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Ética da Compreensão - Edgar Morin (extraído para fins didáticos de Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro) A ética da compreensão é a arte de viver que nos demanda, em primeiro lugar, compreender de modo desinteressado. Demanda grande esforço, pois não pode esperar nenhuma reciprocidade: aquele que é ameaçado de morte por um fanático compreende por que o fanático quer matá-Io, sabendo que este jamais o compreenderá. Compreender o fanático que é incapaz de nos compreender é compreender as raízes, as formas e as mani- festações do fanatismo humano. É compreender porque e como se odeia ou se despreza. A ética da compreensão pede que se compreenda a incompreensão. A ética da compreensão pede que se argumente, que se refute em vez de excomungar e anatematizar. Encerrar na noção de traidor o que decorre da inteligibilidade mais ampla impede que se reconheçam o erro, os desvios, as ideologias, as derivas. A compreensão não desculpa nem acusa: pede que se evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmos nunca tivéssemos conhecido a fraqueza nem cometido erros. Se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações humanas. O que favorece a compreensão é: 3.1 O "bem pensar" Este é o modo de pensar que permite apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as condições do comportamento humano. Permite-nos compreender igualmente as condições objetivas e subjetivas (self-deception, possessão por uma fé, delírios e histerias). 3.2 A introspecção A prática mental do auto-exame permanente é necessária, já que a compreensão de nossas fraquezas ou faltas é a via para a compreensão das do outro. Se descobrirmos que somos todos seres falíveis, frágeis, insuficientes, carentes, então podemos descobrir que todos necessitamos de mútua compreensão. O auto-exame crítico permite que nos descentremos em relação a nós mesmos e, por conseguinte, que reconheçamos e julguemos nosso egocentrismo. Permite que não assumamos a posição de juiz de todas as coisas. 4. A CONSCIÊNCIA DA COMPLEXIDADE HUMANA A compreensão do outro requer a consciência da complexidade humana. Assim, podemos buscar na literatura romanesca e no cinema a consciência de que não se deve reduzir o ser à menor parte dele próprio, nem mesmo ao pior fragmento de seu passado. Enquanto, na vida comum, nos apressamos em encerrar na noção de criminoso aquele que cometeu um crime, reduzindo os demais aspectos de sua vida e de sua pessoa a este traço único, descobrimos em seus múltiplos aspectos os reis gângsters de Shakespeare e os gângsters reais dos filmes policiais. Podemos ver como um criminoso pode se transformar e se redimir como Jean Valjean e Raskolnikov.

Ética Da Compreensão

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Ética da compreensão

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  • tica da Compreenso - Edgar Morin (extrado para fins didticos de Os Sete Saberes necessrios Educao do Futuro) A tica da compreenso a arte de viver que nos demanda, em primeiro lugar, compreender de modo desinteressado. Demanda grande esforo, pois no pode esperar nenhuma reciprocidade: aquele que ameaado de morte por um fantico compreende por que o fantico quer mat-Io, sabendo que este jamais o compreender. Compreender o fantico que incapaz de nos compreender compreender as razes, as formas e as mani-festaes do fanatismo humano. compreender porque e como se odeia ou se despreza. A tica da compreenso pede que se compreenda a incompreenso. A tica da compreenso pede que se argumente, que se refute em vez de excomungar e anatematizar. Encerrar na noo de traidor o que decorre da inteligibilidade mais ampla impede que se reconheam o erro, os desvios, as ideologias, as derivas.

    A compreenso no desculpa nem acusa: pede que se evite a condenao peremptria, irremedivel, como se ns mesmos nunca tivssemos conhecido a fraqueza nem cometido erros. Se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanizao das relaes humanas. O que favorece a compreenso : 3.1 O "bem pensar" Este o modo de pensar que permite apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto , as condies do comportamento humano. Permite-nos compreender igualmente as condies objetivas e subjetivas (self-deception, possesso por uma f, delrios e histerias). 3.2 A introspeco A prtica mental do auto-exame permanente necessria, j que a compreenso de nossas fraquezas ou faltas a via para a compreenso das do outro. Se descobrirmos que somos todos seres falveis, frgeis, insuficientes, carentes, ento podemos descobrir que todos necessitamos de mtua compreenso.

    O auto-exame crtico permite que nos descentremos em relao a ns mesmos e, por conseguinte, que reconheamos e julguemos nosso egocentrismo. Permite que no assumamos a posio de juiz de todas as coisas.

    4. A CONSCINCIA DA COMPLEXIDADE HUMANA

    A compreenso do outro requer a conscincia da complexidade humana.

    Assim, podemos buscar na literatura romanesca e no cinema a conscincia de que no se deve reduzir o ser menor parte dele prprio, nem mesmo ao pior fragmento de seu passado. Enquanto, na vida comum, nos apressamos em encerrar na noo de criminoso aquele que cometeu um crime, reduzindo os demais aspectos de sua vida e de sua pessoa a este trao nico, descobrimos em seus mltiplos aspectos os reis gngsters de Shakespeare e os gngsters reais dos filmes policiais. Podemos ver como um criminoso pode se transformar e se redimir como Jean Valjean e Raskolnikov.

  • Podemos enfim aprender com eles as maiores lies de vida, a compaixo do sofrimento dos humilhados e a verdadeira compreenso. 4.1 A abertura subjetiva (simptica) em relao ao outro Estamos abertos para determinadas pessoas prximas privilegiadas, mas permanecemos, na maioria do tempo, fechados para as demais. O cinema, ao favorecer o pleno uso de nossa subjetividade pela projeo e identificao, faz-nos simpatizar e compreender os que nos seriam estranhos ou antipticos em tempos normais. Aquele que sente repugnncia pelo vagabundo encontrado na rua simpatiza de todo corao, no cinema, com o vagabundo Carlitos. Enquanto na vida cotidiana ficamos quase indiferentes s misrias fsicas e morais, sentimos compaixo e comiserao na leitura de um romance ou na projeo de um filme. 4.2 A interiorizao da tolerncia A verdadeira tolerncia no indiferente s idias ou ao ceticismo generalizados. Supe convico, f, escolha tica e ao mesmo tempo aceitao da expresso das idias, convices, escolhas contrrias s nossas. A tolerncia supe sofrimento ao suportar a expresso de idias negativas ou, segundo nossa opinio, nefastas, e a vontade de assumir este sofrimento. H quatro graus de tolerncia: o primeiro, expresso por Voltaire, obriga-nos a respeitar o direito de proferir um propsito que nos parece ignbil; isso no respeitar o ignbil, trata-se de evitar que se imponha nossa concepo sobre o ignbil a fim de proibir uma fala. O segundo grau inseparvel da opo democrtica: a essncia da democracia se nutrir de opinies diversas e antagnicas; assim, o princpio democrtico conclama cada um a respeitar a expresso de idias antagnicas s suas. O terceiro grau obedece concepo de Niels Bohr, para quem o contrrio de uma idia profunda uma outra idia profunda; dito de outra maneira, h uma verdade na idia antagnica nossa, e esta verdade que preciso respeitar. O quarto grau vem da conscincia das possesses humanas pelos mitos, ideologias, idias ou deuses, assim como da conscincia das derivas que levam os indivduos bem mais longe, a lugar diferente daquele onde querem ir. A tolerncia vale, com certeza, para as idias, no para os insultos, agresses ou atos homicidas. 5. COMPREENSO, TICA E CULTURAS PLANETRIAS

    Devemos relacionar a tica da compreenso entre as pessoas com a tica da era planetria, que pede a mundializao da compreenso. A nica verdadeira mundializao que estaria a servio do gnero humano a da compreenso, da solidariedade intelectual e moral da humanidade. As culturas devem aprender umas com as outras, e a orgulhosa cultura ocidental, que se colocou como cultura-mestra, deve-se tornar tambm uma cultura-aprendiz. Compreender tambm aprender e reaprender incessantemente. Como podem as culturas comunicar? Magoroh Maruyama fornece-nos uma indicao til. Em cada cultura, as mentalidades dominantes so etno ou sociocntricas, isto , mais ou menos fechadas em relao s outras culturas. Mas existem, dentro de cada cultura, mentalidades abertas, curiosas, no-ortodoxas, desviantes, e existem tambm mestios, fruto de casamentos

  • mistos, que constituem pontes naturais entre as culturas. Muitas vezes os desviantes so escritores ou poetas cuja mensagem pode se irradiar tanto no prprio pas quanto no mundo exterior. Quando se trata de arte, de msica, de literatura, de pensamento, a mundializao cultural no homogeneizadora. Formam-se grandes ondas transnacionais que favorecem ao mesmo tempo a expresso das originalidades nacionais em seu seio. Foi assim na Europa no Classicismo, nas Luzes, no Romantismo, no Realismo, no Surrealismo. Hoje, os romances japoneses, latinoamericanos, africanos so publicados nas grandes lnguas europias e os romances europeus so publicados na sia, no Oriente, na frica e nas Amricas. As tradues dos romances, ensaios, livros filosficos de uma lngua para outra permitem a cada pas ter acesso s obras dos outros pases e de nutrir-se das culturas do mundo, alimentando ao mesmo tempo, com suas obras, o caldo de cultura planetria. Com certeza, aquele que recolhe as contribuies originais de mltiplas culturas est ainda limitado s esferas restritas de cada nao; mas seu desenvolvimento um trao marcante da segunda metade do sculo XX e deveria estender-se at o sculo XXI, o que seria triunfal para a compreenso entre os humanos. Paralelamente, as culturas orientais suscitam no Ocidente mltiplas curiosidades e interrogaes. O Ocidente j havia traduzido o Avesta e os Upanishads no sculo XVIII, Confcio e Lao-Tseu no sculo XIX, mas as mensagens da sia permaneciam restritas a objetos de estudos eruditos. Foi apenas no sculo XX que a arte africana, os filsofos e msticos do Isl, os textos sagrados da ndia, o pensamento do Tao, o do budismo transfor-maram-se fontes vivas para a alma ocidental isolada ao mundo do ativismo, do produtivismo, da eficcia, do divertimento, que aspira paz interior e relao harmoniosa com o corpo.

    A abertura da cultura ocidental pode parecer para alguns ao mesmo tempo no-compreensiva e incompreensvel. Mas a racionalidade aberta e auto crtica decorrente da cultura europia permite a compreenso e a integrao do que outras culturas desenvolveram e que ela atrofiou. O Ocidente deve tambm incorporar as virtudes das outras culturas, a fim de corrigir o ativismo, o pragmatismo, o "quantitativismo', o consumismo desenfreados, desencadeados dentro e fora dele. Mas deve tambm salvaguardar, regenerar e propagar o melhor de sua cultura, que produziu a democracia, os direitos humanos, a proteo da esfera privada do cidado.

    A compreenso entre sociedades supe sociedades democrticas abertas, o que significa que o caminho da Compreenso entre culturas, povos e naes passa pela generalizao das sociedades democrticas abertas.

    Mas no nos esqueamos de que, mesmo nas sociedades democrticas abertas, permanece o problema epistemolgico da compreenso: para que possa haver compreenso entre estruturas de pensamento, preciso passar metaestrutura do pensamento que compreenda as causas da incompreenso de umas em relao s outras e que possa super-Ias.

    A compreenso ao mesmo tempo meio e fim da comunicao humana. O planeta necessita, em todos os sentidos, de compreenses mtuas. Dada a importncia da educao para a compreenso, em todos os nveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da compreenso necessita da reforma planetria das mentalidades; esta deve ser a tarefa da educao do futuro.