ÉTICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

  • Upload
    zlma225

  • View
    223

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    1/28

    FONTE: http://www4.uninove.br/grupec/OS_CINCO_SABERES.htm

    OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO( Pontos de encontro entre as obras de Edgar Morin,

    Fernando Pessoa e outros escritores )

    Humberto Mariotti

    A vida breve, a alma vasta .(Fernando Pessoa)

    O esforo para a reforma do modelo de pensamento quehoje predomina em nossa cultura tem vrias vertentes.Muitos so os seus proponentes e diversificadas as suaspropostas.

    A obra de Edgar Morin est entre os pontos altos desseempreendimento. Em especial, destaca-se a sua maisimportante concepo epistemolgica, o pensamentocomplexo. Nele no predomina o raciocnio fragmentador (omodelo mental binrio do ou/ou: ou amigo ou inimigo; oubem ou mal; ou certo ou errado; ou ocidente ou oriente;etc.). Tampouco prevalece o utopismo da primazia do todo o sistemismo reducionista.

    Uma viso de mundo abrangente deve nascer dacomplementaridade, do entrelaamento do abrao, enfim entre esses dois modelos mentais. Assim Morin denominao pensamento complexo: o pensamento do abrao. Eis porque proponho, neste texto, falar sobre o que chamo de

    cinco saberes do pensamento complexo: saber ver, saberesperar, saber conversar, saber amar e saber abraar.Todos esto inter-relacionados, abraados, e por issodependem uns dos outros para ser vividos em suaplenitude. Vejamos como.

    Saber VerJean-Paul Sartre, entre outros, percebeu que nossa existncia confirmada pelo olhar do outro. Mas no necessrio ser um filsofo para chegar a essa

    concluso. Peter Senge1

    relata que entre certas tribos do Natal, na frica doSul, o priincipal cumprimento a expressoSawu bona , que quer dizer "eu

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    2/28

    vejo voc". As pessoas assim saudasdas respondem dizendoSikhona , quesignifica "eu estou aqui". Ou seja: comeamos a existir quando o outro nosv.

    E mais: existe, entre tribos africanas que vivem abaixo do Saara, a ticaubuntu , que vem da tradioUmuntu ngumuntu nagabantu , que em zulusignifica Uma pessoa se torna uma pessoa por causa das outras. Para esses povos, quando um indivduo passa por outro e no o cumprimenta, comose houvesse se recusado a v-lo, o que significa negar-lhe a existncia.

    Saber ver antes de mais nada saber ver os nossos semelhantes. De fato, alocalizao anatmica dos nossos olhos mostra que eles esto orientados para ver o mundo isto , para ver o outro. Todos sabemos que h certas partes de nossa anatomia que s podemos enxergar em ngulos muito precrios, e outras que no podemos ver de modo algum.

    Convm notar que a unidimensionalizao da viso que nada mais doque o resultado da apropriao do olhar pela cultura dominante um dosfenmenos mais alienantes do nosso cotidiano. A iconizao da sociedade,isto , o fornecimento de um mnimo de palavras escritas e um mximo deimagens padronizadas, conduz a uma diminuio do contato com a razo o logos . Disso resulta a restrio ao acesso das pessoas ao imaginrio, o queas leva a ver o mundo de modo concreto e literal.

    Essa uma das principais causas da reduo da capacidade de lidar com a palavra e, por conseguinte, de conversar. uma forma de dificultar aformao de consensos derivados da experincia e perpetuar aunidimensionalizao. Trata-se de reprimir o imaginrio e a diversidade emtodas as suas dimenses: na linguagem escrita e falada, na expressocorporal, na produo de imagens e smbolos, enfim, em todos os meios pelos quais o indivduo pode se opor massificao.

    As imagens e os smbolos veiculados pela linguagem tendem a quebrar alinearidade do nosso pensamento. Nesse sentido, os mitos soindispensveis facilitao das conversaes e, em conseqncia, formao de consensos. A experincia mostra que ao compartilhar histrias,lendas e narrativas, as pessoas vem abrandado o seu nimo competitivo elitigante.

    No entanto, como alerta o historiador e mitlogo Joseph Campbell, ossmbolos tm, ao longo da histria, levado povos inteiros a comportamentosviolentos e destrutivos. Para Campbell, muitos desses comportamentosresultam da interpretao literal do contedo de mitos hericos. As

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    3/28

    metforas so tomadas como reprodues exatas do real, e desse modoreaplicadas prtica.

    claro que essa espciede compreenso pressupe mentes como as nossas,condicionadas por uma cultura cujos mitos bsicos configuram uma interminvelcrnica de guerras, pilhagens, vinganas e punies. dessa maneira que osfundamentalismos reforam os condicionamentos, que por sua vez reforam osfundamentalismos e assim por diante.

    A primitivizao de nossas mentes pela supresso da palavra (em especial a palavra escrita) traduz-se na prtica pelo estreitamento de nossa percepode mundo. Dessa maneira, ela passa a depender de quase que um nicosentido a viso. A audio vem em segundo lugar, mas com menosdestaque. Essa circunstncia nos torna cada vez menos capazes de perceber

    a importncia do conjunto.

    Perdemos a abrangncia de avaliao proporcionada pela totalidade dossentidos, e dessa forma nos afastamos da perspectiva sistmica de estar nomundo. Em conseqncia, as percepes veiculadas pelos sentidos que tmsido reprimidos e anestesiados so desvalorizadas, o que favorece aunidimensionalizao e a manipulao.

    indispensvel que evitemos assumir uma viso conspiratria desse

    fenmeno, para no cairmos mais uma vez no eterno equvoco (ouconvenincia) de atribuir as causas de nossas dificuldades s a fatoresexternos, dos quais nos julgamos vtimas indefesas. Convm que estejamosalertas para essas circunstncias, pois, ao que parece, muitos de ns estoconvencidos de que a alienao das massas, com todas as suasconseqncias, resulta da atuao de umestablishment onipotente, ao qual intil resistir. com essa espcie de desculpa que costumamos fugir responsabilidade de ter de lidar com o real.

    Convm no esquecer que tudo isso vem acontecendo com a nossaanuncia, consciente ou no. Essa postura de vtimas, alis, expressa-se emnossa tendncia a dar pouco valor s iniciativas individuais para atransformao social: se sou uma vtima, e ainda mais estando isolado,como poderei mudar alguma coisa? Muitos parecem no entender que parasuperar essa circunstncia fundamental o desenvolvimento do fabulrio,que aglutina as pessoas. Parecem no compreender tambm que para isso a palavra, as imagens, os sons e as sensaes tcteis e olfativas precisamcaminhar juntos, como meios de percepo e integrao de nossaexperincia no mundo.

    O que aconteceria se de repente perdssemos a viso, ficando dependentes

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    4/28

    dos demais sentidos? Essa foi a idia que levou o escritor portugus JosSaramago a produzir o romance Ensaio Sobre a Cegueira . A histria se passa em uma grande cidade, onde as pessoas comeam a ficar sbita einexplicavelmente cegas. Pior ainda, o problema contagioso. Oalastramento do surto marca o incio de uma srie de terrveisacontecimentos, centrados num s fato: as desventuras de uma sociedadeque, acostumada unidimensionalidade, a um modo quase nico de perceber o mundo, de sbito levada a depender por inteiro dos demaissentidos, que sempre havia mantido em plano secundrio.

    Continuemos com o romance de Saramago. Os casos de cegueira vo semultiplicando. A primeira providncia tomada previsvel: os cegos soconfinados, com guardas armados a vigi-los a clssica atitudeconcentracionria, qual nossa cultura recorre sempre que tem de lidar com pessoas que de um modo ou de outro se revelam diferentes. A histria prossegue, e logo se estabelecem entre os cegos confinados aes queoscilam entre a competio e a cooperao.Seguem-se cenas em que essas circunstncias segeneralizam, e a disputa pela comida leva a conseqnciasdegradantes, que se alastram para fora do ambiente doconfinamento.

    O livro uma metfora das desventuras de uma sociedadecujo principal modo de perceber o mundo foi suspenso. Aisso se adiciona o fato de que esse modo de percepo, porsua prpria natureza, impele as pessoas a buscarreferenciais externos, com o resultante apagamentoprogressivo da vida interior. No romance, ao se veremprivadas desses referenciais (impedidas, por exemplo, deconsultar o Grande Guru que a televiso), elas se doconta de seu vazio interno e partem para a busca de umasolidariedade perdida, o que feito de modo canhestro eineficaz. No se pode, alis, esperar outra coisa deindivduos mais preparados para a competio do que paraa parceria.

    O romance de Saramago pode ser lida como umquestionamento ao pensamento nico, apropriado pelopoder de uma cultura em que o homem perdeu o sentido daglobalidade e o de si mesmo. Nesse contexto, a proposta do

    pensamento complexo corresponde a uma retomada dapluri-sensorialidade. Esta pode ser considerada um

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    5/28

    equivalente orgnico da transdisciplinaridade uma formade ver e entender o mundo, traduzida em um saber quequestiona a cegueira do modelo mental dominante.

    Esse detalhe pode no ser claro para muitos de ns, mas noescapou sensibilidade de um grande poeta. Falo de FernandoPessoa, em cujos versos se l:

    E penso com os olhos e com os ouvidosE com as mos e com os psE com o nariz e com a boca. 2 O que nos conduz de volta ao marco inicial: saber ver saber ver o outro, nico ponto de partida humano paracomear a enxergar o mundo. Ou, como diz Pessoa,

    O essencial saber ver,Saber ver sem estar a pensar,Saber ver quando se v,

    E nem pensar quando se v

    Nem ver quando se pensa.

    Mas isso (tristes de ns, que trazemos a alma vestida!),Isso exige um estudo profundo,Uma aprendizagem de desaprender. 3

    A expresso trazemos a alma vestida, pode ser vista comouma aluso ao fato de nossa cultura estar atrelada ao modo

    de pensar binrio, ou pensamento linear, o qual estreita eobscurece nossos horizontes mentais, e assim nos impedede perceber muitas das nuanas da realidade. Trata-se deum padro que, entre muitas outras coisas, privilegia oconhecimento tecnocientfico e deixa em segundo plano avertente humanstica do conhecer.

    J versos como isso exige um estudo profundo/umaaprendizagem de desaprender nos conduzem ao que Morinviria reconhecer como a necessidade da reforma do sistemade pensamento acima mencionado, o que gerou sua atitude

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    6/28

    epistemolgica fundamental: o pensamento complexo. indispensvel sustenta o pensador francs aprender aaprender.

    Tudo isso visto, convm lembrar que os poemas aquicitados foram escritos no comeo do sculo 20 (Pessoamorreu em 1935). Ou seja, bem antes de se comear a falarde modo constante em complexidade, reforma dopensamento, aprender a aprender e temas semelhantes.

    O prprio Morin v em Pascal a inspirao inicial de seupensamento complexo. Percebe-se, ento, como a vastacultura literria e filosfica de Morin qual ele nuncadeixou de recorrer inspirou muitas de suas descobertasmais importantes. Assim, sua conhecida admirao pelospoetas e ficcionistas s faz enaltecer o seu trabalho.

    Falemos mais um pouco sobre Fernando Pessoa. Os famososheternimos, por exemplo (Ricardo Reis, lvaro de Campos,Alberto Caeiro e outros menores), correspondem s partesque compem o todo de sua obra; e esse todo retroagesobre as partes realimentando-as. Eis aqui um dosprincpios do pensamento complexo: as partes integram otodo mas no perdem suas caractersticas individuais.

    Os heternimos so partes, mas a obra pessoana no perdea unidade por causa da diversidade deles. Trata-se de umaevidncia marcante da realidade do complexo que, comoobserva Morin, vem do latim complexus aquilo que tecido junto. Como na metfora moriniana: os fioscompem o tapete; este s tapete por causa dos fios; maso que o constitui a relao entre os fios de sua contexturae o conjunto da tapearia.

    Em poucas obras literrias o fenmeno da unitas multiplex (unidade na multiplicidade) surge com tanto vigor como nostrabalhos de Pessoa.Em meu livro As Paixes do Ego4 do qual deriva estetrabalho , menciono ainda outra das mltiplas faces da

    contribuio pessoana. Alm do que se viu acima, Pessoafigura entre os primeiros criadores literrios a ter a intuio

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    7/28

    da fenomenologia, sem dvida uma das vertentes dopensamento complexo.

    Sabe-se que a poesia de Alberto Caeiro inclui a investigao

    de se a linguagem humana ou no capaz de representar oreal. Caeiro concluiu que ela no tem essa capacidade, ou atem de forma limitada. Assim, diante da realidade o poetaopta por descrev-la como ela se apresenta; busca maismostrar do que explicar a experincia do ser humano emsua interao com o mundo.

    A clebre frase voltar s coisas mesmas, de EdmundHusserl introdutor da fenomenologia e da filosofiamoderna na Alemanha , significa que o esforofenomenolgico implica suspender os preconceitos, as idiasprvias, as teorias e, mediante essa disposio, observar osfenmenos tal como eles se apresentam nossa experinciaimediata.

    O nimo transcendentalista de Husserl acabou por distanciara fenomenologia da vivncia do cotidiano. Pessoa expressaem termos poticos o que Husserl ao menos nas etapasiniciais do mtodo fenomenolgico diz em linguagemfilosfica. Seu trabalho revela como a poesia, na qualidadede meio de compreenso do mundo, tem tanto a contribuirquanto a filosofia no fosse ele, alm de poeta, tambmum filsofo.

    Por meio dos versos de Caeiro, a lrica pessoana entrelaaas conscincias lgica e potica. Ela , pois, uma forma deexercer a atitude fenomenolgica; e com isso ajuda-nos, emuito, a lidar com a complexidade. Alguns exemplos:

    No acredito em Deus porque nunca o vi.Se ele quisesse que eu acreditasse nele,Sem dvida que viria falar comigoE entraria pela minha porta dentroDizendo-me, Aqui estou! 5 (...)

    Mas se Deus as flores e as rvoresE os montes e o sol e o luar,

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    8/28

    Ento acredito nele,Ento acredito nele a toda hora,

    E a minha vida toda uma orao e uma missa,

    E uma comunho com os olhos e pelos ouvidos.Mas se Deus as rvores e as flores,E os montes e o luar e o sol,Para que lhe chamo eu Deus?Chamo-lhe flores e rvores e montes e sol e luar;Porque, se ele se fez, para eu o ver,Sol e lua e flores e rvores e montes,Se ele me aparece como sendo rvores e montesE lua e sol e flores, que ele quer que eu o conheaComo rvores e montes e flores e luar e sol. 6

    (...)Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:As coisas no tm significao, tm existncia.As coisas so o nico sentido oculto das coisas. 7 (...)

    A espantosa realidade das coisas a minha descoberta de todos os dias.Cada coisa o que ,E difcil explicar a algum quanto isso me alegra,E quanto isso me basta. 8 (...)O Universo no uma idia minha.A minha idia de Universo que uma idia minha.

    A noite no anoitece pelos meus olhos,A minha idia da noite que anoitece por meus olhos.Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentosA noite anoitece concretamenteE o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso. 9

    Saber EsperarPara ns, no h nada mais difcil do que esperar. A exemplo do que fezcom tudo mais, nossa cultura privilegiou a dimenso quantitativa do tempo.

    Deu primazia ao tempo medido em relao ao vivido. Como atemporalidade medida , em nossa concepo, igual a dinheiro, e como o

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    9/28

    dinheiro com muita freqncia se relaciona a imediatismo, ansiedade etemor, saber esperar reduziu-se a um sinnimo de perder tempo, isto , perder dinheiro e sentir medo.

    Transformamos o tempo em uma coisa, uma mercadoria, como mostrouMarx em seus estudos sobre o tema. Na mesma linha, a apropriao dotempo (e a mecanizao da gestualidade) das pessoas foi tambmconsagrado como o ponto central do taylorismo a gerncia cientficadas linhas de produo industrial, que Charles Chaplin satirizou emTemposModernos .

    Qualquer tentativa de fazer uma ontologia do tempo suscita desde logo aquesto de se ele linear ou circular. importante registrar que nas trsgrandes tradies patriarcais de nossa poca o cristianismo, o judasmo eo islamismo o tempo linear. Na Bblia, com exceo do Eclesiastes, assim que ele considerado. Segundo essas tradies, marchamos sobreessa reta com princpio meio e fim determinados, sempre em direo a umalvo final a morte que pode representar a salvao ou a danaoeternas. No existe possibilidade de segunda chance.

    essa linearidade que torna possvel as presses, cobranas e advertnciasque instilam em ns o pavor em relao a esse marco do qual no se volta.Tal circunstncia contribui, evidente, para que encaremos a morte como

    um ponto final que nos apavora e no como um dado da vida. Tendetambm a fazer com que desvalorizemos a passagem, a trajetria, e tudoaquilo que com ela se relaciona.

    Trata-se de uma unidirecionalidade que torna possvel as ameaas partidasde deuses masculinos, severos, punitivos e fiscalizadores. Possibilitou,ainda, a emergncia de filosofias como o determinismo histrico de Hegel,apropriado por Marx e transformado em uma espcie de via dolorosa, a ser percorrida na direo da beatitude final do comunismo salvador.

    Alm de levar desvalorizao do cotidiano, a retilineidade princpio-meio-fim dificulta muito a prtica da tolerncia, da serenidade e da compaixo.Por outro lado, sempre estimulou a competitividade. Porm, mesmo como aceno a penas terrveis e com a impossibilidade de retorno, no seconseguiu evitar as infindveis tentativas de burlar as punies mediantetoda sorte de estratagemas, muitos deles antiticos.

    Tudo isso levou ao desaprendizado da espera. A concepo linear do tempotornou possvel, como j foi dito, a sua apropriao e transformao emmercadoria ponto central da filosofia das linhas de montagem industrial e

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    10/28

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    11/28

    a felicidade que se busca com tanta sofreguido apenas a da acumulaomaterial. Essa a idia de felicidade que herdamos do Iluminismo, e quecontinua em vigor at hoje. Ela pressupe que as sociedades caminharosempre rumo perfeio, que o evoluir da histria est predeterminado por leis fixas e que o indivduo, na qualidade de instrumento dessedeterminismo, conduzido por ele.

    Trata-se, pois, da idia de felicidade projetada sobre uma linha de tempo,sujeita quantificao e que suscita, no outro plo, a noo de escassez.Esta, por sua vez, produziu a convico de que prolongar o processo vital igual a prolongar a felicidade. Trata-se de um ponto de vista em princpiorazovel, mas que em certos casos, alm de desvalorizar o momento presente, inspira aes de postergao artificial da vida em situaes em queela j no compatvel com a dignidade humana.

    Fala-se pouqussimo na felicidade que surge no aqui-e-agora do convviodas pessoas a felicidade solidria. compreensvel: nosso cotidianocompetitivo pode ser tudo menos feliz, embora seja nele, e no num reinotranscendental, que temos de viver. Nossa mente tem pouca capacidade deentender e valorizar a felicidade que emerge da convivncia. Um dosmotivos para isso que esta no facilmente aproprivel e transformvelem moeda de troca, como se faz com o tempo.

    Os obstculos a essa compreenso so muitos e esto muito enraizados noscnones de nossa cultura, segundo os quais preciso competir, batalhar,ganhar muito dinheiro para poder comprar a felicidade. Na prtica, as pessoas no raro acabam concluindo que to difcil ser feliz por essesmeios que imaginam que o seja por todos os demais. E assim, no fim dascontas, acabamos nos considerando incapazes de ser felizes seja de quemaneira for.

    A felicidade no est no trmino de uma linha de tempo, na qual o comeo e

    o meio tambm esto predeterminados. A prpria idia de conquistasubentende-a difcil e fugidia. Nessa tica, ela considerada uma forma devantagem e continuamos a persegui-la por toda parte menos onde seencontra: no espao de convivncia com o outro humanamente legitimado, eno respeito ao tempo de que ela precisa para emergir.

    Saber esperar no uma condio que deriva de um conjunto de regras, deum sistema filosfico ou de uma disciplina pragmtica. Tampouco umacondio transcendente, qual devemos nos curvar movidos pela f. Trata-se de uma dimenso importante da condio humana, e neg-la negar a prpria essncia do viver.

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    12/28

    No por acaso que saber esperar uma dimenso to feminina. Na mulher,essa caracterstica no uma virtude, uma proposta metafsica ou um valor moral. Pode at evoluir para tudo isso, sem dvida, mas no princpio, na base, saber esperar uma questo biolgica. A mulher um ser lunar, quesabe que precisa aguardar pelos grandes ciclos de seu universo orgnico: omenstrual, o gravdico, o puerperal, o do aleitamento. Ela sabe que no hcomo tentar aceler-los, nem competir com eles sem que os resultadossejam desastrosos. E essa sabedoria do viver que a capacita para asabedoria do conviver.

    Aprender com a mulher os mistrios da temperana e da serenidade algoque ns, os homens, precisaramos voltar a fazer.10 Digo voltar, porque jsabemos que era assim nas ancestrais culturas matrsticas. Se existe uma biologia do amor, existe tambm uma biologia da espera, e saber exerc-la o caminho natural para aprendermos a lidar com a ansiedade e oimediatismo. No estou dizendo que a mulher superior ao homem ou vice-versa, mas convm lembrar que, em nossa cultura, um dos grandesobstculos compreenso e aceitao da biologia da espera a tradicionaldesvalorizao do feminino.11

    H muito que lanamos sobre as mulheres a culpa pelas dificuldades efrustraes que nosso imediatismo nos faz passar. Projetamos nelas os preconceitos oriundos de nossa insistncia em negar a no-linearidade e a

    complexidade inerentes ao mundo e ao tempo. Por isso, dizemos que elasso imprevisveis, inconstantes, obscuras, difceis de lidar. Ou seja, dizemosque a mulher encarna todos os aspectos da vida que nossa menteracionalizadora no consegue pr sob controle, esquecidos de que, ao nosexpressarmos assim, reafirmamos que o feminino a prpria vida, da qualtanto nos queixamos, e qual, ao mesmo tempo, tanto nos apegamos.

    Saber ConversarO que para ns claro, pode ser incompreensvel para o outro. Como

    observam Joseph OConnor e Ian McDermott, em princpio tendemos a julgar a ns mesmos pelas nossas intenes e no pelo resultado de nossosatos.

    Esse pressuposto em muitos casos nos leva a ser auto-tolerantes: se algo derrado, ou se o resultado de nossas atitudes prejudica algum, sempre poderemos dizer que no era essa a nossa inteno. Por outro lado,costumamos julgar o outro no pelas suas intenes (que nem sempre podemos adivinhar), mas por seu comportamento. Se algo no d certo, ouse algum prejudicado, torna-se bem mais difcil sermos tolerantes comele.

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    13/28

    Mas ocorre que o tipo de alteridade ao qual estamos culturalmentedeterminados gerador de mil cautelas, medos e desconfianas no nos pe vontade para conversar de modo aberto sobre as nossas intenes. Aocontrrio, muitas vezes tendemos a escond-las ao mximo. Se avalio ooutro apenas pelo seu comportamento (e no pelo seu comportamentomaisas suas intenes), claro que ele me julgar do mesmo modo.

    Esse mais um dos resultados da limitao de nossas percepes eentendimentos pelo raciocnio de causalidade simples, que refora adesconfiana e a constante busca de provas, aumenta o nvel decobranas e dificulta a tolerncia. Somos inclinados a reagir acomportamentos e no a interagir com intenes e condutas.

    Modificar o nosso modelo de conversao constitui, talvez, a melhor formade lidar com essa dificuldade. Sabemos que nosso conversar determinado por um alto nvel de institucionalizao. Em nossa cultura, no so muitofreqentes as oportunidades de falar com liberdade e sinceridade. Essasituao poder mudar de modo significativo, se e quando conseguirmostransformar nossas conversas em trocas de intenes, em vez de continuar afazer delas meios de ocult-las. preciso construir uma tica do dialogar,cujo ponto de partida pode ser a aprendizagem de como receber feedback (em especial o negativo) e mudar em funo disso.

    claro que essa atitude no significa que devemos fazer tudo o que o outroquer. Nosso principal empenho ser faz-lo dar-se conta de que estamos procurando entender que seu comportamento provavelmente reflete as suasintenes, e que esperamos que ele faa o mesmo a nosso respeito.Precisamos estar bem conscientes, porm, de que aalteridade que baliza a nossa cultura potencializa asposies reativas e dificulta as criativas, o que no querdizer que devamos renunciar a estas. A chave para

    compreender esse sistema tentar chegar s intenes dooutro.

    Tudo bem examinado, deduz-se que saber conversar algoque s se aprende quando se livre. Entre as muitasmaneiras de definir o que significa ser livre chama ateno ade Viktor Frankl, que definiu liberdade como o intervaloentre o estmulo e a resposta, isto , o espao entre asquestes que o mundo nos prope e as respostas que lhedamos. Frankl sabia o que dizia. As bases de seupensamento que deram origem a uma corrente de

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    14/28

    psicoterapia existencial, a logoterapia comearam nadcada de 20, mas foram consolidadas em sua experinciacomo prisioneiro de campos de concentrao nazistas.

    O psicoterapeuta Rollo May define liberdade do mesmomodo: como a possibilidade que uma pessoa tem deestabelecer uma pausa entre o estmulo e a resposta edepois orientar-se para uma determinada atitude, escolhidaentre vrias outras. esse intervalo, esse pequenointerstcio, que convida as pessoas a serem livres. E deleque temos tanto medo: sempre que chamados a visit-lo,refugiamo-nos no j visto, no conhecido. Essa a principalforma de manter conversaes que costumam louvar as

    virtudes do novo e queixar-se da repetitividade da vida, masque so, elas prprias, repetitivas em sua insistncia emopor-se a novas maneiras de ver o mundo.

    Quando digo que precisamos reaprender a conversar, estoume referindo a essa circunstncia. Reaprender a conversarsignifica aprender de novo a utilizar nossos espaos decriao. Mas, como sabemos, o medo de ser livres faz comque fujamos deles. Essa fuga se faz com mais freqnciapor meio de nosso hbito de fazer perguntas padronizadas,as quais por sua vez suscitam respostas estereotipadas. Ouseja, dizemos o que os outros querem ouvir para que elesnos respondam o que queremos ouvir e assim nada seaprende e nada se ensina.

    Se cada um de ns percebe o mundo segundo a sua prpriaestrutura, saber conversar significa antes de mais nadasaber perguntar. Expliquemos. Em nossa cultura, muitasvezes o dilogo se torna uma competio, na qual sedecidir quem fala melhor, quem argumenta com maisbrilhantismo e assim por diante. Em geral, julgamos queuma questo bem formulada aquela que pe o outro emdificuldades. Sentimo-nos vitoriosos quando conseguimosembaraar o nosso interlocutor. Propor-lhe perguntasdifceis, acu-lo, significa para ns um triunfo. Com muitafreqncia, usamos as perguntas no para conversar, paraaprender algo, mas para vencer um debate.

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    15/28

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    16/28

    Se o que define uma cultura o contedo das redes de conversao que a percorrem e compem, saber conversar saber construir um universocultural. Conversar aprender, mesmo quando por um motivo ou por outronosso interlocutor no capaz de nos dar a resposta que consideramoscerta. Dizer ao outro o que ele quer ouvir e faz-lo retrucar na mesmamedida no conversar, monologar.

    A conversao constitui uma oportunidade para que as emoes de cadainterlocutor se reorganizem. Como diz Maturana, ela promove oentrelaamento do emocional com o racional. Da a importncia dos pequenos grupos. Eles representam a ampliao dos espaos de liberdadeindividual e, em conseqncia, das possibilidades de aprender a conversar.

    A diversidade de opinies que caracteriza os grupos assim formados fazcom que esses espaos de criao jamais se fechem nem sejam preenchidos.Eles precisam ficar sempre abertos, porque constituem uma regio de trocae enriquecimento. Educar-se adquirir a capacidade de identificar e ampliar ainda mais os espaos de conversao e, sobretudo, mant-los sempre permeveis.

    A linguagem no acontece nos interlocutores e sim no entre, no espaocomum criado entre eles e por eles. Ocorre no intervalo de liberdade h

    pouco mencionado. Alm disso, as modificaes estruturais produzidas pelalinguagem no se limitam ao campo verbal nem ao momento em queocorrem as conversas.

    J sabemos, com Humberto Maturana, que a linguagem promovemodificaes estruturais porque coordena (organiza, sintetiza) os nossoscomportamentos e, ao relat-los, contribui para que eles se modifiquem. Asinteraes (os encontros) deflagram mudanas nos sistemas vivos: so ascoordenaes. A linguagem coordena e relata essas coordenaes. Ela ,

    portanto, a coordenao das coordenaes.Muitas das dimenses de nossas interaes soinconscientes, mas nem por isso deixam de participardessas relaes. Se certo que boa parte da nossa conduta determinada pelo inconsciente, isso no quer dizer quenos devamos entregar por completo s prescries dessaparte oculta de nossa psique.

    Podemos lidar com elas de vrios modos. O principalconsiste em fazer com que os contedos inconscientes

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    17/28

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    18/28

    considerao, que uma espcie de intermedirio entre os anteriores. Ofilsofo mostra como vital para os homens viver em sociedade. Essacondio se manifesta pela necessidade que os seres humanos tm deserem vistos uns pelos outros. Vem da a idia de que o outro umcomplemento indispensvel do eu, o que coloca a sociabilidade noprprio cerne da situao humana.

    Humberto Maturana e Gerda Verden-Zller sustentam que somos seresdependentes do amor. Vivemos, porm, em uma cultura que se caracteriza pela agresso e pelas guerras uma cultura de desamor. A questo queesses autores propem a seguinte: os seres humanos so animaisgeneticamente agressivos e s vezes amorosos, ou so animais amorososque s vezes se tornam agressivos?

    H outra maneira de formular a pergunta: os seres humanos so animaisgeneticamente patriarcais, que s vezes agem de modo matrstico, ou soanimais geneticamente matrsticos e culturalmente tornados patriarcais? Serecorrermos teoria do crebro trinico, de Paul Mac Lean, a questo poder ser enunciada ainda de outra forma: somos animais guiados pelasdeterminaes do crebro reptiliano (agressivo), que s vezes agem segundoas determinantes do crebro mamfero (afetivo), ou o contrrio?

    Pouco importa a forma de indagar. Sabemos que Maturana afirma que nossa

    agressividade (ou ainda ) de origem cultural. Sustenta, alm disso, quesomos seres que vivem na linguagem. Se esta desaparecesse, tambmdesapareceramos como humanos. Essas noes permitem entender de outraforma o que foi dito h pouco. Se as crianas j nascem sabendo amar (isto, se so biologicamente amorosas e s vezes agressivas), as conversaesda cultura em que vivem que fazem com que elas desaprendam o amor.Em conseqncia, passam a comportar-se de forma agressiva, mesmo sendogeneticamente amorosas.

    Como se v, o raciocnio de Maturana biolgico, e v o amor no comouma dimenso excepcional ou virtude transcendente, mas como umfenmeno da natureza. Nesse sentido, a vida amorosa uma forma deexercermos essa condio. o que ele denomina de biologia do amor.

    Mas esse reducionismo inicial abre caminho para muitas reampliaes.Amar o outro significa reconhec-lo e legitim-lo, sem que ele precise denenhum modo justificar a sua humanidade. Todavia, vivemos em umacultura em que prevalecem o no-reconhecimento e a excluso. Nesse caso,o outro no aceito como humanoa priori : reservamos esse privilgio parans prprios e, a partir da, pretendemos impor-lhe os nossos valores. Isso

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    19/28

    significa que passamos a exigir do outro mais e mais provas de suahumanidade e, por mais que ele as fornea, estaremos sempre prontos adesqualific-las.

    Cabem aqui mais algumas reflexes. Se estamos h tanto tempo orientados para o desamor e para a agressividade, ser que ainda h possibilidade demudana? Ou, de forma ainda mais pessimista, ser que esse ponto j nofoi ultrapassado e agora malhamos em ferro frio?

    muito difcil responder, pois qualquer resposta s poderia ser dada nostermos dos nossos condicionamentos. At que consigamos reduzir ao menosum pouco essa limitao, quaisquer tentativas nesse sentido levaro aconcluses equivocadas. De modo que nesse caso somos levados a pensar em termos excludentes: ou nos resignamos ao que se vem repetindo hsculos que o homem biologicamente mau e nada se pode fazer quantoa isso , ou prosseguimos com nossos esforos de reforma do pensamento.

    H pouco, observei que amar algo que j se nasce sabendo, mas que acultura dominante nos levou a desaprender. Assinalei tambm que essadesaprendizagem no afetou na mesma proporo os dois sexos. Comefeito, o antroplogo Ashley Montagu observa que a mulher cria e conservaa vida, enquanto o homem a mecaniza e destri. Para Montagu, o amor dame pelos seus filhos o grande modelo para todas as demais formas de

    relacionamento. J no fim dos anos 60 ele observava, embora no utilizasseessa expresso, que as mulheres so mais preparadas do que os homens para pensar em termos sistmicos.13

    As palavras desse autor mostram como, em geral, as mulheres no sedeixaram condicionar tanto quanto os homens pelo pensamento linear.Pode-se dizer que elas so as grandes produtoras e mantenedoras do modelomental sistmico, representado pela intuio, que com tanto empenhoaprendemos a desprezar. Assim, deduz-se que saber amar algo que os

    homens precisam reaprender com as mulheres. Como diz Montagu, o que precisamos de um pouco mais do esprito feminino e um pouco menos daagressividade masculina.

    O homem pode aprender com a mulher a pensar em termos sistmicos, e, a partir da, ambos podem chegar a uma viso complexa de mundo. Mas paratanto ele precisa deixar de impor-lhe a sua linearidade. Isso feito, acomplementaridade ocorrer de modo espontneo, porque os processosnaturais so cooperativos e competitivos e no como se pensou durantemuito tempo s competitivos. A competitividade uma circunstnciacultural, criada pelo medo que aprendemos a ter uns dos outros. Ns, do

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    20/28

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    21/28

    seja pela psicoterapia, seja por outros processos de desenvolvimento pessoal, podem chegar a uma outra dimenso egica o ego trabalhado que se aproxima de um modo de viver no apenas mecnico.

    Trata-se de uma dimenso participante. No estou propondo que tenhamosdois egos, claro. Ao nos darmos conta desse redimensionamento, porm, percebemos nossas possibilidades e limitaes. Defrontamo-nos a um stempo com a liberdade e com o nada.

    Martin Heidegger diz que h duas formas fundamentais de existnciahumana. A primeira se caracteriza pelo esquecimento do Ser. A outra temessa conscincia, e faz com que vejamos a morte como um fato da vida eno apenas como o seu trmino. No primeiro caso, temos a existncia pautada pelo ego-pensamento, que produz o homem individualista. Nosegundo, surge o modo de viver do homem que se fez indivduo sem seafastar de seus semelhantes.

    A marca central da inautenticidade a perda do sentido de totalidade.Talvez seja essa a noo que temos maior dificuldade de compreender.Quando um indivduo se mantm inteiro, adquire a compreenso de queessa integridade pode e precisa ser partilhada com o outro, isto , com omundo. A essncia do ser humano se define por meio de sua relao com omundo, e guarda tambm uma afinidade indispensvel com a totalidade do

    Ser. Espinosa expressa essa circunstncia ao dizer que essa ligaoconfigura uma unidade que a prpria natureza. Esse um dos motivos pelos quais a idia de razo desse filsofo , na essncia, tica.

    Aceitar a morte como um fato da vida equivale a admitir nossavulnerabilidade e finitude. O homem individualista, que se pretende imortal,acha que no precisa de ningum. O homem-indivduo pensa o oposto. Nostermos do mito do curador ferido, sua posio corresponde a admitir a possibilidade de estar lesado e, em conseqncia, respeitar as feridas dos

    outros e dispor-se a ajudar a cuidar delas.

    Sem essa conscincia no poderemos instaurar uma nova tica da alteridade.Acompanhando Montaigne, Goethe assim expressa a nossa situao: Oshomens trazem dentro de si no s a sua individualidade, mas a humanidadeinteira, com todas as suas possibilidades. Se persistirmos na recusa deassumir na prtica essa condio, continuar a ser para ns muito fcilagredir e eliminar o outro e, convenhamos, no pode haver vontade deabraar aquele a quem vemos como um condenado.

    A idia da morte valoriza a nossa existncia e faz com que valorizemos a

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    22/28

    vida do outro. Nas palavras do psicoterapeuta Irvin Yalom, se a mortedestri o homem, a idia dela o salva. Aceitamos a morte como um fato davida e no apenas como o fim de tudo quando nos damos conta de quesomos vulnerveis e frgeis e de que o mundo (que inclui a figura do outro)tambm o .

    Eis o que chamo de interfragilidade. Para chegar a ela, preciso percorrer trs planos: a) primeiro, a fase de prevalncia do ego, com sua mo fechada, pronta para o soco, ou ento crispada sobre e empunhadura da espada; b) aseguir surge a etapa da mo aberta e estendida, que resulta do trabalho sobrea dimenso egica; c) por fim vem a mo estendida, que se continua por um brao, que por sua vez se alia a outro e ambos se dispem a abraar.

    Os braos pertencem a um corpo. No estado atual de nossa cultura, este comandado pelas determinaes do ego no trabalhado, que precisa dele para utiliz-lo como arma ou ferramenta, dado que assim que exerce acompetio e a agressividade. O ego possui o corpo, e essa relaodividida transforma a vida das pessoas em uma sucesso de apegos, disputase conflitos.

    J a experincia do ego trabalhado muda esse horizonte, porque torna-seclaro que no possumos o nosso corpo: ns o somos . Entendida dessaforma, a corporeidade passa a ser vivida como uma intercorporeidade e

    assim nos damos conta de que o corpo o lugar onde se fundem o morador e a morada, a teoria e a prtica, o abstrato e o concreto, o ser e o nada.

    Da intercorporeidade emerge a espiritualidade. Esta, como escrevi antes,corresponde a uma atitude de respeito pelo mundo natural e participao emseus processos. Tudo isso comea, claro, pela relao com o outro. Noestou dizendo que no se deva buscar por outros meios a transcendncia,mesmo porque esta uma dimenso necessria e fundamental para o ser humano. O ponto no qual insisto que nenhuma iniciativa de religao pode

    ser tomada sem que primeiro se chegue ao ponto mais importante de todo o processo, que a legitimao da figura do outro.

    Se a busca do outro a procura da integrao no mundo, dizer que o amor uma dimenso biolgica s na aparncia uma reduo. Uma reflexo maisaprofundada revela que apenas por meio do outro possvel ampliar etranscender as limitaes de nossa fragmentao e solido existencial.

    A busca da alteridade inerente condio humana. J sabemos que alocalizao anatmica de nossos olhos revela que eles esto orientados paraenxergar o outro. Tambm no podemos abraar a ns mesmos: s o outro pode abraar-nos. Eis por que precisamos dele: para que nos abrace e assim

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    23/28

    nos ajude a saber que existimos.

    Somos seres desejantes. Mas, como intuiu o psicanalista W. Fairbairn, afinalidade do desejo no o prazer e sim a relao com o outro. O prazer um meio para esse fim. No buscamos a convivncia por causa do prazer ele que nos leva a procur-la. O si-mesmo no apenas nico, tambmcoletivo. Nesse sentido, o indivduo no tem primazia sobre a cultura emque vive. Quanto mais nos identificarmos apenas com o ego, maisdificuldade teremos de entender que o si-mesmo a um s tempo individuale comunitrio.

    J em 1953, o escritor argentino Ernesto Sbato15, certamente influenciado por Martin Buber, via no processo histrico um impulso em direo aofeminino, ao qual chamou de gamocentrismo. Esse abrao dos sexos podeser visto como uma metfora para exprimir a complementaridade dos pensamentos linear e sistmico, que compe o pensamento complexo, oqual por sua vez permite o entendimento e a prtica da viso de mundoneomatrstica. Para Sbato as sociedades humanas se movem, desde a IdadeMdia, segundo a seguinte dinmica:

    - Comunidade medieval (predomnio do Ns);- individualismo mercantil do Renascimento (predomnio do Eu);- cincia e capitalismo abstratos da modernidade (predomnio do Isso);- rebelio romntica, existencial, concreta e feminina (predomnio do Eu);- sntese fenomenolgica, rumo a uma comunidade feminino-masculina(predomnio do Ns).

    Neste ponto, necessrio fazer uma digresso. Sabemos que o incio daexperincia mental inconsciente e se estrutura com o feto no teromaterno, imerso em seu pequeno mar de lquido amnitico. Nesse ambienteele est em paz, satisfeito e em unio ocenica com a me, como escreveuFreud. Ao determinar a expulso brusca da criana dessa oceanidade, o

    nascimento representaria um trauma terrvel. dessa separao que seoriginaram mitos conhecidos, como o da queda e o que fala de uma idade deouro h muito perdida.

    Nessa ordem de idias, a partir do nascimento o serhumano se v diante de dois caminhos: ou supera o traumaprimal e torna-se um indivduo no mundo, ou o nega e suavida passa a ser uma longa jornada de volta unidadeperdida. No segundo caso, tem-se o que ocorre com certos

    msticos, para os quais a busca de uma fuso com oUniverso significa a negao da existncia individual

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    24/28

    julgada insignificante e uma idealizao da religao como todo.

    Essa posio tem sido interpretada por muitos como

    alienante. Em termos psicolgicos, corresponde a umarenncia radical ao ego, que por sua vez tem sido vistacomo uma alternativa a ter que enfrentar o terror de sentir-se abandonado num mundo estranho e hostil. Para outros,ela tambm representaria uma necessidade de onipotncia,cujo resultado mais imediato seria um certo desprezo portudo o que material.

    O desejo narcsico de diluio na totalidade pode tambmser interpretado como a raiz de nossa tendncia de acharque pouco ou nada podemos fazer por ns prprios, o quenos levaria a buscar apoio em mbitos abstratos eidealizados. Como resultado, nossos semelhantes passariama ser encarados como fracos e desprezveis ou, na melhordas hipteses, como companheiros de infortnio.Tenderamos a transferir o nosso centro de auto-regulaopara um domnio externo, o que acabaria nos alienandocada vez mais da realidade.

    muito importante no confundir a necessidade de ser visto(reconhecido) e abraado (acolhido) pelo outro com odesejo de retornar a essa oceanidade. Abraar e serabraado derivam da primeira escolha atrs mencionada,isto , da opo de tornar-se um indivduo neste mundo.Sustento que ver e ser visto, tocar e ser tocado, abraar eser abraado (pelo outro e pelo mundo) so metforas deintegrao, no de diluio ou apagamento.

    A religao de que fala o pensamento complexo umareaproximao de saberes, a ser posta em prtica naconcretude dos sistemas da natureza. No se trata de umavontade de retorno, mas sim de uma efetiva participao nadinmica dos ciclos do mundo natural. umainterdependncia espontnea, que produz autoproduo eautonomia, e no uma co-dependncia induzida pelo medo,que resulta em aprisionamento.

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    25/28

    Foi dito e repetido que a negao radical do ego, ou suatransformao em vilo, traz consigo o perigo de alienao e, emconseqncia, a negao do outro. A suposio, por exemplo, deque a ancestral cultura matrstica seria um reino encantado, umgrande tero materno ao qual todos devemos retornar, umequvoco que, em ltima anlise, traduz o desejo de submisso aum matriarcado ideal, que nada tem a ver com o modo matrsticode convivncia.

    Por isso, necessrio que no confundamos as atuaispropostas de sociedades de parceria com fantasias deregresso a uma idade de ouro perdida. Essas iniciativasincorporam vrias das caractersticas da cultura matrstica,mas a conscincia que as orienta est baseada em umaviso de futuro realista, e nada receosa ou submissa.

    Do mesmo modo, o pensamento complexo est muito longedessa idia de fuso ocenica. Sua proposta inclui aprocura do autoconhecimento, que resulta da compreensode que o ego frgil e por isso precisa ser trabalhado ereestruturado, para que possa ser capaz de cumprir o seu

    papel. Um ego frgil, alienado ou negado em nada ajudarna reforma do sistema de pensamento.

    O eu contm o mltiplo (a sociedade, a cultura), que por sua vez o contm.Eis aunitas multiplex a unidade na multiplicidade, a traduo do abraocomunitrio que envolve a cada um de ns. Tudo isso se expressa de ummodo dinmico: o eu se transforma com a cultura, que por sua vez omodifica, numa relao de congruncia. O abrao no um substantivo, esim um verbo um verbo no gerndio: melhor seria que estivssemossempre abraando e nos deixando abraar.

    A insistncia em negar essa necessidade gera a interminvel seqncia dasnossas aflies. Fingimos no saber que quanto mais competitividademais esperteza e menos inteligncia. A esperteza fragmenta, mutila, norespeita a unidade das coisas naturais. A inteligncia aproxima, abraa. No pode ser medida, porque sua nica dimenso a totalidade.

    No que a inteligncia seja melhor do que a esperteza, nem vice versa.Vejo as duas do ponto de vista operacional e afirmo que elas no precisam complementar-se, porque a primeira j inclui a segunda, isto , ohomem inteligente aquele que sabe que, no fluxo das coisas, preciso ser

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    26/28

    inteligente sem deixar de ser esperto. Sabe que necessrio temperar ahabilidade de resolver problemas mecnico-fisiolgicos com os limitesticos que a inteligncia aponta para as conseqncias das aes que osgeraram.

    A competitividade uma dimenso da esperteza. A competncia est nombito da inteligncia. Dizer que precisamos trabalhar por mais intelignciae menos esperteza equivale a propor que necessrio buscar maisindividualidade e menos individualismo. A individualidade o ponto de partida natural para a interpessoalidade. O individualismo o marco inicialda competio predatria. O homem que se individualiza aquele que sediferencia da massa, mas no imagina que pode se isolar de seussemelhantes. o que se torna indivduo sem se deixar alienar.

    No h, pois, individualidade sem interpessoalidade. Ser indivduo buscar a inteligncia (que nasce da interpessoalidade) e saber lidar com a esperteza(que se origina no individualismo). No nos esqueamos de que o homemque se torna um indivduo uma sntese viva e criadora da condiohumana, enquanto que aquele que mergulha no individualismo imagina-sesempre primeiro e nico o que, como j foi dito, equivale a correr o risco deser tambm o ltimo.

    Esperteza (competitividade) querer vencer eliminando os vencidos.

    Inteligncia (competncia) poder venc-los e estender-lhes a mo, paraque eles possam amanh ser tambm vencedores. A mo fechada ocomeo da separao. A mo estendida o incio do abrao. o ponto de partida para o pensamento complexo marco inaugural do longo processode busca da solidariedade.

    Notas1. SENGE, Peter, et al.The Fifth Discipline Fieldbook . Nova York: DoubledayCurrency, 1994, p.p. 3-4. 2. PESSOA, Fernando. Obra Potica. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1974, p. 212.3. Id., ibid. , p. 217. 4. MARIOTTI, Humberto. As Paixes do Ego: Complexidade, Poltica eSolidariedade. So Paulo: Palas Athena, 2000, pp. 245-246.5.PESSOA, Fernando. Obra Potica. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1974, p.207.6.Id., ibid. , p. 207. 7.Id. ibid ., p. 222.8.Id., ibid ., p. 234.

    9.Id., ibid

    ., p. 238.

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    27/28

  • 8/14/2019 TICA - ARTIGO- OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO -UMBERTO MARIOTTI

    28/28

    SARTRE, Jean-Paul. Huis Clos, Suivi de Les Mouches. Paris:Gallimard, 1947.

    _____. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenolgica.Petrpolis: Vozes, 1997.YALOM, Irvin.Existential Psychotherapy . Nova York: Basic Books,1980.

    HOME

    http://www4.uninove.br/grupec/index.htmhttp://www4.uninove.br/grupec/index.htm