ÉTICA E AUDITORIA MÉDICAPaulo Jardim Pires

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE GAMA FILHO DO RIO DE JANEIRO Curso de Especializao Lato Sensu em Auditoria em Sade

TICA E AUDITORIA MDICA

Paulo Antonio Jardim Pires

Rio de Janeiro 2003

Paulo Antonio Jardim Pires

TICA E AUDITORIA MDICA

Trabalho apresentado em cumprimento s exigncias para concluso do Curso de Especializao Lato Sensu em Auditoria em Sade, da Universidade Gama Filho RJ em parceria com a Universidade UNIMED-MG. Orientadora: Profa. Silvia Maria de Contaldo

Rio de Janeiro 2003

Paulo Antonio Jardim Pires tica e Auditoria Mdica

Trabalho apresentado em cumprimento s exigncias para concluso do curso de Especializao Lato Sensu em Auditoria em Sade, da Universidade Gama Filho RJ em parceria com a Universidade UNIMED-MG.

Prof. Dr.

Prof. Dr.

Prof. Dr.

Avaliao final:

A meus pais.

Agradeo: orientadora, Profa. Silvia Maria de Contaldo, pelo constante estmulo. Cooperativa UNIMED-Porto Alegre, por me proporcionar este curso.

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire. O que agradece que na terra haja msica. O que descobre com prazer uma etimologia. Dois funcionrios que num caf do Sul jogam um silencioso [xadrez. O ceramista que premedita uma cor e uma forma. Um tipgrafo que compe bem esta pgina, que talvez no lhe [agrade. Uma mulher e um homem que lem os tercetos finais de [certo canto. O que acaricia um animal adormecido. O que justifica ou quer justificar o mal que lhe fizeram. O que agradece que na terra haja Stevenson. O que prefere que os outros tenham razo. Essas pessoas, que se ignoram, esto salvando o mundo. (J. L. Borges, Os justos)

RESUMO

Este trabalho objetivou fundamentalmente demonstrar a relao entre a tica em geral, como estudo da conduta humana, e a auditoria em sade, com base em raciocnios morais no religiosos, sem ocupar-se com os cdigos de tica. A pesquisa foi embasada em livros, artigos e entrevistas, e o mtodo utilizado foi o reflexivo. Analisou-se o estgio atual da tica, seu histrico, conceitos, princpios e as diversas correntes da filosofia moral na atualidade. Buscou-se conhecer o homem moderno, sua sociedade e a influncia da modernidade sobre a tica em geral e sobre a auditoria em sade. Procurou-se evidenciar o poderoso vnculo tico entre as cooperativas de servios mdicos e seus auditores para revelar a simultnea coresponsabilidade social de ambos. E, finalmente, destacou-se a funo pedaggica do auditor e sugeriram-se debates, bem como a necessidade de novos caminhos para a tica nessa rea.

ABSTRACT

Essentially the subject of this work was to demonstrate the connection between general ethics as the study of the human behavior and Medical Audit based on non-religious moral reasoning, not concerning to code of ethics. Applied materials were books, articles and interviews. The reflective method was applied. State of the art for ethics, its history, concepts, principles and the various trends in current moral philosophy were analyzed. The modern man, his society and its influence on general ethics and Medical Audit were studied. The powerful ethic link between Medical Service Cooperatives and their auditors was showed in order to reveal the coincidental social responsibility of both. Finally auditors pedagogical action was emphasized and debates were suggested in order to stand out the necessity of new ways for ethics in this area.

SUMRIO

1 INTRODUO.................................................................................................................. 10 2 MATERIAL E MTODOS............................................................................................... 15 3 TICA, CONCEITOS E RESUMO HISTRICO......................................................... 16 3.1 Utilitarismo........................................................................................................................ 33 3.2 A tica consequencialista ................................................................................................. 38 3.3 Bom e mau......................................................................................................................... 40 3.4 Conscincia moral............................................................................................................. 41 3.5 Universalizabilidade da tica............................................................................................. 44 3.6 A tica e a razo................................................................................................................ 45 3.7 O sentido da vida............................................................................................................... 49 3.8 A tica e a vida boa........................................................................................................... 57 3.9 possvel viver em sociedade e ser tico?........................................................................ 61 3.10 Interesse pessoal na tica................................................................................................. 65 3.11 A discrdia na sociedade................................................................................................. 68 3.12 A questo da verdade....................................................................................................... 69 3.13 As decises majoritrias.................................................................................................. 76 3.14 A razo............................................................................................................................ 80 3.15 Os nveis de raciocnio moral.......................................................................................... 82 3.16 Altrusmo......................................................................................................................... 82 3.17 A questo da liberdade.................................................................................................... 89 3.18 Cincia, Filosofia e Tcnica........................................................................................... 96 3.19 O processo de valorao.................................................................................................104 3.20 A questo do tempo........................................................................................................ 109 3.21 Poltica e tica.................................................................................................................111 3.22 Os especialistas em moral.............................................................................................. 117 4 A MODERNIDADE.......................................................................................................... 122 4.1 O hedonismo.....................................................................................................................123 4.2 A permissividade.............................................................................................................. 123 4.3 O consumismo.................................................................................................................. 124 4.4 O cepticismo e o ideal assptico.......................................................................................125 4.5 A arte e a cultura ps-moderna.........................................................................................132 4.6 A perda do assombro........................................................................................................ 136 4.7 O discurso da felicidade................................................................................................... 138 4.8 O fim de uma era.............................................................................................................. 139 4.9 A esperana de uma nova era........................................................................................... 142

5 UTOPIA..............................................................................................................................145 5.1 Cooperao e cooperativismo...........................................................................................147 5.2 Cooperativismo: um processo social e histrico.............................................................. 151 6 DISCUSSO...................................................................................................................... 160 7 CONCLUSES..................................................................................................................175 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................... 177

10

1 INTRODUO

Se um homem pudesse escrever um livro sobre tica, que fosse verdadeiramente um livro sobre tica, esse livro, como uma exploso, aniquilaria todos os outros livros do mundo.(Wittgenstein)

Esta monografia no se destina propriamente anlise da auditoria em sade, mas aos fundamentos das relaes entre a tica e essa auditoria Pressupe, portanto, que o leitor, de alguma forma, tenha conhecimento prvio dos conceitos bsicos e das aes em auditoria na sade, bem como de seu resumo histrico, j que este trabalho se destina a um curso de especializao cujo ttulo exatamente esse. Em segundo lugar, porque a bibliografia sobre auditoria em sade suficientemente rica, o oposto do que ocorre quando se pesquisam as profundas ligaes entre tica e auditoria mdica. Este assunto ainda indito. Da seu ttulo: tica e Auditoria Mdica. Porque no tica para Mdicos Auditores? Por uma razo muito simples: quando considerada orientadora da conduta dos seres humanos a tica nica em seus princpios, sejam quais forem as profisses em foco. No existem ticas diversas para profisses diversas; os princpios so sempre os mesmos. Quando aplicados s profisses, o que varia so seus cdigos. O que pode ser particularizado a tica normativa, isto , os cdigos especficos, resultados dos costumes e imersos no espao e na temporalidade, dirigidos a ofcios diversos. Os cdigos so o produto de grupos humanos singulares, mas sofrem alteraes e evoluem ao lado dos avanos da sociedade humana tida como um todo.

11

A tica, seja ela uma tica dos meios e fins, ou uma tica dos mveis, sempre uma cincia do comportamento do ser humano, e no das profisses. Esta monografia no tem por objetivo o estudo das normas de comportamento, mas sim a reflexo sobre o porqu de considerarmos vlidos esses cdigos e condutas. A tica no foi uma criao consciente da humanidade, mas um produto da vida social humana, nico e, como tal, propriedade caracterstica da espcie, no de cada profisso. Outro motivo para que no exista uma tica para cada grupo de atividade humana, o fato de ela ter como um de seus princpios bsicos a procura da universalidade, ou pelo menos a universalizabilidade. As condutas humanas variam, mas a bssola que guia a humanidade at as condutas corretas tem sempre o mesmo nome: tica. o que pretendemos ressaltar. Deve ficar claro tambm que a tica ser enfocada com base em raciocnios morais no religiosos . Porque foram includos captulos sobre cooperao e cooperativismo? Ora, o cooperativismo tem fundamentos essencialmente ticos, o que gera vnculos muito fortes com a auditoria em sade, tambm ainda pouco estudados. Por outro lado, um grande nmero de auditores em sade exerce suas atividades numa Cooperativa de Servios Mdico (UNIMED), e a maioria dos alunos especializao freqentam a Universidade UNIMED. Alm disso, no atual contexto da poltica nacional de sade as cooperativas mdicas assumem importncia indiscutvel. fundamental que se tente encontrar uma resposta para a atual crise pela qual elas passam, sob pena de ver ainda mais onerado o sistema pblico nacional de sade, com todas as trgicas conseqncias que da surgiro. desse curso de

12

O que se pretende aqui evidenciar que a tica deve preceder ao, isto , ela deve antecipar-se, como planejamento, a qualquer tentativa de atender s questes econmicas, sociais ou polticas das cooperativas. Enquanto o principal foco ficar resumidamente centrado apenas nestas trs questes, no ser possvel encontrar um rumo, um caminho, que norteie as aes. Sfocles, em dipo Rei diz que, o que nos torna responsveis no o que projetamos fazer, nem o que efetivamente fazemos, e sim a reflexo a posteriori do que fizemos. Para que essa reflexo no leve ao sentimento de culpa, para que aceitemos com prazer a responsabilidade do ato preciso que ele tenha sido tico. O que pode ou deve ser feito, como deve ser feito, por quem deve ser feito, so algumas das perguntas s quais a tica necessariamente ter de oferecer sugestes, anteriores execuo das aes. nesse palco que o auditor em sade, principalmente o auditor das cooperativas, vai atuar com importncia crtica para o pas. Pela sua ao pedaggica, fundamentada na tica, ele antecipa resultados, constri e reconstri as relaes entre o auditor e os auditados. Esses vnculos entre o auditor e os mdicos cooperados ou no, pacientes, a prpria cooperativa ou seguradoras privadas, o Poder Judicirio, o poder pblico em geral, hospitais, corpos clnicos, empresas prestadoras de servios, Conselhos Regionais de Medicina, Conselhos de tica dos hospitais e Comisses Tcnico-Disciplinares das cooperativas - e tantas outras constituem relaes extremamente complexas e imbricadas, cruzadas e interdependentes, geradoras de conflitos e ansiedade em todos e entre todos - os componentes dessa malha. Isso exige do mdico auditor uma viso sistmica e, ao mesmo tempo muito especfica e tcnica, mas tambm e antes de tudo uma viso ampla, slida e confivel daquilo que se queira chamar de tica.

13

Porque aprofundar as questes ticas se no cotidiano o que mais utilizamos nossa intuio? Na tica no h anlises superficiais e singelas. Ela trata da correta conduta humana, isto , da liberdade, que complexa. A base, o fundamento oculto de nossas convices, tem de ser slida para suportar o choque da evoluo, da contestao, da reforma necessria, da eterna procura da verdade. Porm, essa tica no deveria ser compromisso apenas do auditor, mas atributo da cooperativa, do hospital, do paciente e seus familiares, bem como de todos os demais personagens envolvidos, incluindo a mdia. A est a ao pedaggica do auditor. J foi dito que se sabe muito pouco, quase nada, sobre a relao tica - auditoria em sade, por ser essa uma especialidade muito recente. Trata-se de dar um primeiro passo para o estudo desse assunto, evidenciar suas implicaes e destacar a urgncia do seu desenvolvimento, para que as aes futuras no estejam sujeitas ao fracasso e ao desespero. A discreta contribuio que este trabalho tem a pretenso de trazer exatamente esta: inaugurar um caminho, estimular a pesquisa, desafiar organizaes, oferecer alternativas nos conflitos, questionar normas escritas, em suma, promover a inquietude, para que, a partir de uma nova viso da tica, possa nascer um tempo mais benigno e promissor para a Auditoria Mdica. A preocupao na qual vive atualmente uma boa parte dos auditores poderia ser o prprio impulso para alavancar solues. A relevncia social da questo explcita, uma vez que, em sade, lucro deveria ser um meio, nunca um fim. Hoje (lembrando Oscar Wilde) sabe-se o preo de todas as coisas... e o valor de nenhuma.

14

Uma nova prtica tica, abrangente e ao mesmo tempo mais especfica realizvel? Parece certa a possibilidade de conseguir modificaes no mbito da realidade abarcada por esse tema, desde que se tome a tica como orientadora das condutas tanto individuais como coletivas. Tem-se esperana de que esta monografia consiga alguma produo de conhecimento. Se assim for, ela dever beneficiar a todos os que de alguma forma estejam envolvidos no processo de Auditoria em sade. Pode parecer utpico tentar despertar, dentro da sociedade mercantilista, a ateno para a prioridade da tica nessas relaes. Muito ambicioso, ento, querer desvendar novos rumos? Certamente. Chamamos em nossa defesa Antonio Machado, poeta espanhol, em Provrbios y Cantares: ... caminante, no hay camino se hace camino al andar. Seria isso viver na incerteza? Creio que sim. Mas como diria Fernando Savater (2001, p. 208-209): Quem no for capaz de viver na incerteza, far bem em nunca se por a pensar".

15

2 MATERIAL E MTODOS

Os materiais utilizados foram livros, artigos e entrevistas, com datas no inferiores ao ano 2000, para que pudesse ser feita uma avaliao do estado atual da tica atravs de autores modernos. Algumas citaes nas notas de rodap referem-se a trabalhos publicados em datas anteriores, mas apenas como exemplos ou observaes complementares. O mtodo utilizado foi o da reflexo, procurando sempre raciocinar do geral em direo ao particular. As concluses obviamente so resultado do processo reflexivo e, quando devido complexidade do assunto no so possveis resultados definitivos, nos limitamos a levantar a questo e apresentar sugestes para debate. A pesquisa bibliogrfica revelou a ausncia de trabalhos nesta rea sob a perspectiva inicialmente proposta pela monografia.

16

3 TICA, CONCEITOS E RESUMO HISTRICO

Filosofar no deveria ser sair de dvidas, mas entrar nelas. (Fernando Savater)

Segundo Kant, conceito o que permite identificar inequivocamente alguma coisa e, alm disso, fornece uma regra prtica para constru-la ou julg-la (SAVATER, 2001, p. 172). Quem sabe uma das tarefas mais difceis da filosofia seja dizer o que a tica . Os filsofos vm tentando faz-lo, com relativo insucesso. Talvez porque definir quer dizer por fines, limites, atributo que a tica no tem. Se assim fosse, a conduta humana, ou seja, a liberdade estaria limitada. Possivelmente seja mais fcil dizer o que a tica no . De incio, preciso deixar bem claro que h uma diferena entre tica e deontologia. Segundo Houais (2001, p. 2922) a deontologia pode ter trs acepes: 1) Deontologia a teoria moral criada pelo filsofo e jurisconsulto ingls Jeremy Bentham (17481832) que, rejeitando a importncia de qualquer apelo ao dever e conscincia, compreende na tendncia humana de perseguir o prazer e fugir da dor o fundamento da ao eticamente correta. 2) Deontologia o conjunto de deveres profissionais do mdico, estabelecidos em um cdigo especfico. Por extenso, seria o conjunto de deveres profissionais de qualquer categoria profissional, minuciados em um cdigo especfico. 3) Deontologia mdica, ou tica mdica, o conjunto de regras internas do exerccio da medicina, como por exemplo, as contidas no juramento de Hipcrates. Para Abbagnano (2000) deontologia um termo criado por Bentham para designar uma cincia do conveniente, ou seja, uma moral fundada na tendncia a perseguir o prazer e fugir da dor e que no lana mo de apelos conscincia e ao dever. Muito diferente desse

17

uso o proposto por Antonio Rosmini (17971855) que entendeu por deontolgicas as cincias normativas, ou seja, as que indagam como deve ser o ente para ser perfeito. O pice das cincias deontolgicas seria a tica (doutrina da justia). Esta monografia no tem por objeto a deontologia, mas a tica na sua acepo mais geral, como cincia da conduta. Ainda conforme Abbagnano (2000), h duas concepes fundamentais da tica: 1) A tica uma cincia do fim e dos meios, isto , orienta a conduta dos homens e tambm procura os meios para atingir tal fim, deduzindo, tanto o fim quanto os meios, da natureza do homem. 2) A tica a cincia do mvel, isto , das causas da conduta humana, e procura determinar tal mvel com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta. Essas concepes se mesclaram, tanto na Antiguidade quanto no mundo moderno. Na primeira concepo a tica trata do ideal para o qual o homem se dirige devido sua natureza, isto , trata da natureza ou substncia do homem. Na segunda concepo a tica trata dos motivos ou causas da conduta humana, isto , das foras que determinam a conduta humana, atendo-se apenas ao conhecimento dos fatos. Essas duas concepes so profundamente diferentes. A confuso entre elas deve-se ao fato de que ambas costumam apresentar-se com definies aparentemente idnticas do Bem. Mas a prpria noo de Bem ambgua. Na teoria metafsica o Bem a realidade, mais precisamente a realidade perfeita, ou suprema, e desejado como tal. Na teoria subjetivista o Bem aquilo que desejado, ou o que agrada, e tal s nesse aspecto (ABBAGNANO, 2000).

18

Portanto, Bem pode significar aquilo que (pelo fato de que ) ou aquilo que objeto de desejo ou de aspirao. Esses dois significados correspondem exatamente s duas concepes de tica. Note-se que, na primeira concepo de tica, a noo de bem", como realidade perfeita (ou perfeio real), uma caracterstica, enquanto que, na segunda concepo, encontra-se a noo de Bem como objeto de apetio. Por isso, quando se afirma que o Bem a felicidade, a palavra Bem tem um significado completamente diferente daquele que se encontra na afirmao o Bem o prazer. O significado da primeira assero se faz no sentido de que a felicidade a finalidade da conduta humana, e isso se deduz da natureza racional do homem. J na segunda assero, o significado que o prazer a causa habitual e constante da conduta humana. Sempre se deve ter presente, nas discusses sobre tica, a distino entre tica do fim e tica do mvel. Essa distino divide a histria da tica e permite ver como foram irrelevantes muitas discusses sobre tica, j que a causa exatamente a confuso entre esses dois sentidos. J a segunda concepo fundamental da tica aquela que constitui uma doutrina do mvel, isto , um princpio da conduta, ou seja, a doutrina que procura uma causa para a conduta do ser humano. Aqui o Bem no definido com base na sua realidade ou perfeio. O Bem o objeto da vontade humana, ou o objeto das regras que dirigem a vontade humana. Na primeira concepo as normas derivam de um ideal que se pressupe seja prprio do homem. Segundo Aristteles (384 a.C. 322 a.C.), seria a vida racional; segundo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), o Estado; segundo Henri Bergson (1859-1941), a sociedade aberta ou fechada; e assim por diante.11

Citados por Abbagnano (2000).

19

Na segunda concepo procura-se, antes de tudo, determinar a norma qual ele obedece de fato. Aqui o Bem aquilo a que o ser humano tem propenso, isto , aquilo a que se tende em virtude desse mvel (princpio, causa). Dito de outra forma, o Bem aquilo que for adequado norma na qual ele se expressa. Aguns exemplos. Prdico formulava sua moral em proposies condicionais, ou imperativos hipotticos. Com isso estava criando uma das primeiras ticas do mvel. Ele dizia: Se quiseres que os deuses te sejam benvolos, deves venerar os deuses. Aqui a norma : deves venerar os deuses. O mvel, isto , a causa para que se faa isso : porque desejas que os deuses te sejam benvolos. Outro exemplo, com o mesmo efeito: Se quiseres ser amado pelos amigos, deves beneficiar os amigos. Ou ento: Se aspiras ser admirado por toda a Grcia, deves esforar-te por fazer bem Grcia.2 Protgoras tambm aspira a uma tica do mvel quando afirma que o respeito mtuo e a justia so as condies para a sobrevivncia do homem". O mito de Prometeu tem o mesmo sentido. H uma obra conhecida pelo nome de Annimo de Jmblico que tem esse mesmo ponto de vista. Diz ela:Mesmo que houvesse (mas no h) um homem invulnervel, insensvel, com corpo e alma de ao, ele s poderia ser salvo aliando-se s leis e ao direito, fortalecendo-os, e utilizando sua fora por eles, e em favor deles, pois de outro modo no poderia resistir.3

Nessas exposies o que se evidencia o mecanismo dos mveis (motivos) que geram as normas do direito e da moral. Para sobreviver o homem conforma-se s regras e no pode2 3

Xenof., Memor...II, I, 28 Ann. Jmbl., 6, 3.

20

agir de outro modo. Nessas formulaes o motivo da conduta humana o desejo, ou a vontade, de sobreviver. Em outras formulaes, do mesmo gnero, o motivo (mvel) pode ser o prazer. Em funo dessas duas concepes pode-se esboar um resumo muito breve da histria da tica, fundamentado no texto de Abbagnano (2000) no verbete tica do seu Dicionrio de Filosofia. Entre os seguidores da primeira concepo da tica aquela fundamentada na natureza do ser humano pode-se encontrar Plato (427 a.C. /347 a.C.), os esticos, os neoplatnicos, Plotino (203/205 a.C. 270 a.C.) e outros, que prolongam esse esquema atravs de toda a tica medieval. Duns Scot e outros escolsticos do sculo XIV que iniciam uma crtica a essa formulao. Na filosofia moderna, os neoplatnicos de Cambridge retomam a concepo estica de ordem do universo. Quando surge a filosofia romntica, essa concepo tica assume uma forma mais radical. Com Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) e com Hegel o objetivo da conduta humana passa a ser o Estado. No sculo XIX Rosmini volta a conformar-se com a tica tradicional: o Bem se identifica com o ser. J na filosofia contempornea surge Thomas Hill Green (1836-1882), para quem querer o Bem significa querer a conscincia absoluta, isto , Deus. Do mesmo modo, para Groce (Filosofia della Pratica, 1909), a atividade tica a volio universal. Todas essas formulaes, como a de Fichte, Hegel ou Green, no se distinguem da tica tradicional que, como a de Plato, Aristteles, S. Toms de Aquino (1227-1274) e Rosmini recorrem Realidade ou ao Ser.

21

Com Bergson cria-se uma forma mais complexa e moderna da tica do fim: a moral aberta e a moral fechada. Quando, na filosofia contempornea, a noo de valor comeou a substituir a noo de Bem, a antiga alternativa entre tica do fim e tica da motivao comeou a assumir nova forma. As doutrinas da tica passam, ento, a reconhecer com Max Scheler (1874-1928) e com Karl Hartmann (1842-1906) a necessidade do valor ou a problemtica do valor (estreitamente aparentadas com as doutrinas ticas da motivao). O relativismo axiolgico de Frierich Nietzsche (1844-1941) tambm se baseia numa hierarquia absoluta de valores. Tem a mesma estrutura formal da tica de Hartmann (Ethik, 1926) e, de uma maneira geral, da tica tradicional do fim. A estrutura da doutrina de Niezsche no diferente da estrutura de muitas outras que, utilizando o mesmo processo, tendem a conservar e justificar as tbuas de valores tradicionais, deduzindo-as a partir da natureza do homem ou da estrutura do ser. Entre os seguidores da segunda concepo da tica a tica do mvel (causa, motivo) pode-se encontrar Aristipo de Cirene (435 a.C. 366 a.C.) e Epicuro de Samo (341 a.C. 270 a.C.), filsofos gregos da era helenstica. Durante toda a Idade Mdia esta segunda concepo esteve ausente e s retomada no Renascimento: Lorenzo Valla, nascido em Roma (14051457 d.C.), foi o primeiro a reapresent-la. Posteriormente, Bernardino Telesio (1508-1588) apresentou uma alternativa dessa mesma concepo. Thomas Hobbes (15881679) viu nesse princpio o fundamento da moral e do direito, enquanto Baruch Spinoza (16321677), no mesmo sculo, viu a ao humana necessitando da substncia divina. John Locke (16321704) e Gottfried Wilhelm Leibnitz (16461716) concordavam quanto ao fundamento da tica.

22

Para Locke, Deus estabeleceu um lao entre a virtude e a felicidade pblica, enquanto para Leibnitz adotar a alegria e evitar a tristeza era o fundamento da moral, ou seja, ambos viam, tambm, princpios ou mveis para conceituar a tica. A tica dos sculos XVII e XVIII, tem alto grau de uniformidade. Ela uma doutrina do mvel, mas tambm apresenta como base da moral uma oscilao entre tendncia conservao e tendncia ao prazer. Essa oscilao no implica numa diferena radical, uma vez que o prprio prazer no deixa de ser um indicador emocional daquelas situaes que so favorveis conservao. A filosofia moral inglesa do sculo XVIII tem importncia particular na histria da tica. Acentua-se a discusso entre a tica do mvel e a tica do fim. David Hume (17111776) apresenta muito bem essa discusso, e afirma que o primeiro a perceber essa distino foi Anthony Ashley Cooper, Lord de Shaftesbury (1671 1713), que falava de um instinto natural, ou divino, que corresponde, no homem, ao princpio de harmonia que regula o universo. Hutchinson interpretou o sentido moral como tendncia a realizar a maior felicidade possvel do maior nmero possvel de homens (Indagao sobre as idias de beleza e de virtude, 1725). Mais tarde o italiano Cesare Beccaria (17381794) e o ingls Jeremy Bentham adotariam essa mesma forma. Foi Hume que cunhou a palavra que exprimia essa nova tendncia: o fundamento da moral era, ento, a utilidade, expresso que mais tarde veio a designar a tica utilitarista. Aqui razo e sentimento constituem igualmente a moral. O filsofo e economista escocs Adam Smith (17231790), mais tarde, passa a chamar de simpatia ao sentimento do espectador imparcial que olha e julga a sua prpria conduta, e a dos outros.

23

Nessa mesma tradio deve-se inserir Immanuel Kant (17241804), j que sua concepo moral corresponde s caractersticas bsicas da doutrina do mvel. Ele transferiu o mvel (causa) da conduta humana: o sentimento deixava de ser a causa, para ceder lugar razo. Mas a tica de Kant, sem dvida, compartilha, tambm, da primeira concepo da tica, isto , preocupa-se basicamente em ancorar a norma de conduta na substncia racional do homem. A partir de Johann Fichte, a filosofia moral de Kant sofreu um desdobramento que teve, freqentemente, como ponto de partida, seu arsenal dogmtico e absolutista, e no suas colocaes fundamentais, nem a substncia de seus ensinamentos morais. Tanto esses ensinamentos, quanto a postura de que dependem, esto de acordo com a tica setecentista, com a diretriz moral do Iluminismo. Mas a contraposio estabelecida por Kant entre o mundo moral e o mundo natural, isto , entre a tica e a cincia da Natureza, j no compatvel com essa tica de 1700. Essa oposio transformou a tica kantiana na menina dos olhos dos metafsicos moralistas do sculo XIX. Ainda hoje, tanto amigos quanto adversrios de Kant vem sua tica exclusivamente sob dois aspectos: os amigos, para exalt-la como ancoradouro seguro de todas as certezas da vida moral; os adversrios para conden-la como baluarte das iluses metafsicas no campo moral. No contexto de 1700, poca de clima positivista, a tica do mvel tinha a pretenso de valer como cincia exata da conduta. O francs Claude Adrien Helvetius (17151771) acreditava que se devesse tratar a moral como todas as outras cincias e fazer uma moral como se faz uma fsica experimental. Essa pretenso caracteriza bem o utilitarismo de Bentham no sculo XIX, segundo o qual, os prazeres e as dores so os nicos fatos de que se pode partir no domnio da moral. Na

24

verdade sua obra inspirou a reforma do liberalismo ingls, e ainda hoje seus princpios esto incorporados doutrina do liberalismo poltico. O utilitarismo do escocs James Mill (17731836) e o do londrino John Stuart Mill (18061873) no passam de uma defesa e ilustrao da teses fundamentais de Bentham. O positivismo tambm se inspirou nesse ponto de vista, isto , a realizao da moral do altrusmo. Seu arauto foi o francs Auguste Comte (17981857), cujo princpio : viver para os outros. A tica biolgica do britnico Herbert Spencer (1820 903) adota essas mesmas teses. Para ele a moral a adaptao progressiva do homem s suas condies de vida. Ainda segundo Abbagnano (2000, p. 107), a chamada tica do evolucionismo apenas uma expresso da tica fundada no princpio da autoconservao, que Telsio e Hobes reintroduziram no mundo moderno. No deixa de ser surpreendente que na filosofia contempornea essa concepo da tica no tenha sofrido nenhuma mudanas nem progressos substanciais. Bertrand Russel (18721970) limitou-se a propor novamente essa concepo, na forma mais simples e grosseira, afirmando: a tica no contm afirmaes verdadeiras ou falsas, mas consiste em desejos de certa espcie geral.4 Para ele, afirmar que alguma coisa um bem, ou um valor positivo, outro modo de afirmar agrada-me, e dizer que algo mau significa exprimir, igualmente, uma atitude pessoal subjetiva. Entretanto, Russel acha possvel influir nos prprios desejos, reforando alguns, reprimindo ou destruindo outros e acha que isto deve ser feito por quem almejar a felicidade ou o equilbrio da vida. claro que essa posio contraditria: se a tica nada tem a ver com desejos, faltaro motivos ou critrios para que alguns desejos prevaleam sobre outros. Na tica de Russel perdeu-se um dos aspectos fundamentais da tica inglesa tradicional, isto , a disciplina na escolha dos desejos, ou seja, das alternativas possveis de conduta.4

Religion and Science, 1936

25

Porm, a concepo de tica que predomina no positivismo lgico filiou-se justamente a esse ponto de vista to mutilado, segundo a qual os juzos ticos expressam, to somente, os sentimentos de quem fala, sendo impossvel encontrar um critrio para determinar a sua validade5. Obviamente, este tambm o ponto de vista de Russel, para quem a tica trata de desejos, e no de asseres verdadeiras ou falsas. um ponto de vista que marca a renncia compreenso dos fenmenos morais, e no um avano em sua compreenso. Com o americano Jonh Dewey (18591952) surge um ponto de vista mais frutfero. Sua tica se vincula noo de valor. Ele acredita que os valores no so somente objetivos, mas so, tambm, simples6 e, portanto, indefinveis, mas no absolutos ou necessrios. Os valores so qualidades imediatas, sobre as quais nada h a dizer. S em virtude de um procedimento crtico e reflexivo que podem ser preferidos ou preteridos.7 Mas os valores so fugazes e precrios, negativos e positivos, e infinitamente diferentes em suas qualidades. Da a importncia da filosofia que, como crtica das crticas, tem o objetivo de interpretar acontecimentos e transform-los em instrumentos e meios de realizao dos valores e, em segundo lugar, tem o objetivo de renovar o significado dos valores. 8 Essa tarefa da Filosofia condicionada pela renncia crena na realidade necessria e no valor absoluto. Dewey afirma que abandonar a busca da realidade e do valor absoluto e imutvel pode parecer um sacrifcio. Mas essa renncia a condio para uma vocao mais vital. A filosofia no encontrar rivais na busca de valores que podem ser garantidos e compartilhados por todos, j que so valores vinculados aos fundamentos da vida social, mas poder encontrar coadjutores nos homens de boa vontade.95 6

Ayer, Language, Truth and Logic, p. 108 cf. Stevenson, Ethics and Language, p. 20. Simples aqui tem o significado de aquilo que carece de variedade ou de composio, isto , o que existe de um nico modo ou destitudo de partes (ABBAGNANO, 2000, p. 902). 7 Theory of Valuation, 1939, p. 13 8 Experience and Nature, p.394 e segs. 9 The quest for Certainty, p. 295

26

Segundo Abbagnano (2000, p. 387), essas consideraes de Dewey mostram o quadro em que a tica contempornea deve mover-se, mas no oferecem instrumentos eficazes, isto , ainda falta na tica contempornea uma Teoria Geral da Moral, que corresponda Teoria Geral do Direito, isto , uma teoria que considere a moral como tcnica de conduta e se dedique a considerar as caractersticas dessa tcnica e as modalidades com que ela se realiza em grupos sociais diferentes. Uma tal Teoria Geral da Moral no deveria partir de um compromisso prvio com uma determinada tbua de valores. Seu compromisso seria, simplesmente, considerar a constituio dessas tbuas que se oferecem ao estudo histrico e sociolgico da vida moral, com a descoberta se possvel das condies formais, ou gerais, de tal constituio. Mas essa teoria poderia, e deveria, usar amplamente a tica do sculo XVIII e, em geral, a tica da motivao, apresentando-se como a continuao dessa concepo. Quanto s relaes entre moral e direito, Abbagnano afirma que elas podem ser configuradas de vrias maneiras, mas no so relaes heterogneas, nem reciprocamente interdependentes. Para ele, a tica, como tcnica de conduta, primeira vista, parece mais ampla que o direito como tcnica de coexistncia. Porm, se considerarmos que toda forma de conduta uma forma de coexistncia, ou vice-versa, ver-se- que a distino entre os dois campos apenas circunstancial, e tem por objetivo delimitar problemas particulares, grupos de problemas, ou campos especficos de considerao e estudo. At aqui se viu um curto e rpido resumo da histria da tica e da evoluo do seu conceito, fundamentados na obra de Abbagnano. Havia-se dito que conceituar tica uma das tarefas mais difceis da filosofia e que, talvez, fosse mais fcil dizer o que a tica no . Uma abordagem mais especfica e menos complexa, mas nem por isto menos cientfica, poderia trazer mais compreenso para o tema.

27

o que se pretende. Para comear apresenta-se o pensamento de Fernando Savater (2002, p. 31, 52, 55). Segundo esse autor, como humanos pode-se, em parte, escolher e inventar nossa forma de vida, pois somos livres. Pode-se optar pelo que parece bom (conveniente), ou mau (inconveniente). evidente que erros podem ser cometidos. Durante a vida tenta-se adquirir um certo saber viver, uma certa arte de viver: a isto que se chama de tica. Ento, a tica ocupa-se precisamente com a liberdade. Ora, liberdade decidir sem se deixar levar. Ningum pode decidir "por mim", isto , sou obrigado a escolher e procurar "por mim" mesmo. A moral ou a tica nada mais do que empregar bem a liberdade de cada um. Logo, nada tem a ver com prmios ou castigos. H uma diferena tcnica entre tica e moral. Para Savater moral o conjunto de normas e comportamentos que as pessoas costumam aceitar como vlidos. tica a reflexo sobre porque se consideram vlidos estes comportamentos e normas. Tambm se pode dizer que a tica permite comparar as morais, isto , os comportamentos e normas de pessoas diferentes. Segundo Lichtemberg apud (SAVATER, 2000), a moral tem quatro princpios: 1) O princpio filosfico: faa o bem pelo prprio bem, pelo respeito lei; 2) O princpio religioso: "faa-o porque a vontade de Deus, por amor a Deus"; 3) O princpio humano: faa-o porque seu bem estar o requer, por amor prprio; 4) O princpio poltico: faa-o porque a sociedade, da qual voc faz parte, o requer, por amor sociedade e por considerao a voc mesmo.

28

A palavra moral vem de mores, do latim = costumes, e a maioria dos preceitos morais soa como ordens: faa isto, no faa aquilo. E, no entanto, h ordens e costumes imorais, porque so maus, isto , inconvenientes. As atitudes morais continuam at hoje sendo polmicas: aborto, homossexualidade, pornografia, eutansia, suicdio e sexo fora do casamento. Apesar disso, em geral, ponto pacfico o princpio de que todos os seres humanos so iguais. Mas os seres humanos no so todos iguais. John Rawls (apud SINGER, 1998, p. 27-28) diz que as caractersticas naturais dos seres humanos que sustentariam essa base so de dois tipos: 1) Propriedades de mbito. 2) Propriedades de personalidade moral. Imaginem-se pontos no interior de um crculo.Todos os pontos no interior desse crculo tm uma propriedade em comum: esto dentro do crculo. Todos tm igualmente essa propriedade, chamada de propriedade de mbito. Alguns podem ser mais perifricos, outros mais centrais, mas todos so pontos no interior de um crculo. A propriedade de personalidade moral diferente. Moral aqui utilizada como oposto de amoral Para Rawls uma pessoa moral a que tem senso de justia. A essa pessoa se pode fazer uma invocao moral com alguma perspectiva de que a invocao ser levada em conta. Esta uma propriedade que, virtualmente, todos os seres humanos possuem de forma igual. Rawls tem uma abordagem contratual da justia. Por isso afirma que a personalidade moral a base da igualdade humana. A tradio do contrato v a tica como uma espcie de acordo mutuamente benfica: no me agrida para no ser agredido. S esto dentro dessa esfera tica aqueles que: 1) compreendem que no esto sendo agredidos;

29

2) refreiam sua prpria agressividade. Ora, a personalidade moral uma questo de grau, mas exige um mnimo indispensvel para que algum possa situar-se na esfera do princpio da igualdade. Onde se traaria a linha que delimita esse mnimo? Se existem graus de status moral, devem existir direitos e deveres correspondentes aos graus de refinamento do senso de justia de cada pessoa. Alm disso, os seres humanos no so todos pessoas morais. Bebs, crianas, doentes mentais, no tm senso de justia. Rawls oferece, ento, um argumento ad hoc, isto , um argumento formulado com o nico propsito de legitimar ou defender uma teoria, e no em decorrncia de uma compreenso isenta e objetiva da realidade: passa a chamar as pessoas anteriormente citadas de pessoas morais em potencial. Em vista disso, no provvel que exista qualquer propriedade moralmente significativa que todos seres humanos possuam por igual. Isso no significa, porm, que os interesses de cada pessoa no devam ser igualmente respeitados. Quando os interesses de diferentes partes entram em conflito, devemos dar uma igual considerao a todos os interesses. Este o chamado Princpio de Igual Considerao de Interesses. Isso significa que os interesses mais prementes, ou fundamentais, deveriam ter precedncia sobre os menos fundamentais (SINGER, 1998, p. 270). Em vista do que foi exposto at aqui, como se poderia ento defender o Princpio de Igualdade entre os seres humanos? 1) Os seres humanos diferem entre si como indivduos (fato). 2) No h diferenas moralmente significativas entre seres humanos como, por exemplo, sexo e raa (fato). 3) Logo, as pessoas so moralmente (eticamente) iguais

30

Isso constituiria uma base factual para defender o princpio da igualdade. A crtica que se pode fazer a essa exposio de fatos a seguinte (SINGER, 1998, P. 29-33): As diferenas reais entre as pessoas (por exemplo, a inteligncia) so responsveis pela hierarquizao da sociedade. Essa sociedade no pode ser rejeitada atravs dessa base factual, pois tal sociedade se estrutura exatamente sobre essas diferenas. A reivindicao da igualdade no pode se basear na posse da inteligncia, ou da personalidade moral, da racionalidade ou de outras semelhantes. No existe nenhuma razo lgica e imperiosa que nos force a pressupor que uma diferena de capacidade entre duas pessoas justifique uma diferena na considerao que atribumos aos seus interesses. A igualdade um princpio tico, no uma assertiva factual. Este princpio est fundamentado no aspecto universal dos juzos ticos (universalizabilidade). A essncia do Princpio da Igual Considerao de Interesses est em atribuirmos o mesmo peso a interesses semelhantes de todos os que so atingidos por nossos atos. O princpio atua como uma balana: favorece o lado em que o interesse mais forte, ou o lado no qual vrios interesses se combinam para exceder em peso um nmero menor de interesses semelhantes, mas no levam em considerao quais interesses esto pesando. Um outro princpio, bem conhecido dos economistas, o chamado Princpio da Diminuio da Utilidade Marginal (SINGER, 1998, p. 33-35), intimamente relacionado ao princpio anterior. Diz ele: certa quantidade de alguma coisa mais til para quem a possui em pequena quantidade do que para quem a possui em grande quantidade.

31

Por exemplo: para quem tem apenas 200 gramas de arroz por dia, receber mais 50 gramas por dia mais til do que fornecer esses 50 gramas a quem j conta com 1 quilograma de arroz por dia. A utilidade chamada de marginal porque est no extremo, no limite, isto , s margens do mnimo. Para a primeira pessoa do exemplo, os 50 gramas de arroz tm uma utilidade marginal, que no deveria existir. A Igual Considerao de Interesses um princpio mnimo de igualdade, que no impe um tratamento igual, levando assim a um resultado no igualitrio. Entretanto, esse tratamento desigual uma tentativa de chegar a um resultado mais igualitrio (por exemplo, ajudando mais a quem precisa mais, ou igual distribuio de renda). H circunstncias em que o Princpio da Diminuio da Utilidade Marginal no funciona. Tome-se o seguinte exemplo: Diga-se que h duas vtimas, uma mais gravemente ferida do que a outra. A mais gravemente ferida (A) perdeu uma perna e est correndo risco de perder um dedo do p da perna que lhe restou. A vtima menos gravemente ferida (B) tem um ferimento na perna, mas o membro pode ser salvo. H recursos mdicos para uma s pessoa. Se for atendida a vtima A, o mximo que se conseguir fazer ser salvar o seu dedo do p. Se for atendida a vtima B, pode-se salvar-lhe a perna. Em outras palavras: sem tratamento mdico: A perde uma perna e um dedo do p, enquanto B s perde uma perna; aplicando tratamento em A: A perde uma perna e B perde uma perna; aplicando tratamento em B: A perde uma perna e um dedo, enquanto B no perde nada.

32

Admitindo que perder uma perna pior do que perder um dedo, mesmo quando esse dedo fica no nico p que restou, o Princpio de Diminuio da Utilidade Marginal no basta para fornecer a resposta certa para essa situao. Para seguir esse princpio, ter-se- de considerar imparcialmente os interesses das vtimas. Logo, seguindo o raciocnio anterior, seria necessrio usar os limitados recursos para tratar a vtima menos gravemente ferida (B), o que no a resposta certa. Em casos especiais a Igual Considerao de Interesses, em vez de diminuir, pode aumentar a diferena entre duas pessoas em nveis distintos de bem-estar. Por isso, esse princpio um princpio mnimo de igualdade, e no um princpio igualitrio perfeito e consumado. Mesmo assim, uma forma mais consumada de igualitarismo seria difcil de justificar, tanto em termos gerais quanto em sua aplicao a casos especiais, como o descrito.

3.1 Utilitarismo

Para a tica utilitarista (HOUAIS, 2001), boa ao ou boa regra de conduta toda aquela ao que pode ser caracterizada pela utilidade e pelo prazer que podem proporcionar a um indivduo e, em extenso, coletividade, na suposio de uma complementaridade entre a satisfao pessoal e coletiva. Em outras palavras: bom tudo aquilo que provoca prazer e til sociedade. Julgam-se as aes por sua tendncia a intensificar o prazer ou a felicidade e a mitigar a dor ou a infelicidade. Palavras como prazer e felicidade no tm preciso, mas evidente que se referem a algo que se vivencia ou se sente, isto , a estados de conscincia. No entanto, indispensvel precisar melhor o termo prazer. Para Savater (2001, p. 171) existem trs tipos de prazer. 1) A sensao fisicamente grata. Exige um sistema nervoso.

33

2) A clara sensao de aprovao, produzida por qualquer coisa: comportamento, produto ou pessoa. este apreo pelo bom, prprio dos seres dotados de razo, que proporciona a sensao gratificante. O exemplo mais claro a satisfao que causa uma ao generosa, ou valiosa, executada por um ou por outro ser. Est relacionada com a tica. 3) A sensao de prazer diante do belo diferente dos outros dois tipos de prazer, pois no se pode desfrutar o belo sem os sentidos e a razo. Mas os prazeres da beleza so os menos zoolgicos de todos, nem algo que se assemelhe ao respeito moral. difcil dizer porque a beleza interessa: esta funo da esttica. Na verdade, Savater (2001, p. 169) diz que:prazer e dor so os dois mestres inteligentes da vida. A pedagogia desses dois inevitvel. Ensinam-nos a viver e sobreviver. Aquilo que faz os humanos sofrerem ou gozarem, na sua maior parte, comum a todos. Logo, a dor e o prazer so fortes braadeiras da irmandade universal. Porm, ningum padece nem desfruta exatamente da mesma maneira, nem sofre os mesmo estmulos ao longo da vida. Logo, os prazeres tambm nos conferem uma individualidade, uma biografia irrepetvel. Assim, prazer e dor nos ensinam que somos iguais quanto ao geral, mas ao mesmo tempo diferentes quanto ao particular. Portanto, comprova-se, novamente, que aquilo que nos une - nossos interesses , tambm , o que nos separa, nos personaliza e, mais cedo ou mais tarde, talvez, nos ope.

Quanto ao sofrimento, segundo Freud (O mal estar da civilizao), ele tem trs fontes: 1) A supremacia da Natureza; 2) A caducidade do nosso corpo; 3) Nossa incapacidade para regular as relaes humanas na famlia, no Estado e na sociedade. Para Savater (2001, p. 165-166), o pior que pode acontecer ser ameaado com a perda do amor, pois somos seres que necessitam do olhar compreensivo e confirmador do outro para conseguirmos ser ns mesmos. Nada nos deixa mais inermes, mais desvalidos, mais ameaados do que a perda do amor, em todos os sentidos: No sentido mais literal: amor entre pais e filhos, ou amor ertico;

34

No sentido mais geral: aquilo que os gregos chamavam de filia, isto , a amizade entre os que se escolhem mutuamente como complementares, ou seja, a simpatia civil corts e vagamente impessoal, mas relevantemente solidria que os concidados tm de mostrar cotidianamente uns pelos outros para que a vida em sociedade seja gratificante.

Sem amor nem filia a humanidade se atrofia e ficamos nas mos de uma inspita lei da selva. Goeth10 dizia que saber-se amado d mais fora do que se saber forte. Retomando o tema, o Utilitarismo contempla trs pontos de vista (SINGER, 1998, p. 112-113): 1) Ponto de vista da existncia prvia 2) Ponto de vista total 3) Ponto de vista preferencial Existem duas maneiras de aumentar o prazer existente no mundo: ou se aumenta o prazer dos que atualmente j existem, ou se aumenta o nmero de pessoas que levaro vidas agradveis. O ponto de vista da existncia prvia nega que haja valor na segunda alternativa e s leva em conta os seres que j existem antes da deciso que estamos tomando, ou que, pelo menos, vo existir independentemente dessa deciso. Do ponto de vista total o que se pretende aumentar a quantidade de prazer e reduzir a quantidade total de sofrimento, sendo indiferente se isso vai ser feito atravs do aumento de prazer dos seres existentes ou do aumento do nmero dos seres que j existem. J do ponto de vista preferencial (SINGER, 1998, p. 104) julgam-se as aes, no por sua tendncia a maximizar o prazer, ou a diminuir o sofrimento, mas verificando at que ponto essas aes correspondem s preferncias de quaisquer seres que sejam afetados pela ao ou por suas conseqncias.10

Citado por Savater (2000).

35

Quando universalizamos os interesses, chega-se ao Utilitarismo Preferencial. A condio indispensvel aqui que se conceitue os interesses de uma pessoa como sendo aquilo que uma pessoa prefere. De acordo com esse tipo de Utilitarismo, qualquer ao contra a preferncia de qualquer ser errada, a menos que esta preferncia seja superada, em termos de seu valor, pelas preferncias contrrias. A tica Utilitarista foi desenvolvida na filosofia liberal inglesa, no sculo XIX, principalmente por Jeremy Bentham, seu criador, Stuart Mill, e Henry Sidgwick . Tem, classicamente, duas verses ou enfoques: 1) Utilitarismo direto, ou dos atos: a verso do utilitarismo que leva em considerao, prioritariamente, as escolhas individuais, quando se julga a respeito do caminho eticamente desejvel para atingir o mximo de felicidade. 2) Utilitarismo indireto: a verso do utilitarismo que considera difcil precisar qual a ao individual que levar, de fato, intensificao mxima da felicidade e, por isso, prioriza a escolha moral de regras preestabelecidas de conduta, para instituies, deveres coletivos e outros, com a finalidade de gerar uma satisfao segura, no submetida s incertezas do destino. Num estgio pr-tico do pensamento, dentro de um vazio tico absoluto, somente os prprios interesses de algum (no caso, os meus) poderiam ser relevantes numa tomada de deciso. Singer (1998) cita um exemplo: Devo comer, sozinho, todas as frutas que colhi, ou compartilh-las? Quando se inicia a pensar eticamente, comea-se a achar que os interesses alheios so tambm nossos prprios interesses, j que se deve escolher o curso de ao que tem as melhores conseqncias para todos os afetados pela deciso. Ento, nossos interesses passam a no contar mais que os interesses alheios.

36

Alm disso, ser preciso levar em conta se o efeito de uma prtica geral (universalizao) de compartilhar frutas colhidas vai beneficiar todos os afetados pela questo. Haver uma distribuio mais eqitativa ou ser reduzida a quantidade de alimento colhido? Quando todos ficarem sabendo que tero o suficiente, porque uma parte da colheita alheia ser sua, talvez alguns deixaro de colher o que quer que seja. Este modo de pensar chamado de utilitarista, no clssico, mas conseqencialista (ver adiante), porque no algo que simplesmente aumenta o prazer e diminui o sofrimento, mas porque examina todas as alternativas e escolhe aquela que favorece os interesses de todos os afetados. O utilitarismo no pode ser inferido do aspecto universal da tica. Existem outros ideais ticos que so universais num certo sentido (por exemplo, direitos individuais,

justia, pureza) e, no entanto, em algumas verses so incompatveis com o utilitarismo. Quando se tomam decises com base no interesse prprio e, a partir da, tenta-se universalizar estas decises, se est criando uma base inicial para assumir uma posio mnima na escala tica, que a postura utilitria. Esse passo inicial indispensvel para superar o utilitarismo e aceitar princpios ou ideais morais. At que surjam boas razes para essa extrapolao Peter Singer acredita que se tem alguns motivos para continuarmos utilitaristas. Mas o utilitarismo no a nica posio tica digna de ser levada em considerao. O fato que cada um deve chegar s suas prprias concluses sobre abordagens utilitrias e no utilitrias e, tambm, sobre a questo do papel que a razo e o argumento desempenham na tica.

37

3.2 A tica consequencialista

A conscincia limpa e tranqila um sintoma primordial de animalidade. (Wistlawa Szyborsha, Paisagem com Gro de Areia.)

Conforme a doutrina dos atos e das omisses h uma importante distino moral entre praticar um ato, que tem determinadas conseqncias por exemplo, matar uma criana gravemente deficiente e deixar de fazer algo que ter as mesmas conseqncias. Peter Singer (1998, p. 216) analisa esta doutrina e a tica consequencialista da seguinte maneira. Se a doutrina certa, o mdico que aplica uma injeo letal na criana do exemplo acima comete um erro. Porm, deixar de ministrar antibitico a essa criana, sabendo muito bem que ela morrer sem o medicamento, no implicaria em nenhum erro. Poucos defendem essa doutrina pelos seus prprios mritos, como um primeiro e importante princpio tico. H uma concepo da tica que admite que, enquanto no se violar preceitos morais especficos que impem certas obrigaes morais, faremos tudo que a moralidade exige de ns. Esses preceitos so similares aos que ficaram conhecidos atravs dos Dez Mandamentos e outros cdigos semelhantes: No matar, No mentir, No roubar , entre outros. Tais princpios so formulados na negativa. Ento, a obedincia a eles s necessria para nos abstermos dos atos que eles condenam. Assim a obedincia pode ser exigida a todos na comunidade. Foi a partir dessa concepo da tica que se inferiu a doutrina dos atos e das omisses. Se interpretarmos o preceito No matar do mesmo modo como tem sido interpretado em toda a tradio ocidental, isto , apenas como uma proibio de se tirar a vida de um ser

38

humano inocente, fica relativamente fcil evitar a prtica de atos explcitos de violao desse preceito, visto que, entre ns, poucos so assassinos. J no to fcil impedir que seres inocentes morram por falta de alimentao ou de recursos mdicos. Se pudermos ajudar algumas pessoas, mas no o fizermos, estaremos permitindo que morram. Porm, se o preceito contra tirar a vida tambm fosse aplicado s omisses, os que cumprissem esse preceito teriam a marca do herosmo moral, ou da santidade, e isso deixaria de ser o mnimo exigido a toda pessoa moralmente decente. Uma tica que avalia os atos em funo de eles violarem, ou no, preceitos morais especficos, faz, necessariamente uma distino de importncia moral entre atos e omisses. Ao contrrio, uma tica que avalia os atos por suas conseqncias, isto , uma tica conseqencialista, no far essa distino porque, em todos os aspectos significativos, as diferenas entre as conseqncias de um ato e as conseqncias de uma omisso sero, quase sempre, imperceptveis. Porque matar errado, e deixar morrer no ? Os defensores da distino respondem que existe um preceito moral contra tirar a vida de seres humanos inocentes, e nenhum contra o fato de se permitir que eles morram. Essa resposta trata um preceito moral, convencionalmente aceito, como se ele estivesse acima dos questionamentos, e no pergunta se deveramos ter, tambm, um preceito moral contra o fato de permitir que algum morra. Singer ainda ressalta que no existe nenhuma importncia intrnseca na distino entre atos e omisses, mas do ponto de vista da motivao e da atribuio de culpa, a maior parte dos casos em que no se impede o erro (por exemplo, que algum morra) no equivalente a um assassinato.

39

Tambm no se pode atribuir sociedade uma culpa, nem responsabiliz-la como a um indivduo, porque ela no uma pessoa, nem um agente moral. Alm disso, qualquer tica conseqencialista deve levar em considerao a probabilidade dos resultados. Entre uma deciso que sem dvida produzir algum benefcio e outra que possa levar a um benefcio ligeiramente maior, mas incerto, isto , com iguais chances de resultar em nada, devemos preferir a primeira. S deveramos optar pelo benefcio incerto quando a magnitude desse benefcio for maior que a sua incerteza. Exemplificando: melhor poder contar com um benefcio X do que ter 10% chances de obter um benefcio 3X; mas melhor ter 50% de chances de obter um benefcio 3X do que ter uma s chance certa de obter X. O mesmo princpio se aplica quando se est tentando evitar que coisas ms ou erradas aconteam.

3.3 Bom e mau

Escutemos novamente Savater (2002, p. 57-62). Bom e mau no so termos aplicados exclusivamente a pessoas ou a comportamentos morais. A dificuldade maior est em definir o que necessrio para ser um homem bom, j que no sabemos ou sabemos pouco para que servem os seres humanos. Freqentemente nos encontramos em situaes ambguas. De ns, s vezes, se exige resignao, noutras rebeldia, iniciativa e obedincia, generosidade e previdncia. No h um regulamento nico, nem somos um instrumento. Quando julgamos comportamentos preciso considerar as circunstncias de cada caso e at as intenes.

40

De fora no nada fcil determinar quem bom quem mau. Ordens, costumes, caprichos, regulamentos no podem nos guiar quanto tica. Savater (2002, p. 57-62) pode parecer pouco estimulante, mas nem por isso menos honrado, quando afirma que na porta da tica bem entendida est escrita esta frase: Faa o que quiser. A esta questo ser tratada mais adiante. Segundo o autor:O bom se impe a ns porque nossa razo no tem outro remdio seno aceitar que a vida humana mais digna de ser vivida quando qualquer um de ns faz o que devido e reconhece o outro como semelhante, no como mero instrumento manipulvel.

Para Peter Singer (1998, p. 341) a tica no foi uma criao consciente, mas um produto da vida social. Sua funo promover, entre os membros da sociedade humana, valores que lhes sejam comuns. Quando incentivamos ou louvamos aquelas aes que esto em acordo com esses valores, estamos emitindo juzos ticos. Esses juzos ticos no dizem respeito ao em si, isto , substncia da ao, mas aos motivos da ao (a chamada tica do mvel). O motivo uma boa indicao das tendncias dessa ao para promover o bem ou o mal. Fundamentados nesses motivos que podemos louvar ou reprovar as aes. assim que nos tornamos eficientes para alterar a tendncia das aes de uma pessoa.

3.4 A conscincia moral

Na Natureza, isto , no mundo natural, nunca encontramos valores, ou seja, a no existem o Bem e o Mal como manifestaes indiscutveis. Savater (2001) diz que na Natureza podemos admitir a existncia de coisas naturalmente boas ou naturalmente ms, de acordo com a forma de ser de cada um dos

41

elementos que existem. Por exemplo, para o fogo a gua algo muito mau, porque ela o apaga, mas uma coisa muito boa para as plantas, porque as faz crescer. Os antibiticos so muito bons para os homens, porque matam micrbios, embora sejam muito maus para os micrbios, porque os eliminam. O leo muito mau para os animais que caa, pois os devora, mas o animal caado que se esfora por correr muito mau para o leo, pois ele morreria de fome se no caasse, e assim por diante. Spinoza e outros filsofos j afirmaram que aquilo que chamamos de naturalmente bom para cada coisa o que lhe permite continuar sendo o que , e o mau aquilo que cria impedimentos sua forma de ser, ou a destri. Como na Natureza existe um nmero infinito de coisas diversas, cada uma com interesses ligados ao que ela por natureza, inevitvel que no haja um bem, nem um mal, vlidos para todo o real, mas sim uma pluralidade de bons e de maus, to numerosos quanto as coisas diferentes que h na realidade. A Natureza regida pela mais estrita neutralidade e indiferena. Ela no tem preferncias entre os seres, destri e engendra com perfeita imparcialidade e no mostra nenhum respeito pelas suas prprias obras. J no mundo dos homens, em contraposio direta ao mundo natural, encontramos valores. Valorar justamente estabelecer diferenas entre umas coisas e outras, preferir isso quilo, escolher o que deve ser conservado porque tem mais interesse do que o demais. Valorar o empenho humano por excelncia, a base de qualquer cultura humana. Se na Natureza reina a indiferena, na cultura reina a diferenciao e os valores Como diz Savater, valorar a dimenso menos natural... de nossa prpria natureza. Por isso, no mundo dos humanos foi possvel o surgimento da conscincia moral.

42

Na opinio de Singer (1998, p. 341) todas as sociedades humanas tm alguns valores que so aceitos pela maioria de seus membros. a isso que chamamos de valores de uma sociedade Agir com o objetivo de fazer o que certo muito til do ponto de vista da comunidade. o que chamamos de conscincia moral. Se as pessoas dotadas de conscincia moral aceitarem os valores de sua sociedade, elas tendero sempre a promover aquilo que a sociedade valoriza. Mesmo que no tenham nenhuma tendncia generosidade, ou solidariedade, o que faro, se acharem que isso faz parte de seus deveres. Em outras palavras, a conscincia moral funciona, s vezes, como uma espcie de tapa buracos, de mltiplas funes, estimulando as pessoas a fazer tudo aquilo que a sociedade valoriza, mesmo quando as virtudes naturais, como a generosidade, solidariedade, honestidade, tolerncia, humildade, estejam ausentes. Mas a conscincia moral , s vezes, um pobre substituto da coisa real. Por exemplo: uma me com conscincia moral prov a subsistncia dos seus filhos tanto quanto uma me que os ame, mas no se poderia dizer que ela os ama porque a coisa certa a fazer. Ento, sob este especfico ponto de vista da tica, o que realmente importa so os resultados, e no os motivos, isto , a conscincia moral teria valor devido s suas conseqncias. Contudo, a conscincia moral s pode ser incentivada e desenvolvida se a entendemos como uma coisa boa pelas suas prprias qualidades, isto , pelos seu prprios mritos, e no pelas suas conseqncias. Por exemplo, se apelarmos para a solidariedade, ou para o interesse pessoal, como uma razo para fazermos o nosso dever, no estaremos incentivando as pessoas a que faam o seu dever pelos prprios mritos desse dever. A nfase nos motivos e no valor moral de fazer o que certo pelos mritos da coisa em si est arraigada profundamente em nossa noo de tica.

43

Da que, dar razes de interesse pessoal para fazer o que certo equivale a esvaziar a ao de seu contedo moral. Segundo Savater (2002, p. 101), o oposto da conscincia moral a imbecilidade moral. Para ele a conscincia moral consiste em saber que nem tudo d na mesma, uma vez que o que realmente queremos viver humanamente bem. Ter conscincia moral saber que aquilo que estamos fazendo corresponde de fato ao que queremos, ou no queremos; desenvolver o bom gosto moral, at que certas coisas espontaneamente nos repugnem como, por exemplo, a mentira. Ter conscincia moral no esconder que somos livres e responsveis pelas conseqncias de nossos atos. Logo, o motivo para preferir a conscincia moral imbecilidade nada mais do que o proveito prprio.

3.5 Universalizabilidade da tica

O fato de a moral ser universalizvel, em seu princpio, no prova que ela seja universalizvel em seu sucesso. (Andr Comte-Sponville)

Ainda, segundo Singer, um trao distintivo da tica est em que os juzos ticos so universalizveis, ou seja, a tica exige que extrapolemos o nosso ponto de vista pessoal e que nos voltemos para um ponto de vista semelhante ao do espectador imparcial, que adota um ponto de vista universal. Desde a Antigidade, filsofos e moralistas defendem que a conduta tica aceitvel aquela que for pelo menos de certa forma universal. O preceito ureo amar o prximo como a si mesmo, ou fazer aos outros aquilo que gostaramos que eles nos fizessem, pressupe que podemos atribuir aos interesses alheios o mesmo peso que atribumos aos

44

nossos (Princpio da Igualdade de Interesses). Da esses princpios poderem ser universalizados. Os esticos afirmavam que a tica provinha de uma lei natural universal. Foi Kant quem, no sculo XVII, desenvolveu essa idia na sua clebre frmula aja somente segundo a mxima atravs da qual voc possa, ao mesmo tempo, desejar que ela se transforme numa lei universal.

3.6 A tica e a razo

H uma antiga corrente de pensamento filosfico que tenta demonstrar que agir racionalmente o mesmo que agir eticamente. Hoje o argumento associado a Kant, mas remonta aos esticos. Segundo Singer (1998, p 341) a estrutura desse pensamento, mais comumente encontrada, a seguinte: 1) Os fundamentos da tica so a imparcialidade e a propriedade de poderem ser universalizados (universalizabilidade); 2) A razo universal, isto , objetivamente vlida, porque qualquer inferncia (silogismo) tem valor universal como, por exemplo, este: - todos seres humanos so mortais; - Scrates humano; - logo Scrates mortal. 3) A razo atende aos itens exigidos em (1). Logo, para que um juzo seja tico ele dever ser racional, em conformidade com (2). Da segue que, a partir de um ponto de vista universal posso prescrever meu juzo tico. Mas, tanto a tica quanto a razo exigem que nos ergamos acima do nosso ponto de vista particular, isto , acima da nossa prpria identidade pessoal, que deixa de ser importante.

45

Concluso: a razo exige que nossa ao se baseie em juzos universalizveis, se que desejamos ser ticos. Re-examinando os trs itens, Peter Singer (1998, p.. 341) faz a seguinte crtica a esse pensamento kantiano: 1 - A tica implica em universalizabilidade: aceito. 2 - A razo deve ser universal: aceito. 3 - A concluso parece seguir-se diretamente das premissas, mas esse movimento envolve um resvalo de um sentido limitado (SAVATER, 2001, p. 210) para um sentido mais forte (SAVATER, 2001, p. 208-209). A diferena pode ser percebida quando consideramos um imperativo puramente egosta, no universalizvel como, por exemplo, este: que todos faam o que for do meu interesse. Este imperativo contm uma referncia no eliminvel a uma pessoa especfica (eu). No poderia ser um imperativo tico porque lhe falta ser universalizvel (SAVATER, 2001, p. 208-209). Entretanto, no lhe faltaria a possibilidade de ser racionalmente justificvel se o egosmo puro fosse racionalmente adotado por todos (SAVATER, 2001, p. 210). Ento, o argumento teria a universalizabilidade exigida (SAVATER, 2001, p. 208-209) para que fosse tico. Assim, a ao de egosmo puro teria base racional. Como evidente, o egosmo puro no pode ser tico, o que mostra o sentido limitado de 2. Dito de outra maneira pode-se afirmar que se uma ao vai beneficiar a mim, em vez de beneficiar a outra pessoa, posso ter uma razo vlida (racional) para pratic-la, sem ter uma razo tica, ou seja, o que racional nem sempre tico. Os juzos racionais e os juzos ticos no tm a mesma fora: os juzos ticos tm um sentido mais forte. aqui que, segundo Singer, se encontra a falha do argumento de Kant.

46

Uma das conseqncias dessa concluso que uma hipottica pessoa A poderia tentar impedir, racionalmente, que outra pessoa B fizesse algo que a prpria pessoa A admite ser racionalmente justificado que B o faa. Peter Singer diz que, infelizmente, no h paradoxo algum nisso. Se dois vendedores disputam uma venda importante, vo aceitar a conduta do seu adversrio como racional, ainda que cada um tente impedir o sucesso do concorrente (o que pode no ser tico, porque os juzos ticos tm sentido mais forte). O mesmo se pode dizer de dois soldados que se defrontam no campo de batalha, ou de dois jogadores que disputam uma partida de futebol. Assim, para Singer essa tentativa de demonstrar uma ligao entre razo e tica no sustentvel. O psicanalista Gregrio Klimovsky e outros dois autores tambm argentinos (um psicanalista e um filsofo lgico e epistemologista) apresentaram um trabalho no 38 Congresso Internacional de Psicanlise.11 uma tentativa bem elaborada que, de certa forma, aproxima-se daquela feita por Kant, quando procurava, exaustivamente, aplicar um critrio lgico (a razo) sua tica. Ningum tentou mais intensamente do que Kant mostrar que a conscincia moral s pode ter um valor moral quando praticamos um dever em nome de seu prprio mrito. o que chamaramos de ao autojustificada. Este o conceito Kantiano da tica: uma ao somente tica quando praticada porque correta. Kant percebeu que esta concepo comum da tica, sem uma justificao racional no poderia ser aceita. Procurou, como j vimos, justificar a racionalidade da tica, tentando conservar seu prprio conceito kantiano. Peter Singer (1998, p. 341) faz nova crtica nesse ponto. Admitindo-se que: 1) s tica (tem valor moral) aquela ao que for praticada porque correta;11

Ethical and Unethical Conduct in Psychoanalysis. Correlations between Logic, Ethics and Science), Amsterd, julho de 1993, trabalho publicado no Int. J. Psycho-Na, 1995, n. 76, p. 977.

47

2) a tica no tem justificativa racional; 3) ento a ao correta no tem justificativa racional. Segundo Peter Singer, este pensamento kantiano cria um sistema fechado, que no pode ser questionado, porque a primeira premissa est excluda pela segunda. Nessa perspectiva, a tica no seria mais racional do que qualquer prtica autojustificada, como a etiqueta ou a f religiosa, que exigem antecipadamente que se ponha de lado todo o ceticismo. Singer (1998, p. 343) conclui que a noo kantiana da tica, na concepo do seu conjunto, deve ser rejeitada. Mais tarde a teoria de Kant foi modificada e desenvolvida por R. M. Hare, (1981) que v a universalizabilidade como uma caracterstica lgica dos juzos morais. Hume, Adam Smith e Hutcheson tambm invocaram um espectador imparcial, imaginrio, como critrio de avaliao de um juzo moral. A verso moderna dessa teoria a Teoria do observador ideal. Os utilitaristas, desde Jeremy Bentham at J. J. Smart consideram um axioma na deciso de questes morais que cada qual (deciso) valha por uma, e nenhuma por mais de uma. Ainda segundo Singer (1998, p. 343), at mesmo filsofos existencialistas, como Sartre, ou um terico crtico como Jrgen Habermas concordam que, num certo sentido a tica universal. Singer chega concluso de que a tica se fundamenta num ponto de vista universal, o que no significa que um juzo tico particular deva ser universalmente aplicvel. As circunstncias alteram as causas. Deduzir do aspecto universal da tica uma teoria tica o que os filsofos tm tentado, sem xito, desde os esticos at hoje.

48

3.7 O sentido da vida

A voz do intelecto suave, mas no descansa at ter ganho um ouvinte. Em ltima anlise, aps inumerveis derrotas ela vence. Este um dos poucos pontos em relao aos quais podemos ser otimistas no tocante ao futuro da humanidade. (Sigmund Freud , in The Future of an Illusion.)

Sem querer desmerecer a genialidade de Kant, h uma linha alternativa de reflexo ao seu pensamento que procura dar um sentido vida. Talvez a maioria dos filsofos importantes e posteriores a Kant tenha adotado essa linha, assim exposta por Fernando Savater (2001, p. 214-216). De maneira concisa a reflexo a seguinte: 1) Ser tico, lutar pela justia e pela solidariedade no livra ningum da morte; 2) Nem acaba com a violncia, ou com os enganos; 3) Ento o projeto moral suprfluo e sem sentido, a no ser que algo sobrenatural o garanta, at mesmo aps a morte. Sobre essa questo Savater diz o seguinte:Mas o homem reto e sensato no quer ser imortal. Quer viver melhor. Sabe que sempre existir aquilo que mau, mas justamente por isso tenta fazer o que bom, para defender uma coisa que frgil e preciosa: fazer o bem. No por querer ganhar prmios ou retribuies que ele se conduz eticamente. Para ele tica aquela maneira de agir que o recompensa atravs da sua prpria atividade. Fazendo o que bom ele se sabe mais humano e livre. Ele no vive para a morte, nem para a eternidade, mas para alcanar a plenitude da vida na brevidade do tempo. Esta seria a resposta que Spinoza talvez tivesse dado a Kant.

Mas Savater tem uma outra maneira de dizer a mesma coisa, com este raciocnio: 1) o homem sabe que mortal; 2) esse destino o faz pensar; 3) se no conseguir negar a morte, nem aceitar a existncia no alm, surge uma reao de angustiado desespero;

49

4) nasce o medo de tudo o que possa apressar o seu fim (medo das privaes, da hostilidade, da doena); 5) passa a querer acumular tudo que representar resguardo da morte (riqueza, segurana, fama etc); 6) aqueles que quiserem disputar ou compartilhar com ele esses bens, geram nele o dio. Ora, quem teme o nada tem necessidade de tudo. Logo, medo, avidez, dio, so caractersticas de quem vive no desespero. Essas pessoas do um jeito de introduzir o mal-estar da morte em cada momento da vida, inclusive em seus maiores prazeres. Qual seria a alternativa? Eis o pensamento de Savater: 1) to certo quanto a morte o fato de agora estar vivo; 2) a morte no ser, nem estar, de nenhum modo, em nenhum lugar; 3) ento j derrotamos a morte pelo menos uma vez - e na vez decisiva - nascendo; 4) nunca haver morte eterna para ns, uma vez que j estamos vivos, ainda vivos. Savater prossegue:A certeza gloriosa de nossa vida no poder ser apagada, nem obscurecida, pela certeza da morte. Por que para ns deveria contar mais a morte em que no somos, do que a vida em que somos?

Como se verificou no histrico da tica, uma das maiores dificuldades dos filsofos tem sido conceitu-la, tornando aceito um modo de viver que, se no puder ser universal, pelo menos oferea um sentido para a vida entre humanos. Mas o que seria exatamente dar um sentido vida? As coisas podem ter sentido? Eis a opinio de Savater (2001, p. 211-212) sobre este assunto. Uma coisa tem sentido quando ela quer significar algo por meio de outra coisa.

50

Dito de outra forma: tem sentido uma coisa quando ela foi concebida com determinado fim. Por exemplo, o sentido de uma palavra ou de uma frase o seu significado, o que ela quer dizer. O sentido de um sinal o que ele quer avisar ou indicar (direo, hierarquia). O sentido de um objeto aquilo para o que ele serve. O sentido de uma obra de arte aquilo que seu autor quis expressar (a representao do real, a insatisfao frente ao real). O sentido de uma conduta, ou de uma instituio aquilo que se quer conseguir por meio dela (amor, segurana, ordem, justia). Em todos esses casos, o que determina o sentido de alguma coisa a inteno que anima esta coisa. Os smbolos, obras, condutas, instituies humanas, esto carregados dos sentidos que nossas intenes lhes conferem. Os comportamentos dos animais, e at os tropismos das plantas ou dos ciliados tambm tm um sentido, isto , uma inteno. A inteno est, assim, ligada vida, conservando a vida, reproduzindo-a, diversificando-a. Onde no h vida, tambm deixa de haver inteno e, portanto, no h sentido. Podemos explicar as causas de uma inundao, de um amanhecer, mas no seu sentido. Ora, se as intenes vitais so a nica resposta inteligvel pergunta pelo sentido, como poderia a prpria vida ter sentido? Se todas as intenes remetem vida como ltima referncia, que inteno poderia ter a prpria vida em seu conjunto? Vimos que prprio do sentido de alguma coisa remeter intencionalmente a outra coisa que no a si mesma mas aos propsitos do sujeito, seus instintos; em ltima instncia autoconservao, auto-regulao e propagao... da vida!

51

Se pudssemos perguntar o que a vida quer? A nica resposta possvel seria viver, viver mais, o que nos leva de volta prpria vida, sobre a qual estamos perguntando. Ento, para encontrar o sentido da vida deveramos buscar outra coisa, algo que no seja a vida, e nem esteja vivo, isto , algo alm da vida (metafsico). Suponhamos a seguinte resposta: o sentido da vida orgnica o perptuo desdobramento do universo inorgnico, do qual brotou. Conceder intenes ao inorgnico bastante enganoso, mas vamos admiti-lo, para efeito de discusso. Qual seria o sentido do universo inorgnico? Seria preciso responder de modo no auto-referente. Por exemplo, a inteno do universo continuar sendo universo cada vez mais uma resposta auto-referente. Seria necessrio fazer meno a algo que no faa parte do prprio universo, ou seja, no faa parte da natureza, algo sobrenatural, isto , apelar para o desconhecido, j que ningum sabe como seria algo sobrenatural. Witgenstein no seu Tractatus logicophilosophicus diz que o sentido do mundo deve encontrar-se fora do mundo, e nisto tem razo. Mas, o mundo tem um fora? O sentido do mundo termina onde termina o mundo, ou pode-se ir mais alm? Surge aqui e agora uma nova questo, fundamental para a tica como orientadora da conduta humana. Como a vida no tem sentido, devemos concluir que a vida absurda? Savater diz que, certamente, no. Absurdo seria uma coisa estar obrigada a ter sentido e, ainda assim, no t-lo. Aquilo que est fora do mbito das intenes no deve mesmo ter sentido. Por exemplo, podemos dizer que um homem ou um animal cego j que, pela sua condio natural, deveriam ver. Mas no podemos dizer que uma pedra cega a no ser metaforicamente porque a viso no faz parte do que poderamos pedir a uma pedra.

52

No absurdo que a vida em seu conjunto no tenha sentido, uma vez que no conhecemos intenes fora das intenes vitais, isto , fora do que esteja vivo. Mais ainda, fora do intencional a pergunta pelo sentido... no faz sentido. O absurdo no a vida carecer de sentido, mas nos empenharmos em que ela deva telo. Na verdade, a busca de um sentido para a vida no se refere a qualquer forma de vida em geral, nem ao mundo num sentido abstrato, mas vida humana, e ao mundo no qual habitamos e sofremos. Ao perguntarmos se a vida tem sentido, o que queremos realmente saber se nossos esforos morais sero recompensados, se vale a pena trabalhar honradamente e respeitar o prximo, ou se daria na mesma entregar-se a vcios criminosos, em suma, se nos espera algo alm e fora da vida. No final da sua Crtica do Juzo Kant fala do homem reto que tem convico de que no h Deus, nem existe vida futura. Cita como exemplo Spinoza. Como este homem se arranja para justificar seu compromisso moral? Ele e todos os demais homens justos sero tratados pela natureza com total imparcialidade, isto , do mesmo modo que os maus. Estaro submetidos a todos os males da misria e das doenas, exatamente como os demais animais da terra, at afundar no abismo do caos informe da matria, de onde foram tirados (retos ou no, d no mesmo). Para Kant, a nica defesa que resta pessoa decente para salvaguardar sua retido e no a considerar intil aceitar a existncia de um Deus criador moral do mundo, garantindo assim um sentido ultramundano e feliz para a boa vontade to tristemente retribuda aqui em baixo. O ponto de vista de Savater (2001, p. 212) sobre esta questo o seguinte: J se viu que o sentido do mundo deve estar fora do mundo (Wittgenstein), isto , mais alm de onde termina o mundo. Poderamos dizer que a onde est Deus, que o

53

sentido da vida e do mundo, ou seja, a primeira inteno do universo. Esta uma perspectiva religiosa, que se ope diretamente mentalidade puramente filosfica. Mas o que caracteriza a mentalidade religiosa no responder que Deus o sentido ou a inteno do universo. O que propriamente religioso crer que, dada esta resposta, j est justificado deixar de perguntar. As coisas, ento, graas a Deus12, tm sentido, mas seria impiedoso perguntar, que sentido tem Deus? Do ponto de vista estritamente filosfico, perguntar pelo sentido de Deus to razovel e urgente quanto perguntar pelo sentido do mundo ou da vida. Alguns diriam que esta pergunta no pode ser feita; outros diriam que suportvel no lhe responder, porque Deus o sentido e alm Dele a pequenez humana nada pode saber. Mas ento, teria dado no mesmo nos conformarmos muito antes. Aceitar que Deus seja o Sentido Supremo13, o que d Sentido a todos os Sentidos, do ponto de vista filosfico um pacto ainda mais conformista com a escurido do que responder que o sentido de todos os sentidos a intencionalidade vital, isto , a inteno humana. Na perspectiva estritamente filosfica h razes para no ampliar para alm da vida a pergunta sobre o sentido, isto , para alm do uso habitual da palavra inteno. Mas, se transpusermos esta barreira, no h porque se deter, nem se contentar, nunca. Portanto, o carter religioso no est tanto em querer ir alm, mas em crer que depois seja justificado frear. Em funo do que foi visto at aqui, poderamos perguntar: vale a pena viver? Novamente Savater (2002, p. 173) quem responde, citando Samuel Butler, escritor ingls: Esta uma pergunta para um embrio, no para um homem.12

Com esta expresso Savater quis, certamente, referir-se ao fato de que, admitindo-se a existncia de Deus, as coisas passam a ter sentido. 13 As letras maisculas so de autoria de Savater.

54

Savater justifica este pensamento. Qualquer critrio que se utilize para responder a esta pergunta dever ser extrado da prpria vida, na qual voc est mergulhado. Mesmo ao rejeitar a vida, voc o far em nome de valores vitais, de ideais ou iluses (que no conseguiu realizar). Esses valores foram apreendidos durante o ofcio de viver. O que vale a vida, inclusive para quem chega concluso de que no vale a pena viver. Mais razovel seria perguntar se a morte vale a pena, uma vez que todo nosso saber e tudo aquilo que tem algum valor para ns provm da vida. Toda tica digna desse nome parte da vida e se prope a refor-la, a torn-la mais rica. Talvez somente seja bom aquele que sente uma antipatia ativa pela morte. Antipatia, no medo. Um ponto marcante na tica de Savater (2001, p. 14) o momento em que afirma:Quando o ser humano constata sua presena na vida ele se exalta. Essa constatao exaltada o que chamamos de alegria. A alegria afirma e assume a vida em face da morte e do desespero; celebra a prpria vida, no seus contedos concretos; no a morte, no no, mas sim; tudo em face do nada; no puro xtase, atividade, luta contra o mal-estar desesperado da morte que nos infecta de medo, avidez e dio. A alegria nunca poder triunfar completamente sobre o desespero, pois dentro de ns coexistem o desespero e a alegria. Mas a alegria tambm no se render ao desespero. O desespero s conhece o nada que ameaa cada um, mas a alegria busca apoio e estende sua simpatia ativa a nossos semelhantes, os mortais vivos. A sociedade o lao formado por milhares de cumplicidades, que une aqueles que sabem que vo morrer para juntos afirmar a presena da vida.

Eis a opinio de Savater (2002, p. 174-175) sobre a morte:Desconfio de tudo o que se deva obter graas morte, aceitando-a, utilizando-a, afagando-lhe as mos. O que me interessa no se h vida depois da morte, mas que haja vida antes da morte, e que essa vida seja boa14, no simples sobrevivncia, ou medo constante de morrer. A pergunta14

Savater aqui se refere a uma vida eticamente boa. Este assunto ser abordado logo adiante.

55

realmente importante , pois, como viver melhor? A resposta preciso procur-la pessoalmente, porque muito difcil, seno impossvel, encontrar um professor competente.

Viver no uma cincia exata, uma arte. O que se pode ensinar bem recebido por quem tem condies, mas para o surdo de nascena so coisas que o aborrecem ou o deixam mais confuso do que j est. A vida boa s se faz sob medida. Cada um a inventa gradualmente, conforme sua individualidade nica, irrepetvel e frgil. A sabedoria ou o exemplo dos outros podem nos ajudar, mas no nos substituir.

3.8 A tica e a vida boa.

El ojo que ves no es ojo porque t lo veas; es ojo porque te ve. (Antonio Machado)

A primeira e indispensvel condio tica estar decidido a no viver de qualquer modo. Nem tudo d na mesma. Talvez a verdadeira chave esteja em tentar compreender porque certos comportamentos nos convm, e outros no, para que serve a vida, o que pode torn-la boa para ns, seres humanos (SAVATER, 2002, p. 92). Segundo Savater (2002, p. 71-73), a tica no mais que a tentativa racional de averiguar como viver melhor. s vezes queremos coisas contraditrias porque no sabemos o que queremos de verdade. Ento, preciso estabelecer uma hierarquia entre a vontade imediata e a vontade em longo prazo, isto , estabelecer prioridades. Porque a vontade em longo prazo pode ser mais importante? A vida feita de tempo. Nosso presente cheio de recordaes e esperanas.Abrir mo do ontem e do amanh para viver somente os prazeres imediatos abrir mo da vida.

56

Surge ento a sombra da morte, o desnimo produzido pela brevidade da vida, e passamos a acreditar que a vida no vale a pena, tudo d na mesma. Mas o que faz com que tudo d na mesma no a vida, a morte, que passa a nos hipnotizar. Vale a pena interessar-se pela tica porque gostamos da vida boa. Talvez o homem seja mau por esperar morrer durante toda a vida. Assim, morre mil vezes na morte dos outros, e das coisas.15 Um homem livre em nada pensa menos do que na morte, e sua sabedoria no uma meditao sobre a morte, mas sobre a vida" (Spinoza, tica). Vimos, anteriormente, que aquilo que a tica pretende, em ltima anlise, uma vida boa, fundamentada na liberdade. Uma regra do tipo faa o que quiser, como pode ser justificada? Savater (2002, p. 69-62) quem explica. Faa o que quiser, como lema fundamental da tica, significa ignorar tudo que, vindo de fora, queira nos dirigir. Significa considerar (respeitar) o foro ntimo de nossa vontade, significa interrogar a prpria liberdade. A contradio desse lema apenas um reflexo do problema essencial da liberdade, isto , no temos liberdade para escolhermos no sermos livres. Estamos, como diria Sartre, condenados liberdade. Faa o que quiser uma forma de dizer leve a srio o problema de sua liberdade. Ser humano , principalmente ter relaes com outros seres humanos. No podemos querer as coisas s custas das relaes com as pessoas, pois muito poucas coisas mantm sua graa na solido. A vida boa humana vida boa entre seres humanos. Caso contrrio, poder at ser vida, mas no ser boa, nem humana.

15

Tony Duvert, Abecedrio malvolo, citado por Savater.

57

Da querermos ser tratados como humanos, pois a humanidade depende bastante do que fazemos uns aos outros. O homem no apenas uma realidade biolgica, natural, mas tambm uma realidade cultural. No h humanidade sem aprendizagem cultural. A base de qualquer cultura a linguagem. pela linguagem que captamos os significado daquilo que nos cerca. Aprendemos sozinhos a comer ou urinar, mas ningum aprende sozinho a falar. A linguagem no uma funo natural e biolgica do homem; uma criao cultural que herdamos e aprendemos de outros homens. um valor em si16. Por isso, falar com algum e escut-lo trat-lo como pessoa. Portanto, a humanizao um processo recproco. Para que outros possam fazer-me humano, tenho de os fazer humano. Se para mim todas as pessoas so como coisas, ou animais, eu tambm no serei mais do que uma coisa ou animal. Dar-se uma vida boa no pode ser muito diferente de dar uma vida boa. Noutra obra Savater (2002, p. 84) relaciona a vida boa com a justia e a dignidade. Um princpio bsico da vida boa, diz ele, tratar as pessoas como pessoas, isto , colocar-se no lugar do outro e relativizar nossos interesses para harmoniz-los com os interesses do outro. Dito de outra maneira trata-se de considerar os interesses dos outros como se fossem nossos, e vice-versa (Princpio da Igual Considerao de Interesses). Essa virtude se chama justia. condio que permite exigir que cada um seja tratado como semelhante, independentemente do sexo, cor, idias etc, chamamos de dignidade. Dignidade uma condio que todos temos em comum, mas o que serve para reconhecer cada um como nico e irrepetvel.16

Mais adiante ser tratada a questo dos valores.

58

Coisas podem ser trocadas umas pelas outras, ou substitudas. Coisas tm preo. Algumas so to vinculadas existncia humana que passam a ser insubstituveis, como certas obras de arte, ou certos aspectos da natureza, mas todo ser humano tem dignidade e no tem preo, isto , no pode ser substitudo por outra personalidade, nem pode ser mal tratado, mesmo quando inimigo poltico, ou castigado pela lei. A guerra representa o maior fracasso da inteno da vida boa em comum. Ela representa, na verdade, um crime organizado, pois mesmo na guerra existem comportamentos que supem um crime maior que a prpria guerra porque afetam a dignidade humana, j que cada um nico e no intercambivel, com os mesmos direitos ao reconhecimento social. Segundo Savater (2001, p. 147):Ningum chega a se tornar humano se est sozinho. Ns nos fazemos humanos uns com os outros. Fomos contagiados por nossas palavras. A humanidade nos foi passada boca a boca, pela palavra, mas bem antes ainda, pelo olhar. Lemos nossa humanidade no olhar de nossos pais. um olhar que contm amor, preocupao, censura ou zombaria, isto , significados que nos tiram de nossa insignificncia natural para tornar-nos humanamente significativos.

Um autor contemporneo (Tzvetan Todor