19
Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 216, janeiro-abril/2005 127 ETNOGRAFIAS DO BRAU: CORPO, MASCULINIDADE E RAÇA NA REAFRICANIZAÇÃO EM SALVADOR 1 1. Introdução: o 1. Introdução: o 1. Introdução: o 1. Introdução: o 1. Introdução: o brau brau brau brau brau e a máquina de guerra da e a máquina de guerra da e a máquina de guerra da e a máquina de guerra da e a máquina de guerra da reafricanização reafricanização reafricanização reafricanização reafricanização 2 Neste artigo, procurarei discutir a consolidação de uma figura social que habita o mapa das representações de identidade da Salvador reafricanizada. Essa figura é o brau, in-corporado como uma fronteira entre significados impostos e auto-atribuídos em disputa em interseção com sentidos historicamente determinados de identidade e cultura negras. Essa reafricanização está entendida como a nova inflexão dada à agência ( agency) OSMUNDO DE ARAÚJO PINHO Universidade Candido Mendes Resumo esumo esumo esumo esumo: Neste artigo, o autor pretende explorar desenvolvimentos do processo conhecido como reafricanização da cultura e da política em Salvador corporificados na cristalização transitória de determinada figura social conhecida como o brau. Essa seria uma inflexão de masculinidade informada pelas tensões raciais e de gênero em Salvador, assim como uma re- apropriação localizada de temas culturais da diáspora africana. Braus foram (são) jovens negros da periferia que re-inventam uma visualidade/corporalidade negra a partir de releituras da ‘cultura’ soul norte-americana e ao mesmo tempo são estigmatizados pela classe média como violentos, de “mau-gosto” e hiper-sexualizados, ou seja, excessivamente ‘negros’ e excessivamente ‘masculinos’, em uma hiperbolização que em certo sentido contradiz com sua estigmatização. Palavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave: masculinidade, raça, Salvador–BA, corpo. Copyright ã 2005 by Revista Estudos Feministas 1 Uma versão anterior deste trabalho foi apresentada na sessão coordenada “Raça e etnia”, do II Seminário Internacional, I Seminário Norte-Nordeste “Homens, sexualidade e reprodução: tempos, práticas e vozes”, realizado em Recife em junho de 2003 sob a organização do Instituto PAPAI, Fages-UFPE, Nepo-UNICAMP , Grupo Pegapacapá. Gostaria de agradecer às coordenadoras da sessão, Ângela Sacchi (PPGA/UFPE) e Heloisa Cavalcante (PPGS/UFPE), a oportunidade de apresentar meu trabalho. Agradeço também ao Programa GRAL (Gênero Reprodução Ação Liderança), da Fundação Carlos Chagas/John D. and Catherine T. MacArthur Foundation, que permitiu minha participação no evento. 2 Gostaria da agradecer os construtivos comentários feitos pelos/as pareceristas anônimos/as da Revista Estudos Feministas.

Etnografias Do Brau-libre

Embed Size (px)

DESCRIPTION

antropologia urbna

Citation preview

  • Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 216, janeiro-abril/2005 127

    ETNOGRAFIAS DO BRAU: CORPO,MASCULINIDADE E RAA NA

    REAFRICANIZAO EM SALVADOR1

    1. Introduo: o 1. Introduo: o 1. Introduo: o 1. Introduo: o 1. Introduo: o braubraubraubraubrau e a mquina de guerra da e a mquina de guerra da e a mquina de guerra da e a mquina de guerra da e a mquina de guerra dareafricanizaoreafricanizaoreafricanizaoreafricanizaoreafricanizao

    22222

    Neste artigo, procurarei discutir a consolidao de uma figura social que habita omapa das representaes de identidade da Salvador reafricanizada. Essa figura o brau,in-corporado como uma fronteira entre significados impostos e auto-atribudos em disputaem interseo com sentidos historicamente determinados de identidade e cultura negras.Essa reafricanizao est entendida como a nova inflexo dada agncia (agency)

    OSMUNDO DE ARAJO PINHOUniversidade Candido Mendes

    RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: Neste ar tigo, o autor pretende explorar desenvolvimentos do processo conhecidocomo reafricanizao da cultura e da poltica em Salvador corporificados na cristalizaotransitria de determinada figura social conhecida como o brau. Essa seria uma inflexo demasculinidade informada pelas tenses raciais e de gnero em Salvador, assim como uma re-apropriao localizada de temas culturais da dispora africana. Braus foram (so) jovens negrosda periferia que re-inventam uma visualidade/corporalidade negra a partir de releituras dacultura soul norte-americana e ao mesmo tempo so estigmatizados pela classe mdia comoviolentos, de mau-gosto e hiper-sexualizados, ou seja, excessivamente negros e excessivamentemasculinos, em uma hiperbolizao que em certo sentido contradiz com sua estigmatizao.PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: masculinidade, raa, SalvadorBA, corpo.

    Copyright 2005 by Revista Estudos Feministas1 Uma verso anterior deste trabalho foi apresentada na sesso coordenada Raa e etnia, do II SeminrioInternacional, I Seminrio Norte-Nordeste Homens, sexualidade e reproduo: tempos, prticas e vozes,realizado em Recife em junho de 2003 sob a organizao do Instituto PAPAI, Fages-UFPE, Nepo-UNICAMP,Grupo Pegapacap. Gostaria de agradecer s coordenadoras da sesso, ngela Sacchi (PPGA/UFPE) eHeloisa Cavalcante (PPGS/UFPE), a oportunidade de apresentar meu trabalho. Agradeo tambm ao ProgramaGRAL (Gnero Reproduo Ao Liderana), da Fundao Carlos Chagas/John D. and Catherine T. MacArthurFoundation, que permitiu minha participao no evento.2 Gostaria da agradecer os construtivos comentrios feitos pelos/as pareceristas annimos/as da RevistaEstudos Feministas.

  • OSMUNDO DE ARAJO PINHO

    128 Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005

    social, poltica e cultural afrodescendente em Salvador, marcada pelo uso de smbolosligados africanidade e por uma interao determinada com a modernizao seletivabrasileira, caracterizada, ao mesmo tempo, pela conexo desterritorializada com fluxossimblicos mundiais e da dispora.

    Esses aspectos desterritorializantes esto associados ao processo de globalizao,entendido como a destruio de formas tradicionais de espao-temporalizao nasrelaes sociais, novas estruturas de associao, pertencimento, lealdade, trocas e fluxosque se realizam em formas crescentemente complexificadas e aceleradas, criando novosparmetros para a interao em contextos no mais facilmente descritos comosimplesmente locais ou globais.3

    O brau se inscreve no espao dessas articulaes complexas como uma forma derepresentao disputada entre a iniciativa verncula, popular-urbana, de reinveno deidentidade, e outras formas heterclitas de representao para o negro e para a culturanegra, inclusive formas etnogrficas.

    A reafricanizao, como um contexto social-discursivo sedimentado, o marco,aberto e policntrico, de referncia dessas lutas polticas pela representao em tornodo negro, do corpo negro e da atualizao local de padres mundiais de reconfiguraoidentitria afrodescendente. Essa reafricanizao pode ser considerada como umamquina de guerra que institui seu prprio teatro de operaes discursivas e sociais. Aidia da guerra , assim, um componente interno nuclear para a interpretao queprocuro fazer.

    Em Gilles Deleuze e Flix Guattari lemos que mquina de guerra uma invenonmade, e dos nmades, que se ope como uma exterioridade ao aparelho do Estado.Na dialtica da interioridade e da exterioridade a mquina de guerra o fora permanente,a desterritorializao4 que impede a planificao, a centralizao e o fechamento dassubjetividades e dos devires sob o princpio da reproduo arborescente (em oposioao princpio rizomtico),5 que o princpio do Estado.6 A mquina de guerra nmadeporque assola como o bando desorganizado, ou a horda, as estruturas centralizadas doEstado que, para esses autores, se alevanta como o aparato propriamente poltico-territorialde centralizao, que permite a diviso das populaes em dominantes e dominados. Aformao do Estado , assim, um assalto da classe dominante que reduz as sociedadesao centraliz-las em um ato de perfeita violncia, como um crime.

    A mquina de guerra ainda uma projeo para alm dos obstculos, a suasuperao e transcendncia pela desorganizao e multiplicao rizomtica de linhasde desenvolvimento reterritorializadas. Desse modo, inventa uma cartografia afetiva que

    3 Arjum APPADURAI, 1997; Livio SANSONE, 2000; Antnio RISRIO, 1981; Anamaria MORALES, 1991; e JessSOUZA, 2000.4 Nesse caso, desterritorializaco no porta o sentido sociolgico-cultural associado modernizao ouglobalizao, mas se refere ao conceito em uso nos trabalhos de Deleuze e Guattari que est aproximadoda idia de mapas cognitivos que se fazem e desfazem. Por exemplo, este ltimo diz: O territrio pode sedesterritorializar, isto , abrir-se, engajar-se em linhas de fuga a at sair de seu curso e se destruir. A espciehumana est mergulhada num intenso movimento de desterritorializao no sentido de que seus territriosoriginais se desfazem ininterruptamente com a diviso social do trabalho, com a ao dos deuses universaisque ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maqunicos que a levam a atravessar,cada vez mais rapidamente, as estratificaes mentais e materiais (Flix GUATTARI e Suely ROLNIK, 1986, p.186).5 Distinguindo o modelo arborescente ou axial do rizomtico, Deleuze e Guattari colocam: Qualquer pontode um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve s-lo. muito diferente da rvore ou da raiz quefixam um ponto, uma ordem (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 15).6 DELEUZE e GUATTARI, 1986 e 1996.

  • ETNOGRAFIAS DO BRAU

    Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005 129

    um mapa produtivo, como um decalque. Sendo um fora, uma exterioridade, a mquinade guerra desterritorializa os pontos de vista e as linguagens, reinventa um mundo e olana para fora de si mesmo:

    And the meaning of Earth completely changes: with legal model, one is constantlyreterritorializing around a point of view, on a domain, according to a set of constant relations;but with the ambulant model, the process of deterritorialization constitutes and extends theterritory itself.

    7

    A lgica das discursividades, nos adverte Michel Foucault,8 no lgica do sentido,mas da guerra, assim un frente de batalla atraviesa toda la sociedad.9 Do que podemosdescrever como a aventura da tradio afrodescendente em Salvador, que se redescobriue refez diversas vezes e sob numerosas denominaes performances, identidades, posiesde sujeito, paisagens, subjetividades e discursos, podemos concluir do acerto dessapressuposio, ainda mais se considerarmos qual o campo de ao dessa tradio, queno outro seno aquele constitudo como a arena dos embates racializados. Um camporacializado no predominantemente pelos agentes negros, que em muitos momentospreferiram definir a si prprios como africanos e no como negros, mas pelas instnciasda hegemonia poltica que se instalou como um poder branco e como um representantelocal, colonial, do branco universal sediado em uma Europa sobrepairante.10

    Estabelecendo nexos rizomticos com a Jamaica, o Black Panthers Party, a casareal etope, o Egito faranico, o Orun, a Liberdade e a Cuba revolucionria,11 areafricanizao abriu atalhos e comportas; onde antes havia o espao codificado criourotas e semeou micro-verdades nos osis conquistados hegemonia branca. O movimentooscila, entretanto, entre sua prpria multiplicidade nmade e sua centralizao congelante.Se o espraiar-se das identidades uma aventura fractal e inconclusa, existe muito empenhoe interesse em convert-la a uma ordem interiorizada pelo Estado, de modo que aatividade consciente12 parece ser sobremaneira requisitada para que as foras dacentralizao que operam pela folclorizao, mercadificao e mumificao da tradiono prevaleam ao final sinistramente.

    Podemos, por fim, interpretar o processo da reafricanizao, notadamente seusaspectos identitrios, como uma revoada nmade de identidades e devires articuladosrizomaticamente em torno do signo-frica, desterritorializando os mapas hegemnicossobre raa e gnero e sendo muitas vezes capturada ou seqestrada pelo aparelho deEstado, no sentido de ver reduzida sua capacidade proliferante de produzir outros mundose novas conexes inesperadas. Como um empreendimento nmade, a reafricanizao

    7 DELEUZE e GUATTARI, 1986, p. 37.8 FOUCAULT, 1972.9 FOUCAULT, 1992, p. 59.10 Wlamira ALBUQUERQUE, 1996, 1999 e 2002.11 Esses temas esto presentes em dezenas de canes dos blocos afro, vozes protagonistas da reafricanizaobaiana. Cf. por exemplo Milton MOURA, 2001.12 Incorporo livremente a expresso de Mao atividade consciente, discutida no contexto do debate sobreo papel da guera de libertao colonial. Para Mao, a guerra poltica, se no por nada, porque um meiode educao poltica, em uma verso meio mstica e um tanto quanto fascista: La guerra es la continuacionde la politica. En este sentido, la guerra es politica, y es en s misma una accin politica (Mao Tse TUNG,1972 (1938), p. 50). Ora, a guerra poltica e resulta da atividade consciente, uma faculdade propriamentehumana que segundo Mao o concerto da planificao, predio e vontade de ao transformadora econsciente aplicado a um fim determinado, nesse caso guerra de libertao nacional revolucionria,que como una antitoxina, que no solo destruir el veneno del enemigo, sino que tambim nos depurarde toda inmundicia (TUNG, 1972 (1938), p. 27).

  • OSMUNDO DE ARAJO PINHO

    130 Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005

    reinventa o territrio para as afetividades e identidades negras, fundando mundos edestruindo alguns outros.13

    No carnaval afrodescendente, a extenso do territrio negro ultrapassa as avenidasda cidade e invade o corpo negro, subvertendo os significados que a biopoltica dasestereotipizaes e racializaes normalmente lhe atribua. Por outro lado, como umaexterioridade que a tradio afrodescendente invade, em luta por reconhecimento eautonomia, as representaes e os planaltos hegemnicos das instncias discursivasbrancas ou europeizadas em Salvador. A partir das casas-de-santo, egbs, mundosafricanizados reterritorializados, agentes negros nmades desterritorializam a cidade detal modo que as elites e a opinio pblica branca no se reconhecem nela, haja vista aguerra pela europeizao da cidade e da cultura em Salvador que se desenrolou portoda a primeira metade do sculo XX e que est fartamente documentada.14

    A inveno do brau como uma personalidade-personagem autnoma dareafricanizao testemunha uma reconverso de significados associados ao negro e aocorpo negro, instncia historicamente re-posta como o lugar de instalao da negritudeirredutvel. O brau que no apenas desafia a norma esttica, mas tambm o cnone dacultura negra tradicional, pe em cena novas contradies de raa e gnero in-corporadas no desconforto que sua presena significa para a norma hegemnicasustentada pelas classes mdias brancas. A reafricanizao, nesse sentido, desterritorializaa cidade e o corpo negro, reterritorializados na incorporao do brau como uma figurade raa e gnero. A performance brau parece ser, desse modo, uma materializaotransitria encarnada nesse processo.

    2. R2. R2. R2. R2. Representando o epresentando o epresentando o epresentando o epresentando o braubraubraubraubrau

    A personagem (ou a performance),15 meio ficcional, meio sociolgica, do brau bem conhecida em Salvador: um homem jovem, quase sempre negro, vestido de formaaberrante, com modos e gestos agressivos e de difcil classificao no padro tradicionaldas etiquetas raciais na Bahia. Essa formao identitria ambgua tem habitado as formascotidianas de representao sobre o gnero e as raas de modo pouco refletido.

    Podemos identificar, entretanto, outra histria sobre o brau que pouco a poucoest sendo desenterrada, uma histria da contemporaneidade sobre a inveno de umapersonagem social que acumula sentidos contraditrios e que se enraza na articulaogloballocal. Essa histria tambm a histria da representao marginal e ligeira dobrau em escritos etnogrficos dedicados a temas paralelos, mas que deixam entreversua apario. Formas de inscrio etnogrfica do brau tm sido at aqui to perifricase precarizadas como sua prpria existncia social, apesar ou a despeito da enormeprevalncia que os fatores que condicionaram sua apario tiveram em meio juventudenegra e pobre em Salvador.

    Procurarei nesta seo, dessa forma, discutir um pouco da representao fugazdo brau nesses escritos etnogrficos, salientando que seria importante e desejvel umainvestigao emprica detalhada e focada nessa personagem, escassamente consideradaem termos scio-antropolgicos, mas que, pelo que possvel vislumbrar-se, teria relevncianas dinmicas de raa e gnero em Salvador, como procuro indicar a partir do materialdisponvel.

    13 PINHO, 2003.14 Cf. por exemplo Raphael VIEIRA FILHO,1995 e 1998.15 No apenas existiria o brau, mas performances brau, de modo que uma pessoa qualquer pode seracusada de vestir-se ou comportar-se como brau.

  • ETNOGRAFIAS DO BRAU

    Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005 131

    Buscando as origens do brau, veremos que, no contexto do processo referidocomo reafricanizao, a juventude negra de Salvador em busca de afirmao cultural emodernidade entrou em conexo com a onda mundial da msica negra norte-americana.James Brown e a msica funk tornaram-se, a partir dos anos 1970, mais um dos elementosda cultura negra baiana, com uma diferena: agora esta tambm poderia se reconhecercomo internacional, falante de ingls, jovem, corporal, articulada na relao com osbens de consumo e com a mdia.16 A msica negra norte-americana comps a tramados contra-discursos diaspricos discutida por Paul Gilroy em The Black Atlantic.17 EmSalvador, esses discursos caram em solo umedecido pelas tradies locais de interaoentre brancos e negros e pelas formas tradicionais de resistncia africana na cidade.

    O brau aparece retratado em algumas etnografias contemporneas que mirampara esse novo contexto de redefinies culturais, sonorizado por novas audies sociaisda msica negra da dispora. Livio Sansone descreve sua emergncia como a de um

    jovem (negro) de classe baixa que experimentava com o estilo de soul brother na Bahia[...] utilizando roupas ou acessrios atribudos aos negros norte-americanos, para sediferenciar do visual tradicional Afro-Baiano, digamos assim, sem ter que esposardiretamente um visual tido como branco.

    18

    Fazendo assim, constituiu uma fratura ou abertura no campo de significaespara raa e gnero atravs de releitura de elementos da indstria cultural. Oposicionamento dessa figura passou necessariamente pela relao com o mundo dosobjetos, da mercadoria ou consumo, uma relao que tanto uma prtica vernculacomo um exerccio de poder (ou no-poder) econmico.19

    Ari Lima, outro etngrafo do brau, reproduz um trecho de entrevista com CarlinhosBrown, autoproclamado fruto da experincia da soul music em Salvador, em que eleconta como os jovens na Liberdade, bairro-smbolo da negritude baiana, interagiamcom a msica e a imagem de James Brown:

    Eu no entendia nada do que ele cantava. Mas eu entendia como ele se comportava etodo mundo entendia, porque a dana, a forma de danar se arrastando, sabe, pareciadrible, parecia um drible social mesmo nas coisas, indo no cho, usando o corpo comoum movimento... Na Liberdade, voc chegava na Liberdade o cara falava: Risque a! Afazia a roda. Ento se voc danasse legal, apresentasse um passe novidade, tudo bem.Se no, nego te mijava e a zorra. Voc no brau, no!

    20

    Tanto Lima como Sansone fizeram pesquisa etnogrfica em bairros populares emSalvador. Lima no Candeal, bero da Timbalada, e Sansone no Caminho de Areia, naCidade Baixa, prximo ao tradicional bairro do Bonfim. Ambos ressaltam como a formaoda auto-identidade dos jovens se estrutura como uma relao entre os pares, assim comose d sob a forma de uma redefinio da relao com a sociedade branca dominante,que passa a ser interpelada criticamente no cotidiano desses jovens atravs do espelhode identidade James Brown. O curioso que, ao mesmo tempo em que essa imagemfunkificada21 era incorporada positivamente pelos jovens negros da periferia, era detestadae estigmatizada pela classe mdia que transformou a palavra brau em xingamento

    16 SANSONE, 1998 e 2000; e RISRIO, 1981.17 GILROY, 1993.18 SANSONE, 1998, p. 225.19 APPADURAI, 1994.20 LIMA, 2001, p. 262.21 Copio o neologismo de George YDICE, 1997.

  • OSMUNDO DE ARAJO PINHO

    132 Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005

    inequvoco, revelando os aspectos disputados dessa configurao. Paradoxal ecuriosamente, brau no uma categoria identitria, mas de acusao; melhor dizendo,a categoria/performance brau disputou-se na histria das representaes raciais.

    Em outros dois momentos podemos flagrar breves aparies etnogrficas dessasfiguras. Primeiro em pesquisa realizada para graduao em Cincias Sociais, realizadaem 1993 na Massaranduba, antiga favela urbanizada, prxima ao Caminho de Areia, naCidade Baixa, em Salvador. Depois, em uma dissertao de mestrado sobre o Pelourinho Centro Histrico de Salvador, cujo trabalho de campo foi feito em 1995. No primeirocaso, os braus eram alguns dos jovens moradores da Travessa da Esperana (o stio dapesquisa). Associados ao mundo dos pequenos crimes e aproximados da masculinidade,agressiva e hiper-sexualizada, usando roupas coloridas e correntes no pescoo, eramestigmatizados pelos outros moradores, que pretendiam se aproximar de um padro declasse mdia. Os informantes na Travessa no perdiam a chance de desqualificar essesjovens, procurando diferenciar-se perante o etngrafo daqueles rapazes de gosto esttico,segundo eles, questionvel. No segundo caso, em uma pesquisa comparativa sobre doisespaos de sociabilidade no Pelourinho, eventos-territrio,22 vemos como um desses, opagode do Espao Cultural Proibido Proibir, foi descrito como repleto de braus emoposio a outro evento-territrio, o Bar Cultural, zona de refgio de uma parcela dajuventude branca de classe mdia, auto-identificada como alternativa e que procuravase esconder da avalanche de vida cultural popular e negra no Pelourinho.

    Enquanto no Bar Cultural foi possvel testemunhar a atuao de todo um regime decorporalidade marcado pela identificao com valores de bom-gosto e autodisciplinacorporal, um habitus coincidente com alguns dos modelos re-presentados para o brancojovem de classe mdia em Salvador, no Proibido Proibir verificou-se, por outro lado, todaa exploso exuberante das performances hipermasculinizadas e ritualmente agressivasdos braus, que no hesitavam em explorar e exibir seu prprio corpo, danando ou semi-desnudando-se, aludindo freqentemente ao sexo como uma forma de estampar noambiente a retrica da sexualidade exacerbada que justamente os qualificaria comoexcessivamente negros.

    Alado desse modo condio de elemento de atualizao de figuras de gneroe raa, o corpo do brau exerce uma corporalidade subversiva e disruputiva que investecontra os sentidos pacificadores para o homem, para o negro e para o corpo. Expondoseu corpo, alterando a aparncia do cabelo,23 exibindo nas ruas as cores agressivas desuas roupas, alm de representar como mmica da violncia a postura da agressividade,o brau desafia a moral, o bom gosto e o racismo de forma mais ou menos contundente.De forma mais ou menos contraditria, por outro lado, reproduz esteretipos sobre si prprioe, talvez, eleja a mulher, ou a feminilidade, como seu Outro desejado e oprimido. Naocasio da pesquisa no Pelourinho, parece ter ficado claro, desse modo, a importnciado corpo e da definio de masculinidade para a identidade desses jovens braus.24

    Tendo como pano de fundo esse conjunto aproximativo de informaesetnogrficas, desenvolvo a seguir uma estratgia provisria de leitura crtica para a

    22 Eventos-territrio so formas transitrias e transistivas de territorializao de identidade ou de identificaode territrios urbano-complexos. Cf. PINHO, 1999.23 Como uma das populares de atuar sobre a imagem, afrodescendentes em Salvador, como no resto domundo, alteram sua auto-imagem experimentando com o cabelo. Assim, tambm os braus descolorem edeixam crescer o cabelo no estilo conhecido na Bahia como Black Power. Sobre polticas do cabelo, cf.Kobena MERCER, 1997.24 PINHO, 1999.

  • ETNOGRAFIAS DO BRAU

    Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005 133

    performance brau, considerando informaes de um contexto mais amplo, assim comoalgumas perspectivas tericas.

    3. O complexo 3. O complexo 3. O complexo 3. O complexo 3. O complexo funk-soulfunk-soulfunk-soulfunk-soulfunk-soul e o ambiente reafricanizado e o ambiente reafricanizado e o ambiente reafricanizado e o ambiente reafricanizado e o ambiente reafricanizado

    O que poderamos muito aproximadamente chamar de culturas funk, reggae esoul tiveram um papel determinante como co-participantes do processo mais amplo dareafricanizao. Nesta seo discutiremos um desses campos, justamente aquele quetem sido apontado como essencial para a virada modernizante da cultura afro-baianatradicional, o complexo cultural funk-soul, fundamental para a performao do brau.

    Antnio Risrio o autor da verso cannica sobre o processo, sendo citadoprecocemente por Hermano Vianna em seu livro sobre o funk carioca dos anos 1980.25

    Risrio documenta com vivacidade a invaso da msica soul nos anos imediatamenteprecedentes ao primeiro desfile do bloco afro Il Aiy, mostra a febre da msica discoque chegou primeiro Liberdade e aos bairros perifricos e s depois Barra e aosbairros de classe mdia. O impacto foi tal que a prpria planta das casas se alterou demodo a permitir maior espao para evoluo dos passos. James Brown era o heri negrodo momento, identificado como a trilha sonora para os Black Panthers, o ReverendoMartin Luther King Jr. e a luta por direitos civis para os negros norte-americanos.

    Toda a ambincia criada pelo soul esteve envolta na seduo do estilo e doconsumo que se encontrou com os sedimentos histricos da tradio afrodescendenteem Salvador, e foi esse encontro particular que permitiu instituir-se uma especificidadepara o processo. Como coloca Jorge Watusi, entrevistado por Risrio,

    A conscincia veio como moda, claro. Tinha aquele som, aquelas roupas, etc. Depoiscom o tempo a gente viu que esse lance todo de moda no era l to importante. Foi aque pintou o Il Aiy. Eu acho que foi com o Il Aiy que pintou a passagem, que a gentepassou de uma coisa pra outra. Porque com o Il, veio essa coisa de se manifestar nocarnaval j com uma orientao mais real, afro-brasileira.

    26

    preciso dizer que Watusi est comparando o processo baiano ao carioca, que,privado, em tese, de bases culturais afrodescendentes mais solidamente enraizadas, teriaoscilado precariamente entre a pura moda e tentativas infrutferas de politizao. Nocaso da Bahia, e esse um argumento mico, a anterioridade da tradio africanapermitiu uma apropriao a um s tempo mais poltica e mais original.

    A febre funk-soul no tomou apenas Salvador, evidentemente, mas seduziu jovensnegros em diversas partes do Brasil. No mesmo ano em que Risrio publicou o seu CarnavalIjex,27 Carlos Benedito Rodrigues da Silva apresentava comunicao sobre tema conexono GT Temas e problemas da populao negra no Brasil do IV Encontro da AssociaoNacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais (ANPOCS). Nessa comunicaopioneira, depois publicada com o ttulo Black soul: aglutinao espontnea ou identidadetnica,28 Silva analisa o movimento black soul capitaneado a partir de 1978 na cidadede Campinas, no interior de So Paulo, pelo grupo Afro-Soul. O autor avana a tese queretomaria em seu livro sobre o reggae em So Lus. Para ele no seriam as formastradicionais de cultura negra, entendidas como aquelas de origem africana, as nicas

    25 VIANNA, 1988. No resisto a comentar que uma monografia abrangente sobre o funk cariocacontemporneo ainda est por ser feita.26 WATUSI, citado em RISRIO, 1981, p. 32.27 RISRIO, 1981.28 SILVA, 1984.

  • OSMUNDO DE ARAJO PINHO

    134 Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005

    escolhidas para manifestar ou articular a identidade negra para os descendentes deafricanos. As formas modernas e transnacionais de cultura negra passariam, a partir dessemomento, a operar como uma manifestao cultural que os identificava de algumaforma (pelos tipos de roupa, dana msica, etc.).29

    Para o Rio de Janeiro, o livro de Vianna30 sem dvida a fonte fundamental, aindaque se apresente de certa dificuldade na compreenso da problemtica racial, toevidente no fenmeno quanto invisibilizada pela anlise. Esse um vis, alis, tambmpresente na anlise de Suylan Midlej sobre o funk do Black Bahia,31 em que, apesar determos um baile chamado Black Bahia no qual a maioria esmagadora dos freqentadores negra, um baile localizado em um bairro perifrico da cidade e no qual se ouve amsica negra norte-americana, a autora no encontrou nada que autorizasse umarepresentao racial. Esse desaparecimento talvez se deva ao que Souza chama deabordagens cientficas naturalistas, ou seja, concepes cientficas que no refletemadequadamente sobre os pressupostos de sua reflexo e se apropriam, na esfera dacincia, das iluses objetivas do senso comum.32 claro que a iluso objetiva aquipresente se refere irrelevncia da dimenso racial nos contextos analisados e dificuldade de se identificar fatores raciais na produo de desigualdade e identidade.

    De um modo ou de outro, no livro de Vianna encontramos uma boa reconstituiodo desembarque do funk no Brasil. Dom Fil, fundador da equipe Soul Grand Prix, queprocurou imprimir um sentido de conscincia adeso dos jovens ao soul, acaboudesencadeando o que viria a ser chamado pela imprensa em 1975 de Black Rio, o soulpolitizado. Nesse contexto desenvolve-se a polmica: o soul poltico ou no poltico?Aliena ou traz conscientizao? Coloniza ou emancipa? bom no esquecer queestvamos em 1975, muito longe ainda da distenso do regime militar. Carlos AlbertoMedeiros, poca membro da diretoria do Instituto de Pesquisa da Cultura Negra (IPCN),toma posio em favor dos funkeiros e contra aqueles que viam na msica funk alienaoe americanizao:

    claro que danar soul e usar roupas, sapateados e cumprimentos prprios no resolve,por si, o problema bsico de ningum. Mas pode proporcionar a necessria emulao a partir da recriao da identidade negra perdida com a Dispora Africana e osubseqente massacre escravista e racista para que se unam e, juntos, superem suasdificuldades.

    33

    A par de suas andanas pelo Brasil o funk tambm chegou a Salvador. Desde 1979ocorre o Baile Funk do Black Bahia no Esporte Clube Periperi, no chamado subrbioferrovirio em Salvador, umas das regies mais empobrecidas da cidade. O Baile incorporatoda uma ambincia funk que passa pelas roupas, grias, pelo modo especfico de danaro break, pela decorao e organizao dos grupos permanentes de dana como osFeras, Cobra e Drago.

    O baile em Salvador foi organizado por cariocas, Mauro Xavier e Petrcio, que jtinham experincia com o soul no Rio. Mauro teria comeado a trabalhar com as equipesdesde 1972. Segundo o seu depoimento, o baile, que rene milhares de pessoas, scomeou a pegar fogo mesmo a partir de 1987. A motivao principal apresentadapelos informantes para freqncia ao baile o prazer de danar:

    29 SILVA, 1984, p. 245.30 VIANNA, 1988.31 MIDLEJ, 1995 e 1998.32 SOUZA, 2000, p. 12.33 Jornal de Msica, n. 33, 1977, citado em VIANNA, 1988, p. 28.

  • ETNOGRAFIAS DO BRAU

    Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005 135

    O que me leva ao baile o funk, o rap, a adrenalina pura que corre na veia. Eu soufunkeiro, no vou mentir pra ningum, o que me leva ao baile isso, o estilo, o funk em si[...] O funkeiro vai pro baile na inteno de danar o funk...

    34

    Esse tipo de depoimento freqente na literatura sobre cultura juvenil associada msica, experincia da dana e da manipulao do corpo.35 A expertise demonstradano danar em rituais agonsticos entre rapazes, a seduo que a dana implica nomercado afetivo-sexual e a ligao que a dana permite refazer entre o corpo negro esua histria, todos esses aspectos so recorrentes para diversos exemplos etnogrficos eparecem indicar a importncia da cultura corporal como uma forma de reflexo sobre acorporalidade (historicidade encarnada no corpo), rituais ou prticas de gnero.

    Tanto em Salvador como no Rio o funk pde se prestar a experimentaes com ovisual, o uso do corpo e o consumo conspcuo (de bebidas, roupas, msica e transporte).36

    Essas so tcnicas do estilo (style). Respondendo pergunta o que ser funkeiro, Mnica,19 anos, responde:

    O que a msica diz: eu sou funkeiro ando de chapu, cabelo enrolado, cordozinho eanel, fica pro pessoal do Rio, que t mais acostumado com esse estilo, a gente aquiadotou a cala cocota, o short cocota; normalmente os funkeiro to de preto. Outracaracterstica bem marcante: saber a msica que gosta, o estilo que mais se adapta apessoa e dana, sem a dana no existe o funkeiro.

    37

    Livio Sansone est correto ao afirmar que a disseminao de gneros musicaisnegros no implica coincidncia para os sentidos que esses gneros assumem emdiferentes contextos. Assim tambm, parece muito adequado salientar os aspectos criativosda relao dos jovens de pases perifricos como o Brasil com os discursos culturaisoriginrios dos centros mundiais produtores de cultura.38 Por outro lado, me pareceimportante perceber exatamente como esses estilos culturais se associam s contingnciasde cada contexto em questo. Suponho que a partir da que possamos extrair seussignificados sociolgicos e no apenas dos depoimentos dos agentes, imersos em suasprprias condies de vida e submergidos na intransparncia da vida social,principalmente se considerarmos todo o peso ideolgico do racialismo brasileiro, queafeta os agentes e os analistas.39 O que importante ressaltar como esses discursosmusicais-culturais interagem com a estrutura de relaes de poder e servem comoinstrumentos para objetificao de identidades e posies antagnicas em um campodeterminado. Exatamente como faz Sansone ao articular, de um lado, as condies detransformao das realidades metropolitanas no Brasil, ligadas passagem para um mundo

    34 Lus Neves, 23 anos, citado em Suylan Midlej SILVA, 1996, p. 103.35 Cf. por exemplo Carlos Benedito SILVA, 1995.36 SANSONE, 1998, p. 230.37 Citada em Suylan Midlej SILVA, 1996, p. 110.38 SANSONE, 1998.39 Acumulam-se at a nusea dados sobre as desigualdades raciais brasileiras. Pelo menos desde o chamadociclo da UNESCO nos anos 1950 e os trabalhos da Escola Sociolgica Paulista inquestionvel o vis deraa/cor para reproduo das desigualdades sociais no Brasil; por outro lado, o modo de interpretaodessas desigualdades e sua interao no mundo da vida variam bastante (Cf. por exemplo Edward TELLES,2003; e Marcos MAIO e Ricardo SANTOS, 1996). Essa caracterstica da estrutura social brasileira tambmapresenta conexes ideolgicas, inclusive no que se refere produo de leituras sociolgicas sobre oambiente social/racial em que os atores entre os quais os cientistas sociais esto imersos. Esse ambiente fortemente influenciado pelo habitus racial brasileiro e pelo chamado mito da democracia racial. Sobesse aspecto, cf. PINHO e ngela FIGUEIREDO, 2002.

  • OSMUNDO DE ARAJO PINHO

    136 Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005

    de trabalhadores no-garantidos, globalizao e cultura de consumo, e de outro aconstruo da identidade negra como forma de acesso cidadania poltica ouconsumista.

    A identidade negra se desenvolve dentro do movimento rumo a uma nova cidadania e,em particular, nas suas formas mais populares ou de massa, no pode ser vista de formaseparada do desejo de consumo e protagonismo civil.

    40

    4. R4. R4. R4. R4. Racializando corpo e gneroacializando corpo e gneroacializando corpo e gneroacializando corpo e gneroacializando corpo e gnero

    A instalao verncula do brau como uma interface conturbada produz sua prpriaconexo com a economia poltica da raa e do gnero em Salvador. Os pontos deapoio histricos para a produo de sujeitos raciais tais quais estes formam uma rededensa com aquelas outras instncias que produziram a sociedade desigual, a pobrezareproduzida e a subordinao. Os bairros perifricos, e a experincia da periferalidade,de onde vm os braus, j muito bem descritos,41 so o marco para a constituio daexperincia e para a formao do sentido do corpo e de suas performances especficas.Regimes de corporalidade e de subordinao, assim como a pobreza, ou privao relativa,o cotidiano de violncia, os padres de conduta sexual, etc., so componentes intrnsecosdo contexto que se forma como uma ambincia para a reproduo social.42

    Essa ambincia tambm tem se redefinido em Salvador como uma re-invenoda imagem da cidade ou uma reterritorializao que conecta o corpo negro re-presentadocom a re-presentao da cidade. Ora, a produo social do corpo negro em Salvadorarticula-se com a reproduo social de uma auto-representao localizada da imagemda cidade, ambas articulando-se produo de identidades de gnero racializadas ouidentidades raciais de gnero.

    Para efeitos do debate assumirei provisoriamente que o corpo, enquanto categoriasociolgica, traz as marcas da formulao maussiana originalmente presente em seuartigo sobre tcnicas corporais.43 Assumir essa filiao implica conduzir a discusso paraum entendimento da constituio do corpo como realizado pela sua relao com oconjunto de tcnicas que medeiam a sua interao com a natureza e com o self. Conformeapontado por Alexander Gofman,44 Mauss perseguiu a totalidade nas suas investigaes,e no caso da discusso sobre o corpo duas tendncias se escondem por detrs de umtom aparentemente desinteressado: 1) o corpo um corpo total, social e biolgico, eno uma entidade separada na qual vemos converterem-se depsitos de historicidadeou cultura; 2) o levantamento das tcnicas corporais permitiria uma categorizao corretadas habilidades culturais na relao com o corpo, em substituio a classificaesincompletas ou parciais. Nesse caso, a tarefa sociolgica mostrar o fato social.45

    Nesse ponto Mauss no nega sua filiao abordagem de Durkheim. Discutindo adiviso do trabalho, este ltimo postula a existncia de uma conscincia coletiva:Lensemble de croyances et des sentiments communs.46 Essa conscincia a conscinciada sociedade que vive e se agita em ns e s vezes coincide, no caso de sociedades

    40 SANSONE, 2002, p. 179.41 Por exemplo, Marieze TORRES, 2002.42 Simone MONTEIRO, 2002.43 Marcel MAUSS, 1974.44 GOFMAN, 1998.45 MAUSS, 1974; GOFMAN, 1998; e Fernando BRUMANA, 1983.46 mile DURKHEIM, 1960, p. 46.

  • ETNOGRAFIAS DO BRAU

    Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005 137

    de solidariedade mecnica ou por similaridade, com as conscincias individuais. Emnossas sociedades, organizadas pela diviso do trabalho, ou de solidariedade orgnica,as conscincias individuais tendem a dissociar-se da conscincia coletiva como um efeitoda prpria estruturao da sociedade, que faz das conscincias individuais, descoladasdas estruturas, ponto de apoio da reproduo social. Ora, a formao do corpo ou ainculcao de tcnicas corporais parte do processo de individuao ou formao doindivduo e do ideal de self, e atravs desse processo a formao do corpo a reproduodo corpo social. Nesse sentido, o indivduo no existe como uma entidade preexistente sociedade, mas, inversamente, s possvel como uma instncia da sociedadedesdobrada na forma da individuao.47 apenas porque elegemos o conceito desociedade como uma realidade autnoma, reificada, que podemos pensar no indivduocomo uma realidade em si, quando ele , na verdade, uma inveno cultural. Comodisse Durkheim, La vie collective nest pas ne de la vie individuelle, mas cest, au contraire,la seconde qui est ne de la premire.48 Ou dito de outro modo, o corpo no o invlucronatural do self, mas ambos se constituem em processos sociais, assim como constituemsua prpria relao recproca.

    Sob o marco da sociedade capitalista moderna, a formao dos indivduos podeser pensada de modo associado reproduo social como a reposio das relaes deproduo, que so ao mesmo tempo relaes de dominao poltica e de exploraoeconmica:

    The individual is exclusively determined by society, it exists only with social determinationscoming from relations of production. There is a theoretical absence of any natural (non-social) determination for the individual [] social relations (society) are not mere socialframework with respect to individuals, but they stand as the very structural ensemble whichconstitutes individuality itself. Individuality is precisely a product of the ensemble of socialrelations.

    49

    O processo de individuao, por outro lado, pode ser visto como a personificaode categorias sociais ou interesses de classe: embodiment of particular class-relations.50

    Nesse caso fcil notar que a transformao da sociedade, ou seja, das relaes deproduo, que so relaes de reproduo social, deve ser a transformao do indivduo,ou sua superao nas formas como o conhecemos. Algo que perece ter sido entendidono s pelos pensadores orgnicos da reafricanizao, mas tambm pelos sujeitoscomuns que tm investido na sua prpria auto-superao, pelo style, pela conversotnico-poltica ou pelo consumo.51 Talvez mesmo essa transformao do indivduo j estejaocorrendo com a pulverizao das posies de sujeito e das lutas contingentes e parciaisque constituem os novos sujeitos.52 Dessa perspectiva, a dissoluo da identidade fixa eestvel do sujeito, uma vez j representado como a encarnao no-mediada dos valoresda sociedade, a dissoluo da sociedade e das fronteiras entre o sujeito e sua prtica.

    Para Laclau, a prpria idia de sociedade, como uma entidade em si j dada, impossvel, uma vez que a sociedade seria nada mais nada menos que um sistema dediferenas que, naturalmente, vai diferindo como um processo recursivo e reiterativo. O

    47 Marylin STRATHERN, 1996.48 DURKHEIM, 1960, p. 264.49 Victor MOLINA, 1977, p. 235.50 MARX apud MOLINA, 1977.51 Olivia CUNHA, 1991 e 1993; LIMA, 1998; e outros.52 Ernesto LACLAU, 1988.

  • OSMUNDO DE ARAJO PINHO

    138 Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005

    conflito social ou dissenso, nesse caso, visto como instituinte da sociedade, aquilo quefaz mover a mquina da diferenciao. Ora, o conflito s ganha visibilidade ou entra nojogo das lutas polticas metaforizado como um discurso ou signo que no tem fundo oureferente essencial determinado. Assim, a luta poltica na era do descentramento dosujeito e da dissoluo da sociedade s pode ser se for uma representao ou fico, re-presentao de algo que se ausenta como um centro que no se encontra.53 Esse dissensoelegeu tambm o corpo como palco para suas disputas, o que a formao dascorporalidades negras parece demonstrar muito bem.

    Temos ento definido o corpo como uma instncia da reproduo da sociedade,que opera atravs do processo de transmisso de estruturas culturais para o suporte dasubjetivao mediante o engendramento de prticas determinadas. Essas prticas podemser, e tm sido para o nosso caso, racializadas e de gnero (gendered). A sociedade,entretanto, no est entendida como uma entidade discreta, ou um conjunto fixo depadres e normas, regularidades observveis, mas como um campo de diferenciaesque se representa atravs de prticas simblicas especficas, performativas, ideolgicase crticas. A separao entre indivduo e sociedade pode ser vista assim como determinadae contingente. Indivduo e sociedade existem como termos de uma relao. Essa relaope a nu o carter construdo da idia de sociedade como uma exterioridade plena.Corpo, indivduo e sociedade so categorias sociais forjadas na confluncia de discursose instituies, e sua dissoluo crtica revela que sob sua aparncia reificada existemprocessos conflitivos e antagnicos processos racializados, de gnero, classe, etc. que so constitutivos da experincia social.54

    Convm reter um pouco da discusso sobre gnero, que tem incorporado o debatesobre a construo da masculinidade como categoria scio-sexual, de modo a iluminarnossa problemtica especfica. Importante no debate seria perceber que no existe umaforma natural de masculinidade, mas muitas masculinidades eventualmente conflitantes.As clivagens que parecem mais significativas seriam entre homens gays e heterossexuaise entre brancos e negros. Para cada contexto scio-cultural elegem-se modelos de homemaceitveis e valorizados assim como aqueles desprezados.55

    Rituais de masculinidade tm sido descritos, por outro lado, como demonstraesde fora, engendrando uma certa retrica de violncia e autodeterminao que colocao homem no centro das representaes de poder e dominao. O homem negro,entretanto, um homem deficitrio porque vis--vis outros homens se emascula pelasubordinao racial a que est submetido. Ele ainda aquele super-sexuado, mais sexualou mais sexualmente marcado que o homem branco, na medida em que mais corpo,presena corporal significativa.56 Como colocam Kobena Mercer e Isaac Julian, Shapedby this history (de opresso) black masculinity is a highly contradictory formation as it is asubordinated masculinity.57

    A masculinidade negra incorporaria de um modo geral as contradies eambivalncias tpicas de estruturas de dominao de raa e gnero que se associam eao mesmo tempo se autocontradizem. Essa masculinidade negra , basicamente, in-

    53 Ernesto LACLAU e Chantal MOUFFE, 2000.54 Uma discusso recente e muito abrangente sobre corpo pode ser acompanhada em Arthur FRANK, 1991;Mike FEATHERSTONE e Bryan TURNER, 1995; e Jean-Michel BERTHELOT, 1995.55 Andrea CORNWALL e Nancy LINDSFARNE, 1994; e Michael KIMEL, 1998.56 Les BACK, 1994; Claire ALEXANDER, 2000; Simone MONTEIRO, 1999; Ftima CECCHETO, 1997; e OndinaLEAL, 1998.57 MERCER e JULIAN, 1988, p. 112.58 JOHNSON, 1994.

  • ETNOGRAFIAS DO BRAU

    Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005 139

    corporada como o corpo negro que nunca passa desapercebido.58 E mesmo emSalvador, onde somos maioria, esse corpo constantemente destacado da experinciacotidiana para ser simbolizado, fetichizado e decomposto.

    The black subject is objectified into Otherness as the size of the penis signifies a threat to thesecure identity of the white male ego and the position of power which whiteness entails incolonial discourse.

    59

    Assim tambm, as prprias masculinidades e posies de sujeito masculinas soracializadas, de modo que no h apenas um homem, mas um homem negro ou brancoou um homem gay ou subsumido pela heterossexualidade compulsria. Homens e mulheresnegros construdos pelos discursos de sexo e raa interagem articuladamente s regrasdo jogo e em um contexto onde mais poder significa mais masculinidade, e sua ausncia,feminilizao, na medida em que masculinidade uma metfora para o poder e vice-versa.60

    Claro que morais sexuais de pases ou culturas regionais/nacionais diferentes somuito relevantes para se entender a prevalncia discursiva e a dominncia esubalternidade masculinas, assim como a decomposio do corpo negro. Em Salvador,que vive a exaltao do prazer, o corpo negro chamado a encarnar o plus desensualidade que envolve a cidade, como uma forma de estereotipizao e submisso hierarquia da dicotomia corpo e mente. O brau agressivo e desafiador desconstri ereconstri uma determinada retrica social da sexualidade racializada em outros termos,oscilando entre contradies tpicas de performances masculinizadas de gnero fundamentalmente marcadas pelo exerccio da sexualidade como uma forma deconstruo de si61 e novos modelos de definio de negritude ou identidade negra.62

    O corpo negro como um objeto cultural pode ser assim analisado como acoplado dinmica geral das lutas discursivas apenas na medida em que sejamos capazes dereconduzi-lo ao seu contexto e sua historicidade.63 Ler o corpo masculino, na medidaem que sua desconstruo/representao desalienada est interditada, um desafio,de um modo geral.64 Ler o corpo masculino negro parece ser uma tarefa ainda maisrdua que nos obriga a considerar duas dimenses de complexidade: de um lado, asdeterminaes que do ponto de vista do agente orientam suas prticas de gnero, assimcomo suas performances de identidade; do outro lado, de um ponto de vista analtico,l-lo pressupe a reposio dos contextos de interao significativos como contextos dedominao e disputa.

    Nesse sentido, interpretar o brau, que tambm, ou talvez fundamentalmente,interpretar a possibilidade de sua emergncia como uma figura etnogrfica inscrita no

    59 MERCER e JULIAN, 1988, p. 134.60 Como diz Les Back, Where men are economically dependent on the sale of their labour, the expression ofmaleness provides a means to exert power; power is associated with maleness, its absence with feminization(Back, 1994, p. 172), e ainda: ... fear and desire is an essential feature of white construction of blackmasculinity (BACK, 1994, p. 178).61 Por exemplo, Maria Luiza HEILBORN, 1999.62 No podemos aprofundar esses aspectos da sexualidade do brau, dado o limite dos dados etnogrficosdisponveis, mas apenas inferir a partir do que conhecemos. Certamente, e diante do que sabemos paraoutros contextos, a sexualidade do brau teria implicaes determinantes para a identidade desses jovens.Em que medida essas implicaes difeririam daquelas encontradas para outros homens jovens, negros oubrancos, de classes populares uma questo que s a investigao etnogrfica poderia responder.63 JOHNSON, 1994.64 Philip CULBERTSON, 1999; e Susan BORDO, 1994.

  • OSMUNDO DE ARAJO PINHO

    140 Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005

    corpus das representaes sobre a Bahia reafricanizada, passa pela reconstruo deseus laos, limites ou fronteiras porosas com o contexto social, ambiente ou paisagemhistrico-cultural no qual ele se formou e que ele ajudou a formar. No existiria o brau sema variante especfica de modernizao poltico-cultural que a reafricanizao parecerepresentar, uma modernizao que porta todas as contradies de um processo aomesmo tempo emancipador e subordinante, marcado pela convivncia entredestradicionalizaco e reproduo social desigual em termos de classe, raa e gnero.65

    5. Concluso: paisagens corporais5. Concluso: paisagens corporais5. Concluso: paisagens corporais5. Concluso: paisagens corporais5. Concluso: paisagens corporais

    A instalao do brau, como figura do folclore urbano popular e como presenafugidia na etnografia da reafricanizao em Salvador, permite flagrar um momentoespecfico das lutas polticas pela representao em torno da raa, do gnero, do corpoe da cultura em Salvador. Essas lutas povoam o ambiente histrico dando forma a estruturasdeterminadas, situadas na interconexo entre corpo e paisagem, de tal modo quepoderamos talvez falar em paisagens corporais, como instncias de localizao edesterritorializao para o corpo e para a cidade como estruturas inter-relacionadas. Aconstruo localizada do brau como representao para o corpo masculino negro emSalvador pode ser entendida, dessa forma, em remisso a formas hegemonizadas e contra-hegemnicas de re-presentao para esse corpo. Mas como entender a produo docorpo negro e de prticas corporais racializadas?

    O corpo negro um Outro para o self do negro, na medida em que se constituicomo representao alienada de si, reflexo pervertido da dominao branca, como emFranz Fanon: No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboraode seu esquema corporal. O conhecimento do corpo uma atividade unicamentenegadora. um conhecimento em terceira pessoa.66 Ou, talvez, em Jacques Derrida:Desde que tenho um corpo no o sou, portanto no o tenho. Esta privao institui einstrui minha relao com a vida. Portanto desde sempre o meu corpo me foi roubado.Quem pode t-lo roubado seno um Outro.67 Seja l quem for que o tenha roubado,parece que temos procurado na reafricanizao e em outros lugares reinvent-lo, substitu-lo, suplement-lo, reinscrevendo nele os signos da historicidade e revertendo o estigma ea corporalidade compulsria atada ao corpo negro. Mas ao faz-lo acharemos umasada? Para fora do corpo? Da sociedade? Mas para onde?

    A ltima fronteira parece ser aquela entre corpo e mquina. O cyborg j apresentouseu manifesto utpico para sculo XXI, desafio poltica radical e feminista que incorporaas alteraes da corporalidade e da tica natural ligada ao corpo na transio para osculo XXI como uma forma de desafiar os significados o cdigo em sociedades dealta mediao tecnolgica.68 Essas sociedades, de alta densidade de informao esaturadas de prteses (qumicas, tecnolgicas ou discursivas), transformam o corpo emum acessrio da dissoluo das fronteiras e limites. As novas revolues industriais etecnolgicas esto produzindo novas etnicidades e identidades, meio hbridas e meiomquinas. Um campo de lutas impuro e de fuses heterclitas. Nosso mundo um mundode porosidade das fronteiras e de seus re-deslocamentos e re-posicionamentos:

    65 Sobre pluralizao da modernidade, cf. Jos Maurcio DOMINGUES, 1999 e 2000.66 FANON, 1983, p. 92.67 DERRIDA, 1995, p. 123.68 Donna HARAWAY, 1991.

  • ETNOGRAFIAS DO BRAU

    Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005 141

    Barriers are repositioned as porous and actively configurative, structured through relationsboth trans-spatial and trans-actional. Lines of sight are transformed from vectors to circulatorytrajectories that disrupt polarities and interweave themselves into body, language, andlandscape, shifting the nature of performative.

    69

    Gostaria de poder considerar a constituio da paisagem reafricanizada emSalvador como uma paisagem significada e permeada pela construo do corpo negrocomo elemento dessa paisagem. Tanto da paisagem cultural ou dos contedos dispersosda tradio, da memria e do especfico baiano, retratados em pontos de vista quantocomo uma paisagem de poder,70 no sentido de que a inscrio do corpo negro napaisagem se faz mediante rotas codificadas de consumo visual e reproduo deesteretipos. O organismo-corpo negro um artefato disputado e mediado. O organismo-cidade, entre os discursos, as representaes e as prticas, tambm. Ambos compemum nexo possvel de transio entre fronteiras, deslocamentos de sentido e deturpaesde rotas, em contextos contingentes capturveis.

    Meu argumento para esse aspecto, preciso diz-lo claramente, de que asformas de alterao visual, de manipulao da aparncia e de reverso de estigma soformas polticas de inscrio da visualidade afrodescendente no corpo da cidade,subvertendo a paisagem e reinventando os lugares como espaos pblicos para o contra-pblico negro incipiente em Salvador.71 Identidades sociais reafricanizadas, nesse sentido,seriam formadas no contra o pano de fundo da paisagem e das culturas urbanas, masnesses complexos arranjos interconectivos de paisagem, corpo e discurso. O gesto negro,fixado como uma re-presentao, marca da constituio do indivduo afrodescendentesob os constrangimentos sociais que constituram o ambiente integral do racismo e dadiviso racial do trabalho, repetido como forma alienada de viver a cultura. Areafricanizao tem dado nova inflexo s formas tradicionais de interveno crticaafrodescendente, assim como para a tradio contracultural da dispora. O gesto negrocomo ato subversivo, encarnado na performance do brau, revela o corpo negro comoum no-ser, uma fronteira varivel e em disputa.72

    RRRRReferncias bibliogrficaseferncias bibliogrficaseferncias bibliogrficaseferncias bibliogrficaseferncias bibliogrficas

    ALBUQUERQUE, Wlamira R. de Santos. Deuses e heris nas ruas da Bahia: identidade culturalna Primeira Repblica. Afro-sia, n. 18, p. 103-124, 1996.

    ______. Algazarra nas ruas: comemoraes da Independncia na Bahia (18891923).Campinas. Editora da UNICAMP, 1999.

    ______. Esperanas de boaventuras: construes da frica e africanismos na Bahia (18871910). Estudos Afro-Asiticos, v. 24, n. 2, p. 215-245, maio/ago. 2002.

    ALEXANDER, Claire. Black Masculinity. In: OWUSU, Kwesi (ed.). Black British Culture andSociety: A Text Reader. London and New York: Routledge, 2000. p. 373-384.

    APPADURAI, Arjun. Global Ethnoscapes: Notes and Queries for a Transnational Anthropology.In: ______. Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization. Minneapolis,London: University of Minnessota Press, 1997. p. 48-65.

    69 Jordan CRANDALL, 1999.70 Sharon ZUKIN, 1991 e 1988.71 APPADURAI, 1994.72 Judith BUTLER, 1999.

  • OSMUNDO DE ARAJO PINHO

    142 Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005

    APPADURAI, Arjun et al. Editorial Comment: On Thinking the Black Public Sphere. PublicCulture, v. 7, n. 1, Fall 1994. p. xi-xii.

    BACK, Les. The White Negro Revisited: Race and Masculinities in South London. In:CORNWALL, Andrea, and LINDSFARNE, Nancy (eds.). Dis locating Mascul ini ty.Comparative Ethnographies. London and New York: Routledge, 1994. p. 172-183.

    BERTHELOT, Jean-Michel . The Body as a Discursive Operator: Or the aporias of The Sociologyof The Body. Body & Society, London, v. 1, n. 1, March 1995. p. 13-24.

    BORDO, Susan. Reading the Male Body. In: GOLDSTEIM, Lawrence. (ed.). The Male Body.Ann Arbor: The University of Michigam Press, 1994. p. 265-306.

    BRUMANA, Fernando G. Antropologia dos sentidos: introduo s idias de Marcel Mauss.So Paulo: Brasiliense, 1983.

    BUTLER, Judith. Subversive Bodily Acts. In: ______. Gender Trouble: Feminism and theSubversion of Identity. New York and London: Routledge, 1999. p. 79-149.

    CECCHETO, Ftima. As galeras funk cariocas: entre o ldico e o violento. In: VIANNA,Hermano (Org.). Galeras cariocas: territrios de conflitos e encontros culturais. Rio deJaneiro: Editora da UFRJ, 1997. p. 95-118.

    CORNWALL, Andrea, and LINDSFARNE, Nancy. Dislocating Masculinity: Gender, Power andAnthropology. In: ______. (eds.) Dislocating Masculinity: Comparative Ethnographies.London and New York: Routledge, 1994. p. 11-47.

    CRANDALL, Jordan. Bioinformatic Alignments. Territories. < http://netbase.t0.or.at/~ krfc/nonline/nonJordan.html> . 1999.

    CULBERTSON, Philip. Designing Men: Reading the Male Body as Text. http://www.bu.edu./mzank/Textual Reasoning/tr-archive/tr7.html/Culbertson1.html> . 1999.

    CUNHA, Olivia Gomes da. Coraes rastafari: lazer, poltica e religio em Salvador. 1991.Dissertao (Mestrado em Antropologia Social) Programa de Ps-Graduao emAntropologia Social, UFRJ, Rio de Janeiro.

    ______. Fazendo a coisa certa: rastas, reggae e pentecostais em Salvador. RevistaBrasileira de Cincias Sociais, So Paulo, n. 23, p. 120-137, out. 1993.

    DELEUZE, Gilles, and GUATTARI, Flix. Nomadology: The War Machine. New York: Semiotext(e),1986. Foreign Agents Series.

    ______. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. So Paulo: Editora 34, 1996. v. 1.DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferena. So Paulo: Perspectiva, 1995.DOMINGUES, Jos Maurcio. Desenvolvimento, modernidade e subjetividade. In: MAIO,

    Marcos Chor; VILLAS-BAS, Glaucia (Orgs.). Ideais de modernidade e sociologia noBrasil: ensaios sobre Luiz Aguiar Costa Pinto. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999. p 71-86.

    ______. Desencaixes, Abstraes e identidade. In: AVRITZER, Leonardo; DOMINGUES, JosMaurcio (Orgs.). Teoria social e modernidade no Brasil. Belo Horizonte: Editora daUFMG, 2000. p. 38-60.

    DURKHEIM, mile. De la divison du travail social. Septime dition Paris: Presses Universitairesde France, 1960.

    FANON, Franz. Pele negra, mscaras brancas. Salvador: Livraria Fator, 1983.FEATHERSTONE, Mike, and TURNER, Bryan S. Body & Society: An Introduction. Body & Society,

    London, v. 1, n. 1, March 1995. p. 1-12.FRANK, Arthur W. For a Sociology of the Body: An Analitical Review. In: FEATHERSTONE,

    Mike, HEPWORTH, Mike, and TURNER, Bryan (eds.). The Body. Social Process and CulturalTheory. London: Sage Publications, 1991. p. 36-101.

    FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber . Petrpolis: Editora Vozes, 1972.______. Genealoga del racismo: de la guerra de las razas al racismo de Estado. Madrid:

  • ETNOGRAFIAS DO BRAU

    Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005 143

    Las Ediciones de la Piqueta, 1992.GILROY, Paul. The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness. Cambridge: Harvard

    University Prerss, 1993.GOFMAN, Alexander. A Vague But Suggestive Concept: The Total Social Fact. In: JAMES,

    Wendy, and ALLEN, John. (eds.). Marcel Mauss: A Centenary Tribute. New York/Oxford:Berghahn Books, 1998. p. 63-70.

    GUATTARI, Flix; ROLNIK, Suely. Micropoltica: cartografias do desejo. Petroplis: Vozes, 1986.HARAWAY, Donna J. A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in

    the Late Twentieth Century. In: ______. (ed.). Simians, Cyborgs, and Women. TheReinvention of Nature. London: FAB, 1991. p. 149-181.

    HEILBORN, Maria Luiza. Construo de si, gnero e sexualidade. In: ______. (Org.).Sexualidade: o olhar das cincias sociais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p.40-58.

    JOHNSON, Charles. A Phenomenology of the Black Body. In: GOLDSTEIN, Laurence (ed.)The Male Body. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1994. p. 121-136.

    KIMMEL, Michael. A produo simultnea de masculinidades hegemnicas e subalternas.Horizontes Antropolgicos. Corpo, Doena e Sade, UFRGS, n. 9, p. 103-118, 1998.

    LACLAU, Ernesto. Metaphor and Social Antagonism. In: NELSON, Cary, and GROSSBERG,Lawrence (eds.). Marxism and the Interpretation of Culture. Urbana and Chicago:University of Illinois Press, 1988. p. 249-257

    LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Posicin de sujeto y antagonismo: la plenitudimpossible. In: ARDITI, Benjamim. (Org.). El reverso de la diferencia: identidad y poltica.Caracas: Nueva Sociedad, 2000. p. 153-168.

    LEAL, Ondina Fachel. Sexualid e identidad masculina: impasses y perspectivas de anlisis.In: VALDS, Teresa; OLAVARRA, Jos (ed.). ______. Masculinidades e equidad de gneroem Amrica Latina. Santiago de Chile: Flacso/UNFPA, 1998. p. 90-105.

    LIMA, Ari. O fenmeno timbalada: cultura musical afro-pop e juventude baiana negro-mestia. In: ______. SANSONE, Livio; SANTOS, Joclio Teles dos (Orgs.). Ritmos em trnsito:scio-antropologia da msica baiana. Salvador: Dynamis Editorial/Programa a Cor daBahia/Projeto Samba, 1998. p. 161-180.

    LIMA, Ari. Black or Brau: Music and Black Subjectivity in a Global Context. In: PERRONE,Charles, and DUNN, Christopher (eds.). The Internationalization of Braz ilian Music.Gainesville: University of Florida Press, 2001. p. 258-267.

    MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (Orgs.). Raa, cincia e sociedade. Rio deJaneiro: Editora Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil, 1996.

    MAUSS, Marcel. As tcnicas corporais. In: ______. Sociologia e antropologia. So Paulo:E.P.U./EDUSP, 1974. p. 211-233.

    MERCER, Kobena. Black Hair/Style Politics. In: GELDER, Ken, and THORNTON, Sarah (eds.).The Subcultures Reader. London and New York: Routledge, 1997. p. 420-435.

    MERCER, Kobena, and JULIAN, Isaac. Race, Sexual Politics and Black Masculinity: A Dossier.In: CHAPMAN, Rowena, and RUTHERFORD, Jonathn (eds.). Male Order: UnwrappingMasculinity. London: Lawrence & Wishart Ltda., 1988. p. 97-164.

    MIDLEJ, Suylan. O ldico e o tnico no funk do Black Bahia. In: SANSONE, Livio; SANTOS,Joclio Teles dos (Orgs.). Ritmos em trnsito: scio-antropologia da msica baiana.Salvador: Dynamis Editorial/Programa a Cor da Bahia/Projeto Samba, 1998. p. 201-218.

    MIDLEJ, Suylan. Sociabilidade contempornea, comunicao miditica e etnicidade nofunk do Black Bahia. O Sentido e a poca, Salvador, 1995. Revista acadmica daUFBA.

  • OSMUNDO DE ARAJO PINHO

    144 Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005

    MOLINA, Victor. Notes on Marx and the Problem of Individuality. In: ______. (ed.). OnIdeology: Center for Contemporary Cultural Studies. London: Hutchinson UniversityLibrary, 1977. p. 230-257.

    MONTEIRO, Simone. Gnero, sexualidade e juventude numa favela carioca. In: HEILBORN,Maria Luiza (Org.). Sexualidade: o olhar das cincias sociais. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1999. p.117-145.

    ______. Gnero, sade e proteo entre jovens: um perfil tradicional. In: BARBOSA, Reginaet al. (Orgs.). Interfaces: gnero, sexualidade e sade reprodutiva. Campinas. Editorada UNICAMP. 2002. p. 23-48.

    MORALES, Anamaria. Blocos negros em Salvador: reelaborao cultural e smbolos debaianidade. Caderno CRH, Salvador, 1991. Suplemento. Cantos e toques:etnografias do espao negro na Bahia.

    MOURA, Milton. World of Fantasy, Fantasy of the World: Geographic Space andRepresentation of Identity in the Carnaval of Salvador, Bahia. In: PERRONE, Charles,and DUNN, Christopher (eds.). The Internationalization of Brazilian Music. Gainesville:University of Florida Press. 2001. p. 161-176.

    PINHO, Osmundo de A. Alternativos e pagodeiros: notas etnogrficas sobre territorialidadee relaes raciais no Centro Histrico de Salvador. Estudos Afro-Asiticos, Rio de Janeiro:Centro de Estudos Afro-Asiticos (CEAA), Universidade Candido Mendes, n. 34, p. 35-48, dez. 1998.

    ______. Espao, poder e relaes raciais: o caso do Centro Histrico de Salvador. Afro-sia, Salvador, n. 21-22, p. 257-274, 1999.

    ______. O mundo negro: scio-antropologia da reafricanizao em Salvador. 2003.Tese (Doutorado em Cincias Sociais) Universidade Estadual de Campinas.

    PINHO, Osmundo; FIGUEIREDO, ngela. Idias fora do lugar e o lugar do negro nas cinciassociais. Estudos Afro-Asiticos, ano 24, n. 01, p. 189-210, jan./abr. 2002.

    RISRIO, Antnio. Carnaval Ijex. Salvador: Corrupio, 1981.SANSONE. Livio. Funk baiano: uma verso local de um fenmeno global?. In: SANSONE,

    Livio; SANTOS, Joclio Teles dos (Orgs.). Ritmos em trnsito: scio-antropologia da msicabaiana. Salvador: Dynamis Editorial/Programa a Cor da Bahia/Projeto Samba, 1998. p.219-240.

    ______. Os objetos da identidade negra: consumo, mercantilizao, globalizao e acriao de culturas negras no Brasil. MANA, v. 6, n. 1, abr. 2000.

    ______. No-trabalho, consumo e identidade: uma comparao entre Rio e Salvador.In: MAGGIE, Yvone; REZENDE, Claudia Barcellos (Orgs.). Raa como retr ica: aconstruo da diferena. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. p. 155-184.

    SILVA, Carlos Benedito Rodrigues. Black Soul: aglutinao espontnea e identidade tnica.In: Encontro da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais(ANPOCS), 4, 1984, Caxambu, MG. Cincias Sociais: compndio de comunicaes...Caxambu, 1984. v. 2.

    ______. Da Terra das Primaveras Ilha do Amor: reggae, lazer e identidade cultural. SoLus: EdUFMA, 1995.

    SILVA, Suylan Midlej. O pertencimento na festa: sociabilidade, identidade e comunicaomeditica no baile funk Black Bahia do Periperi. 1996. Dissertao (Mestrado emComunicao e Cultura Contemporneas) Faculdade de Comunicao, UniversidadeFederal da Bahia, Salvador.

    SOUZA, Jess. A modernizao seletiva: uma reinterpretao do dilema brasileiro. Braslia:Editora UnB, 2000.

  • ETNOGRAFIAS DO BRAU

    Estudos Feministas, Florianpolis, 13(1): 127-145, janeiro-abril/2005 145

    STRATHERN, Marylin. For the Motion (1). 1989 Debate: The Concept of Society is TheoreticallyObsolete. In: INGOLD, Tim. (ed.). Key Debates in Anthropology. London and New York:Routledge, 1996. p. 60-66.

    TELLES, Edward. Racismo brasileira: uma nova perspectiva sociolgica. Rio de Janeiro:Relume Dumar, 2003.

    TORRES, Marieze Rosa. Sexo, prazer e dor: vivncias sexuais na fala de adolescentespobres de Salvador. In: ______. BARBOSA, Regina et al. (Orgs.). Inter faces: gnero,sexualidade e sade reprodutiva. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002. p. 49-84.

    TUNG, Mao Tse. Sobre la guerra prolongada: problemas estrategicos de la guerra deguerrilas. Buenos Aires: Ediciones CEPE, 1972 (1938).

    VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1988.VIANNA, Hermano. O movimento funk. In: HERSCHMANN, Michael (Org.). Abalando os

    anos 90: funk e hip-hop globalizao, violncia e estilo cultural. Rio de Janeiro:Rocco, 1997. p. 16-21.

    VIEIRA FILHO, Raphael R. A africanizao do Carnaval de Salvador, BA: a re-criao doespao carnavalesco (18761930). 1995. Dissertao (Mestrado em Histria) PontifciaUniversidade Catlica de So Paulo, So Paulo.

    ______. Folguedos negros no Carnaval de Salvador (18801930). In: SANSONE, Livio; SANTOS,Joclio Teles dos. Ritmos em trnsito: scio-antropologia da msica baiana. Salvador:Dynamis Editorial/Programa a Cor da Bahia/ProjetoSamba. 1998. p. 39-58.

    YDICE, George. A funkificao do Rio de Janeiro. In: HERSCHMANN, Michael (Org.).Abalando os anos 90: funk e hip-hop globalizao, violncia e estilo cultural. Rio deJaneiro: Rocco, 1997. p. 22-51.

    ZUKIN, Sharon. Landscapes of Power: From Detroit to Disney World. Berkeley: University ofCalifornia Press, 1991.

    ______. The Postmodern Debate Over Urban Form. Theory, Culture & Society, London, v.5, 1988. p. 431-446.

    [Recebido em fevereiro de 2004e aceito para publicao em outubro de 2004]

    Ethnographies of the brau: BodyEthnographies of the brau: BodyEthnographies of the brau: BodyEthnographies of the brau: BodyEthnographies of the brau: Body, Masculinity and R, Masculinity and R, Masculinity and R, Masculinity and R, Masculinity and Race in the Race in the Race in the Race in the Race in the Reafr icanization of Salvadoreafr icanization of Salvadoreafr icanization of Salvadoreafr icanization of Salvadoreafr icanization of SalvadorAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: In this article the author seeks to explore some developments of the process known asthe cultural and political reafricanization of Salvador, through the transitory crystalization of socialfigure called brau. This would be an inflexion of masculinity informed by racial and gendertensions in Salvador, as well as a localized appropriation of cultural themes of the African Diaspora.Braus were (are) young blacks from poor neighborhoods who re-created a black look/corporalityfrom readings of North-American soul culture, while being stigmatized by the middle class asviolents, ugly-looking and hyper-sexed, that is, excessively black and excessively male, a hyperbolewhich in a way contradicts this stigmatization.Key wordsKey wordsKey wordsKey wordsKey words: masculinity, race, SalvadorBA, body.