Etica Do Bem e Etica Do Dever

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  • Fernan

    do Rod

    rigue

    s*

    tica do Bem e tica do Dever

    * Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFRJ.

    Resumo

    Partindo do fato de que uma investigao filosfica sobre a moral tem por fim tor-nar explcitas as pressuposies implcitas que guiam nossa prtica moral cotidiana, este artigo comea apresentando critrios identificadores para o chamado fenmeno moral. Esses critrios so, por um lado, certos sentimentos e, por outro, o proferi-mento de certas expresses lingsticas. O segundo passo consiste em perguntar por que algum teria esses sentimentos e por que poderia fazer esses proferimentos em certas circunstncias. Essa questo foi respondida de vrias maneiras na histria da filosofia moral. Duas respostas diferentes, uma baseada no conceito de bem e outra, no de dever, so aqui apresentadas e comparadas quanto a sua plausibilidade para explicar o fenmeno da moral.

    Palavras-chave: sentimentos morais; juzos morais; bem; dever.

    Abstract

    Starting out from the fact that a philosophical investigation of morality aims at making explicit the implicit assumptions that guide our everyday moral practice, this paper begins by advancing identifying criteria for the so-called moral phenomenon. These criteria are, on the one hand, certain sentiments and, on the other, the utterance of certain linguistic expressions. The second move consists in asking why one has those sentiments and is able to make those utterances in certain circumstances. This question has been answered in various ways in the history of moral philosophy. Two different answers, one based on the concept of good and the other on the concept of duty, are put forward here and compared as to their plausibility to explain the moral phenomenon.

    Key words: moral sentiments; moral judgements; good; duty.

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    1. Observaes Preliminares

    freqente no dia a dia de nossas vidas tomarmos atitudes avaliativas quer de aprovao quer de desaprovao com relao ao que fazemos ou sentimos ou at quanto ao curso de nossa vida como um todo. Essas avaliaes podem incidir tanto sobre as prprias pessoas que as fazem quanto sobre outros in-divduos. Um desses tipos de avaliao pode ter como base o fato de sermos capazes ou, conforme o caso, incapazes de restringirmos nossos desejos ou interesses mais imediatos em prol de algo outro. No mais das vezes essas ava-liaes so de tipo negativo, isto : trata-se de uma atitude de desaprovao. O que revela essa atitude pode ser um sentimento ou algum proferimento verbal. Sentimentos como culpa e indignao parecem indicar uma avaliao negativa sobre o que ns prprios ou outros fazem ou mesmo sobre o que ns ou outros sentem. Quando, em um primeiro momento, realizamos uma ao com base no interesse prprio e acabamos por prejudicar um outro ou a ns mesmos, por exemplo, podemos em seguida sentir culpa e nos arrepender do que fizemos. Podemos tambm manifestar nossa atitude avaliativa atravs de certos juzos. Quando dizemos de outros ou de ns mesmos que no agimos como deveramos t-lo feito, revelamos um tal tipo de atitude.

    Deparamo-nos ordinariamente com essas atitudes. Trata-se de um fen-meno que se manifesta a ns graas a sentimentos e proferimentos. As inves-tigaes filosficas sobre tica buscam precisamente elucidar o que est en-volvido nesse fenmeno. Ainda que sentimentos e proferimentos sirvam para identific-lo e mostrar que ele faz parte de nosso viver, essa identificao no ainda suficiente para que tenhamos clareza sobre o que est nele envolvido. Para tanto, lana-se mo da filosofia.

    No presente texto comearei por indicar os elementos identificatrios dessa atitude, que se pode chamar de fenmeno da moral. Em seguida apre-sentarei dois modelos filosficos que pretendem elucidar o que organiza esse fenmeno. O ponto central da elucidao consiste em mostrar o que aquilo em prol de que restringimos nossos desejos e interesses quando adotamos uma atitude tica. Esses modelos sero chamados de teorias morais. As duas teorias aqui apresentadas so, pelo menos a princpio, incompatveis entre si. Trata-se do modelo da tica do bem e do modelo da tica do dever.

    Antes de passar propriamente a esses passos, farei, no entanto uma ob-servao sobre o uso das palavras tica e moral. Esses dois termos advm, respectivamente, do termo grego e do termo latino mo s. O primeiro

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    significa carter; o segundo, costume1. Quando os gregos falavam de cincia tica, eles tinham em vista uma investigao sobre o carter. nesse sentido que as obras aristotlicas Ethica Nicomachea e Ethica Eudemica consistem so-bretudo em uma investigao sobre o carter. H em grego uma palavra se-melhante a , a saber: , que significa costume. Os latinos utilizaram a expresso mo s com a inteno de traduzir (carter), mas, na verdade, o que estavam traduzindo era o termo (costume). Na literatura filosfica, encontramos os termos tico (do grego ) e moral (do latim mo ra lis). A rigor, o primeiro significaria relativo ao carter e o segundo, relativo aos costumes. No entanto, muitas vezes esses termos so usados intercambia-velmente. E mesmo nos casos em que se distingue entre ambos, nem sem-pre essa distino segue os sentidos que tinham nas lnguas grega e latina.

    Um exemplo clssico de um filsofo que diferencia a moralidade (Mora-litt) da eticidade (Sittlichkeit) Hegel. Para ele, enquanto a eticidade diria respeito a obrigaes que temos pelo fato de sermos membros de uma comu-nidade, a moralidade consistiria em obrigaes baseadas apenas no fato de sermos indivduos cuja vontade poderia ser determinada pela razo.2 Kant, de acordo com Hegel, desenvolveria uma teoria que considera apenas a mo-ralidade e no a eticidade.3 Um filsofo mais recente que usa diferentemente os dois termos B. Williams. Ele utiliza tica como um termo amplo e moral como um desenvolvimento da tica peculiar cultura ocidental moderna, um desenvolvimento que enfatiza um sentido particular de obrigao.4

    Cf. E. Tugendhat, Vorlesungen ber Ethik, 34s; B. Williams, Ethics and the Limits of Philosophy, 6.

    A segunda e terceira partes das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito chamam-se, respectiva-mente, moralidade e eticidade. Uma crtica moralidade pode ser vista, por exemplo, no 135.

    A crtica a Kant encontra-se, por exemplo, no mencionado 135 das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, na Fenomenologia do Esprito, seo VI, C (O esprito certo de si mesmo), no texto Sobre os Tipos de Tratamento Cientficos do Direito Natural, sua Posio na Filosofia Prtica e suas Relaes com as Cincias Positivas do Direito, sobretudo na seo II. importante observar que o prprio Kant usa o termo eticidade (Sittlichkeit), mas no no sentido hegeliano.

    Cf.: (...) the word morality has by now taken on a more distinctive content, and I am going to su-ggest that morality should be understood as a particular development of the ethical, one that has a special significance in modern Western culture. It peculiarly emphasizes certain ethical notions rather than others, developing in particular a special notion of obligation, and it has some pecu-liar presuppositions. In view of these features it is also, I believe, something we should treat with a special skepticism. From now on, therefore, I shall for the most part use ethical as the broad term to stand for what this subject is certainly about, and moral and morality for the narrower system, the peculiarities of which will concern us later on (Ethics and the Limits of Philosophy, 6).

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    No que se segue, no diferenciarei terminologicamente entre os termos tica e moral. O que importante que se tenha em mente , por um lado, o fato de haver, no mundo ordinrio ou pr-filosfico, um fenmeno, que se pode chamar de fenmeno da moral, e de haver uma investigao filosfica que aborda esse fe-nmeno, que se pode chamar de investigao tica. Nada, no entanto, impede que se chame o fenmeno de fenmeno tico e a investigao de investigao moral.

    A identificao do fenmeno da moral

    Parto aqui de uma noo de filosofia segundo a qual esta consiste em explici-tar certos pressupostos que organizam nossas atitudes ordinrias, pressupos-tos de que, no entanto, no estamos, no mais das vezes, cientes. Todo nosso agir, pensar e mesmo sentir parecem estar estruturados a partir de certos quadros categoriais e outros pressupostos. Caberia filosofia torn-los claros, explcitos. Esses pressupostos variam de situao para situao em que nos encontramos no mundo. Ora estamos passando o tempo, jogando cartas, por exemplo; ora estamos tentando conhecer algo; ora avaliamos as outras pes-soas ou ns prprios; ora agimos para alcanarmos determinados fins; ora frumos uma determinada pea de msica que estamos ouvindo. Esse cat-logo poderia ser muito mais ampliado. Nessas diversas atitudes, nossas com-preenses e nosso sentir parecem ter estruturas, pressupostos, diversos. Uma dessas atitudes, como disse acima, poderia ser chamada de atitude moral ou de fenmeno da moral. O fenmeno da moral consiste, ento, em uma situa-o em que estamos no mundo marcada por um certo tipo de compreenso e um certo tipo de sentimento5. Mas como identificar essa situao para, ento, proceder-se a uma explicitao filosfica sobre o que est nela envolvido.

    Conforme disse acima, alguns tipos de sentimentos e o proferimento de alguns tipos de juzo seriam marcas identificadoras desse fenmeno. Quais so, ento, esses sentimentos e esses proferimentos?

    Em seu artigo Freedom and Resentment, P. F. Strawson refere-se a vrios sentimentos presentes em atitudes tomadas com relao a ns mesmos e aos

    Que a moral esteja ligada a certos juzos e a certos sentimentos deixado claro, por exemplo, por E. Tugendhat, sobretudo nas duas primeiras prelees de sua obra Vorlesungen ber Ethik. Sobre a relao entre juzos morais e sentimentos morais, cf. p. 11, 20 e 37s. Para Tugendhat, os sentimentos morais, marcadamente negativos, fundam-se em juzos morais. O fato de que nosso estar no mundo sempre pautado por um elemento cognitivo e um elemento afetivo evidente tambm para Heidegger, para quem pertence a estrutura da abertura o compreender (Verstehen) e a disposio (Befindlichkeit).

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    outros. O objetivo do autor nesse artigo mostrar que, ao experimentarmos atitudes e sentimentos reativos, assumimos que ns mesmos e os outros so-mos livres e oferecer uma soluo para a questo da liberdade da vontade que reconcilie as posies clssicas e opostas do debate, a saber: o determi-nismo e o libertarianismo. Para fins do presente texto, importante apenas enfatizar que certos sentimentos acompanham atitudes que tomamos com relao a ns mesmos e aos outros. Esses sentimentos seriam, por exemplo, os de culpa, de ressentimento e de indignao. A culpa ocorreria quando estamos cientes de que ns mesmos realizamos o que no deveramos ter feito; o ressentimento, quando um outro realiza em relao a ns o que jul-gamos que no deveria fazer; enfim, a indignao pode caracterizar o senti-mento que temos com relao a um outro quando este faz o que no deveria com relao a um terceiro. Pode-se tambm admitir sentimentos positivos como gratido ou satisfao consigo mesmo ou admirao por um outro.6

    Esses sentimentos podem ser, e frequentemente so, acompanhados por certos proferimentos lingusticos, como eu no deveria ter feito (ou mesmo pensado ou sentido) o que fiz ou ele no deveria ter feito isso. Ou ainda, no caso de atitudes positivas, ele agiu como era devido. No apenas os usos do verbo dever em proferimentos afirmativos e negativos, mas tambm o empre-go dos adjetivos bom ou, conforme o caso, mau podem servir para exprimir verbalmente essas atitudes, como, por exemplo: no foi bom ele agir como fez.

    Por mais vaga que possa ser a referncia a esses sentimentos e a esses proferimentos, eles parecem indicar um modo de compreendermos, de nos posicionarmos, com relao a ns mesmos e aos outros que pode ser chama-do de fenmeno da moral. Qualquer filosofia moral que no queira ser uma construo para determinar o que devemos fazer, mas que, ao contrrio, bus-que apenas elucidar o que est envolvido em certas atitudes que tomamos, tem de partir de um fenmeno da moral.

    Um exemplo desse tipo de investigao filosfica encontra-se na Funda-mentao da Metafsica dos Costumes de Kant. Nessa obra, o filsofo, antes de analisar o que est pressuposto na moral, busca identificar o objeto de sua investigao a partir de um uso que fazemos do adjetivo bom, um uso que Kant chama de uso sem restries e que modernamente pode chamar-se de uso no relacional.7 Pr-filosoficamente haveria, segundo Kant, um uso no

    Nem E. Tugendhat nem P. F. Strawson admitem, no entanto, que faam parte dos sentimentos morais sentimentos positivos.

    Cf. incio da primeira seo da Fundamentao da Metafsica dos Costumes.

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    relacional da palavra bom em que bom significaria no bom para ..., mas bom simplesmente. nesse uso lingustico que ele identifica nossas atitudes morais. O predicado bom no relacional aplicado, segundo Kant, apenas vontade, e as investigaes morais devem explicitar o que significa dizer que uma vontade boa nesse sentido e mostrar que possvel que uma vontade seja boa nesse sentido.

    Retornando, agora, ao fenmeno da moral identificado a partir de um conjunto de sentimentos e de certos tipos de proferimentos, deve-se per-guntar o que pressuposto para que tenhamos os referidos sentimentos e o que significam os termos dever / no dever ou bom / mau nos juzos men-cionados. Ao se fazer isso, elucida-se exatamente em que consiste a moral.

    Se, por um lado, parece que, em geral, os filsofos concordam sobre a identificao do fenmeno da moral, por outro lado, eles parecem discordar quando buscam elucidar o que aquilo que pressuposto e que, quando for violado, nos leva a ter determinados sentimentos negativos e nos permite fa-zer certos juzos de valorao negativa ou, ao contrrio, quando for seguido, nos leva a ter certos sentimentos positivos e nos possibilita fazer juzos de valorao positiva.

    Alm da identificao do fenmeno da moral, parece, na resposta per-gunta sobre aquilo em que consiste a moralidade tambm haver um ponto de convergncia entre os vrios modelos, a saber: o fato de que ser moral consiste, como j indicado acima, em uma restrio de interesses ou desejos imediatos em prol de algo outro. justamente na determinao desse algo outro que, no entanto, os modelos se afastaro uns dos outros.

    No que se segue, eu gostaria de apresentar dois modelos de teorias sobre o que pressuposto no fenmeno da moral e que possibilita que haja esse fenmeno. Esses modelos so constantemente chamados de ticas do bem e ticas do dever. O que est implcito no fenmeno da moral e que, portanto, constitui a moralidade ser compreendido de modo muito diferenciado se se defende um ou o outro desses modelos. Alm disso, esses modelos parecem ser caractersticos de momentos histricos diferentes. As ticas do bem seriam antes caractersticas do pensamento antigo e medieval e as do dever, do pen-samento moderno. Parece que justamente o fato de ter havido, no incio da modernidade, uma mudana na compreenso do que o homem que levou a uma mudana nos modelos das teorias ticas.

    Em sua obra The Methods of Ethics, H. Sidgwick, ao abordar o mtodo de tica que ele chama de intuicionismo, que, para ele, seria aquela posio se-gundo a qual a correo da conduta moral estaria baseada em um dever que desconsidera as consequncias da conduta, distingue entre uma atitude fun-

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    dada na correo (rightness) e uma fundada no bem (goodness).8 Em ambos os casos, trata-se de posies baseadas no dever, mas Sidgwick j se d conta de uma distino entre modelos imperativos e modelos mais atrativos de tica.

    As ticas do bem

    Se se leem textos clssicos sobre tica de Plato ou de Aristteles, observa-se que h um interesse central que parece guiar essas investigaes. Esse interes-se deixa-se formular na pergunta como se deve viver?. Essa questo aparece, por exemplo, repetidamente na Politea de Plato.9 No passo 344d9-e3 do livro I, quando Scrates est dialogando com Trasmaco para determinar em que consiste a justia e observa que este ltimo est tentando esquivar-se e deixar o dilogo, ele afirma, com o intento de fazer com que Trasmaco con-tinue a dialogar: ou pensas estar-se tentando determinar uma coisa menor, e no o curso de vida de acordo com o qual, percorrendo, cada um de ns viveria a vida mais meritria.10 Essa referncia boa vida aparece em outros textos, tanto da prpria Politea quanto de outros dilogos da chamada pri-

    Em Methods of the Ethics, Sidgwick considera o objetivo da tica tornar cientficos os conheci-mentos que a maioria dos homens possui sobre a correo e a razoabilidade das condutas (1874, p. 77). Ele distingue entre dois princpios que o senso comum aceitaria prima facie como fins racionais, a saber: a felicidade e a perfeio da vida humana, sendo que a primeira se subdivide em felicidade individual e geral (9s.). A cada um desses princpios corresponderia um mtodo, resultando, desse modo, o intuicionismo (baseado na perfeio), o hedonismo egosta (baseado na felicidade individual) e o hedonismo universalista ou utilitarista (baseado na felicidade ge-ral) (11s e 83ss.). O intuicionismo utilizado para designar o modelo tico que considera o fim ltimo da ao moral sua adequao a regras de um dever que prescreve incondicionalmente, sem atentar para as consequncias (96). no mbito do intuicionismo que Sidgwick distingue entre uma posio baseada no dever e outra baseada no bem. No primeiro caso, tratar-se-ia de um intuicionismo fundado em mandamentos ou imperativos da razo; no segundo, de um fun-dado na ideia de bem, a view of virtuous action [duty, nas primeiras edies] in which, though the validity of moral intuitions is not disputed, this notion of rule or dictate is at any rate only latent or implicit, the moral ideal being presented as attractive rather than imperative (105).

    A questo acerca da boa vida central nos dilogos iniciais de Plato, bem como na Politea, sobre-tudo nos primeiros livros. No artigo Der Grundriss der platonischen Ethik, de P. Stemmer, bem como no livro Die Suche nach dem guten Leben, de U. Wolf, encontram-se excelentes discusses sobre o tema.

    O texto grego reza: O adjetivo no superlativo , do positivo significa vantajoso, til. Mas pode ser tambm uti-lizado no sentido de meritrio ou de digno. Isso fica claro, quando se diz, usando-se o verbo , que mais meritrio morrer a viver ( ), expresso que ocorre, por exemplo, de acordo com A. Bailly (Dictionnaire Grec Franais, verbete , p. 1210), no orador Andcido de Atenas, do sculo V a.C.

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    meira fase de Plato.11 Quando Scrates, nesses dilogos, busca responder a questo o que x?, onde x est no lugar, dependendo do dilogo, de uma determinada virtude, seu interesse, em ltima instncia, seria o de responder em que consiste uma boa vida. O conceito de boa vida coincide, pelo menos nos primeiros livros da Politea , com a noo de bem.12 Desse modo, o centro das investigaes de Plato estaria em responder a questo sobre a boa vida, a melhor vida para o homem. Essa questo consiste em mostrar como o ho-mem deve restringir certos interesses e desejos imediatos e guiar sua vida de tal forma que seja considerada uma vida digna. Hoje em dia poderamos dizer que esse modelo de investigao moral busca dizer em que consiste uma vida com sentido ou, o que equivale ao mesmo, qual o sentido da vida.

    Essa questo retomada por Aristteles. As primeiras linhas da Ethica Ni-comachea (1094a1ss.) apontam para o fato de toda atividade humana dirigir-se a um fim, sejam as atividades de cunho terico ( e ), sejam aquelas de cunho prtico ( e ). Esse fim chamado de bem. Feitas essas observaes iniciais, Aristteles conclui que existe um bem para o qual todas as coisas, i.e. todas as atividades, tendem.

    Aps a introduo da questo acerca desse bem ltimo, Aristteles se pergunta em que consiste esse bem (1095a14). A primeira resposta dada meramente nominal. Quanto ao nome, no h discusso: esse bem chama-se (1095a19), e ser consiste no viver bem ( ) e no bem agir ( ). Deve-se observar que, nesse contexto, quan-do Aristteles fala do bem agir, ele est usando essa expresso no sentido amplo, englobando qualquer tipo de atividade humana, sejam as de cunho terico, sejam as de cunho prtico. O bem agir aqui sinnimo do bem viver.

    Mas dizer que o fim ltimo o que tem o nome de eudaimonia no ainda oferecer uma explicitao dessa noo. Para uma explicao adequada do bem ltimo, deve-se, agora, perguntar em que consiste a eudaimonia. Se, por um lado, todos parecem concordar que o bem ltimo o que chamado de eudaimonia, grandes so, por outro lado, as discordncias quando se tenta dizer em que consiste a eudaimonia (1095a-17ss.). Para uns ela consistiria no prazer, para outros na honra, para uns terceiros na contemplao ou teoria e,

    Cf. Politea, I, 344e1-3; X, 618c4-6, e4, 619a5. Conforme mostra P. Stemmer (1988, 529), a res-posta questo sobre como se deve viver o que move a prpria investigao filosfica (Politea IX, 578c6s.; Laches, 187e6-188a3; Grgias, 472c5-d1; 500c1-4). Graas ao artigo de Stemmer, fui levado a reconhecer a importncia da questo sobre a boa vida como a principal questo que moveu as investigaes de Plato em uma poca de seu desenvolvimento.

    Sobre a noo de bem na Politea, cf. o artigo de G. Santas Two Theories of Good in Platos Republic.

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    enfim, para um quarto grupo, ela equivaleria ao ganhar dinheiro. Teramos aqui quatro tipos de vida. E a questo que surge a acerca da mais adequada para se dizer que a pessoa que a vive um eudaimon.

    A fim de melhor precisar em que consiste a eudaimonia, Aristteles lanar mo do que ficou conhecido na literatura secundria como argumento do ou argumento baseado na funo do homem (1097b-24ss.). A plausi-bilidade do argumento do ergon para a determinao da eudaimonia pode ser mostrada do seguinte modo: (1) (ser ) = viver bem e agir bem; (2) viver bem ou agir bem = realizar bem sua funo; (3) a deter-minao da funo do homem indicar em que consiste o bem viver e o bem agir e, portanto, em que consiste a eudaimonia.

    Mas como se desenvolve o argumento do ergon?

    Inicialmente, Aristteles se pergunta se o homem tem uma funo (1097b-28ss.). No oferecida uma prova forte de que o homem tem uma funo, mas indicado, ao se comparar o homem com artesos como o carpinteiro e o sapateiro e com rgos do corpo, como o olho, a mo e o p, que seria im-plausvel supor que o homem no possui uma funo prpria.

    Em seguida, so descartados como sendo a funo prpria do homem de-sempenhos que ele compartilha com seres de outras espcies (1097b-35ss.). Sendo assim, o viver ( ) (1097b-5) no pode formar a funo do ho-mem, pois tambm as plantas participam da atividade vital () de alimen-tao () e de crescimento () (1098-2) e o que se busca no o que h de comum () (1097b-5) entre o homem e os outros seres vivos, mas o que lhe prprio () (1098a1). Tampouco a ativida-de sensitiva () pode coincidir com a funo do homem, pois dela compartilham os demais animais. O que resta e prprio ao homem , antes, um certo agir da (parte) (daquilo) que possui logos ( [sc. ] ) (1098a-3s.).

    Sendo a funo do homem a atividade em acordo com o logos, todos os homens tm essa funo como prpria. No entanto, nem todos os homens realizam bem essa funo. Apenas o bom homem o faz. O que distingue o bom homem dos homens em geral o fato de nele a funo estar sendo de-sempenhada com a superioridade em acordo com a virtude ( ) (1098a-11s).

    importante observar que, nesse contexto argumentativo, o termo bom no possui de antemo um sentido moral. No apenas os homens, mas todos os seres naturais e mesmo os artefatos tm uma funo e podem, desse modo,

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    ser ou no bons ao realizarem bem ou, conforme o caso, mal a funo que lhes cabe. Uma rvore, por exemplo, tambm pode ser considerada boa se realizar sua funo, digamos: dando frutos.

    Outra observao relevante o fato de o termo bom, nesse contexto, poder ser graduado, de tal modo que alguns sero melhores ou piores do que outros dependendo de quo mais adequadamente realizem sua funo.

    Dada a funo do homem (de que participam todos os homens) e dada a caracterstica que distingue o bom homem dos demais, Aristteles chega agora a uma definio do bem humano ou da eudaimonia. Esta mostra-se como a atividade da alma em acordo com a virtude ( (...) ) (1098a-17s). Essa definio necessita de alguns esclarecimen-tos. Em primeiro lugar, o termo atividade relevante, pois os entes em geral tm uma funo a realizar, um telos a atingir, e essa funo equivale a uma atividade, a um agir. Cabe aos entes uma atividade, um trabalho em direo a um fim. Em segundo lugar, no caso do homem que recebe o atributo de eudaimon, essa atividade desempenhada da melhor maneira, da Aristteles usar a expresso em acordo com a virtude. O termo virtude () um substantivo grego que funciona como o abstrato do adjetivo bom. No h, na poca clssica grega um substantivo cunhado a partir do adjetivo bom (), sendo, antes, usado o termo , cunhado, muito possivel-mente, a partir de um dos termos usados como superlativos de , a saber: .

    A est para o atributivo como, por exemplo, (justia) est para (justo) e f (sabedoria), para f (sbio). Por isso, daquilo que um bom X, pode-se tambm dizer que ele tem a virtude tpica a um X. Dizer de um homem que ele tem virtude no significa consequentemente outra coisa seno dizer que ele bom (Stemmer,1998, p.1532).

    Nesse sentido, a expresso em acordo com a virtude deve ser entendida como em acordo com o melhor desempenho de sua funo. E, como fica claro a partir dessas consideraes, no apenas o homem, mas quaisquer ti-pos de seres podem ter virtude. Enfim, deve-se, em terceiro lugar, explicitar

    Conforme mostra P. Stemmer (1998, p. 1532), os termos que poderiam funcionar como super-lativo de bom, a saber: e , no ocorrem na poca clssica, os dois ltimos encontram-se, aqui e ali, na Septuaginta e, ocasionalmente, mais tarde (idem, ibidem).

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    por que essa atividade uma atividade da alma. Para tanto, preciso notar que alma, para Aristteles, designa a fonte de movimento e alterao que um ente traz em si prprio. Alguns entes podem mover-se no espao ou alterar sua for-ma por causas a eles externas. Quando se empurra uma mesa ou se aumenta o tamanho de um muro, se provoca um deslocamento no espao ou uma altera-o na forma desses entes sem que a causa eficiente dessas mudanas esteja no interior desses prprios entes. Ao contrrio, quando uma planta cresce ou um animal se move no espao, eles o fazem a partir de si mesmos. A essa fonte in-terna de movimento e alterao, Aristteles chama alma. Sendo assim, ativi-dade da alma significa a atividade realizada por um ente a partir de si mesmo.

    Essa primeira definio de eudaimonia necessita, no entanto, de uma pre-ciso. Conforme visto acima, a atividade do homem que consiste na realizao de sua funo e que relevante para que se seja um eudaimon no qualquer atividade da alma, mas apenas aquela que prpria ao homem. Portanto, no se trata apenas de realizar qualquer atividade da alma de acordo com a virtu-de, mas sim de realizar a atividade da alma, no que toca a seu elemento racional, em acordo com a virtude. Essa preciso ser realizada no passo posterior da argumentao aristotlica quando sero tematizadas as partes da alma. Um indcio de que a referida preciso necessria pode ser visto na observao feita por Aristteles de que, se h vrias virtudes, a atividade em questo ser de acordo com a virtude melhor e mais completa ( ) (1098a18s.). Isso significa que, haven-do vrios tipos de virtude correspondentes a vrias partes ou desempenhos da alma, a eudaimonia ser a atividade da alma de acordo como a virtude afeta a sua parte mais eminente.

    No vou continuar desenvolvendo aqui a apresentao da estrutura argu-mentativa da Ethica Nicomachea. Gostaria apenas de chamar a ateno para o fato de que todo o objetivo das investigaes ticas aristotlicas consiste exa-tamente em determinar o bem ltimo ou a ou o sentido da vida. E ser exatamente guiando-se pela que os homens devem res-tringir seus interesses e desejos imediatos para viver uma vida com sentido.

    Antes de passar apresentao de modelos de tica baseados na noo de dever, so importantes algumas observaes. Inicialmente pode parecer estranho que se fale de tica sem que o outro esteja envolvido. Em geral quando se pensa em tica pensa-se em restries de interesses prprios em funo dos interesses de um outro. verdade que a questo central sobre em que consiste a parece, primeira vista, no envolver o outro. No entanto, tanto as investigaes ticas de Plato quanto as de Aristteles mos-

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    tram que no se pode viver uma boa vida sem que se seja justo. Justia uma virtude constitutiva da boa vida e essa virtude leva em considerao interesses dos outros. Essa importncia da justia e da consequente concernncia pelos interesses do outro parece ser essencial aos filsofos antigos e medievais, pois o homem era compreendido por eles como pertencendo essencialmente a uma comunidade.

    Uma segunda observao diz respeito prpria concepo de homem envolta nas investigaes morais das ticas do bem. Como ficou claro a partir do argumento do mencionado acima, supe-se, nesse tipo de investi-gao, que o homem tenha uma funo. De resto, no apenas o homem teria uma funo, mas todos os seres. H aqui uma viso teleolgica de natureza, em que os seres naturais so compreendidos a partir do desempenho que devem realizar. Essa viso teleolgica, qualitativa, de natureza desaparece na poca moderna. A natureza em geral e o homem em particular no so vistos mais como seres que tm um fim a realizar. As determinaes do homem com base em algum trao teleolgico passaram a ser rejeitadas como se estivessem comprometidas com uma metafsica infundada.

    Se as ticas do bem floresceram na Antiguidade e na Idade Mdia, como demonstram as investigaes ticas de Toms de Aquino, elas caram em des-crdito na filosofia de vrios autores modernos. Passo agora, ento, discus-so de um outro modelo tico, chamado de tica do dever.

    As ticas do dever

    Pode-se identificar na viso moderna de homem um conjunto de marcas que, ainda que recebam nfase diferenciada em autores variados, parecem estar presentes na maioria dos autores considerados modernos.

    Inicialmente o homem concebido como um indivduo, como um ser que, por essncia, no precisa pertencer a uma comunidade. verdade que, de fato, os homens vivem e mesmo precisam viver, por questes de proteo, com outros homens, mas esse conviver no faria parte do que o homem. noo de indivduo acresce-se uma outra caracterstica, a saber: a de igualdade. Tambm por princpio os homens so todos iguais. Isso significa que no mais se assume que o ser humano possua um papel na cadeia de seres, na estrutura da natureza, nem que se possa, no interior do grupo humano, falar de diferentes funes de homens, como afirmava

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    tica do Bem e tica do Dever

    Plato na Politea.14 Um terceiro ponto caracterstico do homem moderno consiste no fato de ele ser concebido como livre. Ele , tambm por princ-pio, tanto livre de restries impostas a ele por instncias externas, quanto livre para seguir o curso de vida que melhor lhe aprouver. A esse aspecto da liberdade, associa-se a autonomia, i.e. a capacidade do homem de atribuir-se, ele prprio a si prprio, as regras por que pautar sua vida e suas aes.

    Diante de uma tal viso de homem, no cabe mais falar de uma teleologia que determine qual o fim a ser realizado pelo homem. cada homem, cada indivduo, que determina para si mesmo o curso de vida que quer seguir. No h mais uma objetividade nas investigaes sobre o fim do homem. As ideias de bem, de boa vida, ficam legadas determinao privada de cada um.15

    O homem , sobretudo em algumas teorias clssicas modernas, determi-nado a partir de caractersticas mecnicas, como um ser que possui certos desejos e interesses que busca realizar ao longo de sua vida. A viso hobbesia-na de homem, presente, por exemplo, na Primeira Parte do Leviathan, ilustra essa posio.

    Essa viso de homem produz um problema para a convivncia dos indi-vduos. Se os indivduos so iguais, livres e autnomos e buscam, cada um, realizar seus interesses, acabaro entrando em conflito uns com os outros, j que muito provvel que a realizao dos interesses de um impea a realiza-o dos interesses do outro. A questo que ento surge : Como coordenar a convivncia humana de modo a evitar esses conflitos?

    No se pode mais, para tanto, recorrer aos modelos morais do bem, como haviam sido propostos na Antiguidade e na Idade Mdia, pois eles compro-metem-se com uma viso qualitativa, teleolgica, de homem, uma viso que caiu em descrdito. O que aparecia mais evidente a pensadores modernos seria recorrer formao de uma estrutura estatal fundada, no mais em uma

    Tendo mostrado no livro II que a justia est presente tanto nas almas das pessoas quanto na polis (368-3ss.), Scrates passa a examin-la no mbito da polis, construindo uma polis que seria justa. Para tanto, parte da ideia de que os homens esto, por natureza, dispostos para realizar diferentes tarefas, o que ilustrado pela alegoria dos metais, no livro III, 415a-1ss. na realizao por parte de cada um da tarefa prpria a sua natureza que consistiria a justia. Para uma histria do conceito de natureza organizada hierarquicamente, de tal modo que os seres dessa hierarquia teriam cada tipo uma funo prpria, cf. A. O. Lovejoy, The Great Chain of Being.

    Mesmo hoje em dia, as posies liberais enfatizam, de modo mais ou menos nuanado, a inde-pendncia das ideias de bem com relao a valores objetivos. A determinao da noo de bem, de boa vida, fica a critrio de cada indivduo.

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    essncia dos homens como seres, por natureza, sociais, mas antes em uma adeso voluntria, uma adeso que, embora produzisse restrio realizao dos interesses dos indivduos, acabaria, a mdio prazo, por ser-lhes favorvel, pois evitaria uma situao de constante conflito. Essa parece ser a motivao para as teorias do contrato social.16

    Se, do ponto de vista poltico, tenta-se explicar as restries de interesses atravs das teorias contratuais do estado, com relao defesa de uma posio moral, parece que a modernidade fica em uma situao difcil. Se moral foi entendida, como sugeri no incio deste texto, como dizendo respeito res-trio de interesses e desejos imediatos em prol de alguma outra coisa, o que parece, na modernidade ocupar esse lugar uma teoria contratual do estado, uma teoria que no mais recorre a uma noo teleolgica de bem, mas a uma adeso voluntria de indivduos para, em restringindo a perseguio de alguns de seus interesses e desejos imediatos, obter uma vantagem a mdio prazo.

    No entanto, a modernidade prope algumas teorias morais que no so simplesmente teorias contratuais do estado. Os exemplos mais conhecidos so o kantismo e o utilitarismo. Em ambos os casos, sero apresentadas regras que restringem os interesses individuais em prol de interesses de outros. comum referir-se ao modelo kantiano como uma tica do dever, uma ti-ca deontolgica, ainda que o modelo consequencialista, utilitarista, no seja considerado como uma moral do dever. Chamei este item de meu texto de ticas do dever porque exemplificarei o modelo moderno, sobretudo a partir da moral kantiana. Um contraposto ao modelo das ticas do bem poderia igualmente ser feito com base em uma proposta utilitarista, abordagem que, no entanto, no ser seguida aqui.

    Na obra Fundamentao da Metafsica dos Costumes, Kant, como j indiquei acima, comea por observar que h um uso do termo bom no relacional (1785, BA, 1). Esse uso, que faria parte do nosso vocabulrio ordinrio, sig-nifica moralmente bom. A partir desse emprego da palavra bom, Kant vai determinar o que significa moral e como se justificam as exigncias morais.

    O objeto a que se aplica o predicado bom a vontade (1785, BA, 1). Ao se dizer que uma pessoa boa, no sentido moral, o que se tem em vista que a vontade dessa pessoa determinada de um modo peculiar. Para explicitar o que significa dizer de uma vontade que ela boa, Kant recorre ao conceito de dever (1785, BA, 8). Trs momentos so aqui considerados. Inicialmente,

    conhecida a posio de Hobbes segundo a qual a situao do homem, antes de realizar o pacto e instituir o estado, consistiria em uma guerra generalizada. Cf. De Cive, cap. I, XII; Leviathan, cap. 13.

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    todas as aes que esto em desacordo com o dever (pflichtwidrig) devem ser excludas como no morais (1785, BA, 8). importante observar que, apesar de Kant referir-se, nesse passo, a aes, o que a ele importa a vontade que produz essas aes. Um segundo momento consiste em excluir as aes que, ainda que conformes ao dever (pflichtmig), no foram realizadas pelo dever (aus Pflicht) (1785, BA, 8). Sobram, ento, como moralmente vlidas aquelas aes que no so apenas conforme ao dever, mas tambm realizadas pelo dever (1785, BA, 9).

    Alguns exemplos podem elucidar o que Kant tem em vista. Se um co-merciante agir de modo a cobrar um preo acima do adequado a um cliente, ele estar agindo em desacordo com o dever e, portanto, sua ao no ser moral. Quando ele, por sua vez, cobra o justo preo, mas apenas com vistas a aumentar a clientela, ele estar agindo conforme o dever, mas no pelo dever e sim, no vocabulrio de Kant, por uma inclinao (Neigung). Nesse segundo caso, sua ao tampouco ser moral. Se, enfim, em uma terceira hiptese, ele cobra o justo preo, mas no porque ter alguma vantagem com essa ao, mas apenas porque isso que o dever exige dele, ele estar agindo no apenas de acordo com o dever, mas tambm pelo dever. apenas nesse caso que sua ao pode ser considerada moral.

    Kant estabelece trs proposies que caracterizariam a ao moral:17 (1) uma ao, para ser moral, deve ser realizada em conformidade e pelo dever; (2) uma ao por dever tem seu valor moral no no objetivo a ser alcanado pela ao, mas pela mxima de acordo com a qual essa ao determinada; e (3) o dever consiste na necessidade de uma ao a partir do respeito (Achtung) pela lei.

    Algumas observaes devem ser feitas aqui sobre essas afirmaes. Inicial-mente, o que Kant chama de mxima uma representao que determina a vontade humana. Uma mxima pode ser ilustrada pela formulao eu quero p, onde p uma proposio geral que, no caso da moralidade, significa agir de acordo com o dever.18 com base na mxima que determina o que se quer

    Na verdade, o texto de Kant menciona explicitamente a segunda proposio em BA 13 (der zweite Satz) e a terceira proposio em BA 14 (der dritte Satz). O texto no indica explicitamente uma primeira proposio (der erste Satz), mas pode-se inferir o que Kant, no texto, considera como a primeira proposio.

    O conceito de mxima em Kant no totalmente claro. Na Fundamentao da Metafsica dos Cos-tumes, em duas notas (1785, BA 15 e BA 51), mxima definida ora como o princpio (Prinzip) subjetivo do querer (BA 15), por oposio lei prtica, que seria o princpio objetivo, i.e. vlido para todos os seres racionais, ora definida como o princpio (Prinzip) subjetivo do agir (BA 51). J na Crtica da Razo Prtica, a mxima definida como o princpio (Grundsatz) subjetivo que contm uma determinao geral da vontade, determinao esta que possui sob si vrias regras prticas (1788, A35). No vou aprofundar-me no conceito de mxima neste texto, limitando-me explicao que apresentei.

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    e no nas consequncias que a ao pode ter que se determina se ela ou no moral.

    Em segundo lugar, o conceito de lei consiste em um preceito de ao que vale para todos os seres racionais, dentre os quais est o homem. Os seres ra-cionais no humanos seguem diretamente essa lei. No caso dos homens, eles podem segui-la, quando a mxima que determina sua vontade consistir em querer agir de acordo com o dever, ou no segui-la, quando a determinao de sua vontade se der pelas inclinaes. Por essa explicao observa-se que h duas possibilidades de determinao da vontade humana: a lei, que tem sua origem na razo, e as inclinaes, que seriam desejos sensveis.

    Um terceiro ponto a ser elucidado consiste em dizer em que consiste a lei. A lei um princpio da ao que vale para todos os seres racionais, mas o que diz exatamente esse princpio? Como os homens no so seres racionais que determinam sua vontade e agem diretamente a partir do que a lei determina, podendo tambm agir pela determinao das inclinaes, a lei representada pelos homens como um imperativo e um imperativo que comanda catego-ricamente.19 As formulaes do imperativo categrico so apresentadas na segunda seo da Fundamentao da Metafsica dos Costumes. Vou limitar-me aqui a mencionar a primeira formulao, que reza: age apenas de acordo com aquela mxima a partir da qual tu possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal (BA 52).20

    Kant tem uma concepo de pessoa humana de acordo com a qual o ho-mem um ser que participa de dois mundos, um mundo sensvel, em que somos movidos por inclinaes, i.e. por desejos e interesses, e um mundo racional, graas ao qual podemos ser movidos pela razo. s quando nossa vontade determinada pela razo que seremos seres com valor moral. Kant

    Kant diferencia, como se sabe, entre dois tipos de imperativos: os hipotticos e os categricos (1785, BA 39ss.). Os primeiros exigem que se realize uma ao para que se alcance um dado fim; os segundos exigem a realizao de uma ao sem considerao dos fins. Os imperativos que apresentam, para ns homens, o que exige a lei moral s podem ser categricos.

    As formulaes do imperativo categrico apresentadas na Fundamentao da Metafsica dos Costu-mes so: (I) age apenas de acordo com aquela mxima a partir da qual tu possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal (BA 52) (frmula da lei universal); (Ia) age como se a mxima de tua ao devesse tornar-se, pela tua vontade, uma lei universal da natureza (BA 52) (frmula da lei da natureza); (II) age de tal modo que tu consideres (brauchtest) a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e nunca mera-mente como um meio (BA 66s.) (frmula do fim em si mesmo); (III) Que a vontade possa, por meio de sua mxima, considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal (BA 76) (frmula da autonomia); e (IIIa) age segundo mximas que possam ter por objeto a si mesmas como leis universais da natureza (BA 81s.) (frmula do reino dos fins).

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    considera, de resto, que o que prprio do homem a razo, sendo o ele-mento sensvel algo que, ainda que conectado a ele, , de certo modo, externo a sua natureza ou, pelo menos, a sua natureza mais elevada. Quando, ento, a vontade determinada pelas inclinaes sensveis, h uma determinao he-ternoma, de algo estranho ao homem; quando, ao contrrio, for a razo que determinar a vontade, haver uma determinao autnoma, uma determina-o do homem por ele mesmo, por algo que lhe mais prprio. Determinar a vontade pela razo e agir em conformidade com ela , portanto, um caso de moralidade e autonomia.

    Cabe, enfim, perguntar como possvel que a vontade humana possa no ser determinada pelas inclinaes sensveis, mas sim pela razo. Parece no ser problemtico afirmarmos que somos movidos por interesses, mas no , pelo menos primeira vista, plausvel afirmarmos que a razo determina o que queremos. Kant tenta solucionar esse problema apelando para a liberda-de (1785, AB 97ss.), mostrando que, graas liberdade, somos capazes de deixar de lado as inclinaes e ser determinados pela razo.

    O modelo kantiano busca fundamentar as restries de nossos desejos e interesses com base em um conceito de razo que o homem compartilharia com os demais seres racionais. A lei racional aquilo em que, em ltima ins-tncia, se fundaria a moral. Trata-se aqui de um fundamento formal que nada tem a ver com a noo de boa vida.

    Consideraes finais

    Passo agora a algumas consideraes com o objetivo de comparar os dois modelos de teorias morais, i.e. os dois modelos que buscam legitimar por que se devem restringir interesses e desejos imediatos em prol de algo outro.

    Nos modelos da tica do bem, o que serve como fundamento para tal restrio uma concepo de boa vida do ser humano. De acordo com esse modelo, uma concepo de vida com sentido que dever servir para direcio-nar nossas vidas e o curso de nossas aes. A posio kantiana, ao contrrio, por exemplo, da de Aristteles, busca determinar a moral, i.e. a restrio de nossas inclinaes com base em uma concepo de lei racional que serviria para a determinao de nossa vontade. Essa lei aparecia a ns como um dever.

    A posio aristotlica parece buscar restringir nossos interesses imediatos em nome de um interesse que, ainda que no imediato, parece concernir a todos os humanos, a saber: o interesse em viver uma vida com sentido. Pare-ce um dado antropolgico que todos ns tenhamos um interesse em nossas

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    vidas, em que nossas vidas sejam dignas de ser vividas. Nesse sentido, as ticas do bem talvez tenham alguma plausibilidade. O modelo kantiano, no entanto, s faz sentido para quem admite um conceito de razo que no sirva apenas para nos dizer quais os melhores meios para obtermos certos fins, fins esses dados independentemente da razo, mas para dizer que fins devemos perseguir independentemente de nossos interesses.

    Diante disso, se as investigaes que buscam justificar a moral, ou melhor, as restries exigidas pela moral pretendem ainda ser relevantes a ns hoje em dia, no sendo meramente uma investigao marcada por erudio hist-rica, creio que seria a partir de uma retomada antes de um modelo da tica do bem do que de um modelo da tica do dever.

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