tira ao interlocutor todo meio de

resistência” (idem, ibidem); a cauda simboliza sua acentuada capacidade de “apoderar-

se do bem de outrem disfarçadamente” (ibidem, p. 171), inclusive de sua memória.

Lembremos que o próprio autor declarou, em entrevista já citada, que roubar a memória

é um tipo de roubo praticado somente por um grupo específico de pessoas. Para efetuar

tal usurpação, é necessário, portanto, ter o poder de controlar a população; por isso

mesmo, os camaleões foram caracterizados como sendo “Apressados. Poderosos e

violentos”; além disso, o ato furtivo foi caracterizado por ser “Sem glória. Sem

vergonha...” (SILA, 2002, p. 329). Depreende-se daí a antropomorfização dos

camaleões, uma vez que o comportamento referido pressupõe consciência e reflexão. É

uma alegoria irônica dos governantes guineenses que mudam de aparência, de acordo

com seus interesses.

Partindo da premissa de que Sila é um autor que escreve a partir de seu próprio

tempo e de sua sociedade, a abertura do romance pode ser lida como uma explicação da

época em que a obra foi escrita – após reeleição de Nino Vieira. Para Abdulai, este

governo, que fora denunciado em Eterna paixão, não se manteria no poder, exceto

diante da ausência da memória recente. A despeito do que parecia lógico para o autor, o

governo foi reeleito. Por isso, cremos que há uma construção alegórica que reflete o

ocorrido com a população guineense. Inferimos que o roubo da memória foi, de alguma

forma, motivado pela propaganda do governo ou por outras estratégias, que incluem o

uso de uma “língua comprida e viscosa”, ou por meio dos recursos financeiros. Isso

obnubilou a situação do país, de modo que a população optou pela manutenção dos

líderes corruptos.

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Os camaleões “semearam a frustração” (SILA, 2002, p. 329); esse sentimento

lembra a tensão presente em Eterna paixão, bem como o desejo de mudança. Do tom

menor dos dois primeiros parágrafos, o texto de abertura migra para um tom maior, de

esperança e fraternidade.

A narrativa distópica abre pequenas brechas para expressar uma certa esperança;

o texto faz parecer que há algo novo, apesar do roubo da memória. O questionamento

final desta sequência narrativa – “Será?” – aponta, com ironia, para a desconstrução do

auspicioso discurso. O leitor atento também nota a construção apositiva “ignorando as

sequelas da pilhagem” e percebe que este comportamento só se faz possível devido ao

esquecimento provocado pelo roubo da memória.

Com isso, inferimos que a narrativa nos apresenta um desejo de uma nova vida,

que pode ser uma nova imagem para Nino Vieira, presidente reeleito em 1994, e,

subsequentemente, o convite a uma vida “em plena fraternidade” e “com todo o

orgulho”, expressões que evocam o discurso da pré-independência, com o qual seria

possível conduzir a população a uma ideia de novo tempo. Lembremos que diversos

líderes africanos utilizaram-se da memória do período de luta pela libertação, a fim de

justificarem não só atitudes prejudiciais à população, mas também a manutenção do

poder. Não foi diferente na Guiné-Bissau e é isso que o romance de Abdulai denuncia.

O resultado da estratégia política de apagamento da memória gerou a ideia de

que o esquecimento fora benéfico e, por tal razão, os cidadãos fizeram a seguinte

declaração: “foi nessa madrugada que a verdadeira vida nasceu”. Notemos que o último

parágrafo aponta para a aprovação popular, que ignora “as sequelas da pilhagem”, ou

seja, os cidadãos não se dão conta da perda da memória e, por isso, avaliam

positivamente a madrugada em que houve o roubo. Tal aprovação se manifesta não só

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na reeleição de 1994, mas também, recentemente, em 2005. A memória de Nino Vieira

como antigo herói de guerra de libertação prevalece sobre a sua imagem de presidente

que se valeu de métodos coercivos e violentos para se manter no poder.

Em oposição à propaganda política que sustentou a reeleição desse presidente

corrupto, Sila traz para o romance, logo após o fim desta alegoria, o capítulo sobre o

Comandante, também herói da guerra de libertação, que prefere não ver esse governo

reeleito a roubar o povo. As alusões críticas à figura do presidente Nino Vieira

decorrem do olhar crítico do narrador.

Nossa leitura também é reforçada pela da professora Moema Augel, que, em

1998, já havia apontado para as figuras reais em Mistida:

Esses seres chocantes, porém, foram inspirados em pessoas reais, deformadas

e caricaturadas, impossíveis de serem reconhecidas, mas nem por isso menos

verdadeiras nem menos ameaçadoras, pois faz parte da arte de convencer

lançar mão de recursos de horror. (AUGEL, 1998, p. 352)

O recurso de horror é o que denominamos grostesco. A palavra deriva de grotta,

que, em italiano, que dizer “gruta”. O termo grotesco começou a ser utilizado, em

meados do século XV, como designação da arte inspirada na decoração da Domus

Aurea de Nero, cujas ruínas soterradas tinham sido descobertas à época.

Wolfgang Kayser estuda os significados da palavra “grotesco”, discutindo seus

usos e associações ao arabesco e ao burlesco para, assim, delinear o conceito, afirmando

que “o grotesco, por seu turno, destrói fundamentalmente as ordenações e tira o chão de

sob os pés” (KAYSER, 1986, p. 61). Segundo Kayser, o grotesco passa por três

domínios: o processo criativo, a obra e a recepção, mas nenhum deles basta, por si só,

para identificar uma cena ou obra como grotesca. A definição de tal recurso estético

passa pela estranheza: “faz parte da estrutura do grotesco que as categorias de nossa

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orientação no mundo falhem” (KAYSER, 1986, p. 159). Temos, assim, como base da

conceituação do termo o desconcertante; ou seja, a imagem grotesca se caracteriza por

se distanciar das referências esperadas pelo espectador.

O principal exemplo do grotesco, em Mistida, está na construção das figuras de

poder: Amambarka e Nham-Nham. Para descrever as figuras que exercem o poder e que

o desejam, Abdulai constrói uma cena grotesca e escatológica, mesclando perversão

sexual, delírio e coprologia. A imagem obtida contém aquilo que Schmidlin definiu

como grotesco em seu Dicionnaire universel de la langue française: “o mesmo que

singular, desnatural, aventuroso, esquisito, engraçado, ridículo, caricatural e coisas

semelhantes” (SCHMIDLIN. Apud.: KAYSER, 1986, p. 27); além disso, a

representação contém o que Kayser afirma ser a principal característica do grotesco: o

monstruoso e o disforme.

O aspecto terrível advindo da construção grotesca é indiciado no capítulo 4

desde o título: “Timba”48

, designação de um mamífero, cujo simbolismo, na

cosmogonia guineense, está associado às forças do mal. O leitor autóctone sabe, de

antemão, o que esperar das linhas que se seguem.

O capítulo conta a história de Amambarka, nome cujo significado é coisa ruim,

mandrião. Ele assumiu para si a missão de tomar o poder, chamada por ele de epopeia.

Para cumpri-la, eliminara seus progenitores e todos os sentimentos que lhe imprimissem

traços humanos, porque, para ele, os “sentimentos, mesmo os mais íntimos, não deviam

ser interpretados senão como uma demonstração inaceitável da fraqueza humana”

(SILA, 2002, p. 378).

48Timba é um dos nomes do mamífero aardvak (orycteropus afer), conhecido também como “porco-

formigueiro”, “porco-da-terra” ou “urso-formigueiro”.

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Amambarka exercia a função de conselheiro do governante Nham-Nham –

palavra onomatopaica que designa o som da mastigação. A maior parte do seu trabalho

consistia em descrever a felicidade da terra e do povo para Nham-Nham, além de incitar

a adoração ao soberano.

Amambarka é uma figura não humana, ludibriador e sedento de poder. Nham-

Nham, por sua vez, controla-o, ao mesmo tempo em que é também controlado por ele.

O objetivo de Amambarka era chegar ao poder; para isso, se submetia a cumprir uma

série de desejos de Nham-Nham, que envolviam imagens grotescas com elementos

escatológicos.

Eram sempre as mesmas palavras, os mesmo gestos e as mesmas reações.

Aproximou-se devagar, com um sorriso pálido nos lábios. Sentou-se na sua

perna e deixou cair a cabeça sobre o seu colo. Fechou os olhos e preparou-se

para ouvir os elogios e gozar as carícias daquele dia. “Tu és o único que merece toda a minha confiança”, começou a dizer Nham-Nham, ao que

Amambarka acrescentou: “E todo o teu amor”. Acariciavam-se mutuamente,

começando pela cabeça, indo progressivamente até chegar às zonas mais

íntimas. Depois de lhe dar uma longa mordedura nos lábios, Nham-Nham

segredou-lhe na orelha: “És o único capaz de me levar até o fim do mundo...

és o máximo... o maior de todos...”. (SILA, 2002, p. 380)

A relação de adoração e submissão a Nham-Nham, que, até então, se

desenrolava por meio das palavras, agora atinge um novo nível, numa espécie de

relação semelhante à sexual, na qual as carícias integram algo maior expresso nas

palavras de confiança e entrega de poder. À medida que o governante confessava sua

insuspeição ao conselheiro, este atingia o clímax, imaginando-se no trono, pronto para

ser coroado.

A coroa de ouro maciço estava a ser colocada sobre a sua cabeça. Os

gritos histéricos do povo que enchia a praça ouviam-se cada vez mais altos,

mais incômodos...

E era a seguir à gritaria que aparecia o redemoinho a anunciar a

turbulência. [...] O povo que clamava o seu soberano, de repente surgia com

as pernas para o ar e derretia rios de lágrimas. [...] Surgia então um exército

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de djatacolons49, excitados e famintos. [...] O mais ambicioso deles [...]

entrava-lhe pela boca [...] e comia-lhe a cabeça toda. [...]

É justamente nesse exato momento de aflição que lhe surgiam entre as

pernas aqueles excrementos fedorentos [...].

Como sempre, Nham-Nham não aceitava as suas explicações nem os

seus pedidos de perdão. Atirava-o violentamente contra a parede e depois

mandava-o lamber os excrementos. (SILA, 2002, pp. 380-381)

A viagem imaginária de Amambarka culmina com a excreção, que provoca seu

maior ato de humilhação em relação a Nham-Nham: lamber as próprias fezes.

Amambarka é uma personagem cuidadosamente criada para não causar

identificação com o leitor. Isso fica claro na opção de assassinar os pais e abrir mão de

qualquer sentimento. Esse processo de desumanização corrobora para que ele tenha

feições monstruosas, mesmo que não haja sua descrição física. No último capítulo,

quando Amambarka volta à cena, ele é triturado por um cilindro. O que espanta os

espectadores é o fato de ele não ter sangue no corpo; ao que concluem “ele não é

humano” (SILA, 2002, p. 456).

É chocante para o leitor notar que o comportamento patológico de Amambarka

acontece, porque este busca garantir que o cargo, ora ocupado por Nham-Nham, seja

dele. Para tanto, há uma série de atitudes sedutoras, que incluem, antes do ato transcrito

anteriormente, vários diálogos de exaltação ao soberano e ocultação da verdade. A

elaboração dessa personagem condiz com a seguinte declaração de Kayser: “o mundo

grotesco causava a impressão de ser a imagem do mundo vista pela loucura”

(KAYSER, 1986, p. 159). Apenas a partir da loucura, uma figura como Amambarka

poderia vir à tona.

O delírio de Amambarka se pauta numa construção indiciadora do final do

romance: o fim do poderio estabelecido. O povo que grita durante sua coroação tem

suas lágrimas transformadas em rios de sangue, sobre os quais navegam vermes a bebê-

49 Parasita hepático, carrapato.

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los. O ar – que anuncia o novo tempo nos capítulos 1 e 2 – dá lugar à imagem grotesca

de vermes que exercem a mesma função: instalar um novo tempo, no qual Amambarka

não faça parte do poder.

De acordo com Wolfgang Kayser,

É somente na qualidade de polo oposto ao sublime que o grotesco desvela

toda sua profundidade. Pois, assim como o sublime – à diferença do belo –

dirige o nosso olhar para um mundo mais elevado, sobre-humano, do mesmo

modo abre-se no ridículo-disforme e no monstruoso-horrível do grotesco um modo desumano do noturno abismal. (KAYSER, 1986, p. 60)

O horror que envolve o capítulo 4 fica mais evidente em oposição aos capítulos

anteriores, nos quais o sol e a luz se estabelecem, iluminando a terra, expulsando os

ladrões, irmanando as pessoas, além de possibilitar a visão a todos, como veremos mais

adiante. Em contrapartida, “Timba” apresenta um cenário fúnebre, no qual um ser

impiedoso tem a cabeça devorada por vermes.

A construção imagética do capítulo 4 não integra uma forma de perceber o

mundo ou constitui-se parte de uma determinada crença. O que se tem é o horror, uma

estranheza inquietante.

Amambarka e Nham-Nham ficcionalizam parte dos absurdos de que o autor

trata. Não só essas duas personagens, mas todo o romance, em seus dez capítulos,

corroboram para denunciar um tempo distópico e trágico. O que pretendemos, nas

próximas páginas é verificar como o uso do alegórico e do grotesco colaboram para a

construção da narrativa, de modo a ficcionalizar os problemas da Guiné-Bissau e como

os mesmos recursos também trabalham para a manutenção de uma certa esperança, uma

constante na obra de Sila.

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4.1- O trágico pós-colonial50

Mistida contém um texto mais explícito que os anteriores no que diz respeito às

denúncias feitas contra o governo, aos métodos de manutenção de poder e às misérias

da população. Alguns dos capítulos do romance trazem referências claras de

contraposição ao presente da escrita, de modo a explicitar o trágico constatado no

contexto do país e ficcionalizado na narrativa. O descontentamento com o governo de

Nino Vieira é uma das tônicas do romance e, segundo Russell Hamilton, Mistida exige

a derrubada desse governo.

Nino Vieira fora o porta-voz da proclamação unilateral da independência da

Guiné-Bissau, em Madina do Boé, em 24 de setembro de 1973. Governou a Guiné-

Bissau de 1980 a 1998 e retornou à presidência de 2005 a 2009, quando foi assassinado.

Desempenhou importante papel de liderança ao lado de Amílcar Cabral, durante a luta

pela independência, bem como, no pós-independência, assessorou os primeiros anos de

governo nacional junto a Luís Cabral. De acordo com a jornalista Ana Dias Cordeiro, “o

percurso de Nino Vieira confunde-se com o destino de um país em falência”

(CORDEIRO, 2009)51

.

Fernando Casimiro52

, crítico social guineense, sintetizou o sentimento de vários

de seus concidadãos diante do governo do então presidente em “Carta aberta a Sua Exa.

o Senhor General João Bernardo ‘Nino’ Vieira”: “digo-lhe sinceramente que me

50 Usamos o termo “pós-colonial” como marcador temporal; ou seja, o período que sucedeu ao fim do

regime colonial, tendo início com a independência. 51 Trecho do obituário de Nino Vieira, veiculado em <http://cabinda.skyrock.com/2346430155-Nino-

Vieira-Combatente-exemplar-ditador-temido-Presidente-sozinho.html>, acesso em 05/06/2013. 52 Fernando Casimiro ou Didinho mantém o blog <www.didinho.org>, no qual publica uma série de

textos seus e de outros autores que versam sobre política, cultura, artes e literatura na Guiné-Bissau.

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decepcionou, eu que hoje confesso, também o tive como referência na minha juventude

por tudo quanto ouvi dizer da sua participação na luta de libertação nacional!”

(CASIMIRO, 2006).

No mesmo documento, Casimiro revela o que a imprensa, em geral, fora

proibida de dizer:

As estruturas económicas do país estavam a ser dilapidadas, tendo

grandes investimentos do país sido reduzidos a simples paredes e terrenos

baldios. Estava-se perante crimes de natureza económica numa governação

que não tinha contas a apresentar, visto tratar-se de uma governação com

poder absoluto.

A corrupção generalizou-se na sociedade guineense, levando a que o

Tesouro Público fosse o baú das negociatas do regime.

As suspeições e especulações foram-se acumulando na mente dos

guineenses.

Por pressões internacionais, V. Exa. aceitou abrir o país ao multipartidarismo em 1991, um facto digno de registo, pese embora nada se

ter alterado na forma como dirigia o país. (CASIMIRO, 2006)53

A análise social feita por Casimiro, bem como sua decepção com o líder político

foram ficcionalizadas por Sila, em Mistida, e se fazem presentes nos cenários, nas

situações do dia a dia e nos discursos das personagens, como metáforas, metonímias,

alegorias ou imagens grotescas.

53Esta carta aberta está disponível no blog do autor, sob o link

<http://didinho.no.sapo.pt/carta_aberta_ao_srgeneraljoaobernardoninovieira.htm>, foi escrita e publicada

em 2006, após o retorno de Nino Vieira à Guiné-Bissau e sua vitória na eleição para a presidência em

2005; entretanto, o trecho por nós destacado faz alusão ao período de 1980 a 1994.

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4.1.1- Decadência e desgoverno

Uma das denúncias presentes no romance tem a ver com a decadência do país e

está presente desde o primeiro capítulo, intitulado “Madjudho”, que narra a história de

um ex-comandante que vive com um jovem a quem chamava de Madjudho ou

Matchudho54

, num antigo posto de controle abandonado. O local tinha como porta o

para-brisa de um Volvo e onde se acumulavam latas vazias e resíduos de objetos de

madeira. O protagonista usava um engradado da cervejaria Cicer como assento.

As três primeiras páginas do romance constroem uma imagem abarrotada de

objetos inúteis, acumulados no cenário que descreve o início da trama romanesca. As

marcas Volvo e Cicer, grafadas, respectivamente, em itálico e em caixa alta, podem

passar desapercebidas ao leitor exógeno, mas, ao nacional, fazem ecoar o passado

recente: o para-brisa do Volvo rememora “o carro de prestígio nas primeiras décadas

depois da independência” (AUGEL, 2006, p. 84). Abdulai Sila explica que “na altura

em que todos os governantes e dirigentes políticos tinham viaturas da marca Volvo,

falou-se de ‘volvocracia’ para se referir a toda essa gente e/ou ao regime estabelecido”

(SILA. Apud. BISPO, 2010). Esse tipo de carro também esteve presente no romance

Eterna paixão; era a marca dos carros de Ruth e de David, figuras que compunham o

governo e alegorizavam a corrupção e a má gestão pública.

A cervejaria Cicer (sigla da Companhia Industrial de Cervejas e Refrigerantes),

um dos legados da colonização, foi uma empresa de economia mista que impulsionou

uma onda de modernização e industrialização no país, deixando de lado a produção de

54Matchudho: escravo; Madjudho: desnorteado, perdido.

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arroz e fazendo nascer uma dívida externa três vezes maior do que o produto interno

bruto (cf. AUGEL, 2007, p. 156). Essa imagem reflete, portanto, a decadência do jovem

país, que, à época da publicação deste romance, tinha apenas 24 anos de independente.

A esperança desenvolvida em Eterna paixão, na utópica aldeia de Woyowayan, que se

baseava na conjugação do moderno com o tradicional, se torna, em Mistida,

desesperança, diante da realidade mal sucedida e transforma-se em cenário para um

romance que trata de distopias, embora, como demonstraremos adiante, alguns laivos de

esperança teimem em resistir.

Ao leitor não iniciado, Sila garante a compreensão da denúncia, por intermédio

da voz do Comandante. Este se mantinha em serviço, sem abandonar o posto de

controle que lhe fora confiado. Dizia que se manteria “até o dia em que definitivamente

[regressassem] o orgulho e a dignidade na nossa terra” (SILA, 2002, p. 334). O

Comandante resgatara um jovem sobrevivente de um bombardeio aéreo. As respostas

do Comandante a esse jovem, a quem salvara quando ainda criança, fazem referência ao

quadro trágico no qual está inserida a Guiné-Bissau:

― Dá-me a guia de marcha. [...]

― Já não há guia, Comandante. Não há controle na terra...

― Mas devia haver. ― Cada um faz o que quer.

― Cada um está é a roubar. (SILA, 2002, p. 333)

― O comandante não vai mesmo abrir os olhos nunca mais?

― Não vou.

― Por quê?

― Este mundo está cheio de hipocrisia, não quero ver.

― Hipocrisia?

― E de maldade... (ibidem, p. 335)

― Eu? Abrir os olhos? Para quê?

― Abra só... ― Há cinismo a mais, não quero ver. (ibidem, p. 337)

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135

Estes diálogos deixam claro que o Comandante mantém os olhos fechados em

protesto. Ele não aceita que a luta e o sofrimento vividos nos anos de guerra tenham

reverberado num país repleto de hipocrisia, cinismo, maldade e roubo por parte de seus

governantes. A alegoria depreendida do comportamento do Comandante aponta para a

inconformidade com a situação da Guiné-Bissau, de modo a negar a existência de um

líder político cujo discurso fora transformado a partir da assunção do poder. Por outro

lado, o mesmo gesto também alegoriza a inércia da população – especialmente daqueles

que lutaram contra a opressão colonial – e a impossibilidade de agir, uma vez que a

tirania do pós-independência também cerceou a liberdade.

A frase “Não há controle na terra...”, enunciada pelo jovem, aponta para um

primeiro indicador da figura do governante: ele não controla o país. Ou seja, é uma

personagem que não exerce, de fato, a sua função, ou não consegue desempenhá-la,

conforme fica evidente no capítulo 4.

Há, em Mistida, personagens cientes da situação do país; evocam os anos de luta

pela libertação, requerendo uma vida digna para a Guiné-Bissau. A recorrente presença

de soldados da guerra pela independência visa à rememoração da imagem perdida de

Nino Vieira enquanto líder de combate e esperança de novos tempos, bem como a

imagem de Amílcar Cabral, pai da nacionalidade guineense.

Outra imagem que aponta para a decadência do país está na presença constante

do lixo, presente em todos os episódios como componente cênico ou por figurar como

interlocutor de alguma personagem.

O Capítulo 6, intitulado “Muntudu”, que significa monturo ou lixo, traz o

embate da protagonista não nomeada com um monte de lixo que surgiu na rua onde ela

vendia seus produtos.

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Foram apenas alguns dias de febre que a obrigaram a ausentar-se do

beco onde passara quase uma vida inteira sentada e logo tinha sido

desalojada. Quando voltou, o lixo já se tinha apossado do seu lugar. Pediu-

lhe que se retirasse, mas foi ignorada e desprezada. Protestou um dia inteiro.

[...] No dia seguinte, o lixo tinha crescido o dobro. [...] Os reforços

solicitados e mil vezes prometidos ficaram pelo caminho minado pelo

egoísmo e pela pobreza de espírito. A solidariedade requerida perdeu-se nos

confins do desespero. (SILA, 2002, pp. 400-401)

A protagonista do capítulo 6 se vê não apenas sem seu local de trabalho, mas

também solitária na busca por reavê-lo. Como o Comandante, ela protesta sozinha; mas,

diferentemente dele, ela busca socorro na fraternidade africana, que emergiria com o

fim do colonialismo. Seu apelo foi semelhante ao de Amílcar Cabral, cujo discurso

visava a “unir aqueles que a despeito de suas especificidades históricas são

assemelhados por sua origem humana” (HERNANDEZ, 2005, p. 138). A solidão da

personagem metaforiza o contraponto da fraternidade e da unidade dos povos africanos

anunciados pelo movimento de pan-africanismo, uma das bases das ideias de Cabral.

Mesmo quando intenta remover o lixo com as próprias mãos, nenhum dos passantes se

apieda ou se solidariza.

Ajudem-me a tirar o lixo daqui. Ajudem-me a recuperar o lugar que

sempre foi meu, ajudem-me a recuperar o espaço onde as crianças

costumavam brincar. Eu sozinha não posso... [...]

Mal iniciara sua intervenção as pessoas começaram a abandonar o

local. (SILA, 2002, p. 402)

A estagnação dos populares e o subsequente abandono do local são a alegoria da

indiferença com o outro. Em Eterna paixão, a mesma preocupação com o individual

sobrepunha o coletivo por meio do suborno e do enriquecimento ilícito, fruto da

manutenção de privilégios para um pequeno grupo da sociedade. Em Mistida, o capítulo

6 aponta para um comportamento semelhante entre as pessoas mais pobres, uma vez que

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o cenário é um beco. Temos, portanto, mais um resultado do não suicídio da burguesia

nacional, o que, no romance, gera a falta de compromisso social por parte da população.

A batalha inglória da protagonista é travada contra o lixo, que adquire voz e ri.

Pareceu-lhe que alguém estava a chamar o seu nome atrás de si.

Virou-se e procurou por todo o lado, mas não havia ninguém perto. [...] A

voz vinha do centro da lixeira. Chamava o seu nome e depois dava uma

gargalhada comprida. [...] As gargalhadas eram cada vez mais compridas. [...] Foi então que tomou aquela decisão. [...]

Foi até a casa e voltou com um pau comprido. [...] Quando ouviu a

voz, espetou o pau com toda a força. [...] Removeu quase todo o lixo. [...]

Com o pau seguro na mão, ela continuava a espera. [...]

Os primeiros sons foram imperceptíveis mas os que vieram depois

eram claros. Eram as gargalhadas outra vez. Ela desatou a correr e pôs-se a

bater com o seu pau comprido por cima do local de onde saía a voz. [...] As

gargalhadas soavam simultaneamente em diferentes locais. [...] Ela começou

a correr à volta da lixeira e a bater sem parar. [...] Ela ficou pregada no

mesmo sítio, impotente, sem saber como reagir. [...] Pôs a mão na cabeça e

soltou um longo grito. Um grito de angústia e desespero que ecoou por toda a

casa. (SILA, 2002, pp. 401-403)

A imagem da protagonista correndo em volta da lixeira transita entre o cômico e

o trágico, gerando uma cena grotesca. Sua luta solitária metaforiza as tentativas

individuais de combate aos problemas da Guiné-Bissau que, por falta de apoio tanto da

população, mas principalmente do governo, sucumbiram.

O grotesco se constrói na cena pela concessão de voz ao lixo, que zomba da

vendedora, ao lado do desespero da moça, que não consegue fazer nada para solucionar

seu problema. O apelo para o grotesco soa-nos como uma tentativa extrema para chamar

a atenção para o caos instalado. Notemos que há uma ampliação da denúncia no que diz

respeito à forma. Ao longo do romance, a mensagem de denúncia aos problemas sociais

do país se repete, bem como a culpabilização do governo e da inércia da população. No

entanto, temos, no capítulo 6, por meio do uso do grotesco, um discurso mais agressivo

do que no capítulo 1, conforme já foi comentado anteriormente.

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Ademais, o lixo nas ruas, dividindo espaço com as pessoas e impedindo que

trabalhem, aponta para a vida grotesca imposta à população. Além disso, a convivência

constante com os dejetos aproxima os seres humanos da podridão, de modo que a

autoestima se destrói, inibindo qualquer tipo de reação capaz de reverter a situação.

Impossível, desse modo, “safar qualquer mistida”. Destarte, o embate entre a mulher e o

lixo alegoriza o duelo entre os cidadãos e o tratamento dado a eles pelo governo que age

como se não houvesse um povo pelo qual zelar.

O capítulo 10 revela ao leitor que o lixo também é um instrumento para os

governantes exercerem o poder:

― Olha só, Nham-Nham, estão a roubar.

― A roubar?

― Estão a roubar o nosso lixo.

― O meu... o meu lixo? ― Sim...

― O lixo que me garante o poder? Diz-me a verdade, Amambarka... É

mesmo o meu lixo que estão a roubar?

― É.

― Não, não posso permitir. Podem roubar-me tudo menos o meu lixo.

Não, isso jamais acontecerá. Não vou deixar que me retirem o meu melhor

aliado, a minha maior riqueza... Não posso permitir essa desgraça... não

admito... não suporto... Temos que detê-los, Amambarka. [...] Esta é a minha

maior riqueza... o suporte de todo o meu poder. Não permitirei a ninguém

roubá-la de mim. Levei anos e anos a juntar isto, isto tudo que está aqui... É

meu, meu... tudo meu, tudo meu... (SILA, 2002, pp. 454-455)

Nham-Nham é dono e acumulador do lixo, visto ao longo dos episódios. Como

dissemos anteriormente, o lixo físico compõe o cenário das ruas de Bissau. Para Moema

Augel, “o lixo é uma das personagens principais de Mistida” (AUGEL, 2006, p. 321); a

professora completa:

Metonímia extravagante, o autor foi buscar uma parte de um todo simbólico

que vai muito além dos detritos, dejetos e sucatas, muito além do excremento

e da podridão material, palpável e aspirável, impossível de ser ignorada. O

campo semântico desse tema lixo amplia-se sensivelmente, penetrando na

área mais alargada do despotismo, da corrupção, da traição aos ideais, da falsidade e da ambição desmedida. (AUGEL, 2006, pp. 321-322)

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A presença do lixo pode conotar diversas situações. Num primeiro nível, o lixo,

como sinônimo de dejeto, sujeira, resíduo, aponta para o descaso e para o desleixo das

autoridades para com os espaços comuns, o que é algo recorrente na realidade da Guiné-

Bissau. Alegoricamente, o que ocorre nas ruas reflete o modo como a liderança do país

percebe a coisa pública: não há zelo. O lixo em excesso é uma alegoria do trágico

exacerbado, ou seja, uma imagem exagerada, disforme das condições sociais

vivenciadas pelos guineenses nos últimos anos. O lixo pode ser entendido, ainda, como

o acúmulo de papéis da burocracia que entravava os interesses do povo e garantia o

poder de Nham-Nham.

A sensação de descaso com o ser humano, evocado por meio da presença

frequente do lixo, se contrapõe aos discursos libertários e atitudes dos primeiros anos de

independência, época em que Elza Freire, esposa de Paulo Freire, assim definiu o povo

da Guiné-Bissau, quando acompanhou seu marido em viagem a esse país: “o indivíduo

aqui vale enquanto gente. A pessoa humana é algo concreto e não uma abstração”

(FREIRE, 1979, p. 39). Essa declaração de Elza foi motivada por presenciar o

compassivo gesto do então presidente Luís Cabral, em 1976, que, após um desfile das

Forças Armadas do Povo (FARP), ao ver um soldado da banda desfalecer, parou seu

discurso até que o rapaz fosse devidamente socorrido (cf. ibidem, pp. 38-39). Tratar

bem o povo era uma prática da independência. Contudo, em tão pouco tempo,

mudaram-se discursos e práticas na Guiné-Bissau e povo voltou a ser tratado como lixo.

Para que a lembrança de que já houve, pelo menos, boa intenção e respeito seja

apagada, é mister “roubar a memória”, a fim de que se pense que sempre foi assim: um

país de podridão e constante deterioração.

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4.1.2- “Queriam ver a justiça, a camaradagem, a solidariedade”55

As tragédias do período da pós-independência não se limitam aos sinais de

decadência; estão também presentes na voz da juventude, que cobra dos mais velhos

melhores condições de vida na Guiné-Bissau.

O capítulo 5 se intitula “Mama Sabel”, nome que faz referência à canção

homônima dos guineenses Iva e Iche, usada como epígrafe. O trecho da música está em

crioulo guineense e pode ser assim entendido: “quando se é pobre, não se tem direitos,

é-se alvo de toda a injustiça”56

. Este capítulo narra a história de Mama Sabel, uma

mulher-grande, vendedora de amendoins, que cuidara de uma moça, vítima de estupro.

O capítulo é um exemplo cotidiano da pobreza guineense.

Mama Sabel conheceu a rapariga, quando esta se instalara no beco para vender

amendoins, competindo com os vendedores mais velhos e ludibriando os compradores.

Encontrava sempre uma maneira de convencer as pessoas. Mesmo aquelas

que eram seus fregueses fixos mudaram. Nenhum deles resistiu às aldrabices

dela. Ninguém notava que a caneca que usava para medir era grande só por fora, lá dentro estava cheia de papelão. (SILA, 2002, p. 392)

A amizade nascera, quando, após quatro dias sem ir ao beco, Mama Sabel

encontrara a moça “num konkó57

escuro, com a porta encostada. [...] Soube logo o que

tinha acontecido” (SILA, 2002, p. 394). O conhecimento da violência sofrida pela

rapariga desenvolve uma inesperada cumplicidade entre as duas, de modo que ambas

55 Trecho de Mistida (SILA, 2002, p. 351). 56O texto original é “Si bu koitadi,/tudu nomi bu ta dadu./ Si bu koitadi na Guiné / tudu nomi bu ta dadu”.

Uma tradução literal possível é: “Se és coitado, todos os nomes te são dados. Se és coitado na Guiné,

todos os nomes te são dados”. Agradecemos à professora Moema que tão prontamente nos auxiliou nesta

tradução. 57 Habitação pequena, anexa à casa principal, “puxadinho”.

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cuidam uma da outra, cada uma à sua maneira, apesar do choque de opiniões e atitudes

entre elas. A jovem se prostituía para ganhar a vida e, com frequência, oferecia parte do

dinheiro à mulher-grande, que sempre rejeitava.

Da mesma forma que o diálogo entre o velho e o novo revela problemas do país

no capítulo 1, temos, também, aqui, por meio das conversas entre as personagens, as

carências nacionais explicitadas:

― Não, não posso aceitar este dinheiro... [...]

― Não podes por quê? És capaz de dizer por quê? Vá, diz!

― É dinheiro sujo. [...]

― Roubei-o, então? [...] ― Não o obtiveste honestamente, é isso que quero dizer.

― Honestamente? Mama Sabel, francamente... Estou a ver que tu

ainda continuas como os olhos amarrados, não sei quando é que vais

conseguir abri-los. Então há uma coisa que se ganhe honestamente nesta terra

hoje em dia? Tu aqui a altas horas da noite, a apanhar este sereno todo, isto é

honesto? Diz-me se é honesto uma mulher-grande como tu estar a vender

mancarra58 neste beco a esta hora. Estás a ser honesta? Para quem? Para os

filhos, que já não tens? Para os teus netos, que não te conhecem? Para quem?

Diz!... (SILA, 2002, p. 389)

O discurso de honestidade de Mama Sabel se choca com a série de reclamações

da rapariga. Se, por um lado, não é justo ter de vender o corpo por dinheiro, como

argumenta Mama Sabel; por outro, é igualmente injusto que uma mulher idosa não

tenha aposentadoria garantida para viver sua velhice. O discurso da rapariga é lúcido.

Seu olhar contém o desencanto; suas atitudes, no entanto, são de sobrevivência. Ciente

de que não há quem a ampare, ela trilha seus próprios caminhos, afirmando para si

mesma que sua prostituição é necessária para garantir os cuidados com a única pessoa

que lhe dera a mão.

A rapariga revela o estado de abandono no qual Mama Sabel se encontrava. A

idosa não só estava abandonada pelo governo que não lhe prestava assistência, mas

58 Amendoim.

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também não podia contar com seus filhos e netos. A única pessoa que lhe demonstrava

compaixão era a moça.

O fato é que Mama Sabel precisava do dinheiro; por isso a discussão entre as

duas não cessava. Os diálogos entre ambas, no fundo, reivindicavam, nas entrelinhas,

por uma prática política de igualdade social, a mesma que já fora clamada em A última

tragédia, pela voz do Régulo:

― O dinheiro que tenho, este aqui, é meu. Não interessa como obtive,

mas ele é meu. [...] Faz de conta que estamos numa outra terra, está bem?

Numa terra onde haja um sistema mais ou menos justo de distribuição da

pobreza nacional como sugere o tal testamento do régulo de... Não sabes disso? Não faz mal. Faz agora de conta que estamos numa outra terra ainda e

que nessa terra trabalha-se honestamente. Mas toda a gente trabalha

honestamente, todos. Nesta terra, quando as pessoas chegam a uma idade em

que já não mais podem trabalhar, ou têm os joelhos inchados e por isso não

devem apanhar sereno, essas pessoas recebem uma reforma. Isso sabes o que

é, não é verdade? Muito bem, então continua a fazer de conta. Faz de conta

que eu sou funcionária desses serviços que pagam as tais reformas e estou

aqui para te entregar a tua reforma, que é este dinheiro que tens na mão.

Portanto, faz de conta que este dinheiro aqui é teu e que o ganhaste

honestamente. (SILA, 2002, p. 390)

Temos explicitados, neste trecho, o descaso com os velhos e a alternativa

encontrada pela moça. Diante da conjuntura que se apresenta, na qual não há o básico, a

rapariga, então, escolhe a “má saída” do provérbio que abre o romance, a fim de buscar

uma solução. Ela demonstra consciência do descompasso entre a situação social e os

modelos outrora apregoados.

Não é a primeira vez que Sila se vale da voz dos jovens para questionar aqueles

que, para as gerações mais recentes, deveriam ter atendido, politicamente, aos ideais

defendidos durante a luta pela libertação, em especial os veiculados pelos discursos de

Amílcar Cabral.

O capítulo 2, “O tribunal da redenção”, conta, dentre outras, a história de um

professor que perdera a voz, depois de ouvir um pedido de seus alunos:

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Muitos anos depois da independência [...] disseram ao professor que queriam

que lhes mostrasse onde estava o país que ele lhes tinha prometido. [...] Eles

queriam ver a justiça, a camaradagem, a solidariedade... Queriam saber onde

estava o patriotismo, o espírito de luta... (SILA, 2002, pp. 351-352, grifo do

autor)

Os jovens alunos constatam, como a rapariga resgatada por Mama Sabel, que

tudo o que fora prometido acabara, ou nunca existira. Notemos que a juventude

ficcionalizada no romance cobra dos mais velhos as mudanças necessárias ao país e

trilham caminhos individuais para garantir alguma perspectiva. Isso fica claro na voz da

rapariga que abandonara a escola para não ser como as irmãs: “perderam tanto tempo

para nada. Não têm trabalho, não têm dinheiro, não têm nada. Absolutamente nada.

Nem marido em condições conseguiram” (SILA, 2002, p. 393).

A rapariga e suas irmãs tiveram oportunidade de estudar após o esfacelamento

do sistema educacional do país. O governo nacional não conseguira manter o avanço

educacional conquistado nos anos de luta. De 1963 a 1973, o PAIGC formou 36 pessoas

no nível superior, 46 com curso técnico, 241 com cursos profissionalizantes ou de

especialização; em oposição aos 14 guineenses com nível superior e 11 com ensino

técnico formados durante a época colonial (de 1471 a 1961) (cf. FREIRE, 2003, p. 170).

Mesmo com o crescimento dos índices de alfabetização, a proposta de não “apenas

‘treinar’ a classe trabalhadora no uso de destrezas consideradas como necessárias ao

aumento da produção”, mas, sim, “aprofundar e ampliar o horizonte da compreensão

dos trabalhadores (trabalhadoras) com relação ao processo produtivo” (FREIRE, 1978,

p. 30) não foi atingida, ou melhor, não perdurou durante muito tempo. Como

consequência disso, no âmbito da ficção, as irmãs da rapariga, mesmo tendo

permanecido na escola, não conseguem nada, nem emprego, nem marido.

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Contudo, o romance Mistida mantém uma “teimosa esperança”; no discurso de

Mama Sabel, notamos outras alternativas: a responsabilização e a busca de uma

consciência coletiva:

― Mama Sabel, esta terra está assim, não fui eu que a fiz assim, não

sou eu que vou mudá-la. As coisas estão como estão, não sou responsável de

nada, aliás, ninguém é responsável por nada...

― Mas não pode ser assim! Alguém tem que ser responsável... ― E quem é esse alguém? Eu?

― Somos todos... [...]

― Mama Sabel, o próprio governo, depois de tantos anos de

independência, continua a dizer que não é responsável...

― Não, não... Eu não falo de política... Já te disse várias vezes. [...]

Devia contribuir para que as coisas melhorem. (SILA, 2002, p. 389-390)

A mulher-grande responsabiliza todos. A fraternidade, a camaradagem, a

solidariedade requeridas pelos jovens alunos e a terra do faz-de-conta descrita pela

rapariga só podem ser obtidas por meio de uma prática comunitária, que visa à

coletividade, não por decreto ou lei. É retomado, aqui, o discurso de Amílcar Cabral,

que conclamava os guineenses à unidade:

As organizações africanas anticolonialistas das colónias portuguesas [...]

querem que o povo se beneficie de um verdadeiro desenvolvimento social,

baseado num trabalho produtivo e no progresso económico, na unidade e na

fraternidade africana, na amizade e na igualdade entre todos os povos.

(CABRAL, 2008, p. 63)

Mesmo prevendo a reação da pequena burguesia nacional da Guiné-Bissau, em

A arma da teoria, Amílcar Cabral não contava com a falta de fraternidade entre os

povos africanos. Mama Sabel, por sua vez, percebe, em Mistida, a apatia de seus pares.

O que ela destaca, num discurso indireto livre, aponta para a prostração instalada no

país. Diante do ato desonesto de a moça vender menos amendoins do que o prometido,

usando uma caneca com papelão no fundo, a mulher-grande considera:

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Isso demonstrava uma coisa que ela já tinha notado com muita

preocupação: o desleixo estava a tomar conta de tudo.

As pessoas só se interessavam pela aparência. [...] As pessoas viam

com os seus olhos que alguém estava a enganá-las e não reagiam. Não

reclamavam, não protestavam, não faziam nada. [...] Em vez de reagir logo e

pegar teso para acabar com os problemas todos de uma vez, não, deixavam

andar. E depois iam mesquinhar noutro lado, a dizer que a vida estava cada

dia mais difícil. Como é que a terra podia ir para diante com aquele tipo de

mentalidade? (SILA, 2002, p. 392)

A atitude enganadora da moça na venda dos amendoins é metonímia das

inúmeras corrupções existentes no país. O texto critica a prática da menina e a

passividade dos fregueses. Na sequência, contudo, o discurso toma novas proporções. A

expressão “acabar com todos os problemas de uma vez”, por exemplo, não diz respeito

à venda de amendoins, mas aos problemas do país. O que Mama Sabel propõe é uma

conscientização coletiva e uma mudança de mentalidade. No fundo, a proposta dela era

a mesma de Amílcar Cabral, que acreditava numa educação libertadora, por meio da

qual seria possível construir um país mais justo e igualitário, onde a fraternidade, a

solidariedade e o espírito de luta se sobreporiam aos interesses individuais. Há,

portanto, nos discursos das personagens que se acumpliciam com os ideais de Amílcar,

uma “teimosa esperança”, que sonha, ainda, com o antigo projeto libertário.

4.1.3- A política e seus demônios

Queremos ainda chamar a atenção para as desilusões advindas da política que o

romance ficcionaliza. O capítulo 2 apresenta uma cela de prisão como cenário, onde há

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alguns presos políticos. Woro59

, que não tivera envolvimento político, mas estava preso

ao lado dos demais, analisa assim o assunto:

Tinham feito política, mas ele não. O seu caso era completamente outro,

desde que a guerra acabara que não se metia nisso. Mesmo nos comícios, se

gritava viva isto abaixo aquilo, era porque todos faziam o mesmo, não era por

vontade própria. Há muito que tinha descoberto que fazer política só dava

para encher barriga e os bolsos de alguns, não era uma coisa que iria fazer a terra ir para diante. É verdade que dantes também pensava como eles, que era

preciso dizer claramente aos que andavam a arrastar a terra para a miséria que

não foi para isso que tinham lutado tantos anos e feito tantos sacrifícios para

pôr os tugas fora. Mas depois entendeu que não valia a pena trazer mais

desgraça na terra. Querem mandar?, que mandem. Querem encher os bolsos

depressa?, que encham. Ele tinha pago o seu quinhão, acabou. (SILA, 2002,

p. 349)

Como nas contações de histórias em que as mensagens são repetidas várias

vezes para que estas se fixem na memória dos ouvintes, mais uma vez, no romance de

Sila, é reiterada a ideia de que houve um abandono dos sonhos libertários. Dessa vez,

por meio da memória de Woro, cujo discurso revela a própria desilusão. Sua trajetória

aponta para a percepção de que o modo de “fazer política” havia mudado; assim, no

presente da exegese, a política só servia para “encher a barriga e os bolsos de alguns”

(idem, ibidem). E, diante disso, ele preferia se abster de opinião e de ação; afinal:

“entendeu que não valia a pena” (idem, ibidem).

Podemos notar também, neste excerto, o motivo da reclusão dos demais

detentos: “dizer claramente aos que andavam a arrastar a terra para a miséria que não foi

para isso que tinham lutado tantos anos e feito tantos sacrifícios para pôr os tugas fora”

(idem, ibidem). Fica evidente a denúncia dos meios autoritários do governo a fim de

garantir a manutenção de uma boa imagem perante a opinião pública, valendo-se, para

tanto, dos silenciamentos dos opositores políticos, seja por detenção, tortura ou morte.

59 Seis, em mandinga. No capítulo 2, todos os detentos são chamados por números na língua mandinga.

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Além disso, como em Eterna paixão, há a acusação ao governo de fazer a miséria

aumentar, em vez de saná-la.

A denúncia dos descompassos do governo se relaciona diretamente à prática da

“democracia revolucionária”, que, para Amílcar Cabral, consiste na “prestação política

de contas dos que chefiam e dirigem a sociedade para os que são chefiados e dirigidos”

(MENDY. Apud.: LOPES, 2012, p. 31). Aqueles que denunciaram e que, por isso,

estavam presos, ansiavam por uma mudança: que os líderes políticos percebessem “a

importância da integridade e da transparência nas posições de liderança” (idem, ibidem),

apregoadas pelo pai da nacionalidade guineense.

Diferente do comportamento de Amílcar Cabral, que foi exemplo de liderança

durante os anos de luta, visitando escolas, comunidades rurais e ouvindo o povo, os

novos líderes usaram o poder para oprimir as massas. O capítulo 7 nos apresenta Djiba

Mané, uma figura do povo que deseja o poder dos líderes políticos. A personagem-título

é a rapariga cuidada por Mama Sabel e que insiste em tentar ajudar a mulher-grande.

Ela divide o quarto com uma moça da mesma idade, chamada Nhelem. Neste capítulo,

Djiba descobre um prazer maior do que o obtido por meio do sexo: o poder. Desde

então sua rotina, seu comportamento e seus relacionamentos mudaram. Ela passou a

buscar formas de obter o poder.

― Já te contei o que se passou no cruzamento, lembra-te? É isso o

poder. O poder de mandar...

― Se é isso então já sei o que deves fazer – interrompeu Nhelem, soltando uma gargalhada. – Deves ir concorrer para juiz. [...]

― Isto é uma piada ou o quê? Já viste algum juiz com algum poder?

Juiz é escravo, minha querida, um pobre escravo de uma doutrina que muitas

vezes nem conhece direito, que não sabe donde vem nem para onde vai. E os

juízes desta terra, já imaginaste o que são?

― Mas têm poderes, isso não podes negar...

― Eu estou a falar de um poder real, Nhelem, não de poderes

fictícios. Eu preciso de um poder que me permita justamente fazer de gente

como um juiz um menino de recados.

― Se é isso então só vejo uma hipótese para ti...

― Qual?

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― Um golpe de Estado. [...]

― Não gosto da violência...

― Queres o poder e não queres a violência? Como é possível teres

uma coisa sem a outra se são duas faces da mesma moeda? [...]

― Um poder sem ser baseado na violência nem na repressão, isso é

possível!

― Talvez, talvez, mas, para ser sincera, não acredito... Em todo o

caso, na prática, provou-se aqui que é impossível.

― Mas vamos supor, mesmo que seja só por um momento, que tal

seja possível, está bem? Como é que posso lá chegar, ao poder? Tens uma

ideia, para além do golpe? ― Cria um partido.

― Um partido? [...]

― Tens que enganar as pessoas, o povo, como se costuma dizer.

― Enganar o povo? [...] Só isso?

― É bom que compreendas, Djiba, que não é possível chegares lá

onde queres sem teres um instrumento adequado. [...] Se tiveres dinheiro,

mas muito dinheiro, vai poder comprar muita coisa, que hoje tudo se

transformou em mercadoria. Olha, garanto-lhe que se tiveres dinheiro que

chegue, vais poder comprar o patriotismo, o nacionalismo e todos esses

ismos que existem por aí, incluindo as cabeças dos politiqueiros que andam a

reinventá-los cada vez que isso lhes convém. (SILA, 2002, pp. 420-421)

No diálogo entre Djiba e Nhelem, mais uma vez, o narrador expõe algumas das

causas de sua distopia. O primeiro dado aponta para o interesse de deter o poder que,

nas palavras de Djiba, é “fazer de gente como um juiz um menino de recados”. É

notória a intenção individualista que descarta o interesse coletivo em prol do bem para

si, além da negação da justiça para todos. Lembrando o discurso de Cabral em A arma

da teoria, discutido no capítulo anterior, temos, mais uma vez, a ficcionalização da

“traição dos objetivos da libertação nacional” (CABRAL, 2008, p. 200). O sociólogo

guineense Carlos Lopes declara que, ainda no período colonial, “havia contradições e

antagonismos entre as diversas classes e grupos sociais e dentro deles, o que os deixava

com atitudes e posturas diferentes em relação ao projeto de independência” (LOPES.

In.: LOPES, 2012, p. 25). Os conflitos internos, segundo Amílcar Cabral, poderiam ser

sanados, após a independência, com uma educação adequada, o que não houve.

O diálogo entre as amigas traz ainda uma crítica à figura do então presidente

Nino Vieira, que, em 1980, liderou um golpe, já comentado no capítulo anterior. A

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primeira alusão ao presidente está na menção ao golpe de Estado. Posteriormente, o

texto associa a obtenção do poder à posse de dinheiro. O roubo da memória que abre o

romance é, como já falamos, uma alegoria da reeleição de Nino Vieira. O dinheiro

público é o instrumento para tal usurpação; afinal, como afirma Sila, este é um tipo de

roubo que só pode ser executado por um pequeno grupo de pessoas, uma pequena elite

que detinha o poder.

Este capítulo denuncia a imensa corrupção no país. Valendo-se da ironia e do

discurso indireto livre, Nhelem discorre sobre as passadas que já ouvira e que contava:

Estava farta de contar passadas de coisas que tinham acontecido com ela.

Desde pequenas vigarices na rua até grandes aldrabices no serviço; do chefe

que inventava missões ao estrangeiro ou aldrabava nas verbas dos projectos

só para comer dinheiro de financiamentos; ou mesmo do colega da secretaria, que também aldrabava com as folhas de vencimentos ou com as compras que

nunca eram feitas mas que tinham facturas na pasta de despesas. (SILA,

2002, p. 416-417)

As denúncias dizem respeito, inicialmente, às questões do dia a dia e a pequenas

fraudes, realizadas por funcionários públicos, que não teriam acesso a grandes volumes

de dinheiro. Contra este tipo de comportamento, Mama Sabel já houvera se

pronunciado, destacando que todos eram culpados pelas mazelas do país.

Vêm à luz, por meio da ficção, outros níveis de corrupção, cujas práticas se

tornam institucionalizadas:

O tal deputado tinha em boa hora sugerido aos seus digníssimos colegas que

de uma vez por todas abrissem os olhos e encarassem a realidade. E a realidade era que o soco de baixo60 tinha adquirido um outro caráter na nossa

terra. De um vergonhoso acto de corrupção ele tinha-se transformado em

poucos anos, sem dúvida, num importante fator de desenvolvimento moral,

social, financeiro e até político sem o qual o país não podia andar. [...]

Através dessa lei os colegas e digníssimos representantes do povo iriam dar

um enorme contributo no sentido de adaptar a democracia à nossa realidade.

[...] Ao legalizar esse tal do soco o governo teria pelo menos uma coisa para

mostrar aos tais senhores de Bretton Woods, um elemento concreto cujo

60 Soco de baixo: suborno.

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índice de crescimento nos últimos tempos demonstrava todo o nosso

empenho em levar a terra para diante. (SILA, 2002, p. 417-418)

Discute-se entre os deputados a legalização do suborno como prática que visa a

beneficiar o país e a promover o crescimento, além de servir de meio para adaptar a

democracia à sociedade local. Não cabe na razão e no bom senso tal proposta, ainda

assim, ela é apresentada e defendida formalmente. Este trecho sintetiza o caos instalado

no país, uma vez que as leis deixam de servir ao bem comum, e a legislação passa a ser

um instrumento de defesa de interesses privados. Em vez de viver a sonhada

“democracia revolucionária”, a ficção mostra que a Guiné-Bissau vive uma

“independência de fachada” (MENDY. In.: LOPES, 2012, p. 31), expressão que

Amílcar Cabral usava para definir um governo que adquire nova administração, mas

mantém as mesmas práticas injustas da anterior.

Vale ainda destacar a referência aos “senhores de Bretton Woods”. As

conferências de Bretton Woods, em 1944, estabeleceram novos parâmetros financeiros

para a reconstrução dos países devastados pela 2ª Guerra Mundial; uma das resoluções

derivadas do encontro foi a criação do Banco Internacional para Reconstrução e

Desenvolvimento (BIRD) e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Com o passar dos

anos, os objetivos principais dessas instituições mudaram, bem como o nome do BIRD,

que hoje é Banco Mundial. Dentre os novos investimentos, está o auxílio aos países

subdesenvolvidos a fim de reduzir a pobreza. A cessão de verba está, em geral,

condicionada à adoção de uma série de medidas que, no fundo, pouco tem colaborado

para que os pobres sejam menos pobres.

Os “senhores de Bretton Woods” são evocados no romance, neste contexto,

ironicamente; uma vez que a legalização do suborno ocasionaria o aumento de algum

índice nacional, o que poderia ser apresentado como um dado desenvolvimentista.

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Dessa forma, o país poderia, mostrando crescimento em alguma área – mesmo que fosse

na corrupção – , solicitar recursos ao Banco Mundial.

A repressão é um dos elementos que colabora para a manutenção do poder. Esse

recurso é personificado pela figura de Yem-Yem, cujo nome significa silêncio, em fula;

sua história é contada no capítulo 8.

Ele era temido por todos, andava fardado e, diariamente, ia a um bar, tomava um

copo de cana e partia. A rotina era observada e temida por todos os frequentadores que

lhe deram Yem-Yem como alcunha, uma vez que ele pouco ou nada dizia; ainda assim,

“toda a gente ficava a saber o que iria acontecer naquela noite nas prisões” (SILA, 2002,

p. 428). Soldado e torturador, Yem-Yem tinha o poder de transformar as pessoas em

lixo:

O ambiente tornou-se mais tenso ainda quando ele mandou trazer mais um

copo de cana. Instantes após a proprietária lhe ter satisfeito o desejo,

deixando o copo no centro da mesa, ele executou um movimento brusco e

prendeu a mão dela. Era como o salto inesperado de um tigre faminto sobre uma vítima indefesa. As garras iriam penetrar violentamente na pele da presa

e desfazer o seu corpo em bocados. Em poucos minutos a vítima passaria a

um ser dotado de sentimentos e de vontade própria a um amontoado de pele e

ossos, sem vida, sem expressão... Lixo. (SILA, 2002, p. 429)

A proprietária do bar não se tornou a mais nova vítima de Yem-Yem; contudo,

todos os presentes se angustiaram diante do súbito movimento. Naquele dia, Yem-Yem

estava desiludido e irritadiço por ter sido ele vítima de uma traição, que tantas vezes

punira com tortura e morte. Após expurgar a culpa por meio da memória, ele teve suas

roupas transformadas em uma túnica branca, ao beber um copo de água que lhe purifica

o corpo e a alma. Ao sair, dizendo que era “altura de mudar algumas coisas neste

país...” (SILA, 2002, p. 435), foi morto, crivado por balas.

A figura de Yem-Yem é bastante emblemática. Diferente das demais

personagens que tiveram algum envolvimento político, ele compõe a máquina do

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governo no tempo da diegese. A percepção que se tem dele é de alguém assustador, que

causa silêncio e horror às pessoas. Como Amambarka, ele é desumanizado. Sua

caracterização o compara a animais: “tigre em agonia” (ibidem, p. 428), “animal

selvagem” (ibidem, p. 429), “soltou o rugido” (idem, ibidem). O desenho que se tem

dele ficcionalizado pela escrita de Mistida é aterrador. Simboliza as figuras de

autoridade e repressão que eram muito temidas na Guiné-Bissau, dominada por um

regime ditatorial, mesmo nos tempos pós-coloniais.

Significativo também é seu assassinato que ocorre quando ele decide agir a fim

de “mudar algumas coisas” no país. É impedido de “safar sua mistida”. O silêncio que o

acompanhou enquanto torturava também o acompanha no momento em que intenta

fazer algo benéfico para a coletividade.

O trágico fim de Yem-Yem, que não consegue expressar em atos a redenção já

vivida ao ser “lavado” pela água, compõe um cenário que deixa entrever, por parte do

discurso enunciador do romance, uma certa esperança.

Metafórica e metonimicamente, o romance apresenta traços do trágico da

realidade da pós-independência na Guiné-Bissau, valendo-se também do alegórico e do

grotesco. As denúncias, no entanto, convergem para a mensagem que perpassa a

Trilogia: o abandono dos ideais que guiaram os anos de luta de libertação. Apesar da

tragédia social, Abdulai Sila mantém acesa uma “teimosa esperança” e insiste em

sonhar com alternativas para que surja, enfim, um país, em que os indivíduos valham

como seres humanos.

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4.2- “Teimosa esperança”61

Mesmo diante da tragédia, o texto de Sila insiste em sonhar com algumas saídas,

ora explícitas, ora implícitas. Em A última tragédia, estas se encontram diluídas no

testamento do Régulo de Quinhamel e versam sobre a liderança e a formação do líder.

Em Eterna paixão, a saída está na recuperação dos discursos de Amílcar Cabral, no

investimento na agricultura e na formação educacional de toda a população. Em ambos

os romances, há a construção de um herói imaginário messiânico, que conseguiria

transformar o país num lugar mais justo, fraternal e harmonioso. Em Mistida, como

apontou Russell Hamilton, a resposta está na derrubada de Nino Vieira, por meio de um

levante popular, além da recuperação do sonho de Amílcar Cabral.

Tal ação de reconstrução dos valores nacionais tem início a partir de uma

situação que pode parecer insólita ao olhar ocidental, mas que abarca a cosmogonia

guineense e os símbolos da terra. Vale dizer, portanto, que Mistida apresenta uma série

de elementos componentes da cosmovisão guineense, como o contato entre o mundo

dos vivos e o dos mortos ou a mensagem de bom ou mau agouro trazida pelo alma-

beafada, ave típica do território nacional. A partir de elementos diversos, podendo ser

próprios de seu povo ou não, o romance se vale de imagens mitológicas, como a da

abertura, em que os camaleões encarnam uma carga simbólica.

61 Sintagma usado pela professora Moema Augel para se referir à esperança presente em Mistida, a

despeito das denúncias contidas no texto. (AUGEL, 1998, p. 353).

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4.2.1- “Tudo nesta terra vai ficar claro”62

Uma das imagens recorrentes em Mistida é o sol. A par do lixo, esse astro

aparece em quase todos os episódios como símbolo da liberdade, sugerindo o advento

de um novo tempo. Tal significado não é de uso exclusivo de Abdulai; pelo contrário,

configura uma imagem frequente e constante em várias culturas. “Sol” é a primeira

palavra do Hino Nacional da Guiné-Bissau: “É pátria amada”, de autoria de Amílcar

Cabral, cujo primeiro verso é: “Sol, suor e o verde e mar”.

Jean Chevalier explica que “o simbolismo do Sol é tão diversificado quanto é

rica de contradições a realidade solar” (CHEVALIER, 1998, p. 836).

Em Mistida, o sol é referido em diversos momentos narrativos e, em todos, tem

ressaltada a sua capacidade de trazer à luz o que está oculto, além de se relacionar com a

dualidade ver/não ver e manter a conotação de novo tempo, como podemos constatar

nos seguintes trechos: “Daqui a nada vai nascer o nosso sol e a partir daí não haverá

mais ladrões na nossa terra” (SILA, 2002, p. 343); “Levantou a vista para o céu e viu o

sol libertar-se das nuvens que o encobriam, lançando uma luz fascinante sobre a terra”

(ibidem, p. 382); “No céu o sol parou. Ao lado dele estava a lua a brilhar” (ibidem, p.

405).

O capítulo 1 não se limita às conversas entre o Comandante e o jovem, além de

explicitar o cenário decadente do país, como já destacamos. Este capítulo contém a

síntese da mensagem de todo o romance. A opção do Comandante de não querer ver é

bastante instigante. Em primeiro lugar, porque, mesmo de olhos fechados, ele ainda

62 Trecho de Mistida (SILA, 2002, p. 355).

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consegue enxergar o que se passa a seu redor. Em contraposição a isso, está Madjudho

que, mesmo mantendo os olhos abertos, não consegue ver o que está acontecendo.

― Diz-me qual é a cor do sol hoje, Madjudho.

― O sol já está muito alto, forte. Não é visível, Comandante.

― Mas tem uma cor...

― Aquela habitual, Comandante. [...]

― Se não és capaz de distinguir as coisas mais elementares não vale a pena fingir ter os olhos abertos. [...]

― Juro que está tudo igual aos outros dias, Comandante. Tudo na

mesma... Mas se quiseres volto para ver novamente. [...]

― Tenta... a ver se descobres o outro sol, aquele que brilhará para nós.

Para todos nós. (SILA, 2002, p. 342)

O Comandante não buscava apenas o astro-rei, o que ele desejava era um novo

tempo, ou o “outro sol”, aquele que inicia o Hino Nacional da Guiné-Bissau. E este sol

nasceu, quando a independência guineense foi proclamada, embora, logo depois, a

corrupção tenha vindo escurecer esse brilho provocado pela heroicidade de alguns que,

no caso do trecho a seguir, é metaforizada pela medalha resplandecente:

O Comandante estendia-lhe a medalha. Segurou-a com ambas as mãos

e dirigiu-se para a estrada. Uma vez aí olhou para trás e viu o Comandante

dizer-lhe sim com a cabeça. Procurou o centro da estrada e inclinou-se

devagar. À medida que a medalha se aproximava do solo, ia ganhando um

brilho fulgurante. Admirando, o jovem virou-se novamente para o

Comandante. Recebeu o mesmo sinal. Decidiu depositá-la de uma vez no

chão pois mesmo que quisesse já não conseguia sustê-la.

Mal tocou no chão, a medalha começou a rolar, a rolar ao longo da

estrada, aumentando progressivamente de brilho e de tamanho. Quando o

ponteiro gigante se libertou, transformando-se num gigantesco fiel da

balança, o jovem correu para junto do Comandante. [...]

A medalha se transformava numa enorme bola luminosa, a subir

vertiginosamente para o céu. Difundia uma claridade jamais vista sobre a

terra. (SILA, 2002, p. 344)

O que chamavam medalha era, na verdade, uma velha bússola quebrada, espólio

de guerra, encontrada junto ao avião que bombardeara a aldeia do jovem, quando

criança. O objeto era mantido com excessivo zelo pelo Comandante e era alvo de

ciúmes do rapaz. A transformação da bússola na imagem de uma “enorme bola

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luminosa”, como o sol, é a construção alegórica do desfecho do capítulo 1, que termina,

efetivamente, com o Comandante de olhos “definitivamente abertos” (idem, ibidem).

A bússola, como instrumento de navegação, oferece a direção a quem sabe usá-

la; como está quebrada, já não pode fazer isso. Seu formato arredondado e seu único

ponteiro tornam-se os elementos através dos quais a imagem criada pelo narrador ganha

forma.

O ponteiro, se desprendendo da bússola e se tornando um fiel da balança,

alegoriza o necessário restabelecimento da justiça, de modo que os juízes não sejam

“meninos de recado” de poderosos, como descreveu Djiba Mané.

A transformação da bússola num novo sol expressa o desejo de um novo tempo,

no qual, de acordo com o Comandante, “não haverá mais ladrões na nossa terra” (SILA,

2002, p. 343). Na exegese, a prostração do Comandante dá lugar à tomada de atitude,

antes de colocar a medalha na rua, ele se apresenta fardado e inspira, junto ao rapaz, os

ares de um novo tempo. Diante da esperança de um novo sol, as duas personagens

partem a fim de cumprir suas próprias mistidas. Ações individuais desse tipo encerram

quase todos os capítulos do romance, apontando um desejo de tomada de atitude por

parte de algumas personagens e do narrador. A atitude do Comandante integra o

discurso, por nós já destacado, de Mama Sabel, que reclamava da inércia do povo e

dizia que todos eram responsáveis pela situação do país. A partida do Comandante

alegoriza a ação individual necessária para a obtenção de uma ação coletiva.

O capítulo 2 também traz uma imagem interessante que envolve não apenas o

sol, mas também o alma-beafada, um pássaro típico da fauna guineense de hábitos

terrestres, caracterizado por ter penas pretas e brancas. A ave pode representar,

miticamente, o espírito dos ancestrais e, por isso, não é caçada nem comida. De acordo

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com Teresa Montenegro, “o alma-biafada63

, que à visão ora se mostra preto, ora branco,

contém simultaneamente num único ser ideias opostas, constituindo ele próprio, com a

sua morfologia e comportamento, um paradigma de ambivalência” (MONTENEGRO,

1995, p. 52 – grifos da autora); tal duplicidade se traduz no prenúncio de bom ou mau

agouro: sucesso ou fracasso de algo. Ao voar, a ave abre as asas; então, pode-se ver o

branco; caso o observador enxergue isso, entende como sinal de boa sorte e bons

resultados; caso contrário, o mau agouro. Woro, o protagonista do capítulo 2, fora

preso, porque não conseguira distinguir as cores do alma-beafada.

― Garanto-vos que o meu caso não é como os vossos. Foi um simples

equívoco... [...] Eu só disse que não conseguia distinguir as cores –

murmurou finalmente Woro, sem convicção.

― E não acreditaram em ti, com certeza... ― Claro que não! Queriam à força que eu dissesse tudo: a data, a

hora, o local, as pessoas que estavam presentes, tudo, tudo, tudo... mas

sobretudo as cores.

[...]

― Mas que cores é que não soubeste distinguir? – perguntou Kilin,

revelando uma exagerada curiosidade.

― Do alma-beafada.

[...]

― Tu vistes o pássaro levantar voo?

― Vi, com estes mesmos olhos.

― Mas não vistes as cores das penas do peito, foi assim? ― Juro que não vi. (SILA, 2002, pp. 352-354)

Woro foi acusado de deter informações de um ato contrário ao governo. Seus

algozes tomaram o que dizia como um código cifrado; por não decodificar a mensagem,

Woro foi preso, torturado e jazia ao lado dos demais presos com quem dividia a cela. A

presença do pássaro em meio a esse interrogatório soa desconexa, uma vez que a ave

fora uma presença física para o réu, enquanto, para os algozes, significara uma

mensagem cifrada.

63 A grafia da palavra é flutuante, podendo ser encontrada “beafada” ou “biafada”.

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A prisão de Woro funciona, no nível diegético, como forma dessa personagem

encontrar a mensagem que ainda estava para ser revelada. Woro não vira a cor, porque

ficara impressionado com algo maior:

Tinha uma mistida que não podia adiar. Foi por isso que ia muito apressado.

Tão apressado que quanto o Alma-beafada levantou voo, logo à saída da

tabanca, ficou muito assustado, até quis fugir para trás, pensando que era

outra coisa. Quando se recuperou do susto, o pássaro já ia muito alto, sempre a subir mais alto. Nunca tinha ouvido falar de uma coisa daquelas, por isso

parou a andar e ficou só a ver o Alma-beafada a subir, a subir, sempre na

direcção do sol. Já estava quase a sentir dores na garganta quando ouviu uma

voz fina, muito parecida com voz de mulher djidiu de kora64, que ia entrando

devagarinho no seu ouvido. Continuou sempre parado no mesmo sítio a ver o

Alma-beafada a subir e a escutar aquela voz, que ia aumentando de tamanho

até encher as suas orelhas. O que é que a voz dizia? Não gostava de repetir

isso porque sabia que muita gente não iria acreditar nas suas palavras. Mas

também é preciso reconhecer que de facto aquilo tudo era muito estranho. Ele

estava a perguntar a si mesmo para onde é que o pássaro ia daquela maneira.

E foi aí que ouviu a tal voz a responder-lhe. Disse que o Alma-beafada ia

assistir ao casamento do sol com a lua. Não acreditou nos seus ouvidos. Pensou que havia alguém ao lado dele, a querer gozar com ele. Virou-se para

todos os lados e não viu nada. Não havia ninguém perto dele. Mas a voz

continuava a falar e ele a ouvir tudo muito claro. Repetiu que o sol e a lua

iam casar-se e o Alma-beafada era a testemunha que tinha sido escolhida

como representante dos animais da Terra para assistir ao casamento e depois

trazer a grande notícia de volta. Que grande notícia era? Um momento só...

porque parece que há uma coisa importante que está a escapar. Sim, é

verdade... Depois do casamento do sol com a lua tinha algo maravilhoso que

iria acontecer na terra: o fim da escuridão. (SILA, 2002, pp. 354-355)

A importância do voo do alma-beafada é, na cultura guineense, a cor que pode

ser vista em seu peito; contudo, o romance enfatiza a voz e o destino da ave. Como no

primeiro capítulo, há o desejo de um novo tempo. Woro escuta uma voz, que lhe

segreda a razão da ida do pássaro: presenciar o casamento do sol com a lua.

A lua tem, de acordo com Chevalier, sua significação atrelada à do sol, podendo

ser o feminino, numa dualidade, em que o sol é o masculino; ou a mudança e a

64Djidiu é o mesmo que trovador, griot, cantor. São cronistas musicais da Guiné-Bissau, trovadores da

tradição étnica mandinga. São os djidius que animam festas populares, cantando para o dirigente e

pessoas influentes na sociedade, estão presentes em casamentos, funerais e batizados. Korá é um

instrumento musical que acompanha o djidiu, instrumento de 21 cordas e uma cabaça percussora, típico

de toda a região ocidental africana.

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flexibilidade em oposição à rigidez solar, por exemplo (cf. CHEVALIER, 1998, pp.

561-566).

Uma vez que a lua reflete a luz do sol, ela representa um “conhecimento

indireto, discursivo, progressivo e frio” (ibidem, p. 562 – grifos do autor), enquanto o

sol, doador da luz, significa “o conhecimento intuitivo, imediato” (ibidem, p. 837). Em

outras palavras, “o Sol e a Lua correspondem respectivamente ao espírito e à alma

(spiritus e anima), assim como suas sedes – o coração e o cérebro”65

(idem, ibidem –

grifos do autor).

No âmbito da astrologia, Chevalier declara que a lua é “o símbolo do sonho e do

inconsciente, bem como dos valores noturnos” (CHEVALIER, 1998, p. 565), em

oposição ao simbolismo solar e consciente. Ele conclui: “a lua ilumina o caminho [...]

da imaginação e da magia, enquanto o Sol [...] abre a estrada real da iluminação e da

objetividade” (ibidem, p. 566).

Diante de tais significações, a imagem do casamento do sol com a lua construída

no romance aponta, portanto, para um desejo de harmonia. Uma vez que o resultado do

casamento do sol e da lua expressaria o fim da escuridão, tal imagem traria os ideais de

Amílcar que envolviam a utopia da unidade e da fraternidade entre os povos africanos,

além do equilíbrio entre os valores africanos e a tecnologia ocidental. O romance de

Abdulai Sila sugere, nas entrelinhas, que seguir as orientações cabralinas trará luz aos

negócios escusos e inibirá os “ladrões na nossa terra” (SILA, 2002, p. 343).

Ao ser questionado sobre a inexistência da noite, Woro explicou aos colegas que

“depois do casamento do sol com a lua vai reinar paz e harmonia na terra. [...] A guerra

e o ódio vão acabar de vez, todos os Homens serão irmãos. Os animais, todos os

65 Por vezes, algumas culturas oferecem associações opostas a essas. O sol está para o feminino e a lua

para o masculino, dentre os vietnamitas, por exemplo; ou ainda o sol está para a razão, enquanto a lua,

para a emoção.

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animais, deixarão de se comer uns aos outros” (SILA, 2002, pp. 355-356). Ou seja, o

fim da escuridão não era sinônimo da ausência da imaginação, da magia e do

inconsciente, mas o término da falta de clareza para que todos conseguissem ver o que

se passava na terra, numa alusão direta à ausência de visão do povo guineense que

fechava os olhos aos desmandos e corrupção no país.

O fechamento do capítulo aponta, mais uma vez, para ações individuais, embora

estas deixem entrever alguns sonhos com fins coletivos. É uma visão utópica, que se

manifesta alegórica e miticamente pelo canto da ave:

A altas horas da noite, cada um deles dobrado no seu canto, todos

fingiam dormir. Uns até tinham os olhos fechados. Mas, de repente,

ergueram-se todos de uma vez e avançaram para o centro da cela. De mãos

dadas, sentaram-se no chão, formando um círculo. Foi então que chegou até eles aquela voz que no início era fina, parecida com voz de mulher de djidiu

de korá.

A voz cresceu devagarinho, devagarinho, até encher as orelhas de

todos eles. Quando deu a nova, estavam todos a ouvir com muita atenção: o

Alma-beafada ia voltar no dia seguinte ao amanhecer, altura em que ia

ocorrer o casamento do sol com a lua. Depois segredou a cada um, sem que o

companheiro do lado ouvisse, a mistida que tinha que safar antes da alvorada.

De mãos dadas, já feitos irmãos, abandonaram juntos a cela e a prisão.

Com a mistida em mente. (SILA, 2002, p. 357)

A mitológica imagem que encerra este capítulo prenuncia o resultado do

casamento do sol com a lua. No microcosmo que é a cela da prisão, os detentos

encontram-se irmanados, como predissera a mensagem ouvida por Woro. E partem,

cada um a “safar a sua mistida”.

A alegoria final do capítulo 2 complementa o término do capítulo 1. Os que

partem com uma missão no primeiro episódio são herdeiros dos ideais da guerra pela

independência. Os do segundo episódio são presos políticos. Ambos os grupos

demonstram descontentamentos com a administração do país no tempo da diegese. O

grupo formado pelos detentos experiencia a mitológica voz que não tem dono, mas pode

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ser associada aos ares e ao vento sentidos pelo Comandante e pelo jovem no capítulo 1.

O fato é que todos eles são chamados à ação pelos elementos da natureza, de modo que

a terra constitui a entidade simbólica que não deseja mais ver as injustiças e, por isso,

impele os homens, incitando neles o desejo de “safar a mistida”.

Vale lembrar que os elementos da natureza, nas cosmogonias africanas, têm

alma e, por vezes, manifestam as vontades dos antepassados. A partir do entendimento

animista da vida, de acordo com o qual todos os elementos da natureza possuem uma

anima, árvores, pássaros, vento, sol também manifestam sua vontade, ao impelirem os

homens à ação.

4.2.2- Os vivos e os mortos

As mistidas assumidas ao longo do romance não são explícitas – não dizem o

que realmente as personagens precisam fazer – , mas convidam todos para uma ação

urgente. No capítulo 9, “Marrio”66

, a mistida consiste em buscar “uma mensagem de

irmandade e de amizade” entre as pessoas. Madjudho, que retorna ao romance e

posteriormente se nomeia Artudho, embrenha-se na jornada de encontrar a mensagem;

para isso, entrega sua vida e recursos, sendo, ao fim da jornada e início do capítulo,

encontrado por uma moça no hospital, com quem ele compartilha sua história, após ser

diagnosticado portador de uma doença incurável.

66 “Marrio” é o neologismo acidentalmente criado por Artudho, no qual ele uniu as palavras “mar” e

“rio”.

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No funeral de Artudho, ocorre a cena que desencadeia o levante popular.

O seu corpo fragilizado e roído pela doença ia ficar definitivamente

enterrado... E ela não poderia nunca mais ver aquele rosto bonito, cheio de

esperança, carente de ternura...

Ela inclinou-se sobre a sepultura e... uma gota espessa das suas

amargas e revoltadas lágrimas caiu sobre o defunto...

Diz-se que foi então que tudo começou.

[...]

Os defuntos esquecidos daquele cemitério abandonado levantaram-se

todos um a um. [...]

Um defunto com ar de muito mais velho e cansado avançou até junto da mulher. [...] Pediu-lhe que o deixasse limpar-lhe as lágrimas. Enquanto as

secava disse em voz limpa e clara que lágrimas como aquela nunca mais

iriam cair no chão. [...] Tinham decidido levantar-se para corrigir a situação

de uma vez por todas.

[...]

Os defuntos tomaram um caminho diferente para a capital.

Marchavam ao ritmo de uma linda melodia que anunciava o matrimónio que

iria marcar o início de uma nova era. Uma era sem lágrimas que tanto

perturbavam o seu sossego. (SILA, 2002, pp. 447-448)

A imagem, como outras, se constrói de modo alegórico, promovendo a

transformação das lágrimas no mar. Além disso, retoma o casamento do sol com a lua,

que dará cabo da escuridão. Importa-nos, no entanto, interpretar as personagens que

lideram a caminhada para a capital: os mortos. É uma parada fantasmagórica.

Segundo Nsang Kabwasa, “a vida é uma corrente eterna que flui através dos

homens em gerações sucessivas” (KABWASA, 1982, p. 14); sendo assim, a morte

compõe a vida na cosmovisão ambun, bem como na de outros povos africanos. Dessa

forma, a ação dos mortos obtém significação específica, uma vez que eles são dotados

de sabedoria pela experiência que tiveram na vida visível e abarcam outro compêndio

de conhecimentos devido à vida invisível, iniciada com a morte. Sobre isso, Kabwasa

declara que “depois da morte tem início a vida invisível dos espíritos, dos ancestrais.

Nesse mundo invisível reside a força vital suprema” (idem, ibidem). Os mortos

possuem, portanto, mais força que os vivos, por isso seguem à frente do levante. Os

mortos alegorizam, dentre outras referências, aqueles que deram suas vidas para que o

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país conquistasse a independência; sendo assim, sua requisição tem mais peso do que a

reclamação dos vivos. Por isso mesmo, são eles os primeiros a perturbarem Nham-

Nham e Amambarka:

― Estão todos lá fora à espera...

― Quem?

― Os defuntos...

― Os quê? [...] ―Estão a pedir amor. [...]

― Amor? Para quê? [...]

― É isso mesmo, Nham-Nham. Querem amor e tolerância para os

vivos. [...]

― Então diz-lhes que amor é uma pura ilusão, uma fantasia que só os

deficientes mentais imaginam possuir. Do que os vivos precisam todos os

dias é de me render homenagem. Homenagem e fidelidade, é disso que todos,

vivos e mortos, precisam... (SILA, 2002, pp. 452-453)

Nham-Nham, totalmente alheio à realidade que o cerca, se mostra acastelado e

tão não humano quanto Amambarka. Este, por sua vez, se mostra apavorado, pois, com

a deposição do soberano, não poderá reinar um dia.

O pedido que, à primeira vista, soa simplório se configura como ação única para

superar os problemas denunciados ao longo do romance: corrupção, maldade,

hipocrisia, cinismo... Amor e tolerância para os vivos possibilitariam o advento de um

novo tempo. Além disso, esses dois elementos sintetizam as bases do pan-africanismo,

no qual Amílcar Cabral acreditava.

A chegada dos mortos à capital também é o fato impulsionador para a saída de

Nham-Nham de sua morada, ao saber que a população se unira aos primeiros invasores

e estava a roubar o lixo. Numa cena esdrúxula, Nham-Nham desaparece em busca do

seu lixo:

Pela primeira vez em vários anos, encarou a realidade do país que

dizia dele. [...] Em pouco tempo conseguiu enfiar a cabeça e o tronco inteiro

pela lixeira adentro, deixando o traseiro à mostra. [...]

Finalmente, exausto, desenterrou a cabeça. [...]

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Tonto, gritando ameaças de morte aos traidores sem cessar, não se

dava conta do que se passava à sua volta. Não viu a pá carregadora que

avançava na sua direção. [...] sua voz desapareceu quando o contentor foi

hermeticamente fechado. A partir daquele instante, só se ouviu o barulho

seco e inconfundível do lixo no seu interior a ser esmagado, triturado até se

transformar em pó.

Amambarka, que seguira todos os acontecimentos com uma estranha

alegria no rosto [...] deu voltas e mais voltas, manifestando toda alegria que o

desaparecimento de Nham-Nham lhe proporcionara. [...]

Quando o cilindro passou por cima de Amambarka, o grito que se

ouviu não causou surpresa [...] A incolor e viscosa massa em que se transformara o corpo de

Amambarka derretia como manteiga ao sol. (SILA, 2002, pp. 455-456)

O mergulho no lixo, “deixando o traseiro à mostra”, se configura, ao jeito de

Sila, como a explicitação irônica de que o rei está nu e não é capaz de governar. A

exposição ao ridículo também é provocadora do riso ácido, complementando a

mensagem de crítica contida na estrutura romanesca calcada no grotesco.

As mortes de Amambarka e de Nham-Nham são provocadas por instrumentos de

limpeza, que foram negados à população para manter as ruas limpas. Esses elementos

também podem ser lidos alegoricamente: as máquinas de limpeza acabam por eliminar

aquilo que realmente era o lixo do país – seus governantes.

O discurso de Abdulai Sila se diferencia em relação ao de Amílcar Cabral. Este

responsabilizou as elites nacionais por guiarem as massas à unidade, oferecer-lhes

educação e prover-lhes as necessidades. A ficção de Abdulai não convoca as elites; na

verdade, as silencia, colocando as massas no centro da narrativa e como principais

agentes do enunciado e do levante contra Nham-Nham e Amambarka.

Um dado curioso no final do romance é que a obra parece prenunciar a guerra

iniciada em 7 de junho de 1998 – ano subsequente à publicação de Mistida – que veio a

depor Nino Vieira. Este buscara ajuda junto ao governo do Senegal, cujo exército,

entretanto, destruiu monumentos, bibliotecas, escolas e praças, deixando a capital

bastante devastada, à semelhança de um monte de lixo.

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Abdulai encerra a Trilogia responsabilizando a população pela situação em que

se encontra o país. Aceitar a corrupção, consentir em ser ludibriado, permitir que a

memória seja apagada são os primeiros procedimentos a serem abandonados. Enfim,

Sila convida todos a cumprirem aquilo que lhes cabe: “safarem suas mistidas”, para que

o casamento do sol com a lua aconteça e raie um novo dia sobre a terra, anunciando um

novo tempo, em que não haja mais escuridão.

O grotesco funciona como uma forma de, alegoricamente, expressar o trágico.

Sila, em Mistida, exacerba o grotesco social guineense, pois quer mostrar a necessidade

do oposto. E este se encontra nos escritos de Amílcar Cabral que não deixam de apontar

para uma “teimosa esperança”.

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5- Uma trilogia trágica: considerações finais

N'na laara, na saara.

(Se nos deitarmos, estamos mortos.)

Ki-Zerbo67

A última tragédia, Eterna paixão e Mistida, ficcionalmente, focalizam contextos

históricos representativos da segunda metade do século XX na Guiné-Bissau, lançando

um olhar crítico sobre a memória e a história do país, questionando governantes e

apontando descompassos. A primeira referência a essas obras como formadoras de uma

trilogia foi feita por Teresa Montenegro, já no prefácio à primeira edição, no qual ela

declara que se tornou “tentador falar em trilogia com a aparição de Mistida”, uma vez

que “pela sua temática e o seu cenário temporal parecia vir completar os livros

anteriores” (SILA, 2002, p. 328). De fato, os três romances narram uma única história,

que, para nós, soa trágica: os rumos da Guiné-Bissau. A trajetória política do país, desde

o regime colonial até o final do século XX, se encontra ficcionalizado, por vezes,

metafórica ou metonimicamente, nas linhas escritas por Abdulai Sila.

O termo trilogia se adequa ao resultado obtido no somatório da obra; uma vez

que, modernamente, o vocábulo tornou-se uma forma genérica para referir textos

67 KI-ZERBO, 2006, p. 5.

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artísticos (sejam eles de literatura, cinema ou teatro) que apresentam uma ligação entre

si, exigindo, apenas, ser um conjunto formado por três unidades. No caso de Mistida

(Trilogia), temos assuntos recorrentes e um único protagonista: a Guiné-Bissau, de

modo que a narrativa condutora é um percurso de infortúnios, por vezes, metonimizados

na diegese, por meio das personagens e do narrador.

Diferentemente do que se poderia esperar diante da desventura, a escrita de Sila

intenta resistir às tragédias histórica e cotidiana, insistindo em manter uma voz ativa,

denunciadora das mazelas do país, contrária às guerras e à corrupção.

A frase de Joseph Ki-Zerbo que abre estas considerações finais é, em francês,

assim grafada: “Si nous restons passifs, nous serons anéantis”, ou seja, “se

permanecermos passivos, seremos destruídos”. Contendo a mesma ideia da versão

portuguesa (“Se nos deitarmos, estamos mortos”), esse enunciado contém aquilo que, ao

final desta tese, percebemos serem os motores da escrita de Abdulai Sila: a indignação e

a luta por mudanças.

Abdulai Sila se mostra na Trilogia um ficcionista que, de fato, realiza aquilo que

Moema Augel já anunciara acerca da função da literatura: ser, criticamente, um

“espelho da sociedade em que se desenvolve” (AUGEL, 1998, p. 19). Seu texto reflete,

ficcionalmente, acerca da sociedade guineense; denuncia os descompassos existentes ao

longo da história, entre os discursos e as práticas dos governantes, como também

comunica aos nacionais a necessidade de transformações.

Ao considerarmos as condições sob as quais a escrita na Guiné-Bissau ocorre –

um parco percentual de leitores na população local e a inexistência de livrarias no

território nacional –, compreendemos que escrever significa também manter-se de pé

(ao contrário de “se deitar”), a fim de que a esperança não morra totalmente.

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Ao fim deste estudo, vemos confirmada a hipótese levantada no início: as obras

de Abdulai Sila repensam, criticamente, por meio do trágico, a história do país e

funcionam como denúncias possíveis aos mandos e desmandos dos governos que

presidiram essa nação. Os recursos estéticos – ironia, intertextualidade, alegoria,

grotesco – servem para acentuar ou atenuar a tragicidade ficcionalizada.

A rememoração literária da história recente é uma forma de “tocar na ferida”,

enfatizando, assim, a dor e apontando o quão trágica é a realidade. A evocação do

período colonial, em A última tragédia, ativa a memória do guineense acerca das razões

em torno das quais povos de culturas diferentes uniram-se em função de um bem

comum. As agruras da vida de Ndani levam o leitor a compadecer-se dela e a desejar

que seu destino mude; por isso, as expressões e situações irônicas experienciadas por

ela agravam, ainda mais, seu estado trágico.

No que diz respeito ao pós-independência, Eterna paixão demonstra como se

encontra distante da sociedade ficcionalizada a proposta de suicídio da pequena

burguesia nacional, desenvolvida por Amílcar Cabral, de modo que a imagem dos

novos governantes do país se aproxima um pouco da dos antigos colonizadores. A

perseguição, a prisão e a tortura a que Daniel e o embaixador Kinsimah foram

submetidos expõem o modus operandi de um governo que se conduz pelo descompasso

entre teoria e prática. Tal evidência, embora seja omitido o nome do país, mas seja

sugerido que se trata da Guiné-Bissau, evoca, pela oposição, o discurso dos anos de luta

de libertação. Temos acentuado, por conseguinte, o sentido trágico no desenho ficcional

da Guiné-Bissau, na década de 1980, presente em Eterna paixão.

Mistida, por seu turno, comprova, ficcionalmente, a tragicidade da década de

1990 e as tensões existentes no país, pois denuncia as atitudes excêntricas do governo e

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o comportamento passivo da população que permite ser enganada e ser tratada como

lixo. As figuras agressivas, o tom grotesco e a violência perpassam pelo romance,

comprovando o estado caótico da nação. Tornam-se, assim, evidentes, na escrita, as

razões por que Abdulai Sila declarou ter seu país trilhado “pela via do tchumul-

tchamal” (SILA, 2008). Os casos de corrupção e a tentativa de oficialização de seu

frequente uso, por exemplo, agridem o leitor, pois ferem o bom senso. As denúncias das

carências no campo da saúde e previdência social, bem como a falência do sistema

educacional ampliam o sentido trágico na construção romanesca. Desse modo, torna-se

fácil concordar com o poeta guineense Tony Tcheka, quando diz em seus versos: “Já

não sei/ Quando amanhece / Esse amanhã” (TCHEKA, 1996, p. 93).

O trágico exacerbado, encenado romanescamente por Abdulai Sila, parece não

oferecer qualquer alternativa; entretanto, o autor insiste em não somente acentuar a

desgraça, mas seu discurso também auxilia a atenuar o infortúnio, pois mantém-se

esperançoso e metaforiza, literariamente, o que teorizou como crítica social, sugerindo

soluções, propostas e pesquisas, de modo a atenuar o trágico e apontar, mesmo que

apenas ficcionalmente, um caminho para o país, além de rememorar o discurso de

Amílcar Cabral.

Para Cabral, “a tragédia do pensamento africano tem a ver com a ausência de

ideologia” (LOPES, 2012, p. 192), como destacamos na epígrafe desta tese. Abdulai

Sila, um dos seguidores e entusiastas desse líder político, insere muito da ideologia do

pai da nacionalidade guineense em seu texto, a fim de, talvez, fornecer ideologias

capazes de minimizarem as tragédias africanas. Assim, na ficção de Abdulai, é nas

palavras de Amílcar Cabral que as saídas, soluções e esperanças poderão ser

encontradas.

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Em A última tragédia, o testamento do Régulo de Quinhamel contém muito da

ideologia veiculada por Amílcar Cabral no que diz respeito ao comportamento dos

governantes em relação ao povo: sua identificação com ele, o sentido representativo do

líder e a necessidade da prestação de contas. Além disso, a maneira irônica como Dona

Linda é tratada e descrita, por exemplo, como portuguesa crédula das boas intenções

católicas de seu país colabora para que a tragédia colonial ora seja, ironicamente,

acentuada, ora seja, ironicamente, atenuada.

Daniel, de Eterna paixão, é mais enfático em suas atitudes. Sua escolha é

radical: deixar a cidade e dirigir-se ao campo, fazendo de Woyowayan um laboratório,

no qual consegue provar que outro tipo de vida é possível, de modo que o velho e o

novo convivam em equilíbrio e que o bem comum esteja acima dos interesses

individuais. Vale destacar que a ideia posta em prática por Daniel fora, outrora,

teorizada, no artigo “Estratégias de desenvolvimento e alternativas tecnológicas: um

estudo de caso (Guiné-Bissau)”, da autoria de Abdulai Sila, publicado na revista

Soronda, em 1992. Nesse texto, Sila propunha que a agricultura familiar fosse o

embrião para o processo de industrialização, partindo, portanto, da tecnologia existente,

a fim de atender a necessidade econômica do país, conceito-base, na intervenção

ficcional de Daniel, em Woyowayan.

Em Mistida, o discurso de Amílcar Cabral é entrelaçado à memória do povo que

sofre, ficcionalmente, com a situação social do país. Esta memória, em diálogo com o

pensamento do líder guineense, impulsiona as personagens à ação. O imperativo de que

a mudança não era somente necessária, mas também possível configura-se como único

atenuante da tragicidade reinante, na ficcionalizada Guiné-Bissau da pós-independência

representada pelo romance de Sila.

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Ademais, perpassa pela Trilogia um sentimento: o amor, que não foi por nós

explorado, no entanto, ajuda a compreender as razões por que A última tragédia, Eterna

paixão e Mistida formam uma trilogia. O amor ganha novos sentidos em cada romance

e em cada momento da trajetória do país. No primeiro romance, o amor é um

sentimento que leva Ndani a momentos de felicidade e satisfação ao lado do Professor.

Em Eterna paixão, acompanhamos a mudança do amor, que, no início, é o sentimento

nutrido entre um homem (Daniel) e uma mulher (Ruth) e passa a ser o motor da vida,

transformando-se em amor por uma causa. Em Mistida, os mortos requerem amor. Esse

sentimento pela Pátria Amada (título do Hino Nacional Guineense), presentes nos dois

últimos romances, rememoram o “espírito de luta”, que teve como alicerce o amor pela

terra a fim de construir um país. Temos, assim, a síntese da Trilogia. Um estudo futuro

deixamos sugerido aqui: “Os sentidos do amor na obra de Abdulai Sila”.

Ao final desta tese, estamos certos de que não se esgotaram as possibilidades de

análise e de leitura da obra ficcional de Abdulai Sila; no entanto, esperamos que este

estudo tenha aberto caminhos e incitado reflexões que originarão novos escritos sobre o

autor guineense. Outra temática a ser investigada, futuramente, pode ser a onomástica

na Trilogia, de Sila. Também a interpretação do riso (sempre ácido) nos romances de

Abdulai proporcionaria um interessante trabalho acadêmico. Não descartamos também

os estudos comparativos, como o que nos foi proposto pelo professor Jorge Fernandes

da Silveira, em 2005, entre Mistida e Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago.

Além da investigação sobre a ficção de Abdulai Sila, a recente obra dramática

do autor também abre um novo leque para a crítica. A aproximação entre As orações de

Mansata e Macbeth, certamente, é um estudo que espera ser escrito. Uma análise das

tensões políticas ficcionalizadas e dramatizadas pela peça teatral também é um assunto a

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ser explorado, em especial, quando lidas à luz dos assassinatos de 2009, ocorridos na

Guiné-Bissau.

A produção desta tese nos permitiu não só conhecer mais profundamente a obra

do ficcionista Abdulai Sila, mas também os ensaios políticos do líder Amílcar Cabral. A

leitura de seus discursos conduziu este nosso texto, bem como evocou, em nossa

memória, a obra de outros escritores guineenses, em especial, o poeta Tony Tcheka,

pseudônimo de António Soares Lopes, autor de Noites de insónia na terra adormecida

(1996) e Guiné sabura que dói (2008), em cuja lírica ressoam os ideais do pai da

nacionalidade guineense, acrescidos de uma visão madura, atenta e sóbria do contexto

social de seu país.

Tal foi nosso fascínio pelo discurso do líder político guineense, que se tornou

nosso intento, para um estudo de Pós-Doutorado, retornar aos escritos de Amílcar

Cabral, a fim de investigarmos seu alcance e eco dentre os escritores guineenses das

últimas duas décadas do século XX e do primeiro decênio do século XXI, em particular

aqueles publicados pela coleção Kebur. O apaixonante e arrebatador discurso do pai da

nacionalidade guineense inspirou uma geração de poetas que merecem a atenção, a

leitura e a investigação científica.

Ao fim de nossa dissertação de mestrado, em 2005, concluímos ter aberto

caminhos para estudos sobre a literatura da Guiné-Bissau. Passados oito anos,

esperamos, mais uma vez, termos colaborado para a diminuição da lacuna existente na

crítica literária acerca da literatura guineense, em especial da produção romanesca de

Abdulai Sila.

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