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TEMPO DO MUNDO Volume 3 | Número 2 | Agosto 2011 Interesses e Identidade na Participação do Brasil em Operações de Paz Kai Michael Kenkel Extremo Oriente Médio, Admirável Mundo Novo: a construção do Oriente Médio e a Primavera Árabe Leonardo Schiocchet A Crise das Tortilhas no México (2007): alta das commodities, instabilidade inanceira e segurança alimentar Laís Forti Thomaz Carlos Eduardo Carvalho Determinantes dos Fundos Soberanos de Investimentos e o Caso Brasileiro Andre Simas Magalhães Turbulências no Mundo Árabe: rumo a uma nova ordem? Reginaldo Nasser Crise Subprime nos Estados Unidos: a reação do setor público e o impacto sobre o emprego Carlos Pinkusfeld Bastos Fernando Augusto Mansor De Mattos REVISTA

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Revista Tempo do Mundo

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  • TEMPO DO MUNDOVolume 3 | Nmero 2 | Agosto 2011

    Interesses e Identidade na Participao do Brasil em Operaes de Paz Kai Michael Kenkel

    Extremo Oriente Mdio, Admirvel Mundo Novo: a construo do Oriente Mdio e a Primavera rabeLeonardo Schiocchet

    A Crise das Tortilhas no Mxico (2007): alta das commodities, instabilidade inanceira e segurana alimentar Las Forti ThomazCarlos Eduardo Carvalho

    Determinantes dos Fundos Soberanos de Investimentos e o Caso BrasileiroAndre Simas Magalhes

    Turbulncias no Mundo rabe: rumo a uma nova ordem?Reginaldo Nasser

    Crise Subprime nos Estados Unidos: a reao do setor pblico e o impacto sobre o empregoCarlos Pinkusfeld BastosFernando Augusto Mansor De Mattos

    REVISTA

  • Presidenta InterinaVanessa Petrelli Corra

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalGeov Parente Farias

    Diretora de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas InternacionaisLuciana Acioly da Silva

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da DemocraciaAlexandre de vila Gomide

    Diretor de Estudos e PolticasMacroeconmicas, SubstitutoClaudio Roberto Amitrano

    Diretor de Estudos e Polticas Regionais,Urbanas e AmbientaisFrancisco de Assis Costa

    Diretor de Estudos e Polticas Setoriaisde Inovao, Regulao e InfraestruturaCarlos Eduardo Fernandez da Silveira

    Diretor de Estudos e Polticas SociaisJorge Abraho de Castro

    Chefe de GabineteFabio de S e Silva

    Assessor-chefe de Imprensa e Comunicao, SubstitutoJoo Cludio Garcia Rodrigues Lima

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoriaURL: http://www.ipea.gov.br

    Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro Wellington Moreira Franco

    Fundao pblica vinculada Secretaria de Assuntos

    Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece

    suporte tcnico e institucional s aes governamentais

    possibilitando a formulao de inmeras polticas

    pblicas e programas de desenvolvimento brasileiro

    e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos

    realizados por seus tcnicos.

    Ficha Tcnica

    A Revista Tempo do Mundo uma publicao internacional

    organizada pelo Ipea, que integra o governo federal

    brasileiro, tendo sido idealizada para promover debates

    com nfase na temtica do desenvolvimento em uma

    perspectiva Sul Sul. A meta formular proposies para

    a elaborao de polticas pblicas e efetuar comparaes

    internacionais, focalizando o mbito da economia poltica.

    E-mail: [email protected]

    Corpo Editorial

    Membros

    Alfredo Calcagno (UNCTAD)

    Antnio Carlos Macedo e Silva (UNICAMP)

    Jos Antonio Ocampo (Columbia University)

    Luciana Acioly da Silva (Ipea)

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    Roberto Passos Nogueira (Ipea)

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    Stephany Grifith-Jones (Initiative for Policy Dialogue/

    Columbia University)

    Suplentes

    Gentil Corazza (UFRGS)

    Claudio Roberto Amitrano (Ipea)

    Lucas Ferraz Vasconcelos (Ipea)

    Miguel Matteo (Ipea)

    Editor

    Marcos Antonio Macedo Cintra

    Coeditores

    Andr de Mello e Souza

    Andr Gustavo de Miranda Pineli Alves

    Flvia de Holanda Schmidt

    Rodrigo Alves Teixeira

    Rodrigo Fracalossi de Moraes

    Apoio Tcnico

    Mariana Marques Nonato

    Lusa de Azevedo Nazareno

  • TEMPO DO MUNDOVolume 3 | Nmero 2 | Agosto 2011

    Braslia, 2011

    REVISTA

  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2011

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e de inteira responsabilidade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    Revista tempo do mundo / Instituto de Pesquisa EconmicaAplicada. v. 1, n. 1, (dez. 2009). Braslia : Ipea, 2009.

    Quadrimestral.Edio publicada tambm em ingls.ISSN 2176-7025

    1. Economia. 2. Economia Internacional. 3. Desenvolvimento Econmico e Social. 4. Desenvolvimento Sustentvel. 5. Polticas Pblicas. 6. Peridicos. I. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada.

    CDD 330.05

  • SUMRIO

    APRESENTAO ...................................................................................................... 5

    CARTA DO EDITOR .................................................................................................. 7

    INTERESSES E IDENTIDADE NA PARTICIPAO DO BRASIL EM OPERAES DE PAZ .......................................................................................... 9Kai Michael Kenkel

    EXTREMO ORIENTE MDIO, ADMIRVEL MUNDO NOVO: A CONSTRUO DO ORIENTE MDIO E A PRIMAVERA RABE ............................. 37Leonardo Schiocchet

    A CRISE DAS TORTILHAS NO MXICO (2007): ALTA DAS COMMODITIES, INSTABILIDADE FINANCEIRA E SEGURANA ALIMENTAR .................................... 83Las Forti ThomazCarlos Eduardo Carvalho

    DETERMINANTES DOS FUNDOS SOBERANOS DE INVESTIMENTOS E O CASO BRASILEIRO ........................................................................................ 111Andre Simas Magalhes

    TURBULNCIAS NO MUNDO RABE: RUMO A UMA NOVA ORDEM? .................. 141Reginaldo Nasser

    CRISE SUBPRIME NOS ESTADOS UNIDOS: A REAO DO SETOR PBLICO E O IMPACTO SOBRE O EMPREGO ...................................... 171Carlos Pinkusfeld BastosFernando Augusto Mansor de Mattos

  • APRESENTAO

    A Revista Tempo do Mundo uma publicao internacional organizada pelo Ipea, rgo que integra a Presidncia da Repblica Federativa do Brasil, por meio da Secretaria de Assuntos Estratgicos (SAE).

    A revista conta com verses em portugus e ingls e foi idealizada para apre-sentar e promover os debates contemporneos, com nfase na temtica do desen-volvimento, em uma perspectiva Sul Sul. O campo de atuao o da economia poltica, com abordagens plurais sobre as dimenses essenciais do desenvolvimen-to, como questes econmicas, sociais e relativas sustentabilidade.

    A meta valorizar o debate a im de formular proposies para a elaborao de polticas pblicas e, neste mbito, privilegiar as comparaes internacionais e a interdisciplinaridade, sempre destacando o papel do planejamento. A Revista Tempo do Mundo assume a ambio de formular as questes enfrentadas pela ci-vilizao contempornea que, a um s tempo, deseja usufruir de padres de vida confortveis e condies de vida dignas, mas precisa respeitar os limites do que o planeta pode suportar em termos de explorao do meio ambiente.

    importante destacar a homenagem conferida a Fernand Braudel, por meio da valorizao de sua formulao que trata do tempo do mundo, o que, em conjunto com as estruturas do cotidiano e com os jogos da troca, deine sua originalidade. Braudel sempre buscou tratar das questes que envolvem as di-menses do desenvolvimento em uma perspectiva histrica e de longa durao, enfatizando que o mundo dominado pelo modo de produo com base na acu-mulao de capital sempre teve de equilibrar a sociedade, o mercado e o Estado. Conforme ensinou o mestre, ali, onde a tarefa foi mais bem-sucedida, houve prosperidade e, onde as diiculdades foram persistentes, os resultados no tiveram o mesmo sucesso.

    Essa iniciativa, no Brasil, no nova e o grande precursor foi Celso Furta-do, em Formao econmica do Brasil. Esta obra seminal foi saudada por Braudel como inovadora sob o prisma metodolgico.

    Conselho Editorial

  • CARTA DO EDITOR

    O sexto nmero da Revista Tempo do Mundo rene seis trabalhos que, sob diferen-tes perspectivas, centram esforos em discutir aspectos essenciais do processo de desenvolvimento econmico e social. A temtica das crises internacionais persiste no escopo dos artigos aqui publicados, tanto por seus possveis impactos no pro-cesso de desenvolvimento dos pases quanto pelas incertezas ainda presentes no cenrio econmico global. Adicionalmente, novas questes mais ligadas rea das relaes internacionais e da cincia poltica ganham espao na revista e contribuem para que temas bastante atuais, como a liderana brasileira na MINUSTAH e a Primavera rabe, encontrem aqui um frum para relexo e dilogo.

    Entre os temas abordados, esto os determinantes dos fundos soberanos de investimento (FSIs). O artigo de Andr Simas Magalhes apresenta as caracters-ticas macroeconmicas dos pases que possuem FSIs e analisa o caso do Fundo Soberano do Brasil (FSB), criado em 2008.

    Os interesses e as motivaes do Brasil para participar de operaes de paz constituem o objeto do artigo assinado por Kai Kenkel. Ali se associa uma aborda-gem terica s tenses vivenciadas pelo pas em sua trajetria para se tornar uma po-tncia emergente, e analisam-se as possibilidades e as limitaes das polticas externas e de segurana brasileiras na deinio de uma base para as aes de operaes de paz.

    Em outro momento, Las Forti homaz e Carlos Eduardo Carvalho desen-volvem um debate acerca da Crise das Tortillas no Mxico, analisando as origens da forte alta dos preos das tortillas de milho que provocou a onda de protestos populares do incio de 2007 naquele pas. O trabalho discute manifestaes se-melhantes em outros pases e examina a complexidade dos fatores determinantes da tendncia de alta das commodities.

    Na linha das crises internacionais, Carlos Pinkusfeld Bastos e Fernando Au-gusto Mansor de Mattos avaliam os impactos da crise das hipotecas subprime na economia americana sob dois aspectos principais. Primeiro, fazem uma avaliao crtica das medidas tomadas pelo Estado americano para enfrentar a crise; na sequncia, abordam os impactos destas medidas sobre o mercado de trabalho.

    A seguir, Reginaldo Nasser discute as turbulncias no mundo rabe e sua possibilidade de estabelecer uma nova ordem, ao mostrar que o projeto de um Novo Oriente Mdio projetado por Bush, e reelaborado por Obama, foi descar-tado pela rua rabe.

    Por im, e em consonncia com o artigo anterior, Leonardo Schiocchet expe sobre a construo do Oriente Mdio e a Primavera rabe, revelando que mesmo os longos perodos de dominao por ditaduras seculares ou religiosas, socialistas ou no foram incapazes de mitigar o desejo de autodeterminao da maioria dos rabes.

  • INTERESSES E IDENTIDADE NA PARTICIPAO DO BRASIL EM OPERAES DE PAZ*

    Kai Michael Kenkel**

    RESUMO

    Usando uma abordagem baseada em lgicas concorrentes (adequao com base em identidade e normas contra consequncias esperadas racionalmente calculadas) desenvolvida por March e Olsen (1998), este trabalho examina as motivaes brasileiras para participar de operaes de paz e como estas mudaram nos ltimos anos. Aps a apresentao de suas bases tericas, o trabalho revisa os documentos da mais alta ordem da poltica brasileira sobre a poltica externa e de segurana, apresentados com o objetivo de ilustrar suas deicincias em servir como base para a ao consistente na rea, inter alia, das operaes de paz. O estudo prossegue ilustrando como estas vagas bases se traduziram, no passado, na poltica do pas relacionada com as operaes de paz. aplicada a abordagem terica s tenses que a poltica externa do Brasil tem experimentado durante a sua ascenso como potncia emergente. Finalmente, h breve discusso sobre o modelo de construo da paz que o pas instituiu no Haiti, que tem obtido melhor desempenho frente aos problemas e s fraquezas que assolam o processo poltico local.

    Palavras-chave: operaes de paz; Brasil; segurana; Haiti; construo da paz; poltica de defesa e segurana.

    ABSTRACTi

    Using the theory of competing logics (identity- and norm-based appropriateness and rationally calculated expected consequences) developed by March and Olsen, this paper examines Brazilian motivation for participation in peace operations and how they have changed in recent years. Following the presentation of its theoretical basis, the paper reviews highest-order Brazilian policy documents on foreign and security policy, which are presented with a view to illustrating their incapacity to serve as bases for consistent action in the area, inter alia, of peace operations. It proceeds by illustrating how these vague bases have been translated into past peacekeeping policy. It applies the theoretical approach to the tensions the countrys foreign policy has experienced as it has risen as an emerging power. Finally, there is brief discussion of the peacebuilding model the country has instituted in Haiti, which has outperformed the problems and weaknesses plaguing the political process. The paper closes by offering suggestions for the clariication of Brazilian objectives with regard to peace operations with an eye to the formulation of the countrys irst Defence White Paper in 2011.

    Keywords: peace operations; Brazil; security; Haiti; peacebuilding; defense and security policy.

    * A traduo deste artigo assinada por Fernanda Patricia Fuentes Muoz. ** Professor do Instituto de Relaes Internacionais (IRI), da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).i. As verses em lngua inglesa das sinopses desta coleo no so objeto de reviso pelo Editorial do Ipea. The versions in English of the abstracts of this series have not been edited by Ipeas editorial department.

  • revista tempo do mundo | rtm | v. 3 | n. 2 | ago. 201110

    1 INTRODUO

    Acompanhando o recente aumento na soisticao terica e metodolgica da lite-ratura sobre operaes de paz, as anlises das motivaes dos Estados para contri-buir com tropas para tais misses ganharam em nmero e em rigor ao longo dos ltimos anos.1 Estes estudos tm crescido simultaneamente com o surgimento de novos contribuintes de tropas, muitas vezes oriundos da categoria de potncias emergentes. O Brasil um destes contribuintes emergentes, tendo, em 2004, deixado de enviar o que at ento era (com algumas excees) presena relativa-mente esparsa, porm constante, de observadores militares e oiciais de ligao, para disponibilizar tanto o maior contingente quanto o comandante da fora militar de uma das maiores misses da Organizao das Naes Unidas (ONU), a Misso das Naes Unidas para a Estabilizao no Haiti (MINUSTAH). No nexo destes dois desenvolvimentos, este artigo procura trazer uma abordagem melhor fundamentada teoricamente para o estudo das metas polticas externas do Brasil e como estas se traduzem em motivaes para a participao em operaes de paz.

    Embora o pas tenha as diretrizes da poltica externa claramente deinidas e pessoal diplomtico e das foras armadas altamente proissionais, os critrios de-cisrios pblicos e polticos para participao em operaes de paz permanecem subjetivos, subinstitucionalizados e talvez intencionalmente mal deinidos. Isto est em ntido contraste com o que est sendo, cada vez mais, referido como um modelo brasileiro separado de construo da paz, que, gradativamente, revela objetivos claramente deinidos, tanto no curto como no longo prazo, e est impli-citamente calcado na operacionalizao do que, at agora, s apareceu como vagas declaraes de intenes em documentos oiciais. Neste sentido, a prtica est na frente da poltica e dos polticos nos casos, tanto das motivaes do Brasil em contribuir para as operaes de paz da ONU, quanto na forma desta contribui-o. Este trabalho argumenta que h necessidade de considerveis consolidao e esclarecimento das polticas brasileiras sobre as operaes de paz em especial, em vista da crescente importncia do pas nesta.

    Aps delinear as consideraes tericas que estruturam sua anlise, o trabalho revisa os documentos da mais alta ordem da poltica brasileira sobre poltica ex-terna e de segurana, apresentados com o objetivo de ilustrar suas deicincias em servir como base para a ao consistente na rea, inter alia, das operaes de paz. O estudo prossegue mostrando como estas nebulosas bases foram traduzidas em declaraes diplomticas vagas, igualmente insuicientes como base para polticas concretas. Outros fatores, alm das tradies da poltica externa em particular, a ascenso do pas como potncia emergente tambm so levados em considerao.

    1. Ver, por exemplo, as numerosas anlises na principal publicao da rea, a revista International Peacekeeping, e, a ttulo indicativo, os estudos sobre as motivaes do Estado, presentes no trabalho de Velzquez (2007; 2009; 2010).

  • Interesses e Identidade na Participao do Brasil em Operaes de Paz 11

    O referencial terico , ento, utilizado para identiicar e consolidar os objetivos e as motivaes que podem servir como bases para uma poltica clara e implement-vel no que diz respeito s operaes de paz, tal como desenvolvido para o e no ambiente haitiano.

    2 ALTRUSMO EGOSTA: POR QUE OS ESTADOS CONTRIBUEM PARA AS OPERAES DE PAZ

    Tal como acontece com outras formas de interveno humanitria, as motiva-es que levam os Estados a se engajar em operaes de paz so variadas. Algu-mas so internas: a deciso de participar pode decorrer do uso dessas misses como meio de perseguir os interesses unilaterais prprios de um pas embora isto, em certa medida, seja antema ao carter do peacekeeping tal como pratica-do pela ONU;2 em alguns casos, os Estados visualizam uma contribuio para a manuteno da paz como instrumento conducente a um maior prestgio inter-nacional ou uma maior participao nos rgos deliberativos das Naes Uni-das; pode haver ainda um altrusmo genuno associado a estas motivaes em ocasies especicas. Algumas motivaes, por sua vez, so externas: os Estados tm sido pressionados por aliados a participar em coligaes de interveno, ou tm alterado sua posio, vis--vis um contexto de conlito especico, como resultado de mudanas na interpretao das normas internacionais pelo seu principal parceiro de poltica externa.3 Outros ainda participam das operaes de paz por razes de compensao inanceira.

    Embora no seja a mais recente, a anlise de Neack (1995), sobre as moti-vaes das potncias mdias para participar nas operaes de paz (OPs), perma-nece seminal, na qual a autoria se vale da distino nova no, e indicativa do, momento da sua publicao, ligado ascenso do institucionalismo entre o que so denominadas motivaes realistas e idealistas para a participao. Em-bora as anlises da participao tenham avanado consideravelmente desde essa poca, esta distino continua crucial e retomada neste estudo; sua relevncia para o caso brasileiro reforada pelo foco dado pela autora sobre potncias mdias categoria para a qual o Brasil entrou recentemente e pela incluso explcita do Brasil em seu estudo.

    Consoante com especialistas em potncias mdias, Neack situa as operaes de paz como atividade, por excelncia, desta categoria de Estado, para a qual as instituies internacionais tm se tornado o principal veculo para a prossecuo dos interesses nacionais. Ela observa a contradio que o fato cria em termos da

    2. Um exemplo frequente a esse respeito a presena militar russa em seu exterior prximo em particular, na fora de manuteno da paz da Comunidade dos Estados Independentes CEI (CIS PKF, na sigla em ingls).3. Por exemplo, uma forte corrente de anlises entre os estudiosos alemes localiza a motivao do governo alemo para o envio de tropas para a Bsnia em 1994 nessa fonte.

  • revista tempo do mundo | rtm | v. 3 | n. 2 | ago. 201112

    separao do clculo racional de interesses da dedicao altrusta para a manuten-o do bem comum reiicada na instituio global e ilustra como esta tenso est no seu pice no caso das intervenes multilaterais:

    A origem da manuteno da paz da ONU possui, ento, uma contradio interna que a caracteriza at hoje. A participao na manuteno da paz da ONU su-postamente um ato que transcende interesses nacionais estreitos, enquanto que, em grande medida, a manuteno da paz se desenvolveu como uma forma para as potncias mdias demonstrarem o seu poder e importncia na poltica mundial (NEACK, 1995, p. 183).

    Neack, ento, procura desagregar os dois fatores de motivao para a partici-pao na manuteno da paz, que ela classiica como idealista e realista:

    Duas explicaes concorrentes para a participao do Estado na manuteno da paz da ONU podem ser desenvolvidas a partir dessa contradio. Primeiro, a par-ticipao do Estado que transcende estreitos interesses nacionais pode ser explicada a partir de uma perspectiva idealista. Resumidamente, os Estados participaro na manuteno da paz da ONU por uma obrigao de proteger a paz internacional e para preservar normas e valores internacionais. Os Estados o faro mesmo em face do conlito de interesses nacionais.

    A explicao realista da participao do Estado na manuteno da paz da ONU que os Estados fazem o que podem, dados os seus recursos de poder, para proteger e preservar os interesses nacionais. Se os lderes nacionais veem os interesses de seus Estados inexoravelmente vinculados continuao do status quo internacional, eles apoiaro e defendero o status quo. As organizaes internacionais, em particular a ONU, so os principais beneicirios desse apoio (op. cit., p. 184).

    Para Neack, as potncias mdias so os principais defensores das ope-raes de paz e tm motivaes tanto idealistas quanto realistas para faz-lo. Do ponto de vista idealista,

    so os Estados mais propensos a proteger o sistema internacional e, portanto, mais propensos a participar em atividades multilaterais, como a manuteno da paz, devido ao seu forte compromisso com a paz internacional (op. cit., p. 183-184).

    No entanto, o clculo racional tambm leva esses Estados a essa concluso, por causa da potncia global que podem exercer. Os interesses das potncias mdias so atendidos pela continuao do status quo internacional, pois no status quo alcanaram relativa riqueza e inluncia (op. cit., p. 184).

    Embora esse seja o primeiro passo fundamental na compreenso das razes das decises dos Estados em participar, as duas motivaes de Neack (1995) permanecem fragilmente diferenciadas, particularmente em relao aos Estados

  • Interesses e Identidade na Participao do Brasil em Operaes de Paz 13

    que ela enfoca. Como se diferencia, na prtica, o apoio idealista de uma potncia mdia para estruturas conducentes paz internacional como virtude da poltica externa, daquele apoio como meio de manter uma ordem da qual se beneicia? Esclarecer este ponto em grande detalhe no o propsito da anlise inicial desta autora; esta tarefa deixada para posteriores estudiosos da natureza dos interesses dos Estados nas instituies internacionais.

    Nesse sentido, o trabalho frequentemente citado de March e Olsen (1998) postula duas lgicas concorrentes que, por extenso, explicam a ao do Estado nas instituies da qual a participao em operaes de paz uma forma. Uma destas racionalista; a outra tem sido associada (com graus variados de sucesso) com a escola construtivista, ou, pelo menos, quela normativa de pensamento. As motivaes racionalistas, com base na anlise de custo-benefcio relativo, so encapsuladas na noo de lgica de consequncias esperadas:

    Aqueles que veem as aes como impulsionadas por expectativas de consequncias imaginam que os atores humanos escolhem entre alternativas, avaliando suas pro-vveis consequncias para objetivos pessoais ou coletivos, conscientes de que outros atores esto fazendo o mesmo (MARCH e OLSEN, 1998, p. 949).

    March e Olsen airmam que,

    a partir dessa perspectiva, a histria vista como a consequncia da interao de ato-res intencionados e totalmente compreendida quando relacionada s expectativas de suas consequncias e aos interesses (preferncias) e recursos dos atores. As aes individuais so explicadas pela identiicao das razes consequentes para elas. A poltica externa explicada proporcionando uma interpretao dos resultados esperados a partir dela (op. cit., p. 950).

    Em contrapartida, na lgica de adequao, normativamente fundamentada,

    as aes so vistas como baseadas em regras. Imagina-se que os atores humanos seguem as regras que associam identidades particulares a situaes particulares, abordando oportunidades individuais para a ao ao avaliar as semelhanas entre as identidades e os dilemas de escolha atuais e os conceitos mais gerais do Eu e das situaes. A ao envolve a evocao de uma identidade ou papel e de como coinci-dir as obrigaes daquela identidade ou papel a uma situao especica. A busca da inalidade est mais associada a identidades do que a interesses e seleo de regras mais do que a expectativas racionais individuais. A adequao no precisa atender s consequncias, mas envolve dimenses cognitivas e ticas, metas e aspiraes. Como uma questo cognitiva, a ao adequada a ao que essencial a uma concepo particular de si mesmo. Como uma questo tica, a ao adequada a ao virtuosa. Ns explicamos a poltica externa como a aplicao de regras associadas a identi-dades particulares com situaes particulares (MARCH e OLSEN, 1998, p. 951).

  • revista tempo do mundo | rtm | v. 3 | n. 2 | ago. 201114

    De modo sucinto, no que diz respeito s decises relacionadas interveno,

    as decises dos Estados de intervir so, normalmente, relacionadas a duas questes: os clculos positivos de custo-benefcio e suas obrigaes morais ou para os belige-rantes ou em um comportamento altrusta em geral (NALBANDOV, 2009, p. 23).

    A falta de distino clara entre essas categorias talvez o mais vexatrio entre os numerosos problemas identiicados posteriormente com a abordagem de March e Olsen (GOLDMANN, 2005, p. 40-41). Embora haja uma tentao, no interesse da parcimnia metodolgica, em construir as lgicas como totalmente distintas, os autores mesmos reconhecem a impossibilidade desta meta e, assim, trabalham para esclarecer a relao entre as lgicas, que eles admitem

    no serem mutuamente exclusivas. Como resultado, a ao poltica em geral no pode ser explicada exclusivamente em termos de uma lgica de consequncias, ou de adequao. Qualquer ao em particular, provavelmente, envolve elementos de cada uma. Os atores polticos so constitudos tanto por seus interesses, pelos quais eles avaliam suas consequncias esperadas, quanto pelas regras embutidas em suas identi-dades e instituies polticas. Eles calculam as consequncias e seguem as regras, e a relao entre as duas muitas vezes sutil (MARCH e OLSEN, 1998, p. 952).

    No entanto, March e Olsen (1998, p. 953-954) no deixam de ver as duas lgicas como suicientemente separadas para a operacionalizao e oferecem quatro caracterizaes possveis da inter-relao entre as duas. Finalmente, a for-mulao analtica mais convincente, especialmente para aqueles interessados em operaes de paz, a de Goldmann (2005). Este autor aponta a desigualdade inerente entre as duas categorias, argumentando que, enquanto a lgica de ade-quao capaz de assimilar o clculo do interesse, a lgica de consequncias em March e Olsen , de certa forma, um espantalho:

    Isto, primeira vista, bastante simples. Acontece, no entanto, que enquanto [a posio de consequncias] exclui aquilo [baseado nas expectativas], o inverso no verdadeiro. Aqueles do lado desta ltima, em contraste queles do lado da primeira, so considerados capazes de tomar mais de uma coisa em conta. Eles no associam a ao exclusivamente a qualquer coisa: eles enfatizam as identi-dades, mas no excluem os interesses; eles no negam a realidade dos clculos e previses das consequncias. (...) Em outras palavras, aqueles que interpretam a ao em termos de a lgica de consequncias esperadas so de mente simples e sem imaginao, ao passo que aqueles que o fazem em termos de a lgica de ade-quao tm a mente aberta e soisticada. Isto pode ser visto como (relativamente) uma inocente estratgia de venda acadmica, mas enfraquece a ideia de que esta-mos lidando com perspectivas, teorias, ou tipos ideais mutuamente excludentes (GOLDMANN, 2005, p. 39-40).

  • Interesses e Identidade na Participao do Brasil em Operaes de Paz 15

    Dessa forma, a abordagem baseada em lgicas concorrentes est sujeita ao que poderia ser denominada racionalidade normativa da ao; as identidades sentidas do ator esto embutidas no seu clculo de consequncias e interesses (SENDING, 2002, p. 444).4 Goldmann airma que, essencialmente, se conside-rando preferncias e identidades como previamente dadas, at mesmo quando fo-cadas nas identidades, a abordagem realmente no transcende o estruturalismo:5

    [A] lgica de adequao proporciona uma viso mais complexa da motivao hu-mana porque no exclui a considerao das consequncias, enquanto que a lgica de consequncias esperadas levada a ignorar as regras e identidades. (...) Assim como a lgica de consequncias esperadas assume preferncias, ao invs de explic-las, a lgica de adequao assume as identidades. A omisso no completa em ambos os casos: o raciocnio ao longo das linhas da lgica de consequncias espera-das muitas vezes baseado em uma teoria estrutural de interesses, assim como Mar-ch e Olsen enfatizam a formao social das identidades. O paralelo claro, porm: enquanto a lgica de consequncias esperadas essencialmente nos leva a derivar aes a partir das preferncias dadas, a lgica de adequao essencialmente nos leva a derivar aes a partir das identidades dadas (GOLDMANN, 2005, p. 44).

    Nesse sentido, ao aplicar lgicas concorrentes na anlise das motivaes para participar nas OPs, pode-se comear com a suposio de que os Estados so mais propensos a seguir a lgica de adequao, embora imbudos fortemente do im-pulso de seguir os interesses racionalmente calculados, como a situao convm. No entanto, no caso de prtica cuja base normativa e aplicao prtica so con-so con-duzidas por instituies internacionais, como a ONU, est claro que preocupao normativa com a identidade limitar a expresso da ao exclusivamente basea-da em consequncias, no mbito da manuteno da paz internacional (PARIS, 2003). Em outras palavras, uma prtica historicamente trabalhada em perspectiva dos elementos essencialmente da identidade do Norte pode no se encaixar to bem com a prossecuo dos interesses de um Estado do Sul, sem tenses norma-tivas e adaptaes signiicativas da prtica.

    3 POLTICA OFICIAL BRASILEIRA RELATIVA INTERVENO E S OPERAES DE PAZ

    Como, ento, essa lente terica permite elucidar os fatores motivadores por trs da poltica brasileira e da tomada de decises sobre operaes de paz? Para to-das as suas deicincias referidas anteriormente, desagregando-se as motivaes polticas normativas das materiais, a abordagem das lgicas concorrentes par-ticularmente til em relao a dois aspectos centrais na compreenso da poltica

    4. Sending (2002) explicitamente referencia a esse respeito Risse (2000).5. Esse ponto tambm levantado por Sending (2002).

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    brasileira de participao em OPs. Estes so: a tenso normativa entre tradies histricas regionalmente arraigadas da poltica externa e normas internacionais recm-evoludas de interveno; e os efeitos do processo decisrio fraturado e subinstitucionalizado do pas na rea de operaes de paz.

    Na orientao de sua poltica externa, o Brasil est fortemente enraizado na subcultura de segurana da Amrica Latina (KENKEL, 2012). Moldada por quase dois sculos pela postura intervencionista contnua dos Estados Unidos no hemisfrio, esta cultura tem-se concentrado, em grande medida, no desen-volvimento de protees legais contra a interveno norte-americana. Como resultado, seu mais alto princpio o respeito pela norma da no interveno, interpretao que tem corolrio na equao do princpio da soberania com a inviolabilidade das fronteiras.

    Aps a independncia de Portugal e da Espanha, os novos Estados inde-pendentes da Amrica do Sul, em grande parte, estabeleceram suas fronteiras por meio de negociao, em vez da fora, e adotaram clara preferncia pela via diplo-mtica, junto com o forte repdio ao uso da fora na resoluo de disputas. His-toricamente falando, em termos globais, a percepo do Brasil de sua identidade foi, por muito tempo, a de um Estado perifrico fraco, que necessitava da prote-o da soberania absoluta contra a vontade das potncias mais fortes do Norte. As estruturas normativas das instituies multilaterais e do direito internacional h muito so vistas como proteo essencial contra os caprichos da distribuio do poder no sistema internacional.

    Nesse sentido, o papel fundamental das instituies multilaterais na expres-so da identidade da poltica externa do Brasil ressalta a natureza mesclada dos interesses normativos e materiais: a sustentao das instituies internacionais e suas prticas so uma forma de perseguir o interesse nacional, que, por sua vez, deriva parcialmente das respostas normativas destes fruns. De maneira signii-cativa, em seu papel como o principal arquiteto da poltica externa brasileira, o Ministrio das Relaes Exteriores (MRE), tambm conhecido como Itamaraty, tem predileo acentuada pela forma multilateral, com todas as suas sequelas nor-mativas.6 Em contraste, as Foras Armadas, projetistas primordiais da poltica de defesa do pas e principais implementadores de sua participao em OPs, atm-se linha, comum a quase todos os estabelecimentos militares, de colocar no cen-tro de sua anlise um interesse nacional, notadamente material. Isto resultou em impreciso nefanda tanto na poltica declaratria como no processo especico em relao s operaes de paz.

    6. De fato, o conlito entre essa predileo, manifestada na participao em operaes de paz, e a interpretao ab-solutista da soberania, demonstrada na rigorosa norma de no interveno, que est na base das maiores tenses em torno da poltica brasileira sobre operaes de paz, medida que o pas assume papel internacional mais proeminente. Ver Kenkel (2008; 2012).

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    Os documentos que fundamentam a conduta da poltica externa do Brasil ilustram este ponto. O Artigo 4o da Constituio Federal de 1988 (CF/88) sujeita a ao internacional do Brasil aos seguintes princpios:

    I - independncia nacional;

    II - prevalncia dos direitos humanos;

    III - autodeterminao dos povos;

    IV - no interveno;

    V - igualdade entre os Estados;

    VI - defesa da paz;

    VII - soluo pacica dos conlitos;

    VIII - repdio ao terrorismo e ao racismo;

    IX - cooperao entre os povos para o progresso da humanidade;

    X - concesso de asilo poltico (BRASIL, 1988).

    Alm de sua funo decisiva, o que torna esse pargrafo interessante que este no estabelece hierarquia entre os valores em questo; no caso de confronto entre os valores de defesa da paz ou no interveno com autodeterminao ou direitos humanos, explicitamente deixado para a poltica decidir qual preceito prevalecer. Esse aspecto ps-moderno da Constituio brasileira7 uma bno e uma maldio: permite grande liber-dade de interpretao, enquanto fornece diretriz menos irme em situaes especicas. Os preceitos do Artigo 4o poderiam certamente ser usados como argumentao para o Brasil agir de maneiras divergentes durante a mesma crise, se a interveno for considerada uma opo na obteno, por exemplo, da defesa da paz.

    Como resultado, o Artigo 4o confere papel interpretativo poderoso, tanto para o Poder Executivo quanto para o Poder Legislativo. Em parte, como re-sultado dos estigmas sobre como lidar com questes militares resultantes da era do Regime Militar, ambos os poderes, em grande medida, tm se esquivado de assumir este papel. H falta geral de conhecimento e interesse sobre as questes militares no Congresso Nacional, e o Poder Executivo que, na verdade, s pos-sui um Ministrio de Defesa dirigido por um civil desde 1999 ainda tem de estabelecer orientaes polticas verdadeiramente capazes de servir como bases para uma poltica implementvel.

    7. Acerca da natureza ps-moderna da Constituio brasileira, ver Barroso (2001).

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    Um caso ilustrativo constitudo pelas duas iteraes da Poltica de Defesa Nacional apresentadas em 1996 e 2005. A histria do primeiro documento re-veladora: aps terem sido submetidos na forma de Fundamentos de uma [futura] Poltica de Defesa Nacional, durante o processo de consulta, simplesmente se remo-veu Fundamentos de uma e publicou-se o documento, essencialmente sem reviso, como documento do governo. Isto reletido na sua impreciso, particularmente no que se refere ao complexo de questes relativas s operaes de paz. Consistente com a adoo de preferncia por abordagens pacicas, no militares, para a defesa e, de maneira incisiva, referindo-se s foras armadas e diplomacia com noes, em grande medida, no quantiicveis, tais como expresses da soberania e da dignidade nacional (BRASIL, 1996, pargrafo 2.13) , o documento estabelece, inter alia, trs valores como prioridades desta poltica:

    e. a consecuo e a manuteno dos interesses brasileiros no exterior;8

    f. a projeo do Brasil no concerto das naes e sua maior insero no processo decisrio internacional; eg. a contribuio para a manuteno da paz e da segurana internacionais (op. cit., pargrafo 3.3).

    Comprometendo o pas com a busca da soluo pacica de controvrsias, com o uso da fora somente como recurso de autodefesa (op. cit., pargrafo 4.2), as diretrizes inais do documento de 1996, com relevncia para as operaes de paz, so:

    a. contribuir ativamente para a construo de uma ordem internacional, baseada no estado de direito, que propicie a paz universal e regional e o desenvolvimento sustentvel da humanidade;b. participar crescentemente dos processos internacionais relevantes de tomada de deciso;c. aprimorar e aumentar a capacidade de negociao do Brasil no cenrio internacional;(...)e. participar de operaes internacionais de manuteno da paz, de acordo com os interesses nacionais (op. cit., pargrafo 5).

    O documento poltico de 1996 mostra muito claramente a sobreposio entre as lgicas de adequao e de consequncias, como exposto por March e Olsen (1998) e criticada por Goldmann (2005) e Sending (2002). A poltica deine como interesses aspectos geralmente associados, na abordagem das lgicas, identidade e subordina aos interesses no pas, na lgica de consequncias a prtica de manuteno da paz em geral, sujeita aos ditames de normas e identidade (PARIS, 2003). Isto resulta da autoidentiicao histrica brasileira mencionada anteriormente agora cada vez mais contestada como Estado perifrico, cuja melhor chance de alcanar inluncia na cena internacional mediante o compromisso com a forma multilateral.

    8. medida que cresce o peril econmico e de segurana do pas, possvel que a perspectiva da defesa dos interesses comerciais brasileiros no exterior pelas Foras Armadas surja como considerao hipottica.

  • Interesses e Identidade na Participao do Brasil em Operaes de Paz 19

    Nesse sentido, pode-se dizer que a distino de March e Olsen (1998) des-mente sua origem na anlise dos Estados mais fortes do Norte, capazes de reter, na sua interao com as instituies internacionais, viso de interesses separada de sua atualizao nestas instncias. Sua abordagem, no entanto, prev a possi-bilidade de apontar para a conluncia de interesses com valores no documento poltico, em detrimento da clara deinio necessria da primeira. Enquanto os documentos polticos coniguram panorama claro das facetas da identidade bra-sileira de segurana, no reinam estes aspectos em interesses possveis ou critrio decisrio aiado.

    A situao melhora s ligeiramente com a reviso, em 2005, da Poltica de Defesa Nacional. A verso de 2005 faz a ligao entre preservar o sistema interna-cional, as instituies multilaterais e as operaes de paz:

    A prevalncia do multilateralismo e o fortalecimento dos princpios consagrados pelo direito internacional, como a soberania, a no interveno e a igualdade entre os Estados, so promotores de um mundo mais estvel, voltado para o desenvolvi-mento e bem-estar da humanidade (BRASIL, 2005, pargrafo 2.3).(...)O Brasil atua na comunidade internacional respeitando os princpios constitucionais de autodeterminao, no interveno e igualdade entre os Estados. Nessas condi-es, sob a gide de organismos multilaterais, participa de operaes de paz, visando a contribuir para a paz e a segurana internacionais (op. cit., pargrafo 4.12).(...)[A preveno na Poltica de Defesa Nacional baseia-se em]IV [a] busca da soluo pacica de controvrsias;V [a] valorizao dos foros multilaterais (op. cit., pargrafo 6.2).

    O documento de 2005 destaca em vrios momentos a importncia das ope-raes de paz, sem oferecer maiores detalhes sobre sua preparao ou seu desdo-bramento, ou critrio de compromisso com qualquer um:

    Para ampliar a projeo do pas no concerto mundial e reairmar seu compromisso com a defesa da paz e com a cooperao entre os povos, o Brasil dever intensiicar sua participao em aes humanitrias e em misses de paz sob a gide de organis-mos multilaterais (op. cit., pargrafo 6.17).

    A importncia das operaes de paz como objetivo estratgico, estabelecido na ltima seo do documento de 1996, repetida, inalterada, nove anos depois (op. cit., pargrafo 7.25). Uma vez mais, a Poltica de Defesa Nacional de 2005 no oferece orientao sobre a forma como os princpios do Artigo 4o da Cons-tituio devem ser relacionados uns aos outros na prtica e quais devem ser os critrios ixados, ou at mesmo os parmetros polticos, para o desdobramento de foras. A manuteno de estruturas multilaterais e a forte participao nestas

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    esto consagradas como a forma preferida de fazer os interesses brasileiros serem ouvidos a nvel internacional, de tal forma a evitar a distino entre as duas lgi-cas de March e Olsen (1998). Os interesses brasileiros so deinidos em termos de uma identidade multilateralista, paciista e soberana e as operaes de paz so subordinadas a estes interesses.

    Essa confuso decorre, em grande parte, das diferenas nas abordagens adota-das pelos diferentes ministrios envolvidos na elaborao da poltica de segurana do pas em particular, no que tange s operaes de paz. Considerando-se que o MRE possui uma cultura grotiana9 de negociao, multilateralismo e paciis-mo, claramente alinhada com uma lgica de adequao, o Ministrio da Defesa (MD), integrado na sua maioria por militares, tende a adotar uma lgica de con-sequncias, assumindo a busca de um interesse nacional racionalmente calculado. Isto leva a uma situao na qual os documentos militares subordinam a partici-pao nas OPs aos interesses nacionais baseados em consequncias, cuja deinio dada pelo MRE, em funo de normas e identidades alinhadas com noes de aes adequadas. Isto claramente consistente com a crtica j mencionada de Goldmann (2005), preocupada com a capacidade das lgicas serem claramente separadas. Como resultado, a avaliao das consequncias da ao uma prtica j expressa nas percepes de sua adequao. A saber, a Estratgia Nacional de Defesa de 2008 d um passo para a operacionalizao dos conceitos descritos na Poltica de Defesa interministerialmente negociada, considerando as implicaes para as Foras Armadas e o MD. Curiosamente, o documento faz isto, de incio, por uma consagrao dos elementos da identidade mais relevantes s operaes de paz:

    O Brasil pacico por tradio e por convico. Vive em paz com seus vizinhos. Rege suas relaes internacionais, dentre outros, pelos princpios constitucionais da no interveno, defesa da paz e soluo pacica dos conlitos. Esse trao de paciis-mo parte da identidade nacional e um valor a ser conservado pelo povo brasileiro (BRASIL, 2008, p. 8).

    Apenas mais tarde que o documento atenta, na seo especica sobre ope-raes de paz, para a necessidade de subordinar o envio de tropas s noes de consequncias e interesse nacional este deine como objetivo:

    Promover o incremento do adestramento e da participao das Foras Armadas em operaes de paz, integrando Fora de Paz da ONU ou de organismos mul-tilaterais da regio.1. O Brasil dever ampliar a participao em operaes de paz, sob a gide da ONU ou de organismos multilaterais da regio, de acordo com os interesses nacionais expressos em compromissos internacionais (op. cit., p. 62).

    9. Ver, por exemplo, Goffredo Jnior (2005).

  • Interesses e Identidade na Participao do Brasil em Operaes de Paz 21

    interessante notar a crescente importncia dada s operaes de paz pelos documentos polticos sucessivos, sem melhoria relevante do contedo ou do nvel de detalhe executvel. Embora dedique um ttulo separado s operaes de paz, a Estratgia Nacional de Defesa limita-se a repetir documentos anteriores, acres-centando o desejo de assumir papel de liderana regional no treinamento de tais misses. Finalmente, a Doutrina Militar de Defesa, de 2007, tambm destaca a importncia das operaes de paz para os objetivos da poltica externa do pas e procura, mais uma vez, criar uma hierarquia de interesses nacionais sobre a parti-cipao multilateral: As FA [Foras Armadas] podem participar de operaes de paz, em conformidade com o prescrito na Carta das Naes Unidas, respeitados os princpios da no interveno e da autodeterminao dos povos (BRASIL, 2007, pargrafo 6.7.4).

    Esses documentos ilustram as tenses inerentes no estabelecimento de uma poltica baseada em princpios potencialmente conlitantes descritos na Consti-tuio. Pode-se dizer que os dois principais ministrios envolvidos assumem um dos dois lados da diviso de March e Olsen (1998) entre as lgicas concorrentes. Como resultado, h tenses claras entre as respostas solicitadas nos documentos. Por exemplo, o compromisso do pas em prol da no interveno mais ativamente promovido pelo MRE por natureza confere-lhe postura ctica no que diz respeito a certos tipos de operaes de paz em particular, aquelas dispostas no Captulo VII da Carta da ONU. O documento militar, por sua vez, argumenta fortemente a favor de aumentar a participao global em todo um leque de tipos de misses.

    Isso levanta a questo de quais interesses sero salvaguardados pela partici-pao em OPs, alm do objetivo declarado alis tautolgico, neste aspecto de maior participao em instituies internacionais. O que a manuteno da paz se no um exemplo, em termos de objetivos nacionais, da melhoria do relacionamento com organismos multilaterais e o sistema internacional? At o momento, a interpretao destas questes tende a favorecer a linha seguida pelo MRE. No obstante, h necessidade de critrio para identiicar claramente quais tipos de misses atingem equilbrio aceitvel entre os objetivos constitucionais e que forma de participao pode ser rotineiramente excluda. O atraso na elabora-o de tal critrio exacerbado pela natureza fraturada e subinstitucionalizada do processo decisrio poltico.

    4 O PROCESSO DECISRIO PARA O ENVIO DE TROPAS BRASILEIRAS PARA OPERAES DE PAZ

    Atualmente, o processo decisrio para o destacamento de tropas para a manuten-o da paz no Brasil ad hoc e subinstitucionalizado. Como resultado, bastante malevel no tocante s personalidades desempenharem um papel exacerbado, seja acelerando o processo ou mantendo-o refm. A base jurdica para as decises est

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    ultrapassada, tendo sido estabelecida como medida temporria em 1956, com a primeira participao do pas na primeira Fora de Emergncia das Naes Unidas (UNEF I) no Suez 32 anos antes da ratiicao da atual Constituio. A falta de deinio clara das vias formais ou sua natureza complexa e redundante, quando presentes, no so caractersticas incomuns no processo poltico, bem como so, de fato, indicativos de um padro frequente de solues espontneas que assumem carter permanente. A partir destas origens, um processo ixo tem se cristalizado a partir da prtica repetida.

    O processo comea quando a ONU, geralmente por meio do Departamento de Operaes de Manuteno da Paz (DPKO), informalmente solicita da Misso Permanente do Brasil posio sobre possvel contribuio de tropas para uma ope-rao em fase de planejamento. A Misso Permanente avalia a solicitao luz dos interesses do pas nas Naes Unidas e a encaminha ao Ministrio das Relaes Exteriores.10 O MRE, de modo informal, consulta o MD sobre a disponibilidade de tropas e a Presidncia da Repblica (PR) a respeito da convenincia poltica interna do destacamento. Um pedido formal feito pelo DPKO; o MRE e o MD respondem por meio de Exposio de Motivos Conjunta. A consulta feita tambm ao Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto (MP), que deve aprovar o aprovisionamento do oramento militar para as operaes. O processo, ento, dirige-se ao Poder Legislativo, por meio de Mensagem Presidencial para o Congresso Nacional, contendo o pedido e a avaliao dos ministrios. Em seguida, esta instituio deve aprovar os detalhes do destacamento por meio de decreto sob a Lei no 2.593/1956 (UZIEL, 2009, p. 81).

    Analistas brasileiros identiicaram uma srie de diiculdades nesse processo, entre as quais um diplomata identiicou a mais problemtica:

    1) existe uma baixa institucionalidade, visto que as etapas no esto previstas em uma norma e podem ser contornadas ou questionadas. Ademais, o progresso da deciso depende de constantes presses polticas, sobretudo junto a rgos que no esto diretamente envolvidos no tema (como o MPOG ou a Casa Civil da Presidncia); 2) ainda nesse campo, persiste uma aguda dependncia das relaes pessoais entre os responsveis pelo tema para que um pedido seja processado; 3) o Congresso normalmente no recebe informaes sistemticas sobre os conlitos tratados e as misses de paz e depende de notcias da imprensa; 4) como resultado dos fatores anteriores, frequente que a deciso seja morosa e acabe no atendendo s expectativas das Naes Unidas, que necessitam de mobili-zar contingentes com celeridade (op. cit., p. 81-82).

    10. Observe o destaque que isso confere tanto aos interesses (consequncias) quanto ao Itamaraty, cuja preferncia considerada como sendo de adequao.

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    Isso faz com que o resultado efetivo do processo seja altamente dependente da poltica e da personalidade. Portanto, a atitude geral do governo no poder pode deixar uma forte marca s vezes, poltico-partidria no padro de par-ticipao de OPs do pas. De fato, a participao do pas na MINUSTAH tem demonstrado, muito comprovadamente, que este o caso, em contraste com o padro prvio sua participao no Haiti.

    5 PADRES HISTRICOS: O BRASIL E AS OPERAES DE PAZ (1956-2004)

    Antes da adoo de papel de liderana na MINUSTAH, o Brasil foi um constante, embora pequeno, contribuinte para as operaes de paz. O pas enviou um luxo constante de oiciais individuais s OPs da ONU como oiciais de ligao e de Estado Maior e como observadores militares. Houve trs excees a esta regra, na forma de foras, do tamanho de um batalho, enviadas UNEF I, no perodo 1956-1967, Misso de Veriicao da ONU em Angola (United Nations Angola Veriication Mission Unavem), no perodo 1995-1997, e United Nations Ope-ration in Mozambique (Unomoz) em Moambique, no perodo 1993-1994, para os quais o pas tambm forneceu, brevemente, o comandante da fora.11 O pas aderiu rigorosamente norma de no interveno, interpretada como a proibio de qualquer participao em misses, exceto aquelas descritas no Captulo VI da Carta da ONU, o Captulo VII sendo visto como violao do seu Artigo 2o (7).

    O pas assumiu essa postura at o ponto de abster-se de votar em vrias re-solues sobre o Haiti e, notavelmente, a deciso de estabelecer operao de paz mais robusta em Ruanda durante seu perodo como membro no permanente do Conselho de Segurana da ONU (CSNU) em 1994. Com exceo das misses iniciais na Pennsula de Suez, que ofereceram a oportunidade para contribuio claramente neutra para a manuteno da ordem internacional, sob o mais estrito dos padres relativos ao uso da fora, as contribuies brasileiras para a manu-teno da paz estiveram sujeitas ao destacamento em reas de evidente interesse e ainidade nacionais. Moambique e Angola so antigas colnias portuguesas e membros da Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa (CPLP) que come-aram a desempenhar um papel crescente na poltica externa brasileira na poca. Em outros termos, as participaes seguiram a lgica da adequao, mas no se di-vorciaram das consideraes das consequncias, e estas no foram iltradas por uma lente de crescente peril internacional (um interesse nacional) por tal participao.

    As tropas brasileiras contriburam amplamente em papel de no combate, tais como na prestao de assistncia mdica, e sua presena no esteve explicita-mente ligada aos mais amplos objetivos declarados da poltica externa (KENKEL,

    11. As obras de referncia mais detalhadas de autores brasileiros so de Fontoura (1999) e Cardoso (1998). Mais recentemente, ver Aguiar (2005) e Alsina Jnior (2009).

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    2010a; 2010b). Esta participao tornou-se muito menos relutante medida que o pas assumiu cada vez mais as caractersticas de potncia emergente e comeou a sofrer uma srie de mudanas na autoidentiicao subjacente poltica externa, incluindo-se suas atitudes em relao participao na manuteno da paz.

    6 SURGEM NOVOS INTERESSES E NOVA IDENTIDADE: O BRASIL COMO POTNCIA EMERGENTE12

    A posio histrica do Brasil relete claramente o aterramento do pas em uma subcultura de segurana regional latino-americana especica que em termos, por exemplo, dos valores concorrentes consagrados na Constituio brasileira nitidamente preza a soberania e a no interveno sobre a defesa pelo uso da fora da paz e dos direitos humanos. O advento do segundo mandato do ento presidente Luiz Incio Lula da Silva levaria a mudanas, tanto na percepo da identidade internacional do Brasil quanto na natureza da anlise custo-benefcio a esta associada.

    O processo decisrio, subinstitucionalizado e dependente da personalidade dos atores envolvidos, de fato, facilitou mudana nas metas polticas e sua rpida execuo na prtica. Em termos da abordagem de March e Olsen (1998), um deslocamento duplo comeou a ocorrer como resultado de o Brasil adotar uma posio tpica de uma potncia emergente: assim que, como na lgica de ade-quao, a identidade do Brasil comeou a ser redeinida, longe de entendimento regionalmente ancorado, em direo a um ator global, o equilbrio entre as duas lgicas tambm comeou a mudar, com nfase maior em anlise custo-benefcio que visa aumentar a inluncia global do pas.

    Uma forma de encapsular as tenses internas na poltica do Brasil para a interveno, durante este perodo de transio, enquadr-las em termos de confronto entre as normas regionais, que at recentemente tm sido adequadas para o foco prvio do pas, e as atitudes inerentes busca de maior inluncia a nvel internacional. Em termos realistas, a utilidade das operaes de paz como meio para atingir maior inluncia internacionalmente deriva fortemente da disponibilidade expressa para assumir a responsabilidade global, sinalizada pela participao nestas.

    A expresso sucinta desta tenso que se trata de mudana na autoidentii-cao, de fraco poder perifrico que requer da proteo da soberania como es-cudo para parte interessada global e preparada para assumir a responsabilidade pelo sistema internacional e em particular, no caso de membros potenciais do Conselho por aqueles que no podem defender a si prprios.

    12. Esta seo est estreitamente baseada na anlise de Kenkel (2012).

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    Como resultado, o equilbrio entre os princpios constitucionais afasta-se dos favorecidos pelo contexto regional para se aproximar daqueles cuja busca e apoio so vistos como voltados a uma maior retribuio inal a nvel internacio-nal. No caso das operaes de paz, isto se traduz em concesso de prioridade para a defesa dos direitos humanos e da paz, custa da adeso at mesmo a forma mais estrita desta ao princpio de no interveno.

    Uma maneira til de analisar potncias emergentes v-las como subclasse das potncias mdias, aproveitando-se os avanos inerentes aos estudos sobre esta categoria analtica e destacando-se as diferenas entre as potncias mdias tradi-cionais e as emergentes. Neste estudo, o autor baseia-se em aplicao anterior do conceito de potncia emergente para a poltica brasileira no que diz respeito s operaes de paz; as concluses tambm se aplicam posio do pas sobre a res-ponsabilidade de proteger (R2P). De acordo com a anlise de March e Olsen (1998), e as concluses de Paris (2003), as potncias mdias (CHAPNICK, 1999, p. 76), como resultado de sua posio no sistema internacional, tendem a seguir polticas externas que se alinham a uma lgica de adequao como meio mais ei-caz de atingir os objetivos, com a correspondente identidade baseada: na negocia-o e no compromisso; no forte apoio ordem internacional, inclusive na forma de instituies multilaterais; e na boa cidadania internacional.13 As potncias mdias autoidentiicam-se com o status quo do qual estas se beneiciam, e muitas vezes so partidrias conservadoras do status quo ante a qual lucram.

    Os Estados que emergiram como potncias mdias aps o im da Guerra Fria tm uma relao mais ambgua e, muitas vezes, instrumental com o sistema internacional (KENKEL, 2010b). Estes so tipicamente lderes regionais que tm procurado aproveitar seu peso regional para reclamar posio mais signiicante a nvel global.14 Como Neack apontou j em 1995,

    as potncias mdias no ocidentais ou mesmo as potncias pequenas ou fracas tambm podem apoiar o status quo, mesmo que o status quo seja inegavelmente ocidental em origens. Para estes Estados, no realista imaginar a reviso total do sistema mundial para melhor servir aos seus interesses. No entanto, esses Estados podem tentar encontrar para si uma posio dentro da ordem estabelecida a partir da qual eles podem oferecer e defender interesses diferentes ao status quo. O en-volvimento da ndia e do Brasil no sistema das Naes Unidas pode ser entendido dessa forma. Assim, a participao na manuteno da paz da ONU pode derivar de um interesse em proteger o sistema internacional e a posio atual ou desejada do Estado participante nesse sistema (NEACK, 1995, p. 184).

    13. Essa anlise baseada nos trabalhos de Cooper et al. (1993) e Cox (1989).14. Analistas como Hurrell (2006) discordam sobre a necessidade de domnio regional como trampolim para o status de ator global na forma de potncia emergente, que de particular relevncia para a situao do Brasil na Amrica Latina.

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    A tenso antes mencionada entre os mbitos regionais e globais , portanto, tpica desses atores, que so tanto lderes centrais quanto seguidores perifricos no sistema internacional (SCHIRM, 2010). As potncias emergentes tm relao mais ambgua com as estruturas internacionais, apoiando-as quando isto lhes vantajoso e, quando no, buscando sua reforma ou at mesmo sua obstruo (FLEMES, 2009). Assim, seria esperado que uma potncia emergente como o Brasil, nesta forma de anlise, continuasse a apoiar, pelo menos retoricamente, as estruturas internacionais, enquanto procura nestas papel mais forte para si mes-mo, sua reforma global em favor de resultado mais vantajoso para o grupo de Estados que representa, bem como a preveno de desenvolvimentos contrrios s suas prprias preferncias.15 No geral, os analistas tm notado uma postura mais assertiva na posio poltica do Brasil em matria de segurana (VILLA e VIANA, 2010) e instrumentalizao crescente das operaes de paz em prol dos objetivos associados posio de potncia emergente (CAVALCANTE, 2010).

    7 O BRASIL COMO POTNCIA EMERGENTE: A MINUSTAH COMO PROVA

    A contribuio do Brasil para a MINUSTAH representa clara ruptura de uma srie de princpios polticos prvios relacionados interveno. Embora o MRE esteja correto em insistir que a maior participao na MINUSTAH expresso de continuidade no compromisso do pas para com as instituies internacionais,16 a natureza da mudana principalmente com uma misso que, apesar do soisma semntico, inegavelmente pertence categoria do Captulo VII 17 desmente as mudanas fundamentais tanto na forma como o pas v sua identidade, quan-to na anlise de custo-benefcio que fundamenta a deinio de seus interesses. A mudana , em essncia, o deslocamento de um modo de conduta, limitado re-gionalmente, para um orientado ao crescimento, para cumprir os objetivos globais.

    Em termos da lgica baseada na identidade, o Brasil j no se v apenas como a potncia que lidera em uma regio particular relativamente perifrica do mundo, mas como ator global em seu direito. Como resultado de seu forte compromisso com a ONU e outras instituies multilaterais, houve percepo de que este des-locamento vem com uma mudana nos custos-benefcios da ao. Em particular, a interpretao latino-americana de soberania e da resposta subsequente s mudanas nas normas internacionais, tais como a responsabilidade de proteger, tem sido uma desvantagem em Nova York e aos olhos de vrios pases-chave para eventual reforma

    15. Como evidenciado na recente interveno ocidental na Lbia e na absteno do Brasil na votao sobre a Resoluo no 1.973 autorizando o uso da fora.16. Acerca disso, consultar Diniz (2007). 17. Quanto a esse ponto, ver Fontoura (1999, p. 261). O Brasil tem tradio de longa data, se no extensa, de participao em OPs. Com exceo dos compromissos do tamanho de um batalho, no Suez, em Angola e em Moambique e, agora, do papel de liderana do pas na MINUSTAH , o padro tem sido de indivduos ou pequenos grupos contribuindo na qualidade de observadores.

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    do CSNU, que obscurece a capacidade do pas de projetar prontido para assumir maior responsabilidade internacional (KENKEL, 2012). De fato, o ento presidente Lula reconheceu isto como um motivo para o papel do pas na MINUSTAH:

    Foi assim que atendemos, o Brasil e outros pases da Amrica Latina, convocao da ONU para contribuir na estabilizao do Haiti. Quem defende novos para-digmas nas relaes internacionais no poderia se omitir diante de uma situao concreta (CANINAS, 2007, p. 15).

    Essa percepo teve alguns efeitos sobre a lgica de consequncias e sua an-lise de custo-benefcio. Apesar dos receios bem conhecidos sobre o abandono de uma interpretao absolutista da soberania, para uma postura mais participativa sobre a interveno humanitria, o chanceler de Lula, Celso Amorim, tambm percebeu que o desejo da potncia emergente por maior inluncia global veio a um preo maior:

    Nossa participao na Misso da ONU no Haiti, ademais, parte do princpio de que a paz no um bem internacional livre: a manuteno da paz tem um preo. Esse preo o da participao. Ausentar-se ou eximir-se de opinar ou agir diante de uma situao de crise pode signiicar a excluso do processo de tomada de decises, ou, pior, a dependncia em relao a outros pases ou regies (AMORIM, [s.d.]).

    Nesse sentido, as mtricas bsicas da lgica de consequncias mudaram: agora h maior custo para a no interveno, e os benefcios perceptveis trazidos pela paz no so valorizados da mesma forma a nvel global em que a proteo dos direitos humanos cada vez mais primordial como o foram, historicamen-te, na regio. H crescente, ainda que relutante, percepo de que com o poder vem a responsabilidade e de que se as operaes de paz so veculo fundamental para tais objetivos, estes no podem ser alcanveis sem participao mais robusta nestas operaes. Isto combinado com uma mudana na autoidentiicao, con-forme descrito anteriormente, que levou ao salto esperado para uma postura mais ambgua e instrumental de uma potncia mdia para o engajamento multilateral. A maior parte da resposta diplomtica equao de responsabilidade dos Estados do Norte com a prontido para usar a fora tem sido a de procurar demonstrar que a responsabilidade pode ser exercida sem recorrer fora, com foco no de-senvolvimento e na exportao de polticas sociais que tiveram sucesso no pas.

    8 LIES DO CAMPO: MOTIVAES E RESULTADOS

    Portanto, fundamental notar que a disponibilidade da fora militar no o elemento mais importante do esforo do pas no Haiti. Ao lado do envio do maior contingente para a MINUSTAH, assim como em ruptura com a prtica normal da ONU consistentemente proporcionando o comandante das foras em paralelo com sua contribuio militar , o Brasil est engajado em tentativa

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    muito bem-sucedida e orientada para desenvolver uma forma especiicamente brasileira, sulista, de construo da paz, como contraproposta ao modelo liberal-democrtico do Norte que prevalece hoje na abordagem da ONU.18

    Alm disso, o Brasil assumiu papel de liderana na coordenao dos esforos dos contribuintes sul-americanos para as misses, que constituem pouco mais da metade de sua composio. A participao nas operaes de paz, inegavelmente, tem se tornado o ncleo de parte crucial da identidade projetada do pas e uma forma proeminente de estabelecer sua reivindicao de maior participao e lide-rana regional e do bloco.

    Na prtica, como mostra uma srie de anlises prvias,19 existe uma ideia clara no campo de quais so as prioridades brasileiras nas operaes de paz, bem como de que maneira estas se encaixam em um plano maior para maximizar o peril internacional do Brasil, e como estas podem ser empregadas tanto na busca dos interesses nacionais quanto na realizao dos preceitos da identidade brasilei-ra. no contexto do laboratrio haitiano que surgiu um modelo que tem ido muito mais longe que o processo poltico na transformao, em aes concretas, dos preceitos estabelecidos nos documentos da poltica declaratria brasileira e na sua longa tradio de poltica externa.

    Esse modelo alia a propenso brasileira para a negociao e a resoluo pa-cica de conlitos com o foco tradicional do pas, tanto interno como na poltica externa, sobre o desenvolvimento econmico sustentvel. Embora haja nfase na negociao e nos meios pacicos reforados por abordagem que estabelece in-centivo no contato prximo com a populao local , as tropas brasileiras no tm se esquivado de utilizar a fora de forma eicaz e muito robusta, quando chamadas a faz-lo embora isto venha como resultado de presso considervel dos outros Estados presentes no contexto haitiano. Em termos de desenvolvimento, h pre-ferncia de certa forma distinta daquela de outros doadores emergentes nos projetos integrados de menor escala, em vez de grandes projetos de infraestrutura.

    Outro ponto forte do crescente modelo brasileiro a exportao de tecno-logias e tcnicas utilizadas no contexto interno do prprio pas em situaes de subdesenvolvimento e violncia. Este incorporado principalmente nas ativida-des da agncia de desenvolvimento agropecurio Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria (Embrapa), e nos projetos, a micronvel, de reduo de violncia comunitria da Organizao No Governamental (ONG) Viva Rio, que recebe recursos inanceiros de fontes canadenses, norueguesas e brasileiras. Tomada de forma holstica, esta abordagem representa uma contribuio brasileira distinta

    18. Para mais detalhes acerca desse ponto, consultar Kenkel (2010b). 19. Ver, por exemplo, Chagas (2010).

  • Interesses e Identidade na Participao do Brasil em Operaes de Paz 29

    ao desenvolvimento de paradigmas de construo da paz e, como tal, constitui um nicho diplomtico (COOPER, 1993) de grande utilidade para o Brasil no avano de suas metas de poltica externa, por meio de participao em operaes de paz e dos esforos mais amplos de construo da paz.20

    Quais, ento, so os objetivos e as motivaes do Brasil para participar nas operaes de paz? Estas operaes permitem ao Brasil atingir um conjun-to especico de objetivos que constri uma ponte entre a lgica de consequn-cias e adequao e a de interesse material, bem como a identidade normativa. De fato, embora o foco neste trabalho seja sobre os preceitos da poltica externa, os benefcios da participao nas OPs no se limitam aos objetivos diplomticos e incluem o treinamento e o equipamento das Foras Armadas (GOS e OLIVEIRA JNIOR, 2010), bem como a proviso para os militares de uma misso nova e prestigiosa, intimamente vinculada imagem do pas no exterior.21 Um diplomata brasileiro esquematizou os interesses brasileiros, de forma til, tal como apresentado no quadro 1 (UZIEL, 2009, p. 91).

    QUADRO 1Motivaes do Brasil para participar das operaes de paz

    Internos Bilaterais/regionais Institucionais

    cumprir os princpios do Artigo 4o da CF/88; treinar as Foras Armadas; e promover o papel dos militares na sociedade.

    solidarizar-se com o pas egresso de conlitos; adensar relao com o pas anitrio ou pases vizinhos; adensar relaes com outros contri-buintes de tropas; e promover o comrcio e os investimen-tos brasileiros.

    legitimar candidatura a vaga perma-nente no CSNU; fortalecer o multilateralismo e a soluo pacica de conlitos; maximizar a inluncia brasileira no CSNU durante binios eletivos; e demonstrar capacidade de mobilizao.

    A participao em operaes de paz permite ao Brasil satisfazer a lgica de adequao, conduzindo-se de forma clara de apoio ONU como instituio, espe-ciicamente em matria do reforo de seus mecanismos para a resoluo pacica de conlitos. Como tal, excelente veculo para a transformao da postura grotiana do pas em aes concretas. O envio dos capacetes azuis tambm cumpre concomitan-temente a lgica de consequncias, no s trazendo os benefcios de demonstrar a aptido e a vontade do pas em assumir responsabilidade internacional e, portanto, sua idoneidade para assento dotado de veto no CSNU , mas tambm se garantindo contra o custo da perda de inluncia por no se envolver ativamente em fruns em que as grandes potncias esto ativas (GOS e OLIVEIRA JNIOR, 2010, p. 424).

    20. Informao obtida em entrevistas com atores envolvidos na implementao do modelo no Haiti, em 2009 e 2011. 21. Para mais detalhes. consultar Gos e Oliveira Jnior (2010), Alsina Jnior (2009) e o corpo extensivo da obra de Antnio Jorge Ramalho da Rocha.

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    Esse ltimo clculo, no entanto, baseia-se no envolvimento em operaes de paz de uma forma percebida como demonstrativa de maior responsabilidade internacional por parte destas grandes potncias. Nesse sentido, o modelo brasi-leiro de construo da paz serve a um propsito mais amplo. Como as normas de interveno avanam para a sustentao de maior vontade das grandes potncias em usar a fora para proteger os direitos humanos dos civis, o fato serve como um caminho para o Brasil demonstrar responsabilidade e eiccia, sem recorrer ao aumento nos nveis de fora.

    Nesse sentido, um elemento importante das futuras polticas brasileiras de manuteno da paz centra-se em torno da capacidade de exportao do modelo, alm do Haiti, para contextos em que o Conselho considerar til. Esta especia-lizao, em determinados aspectos relacionados ao desenvolvimento do proces-so de construo da paz, encaixa-se muito bem com a diviso do trabalho nas OPs propostas, inter alia, no relatrio New Horizon do DPKO (ONU, 2010). Em suma, o conjunto de oportunidades apresentadas pela experincia haitiana serve para mostrar o caminho para a transformao mais ampla de objetivos polticos, notoriamente vagos, em aes concretas, que avanam os interesses brasileiros e servem para consolidar sua identidade internacional.

    9 METAS ATINGVEIS E REFORMAS NECESSRIAS

    A consecuo desses objetivos, no entanto, requer um conjunto de reformas cla-ras. Primeiro, uma nova gerao de analistas brasileiros tem apontado para a ne-cessidade premente de sistematizao e automatizao do processo decisrio, que visto gerando resultados inconsistentes, que podem comprometer o funciona-mento de uma agenda consolidada na rea das operaes de paz:

    Alguns poderiam dizer que esta verdadeiramente uma estratgia deliberada, e que a participao nas operaes de paz da ONU, caso a caso, de fato do interesse nacional do Brasil. No entanto, esta interpretao enganosa. De fato, como obser-vado por Diniz (...), a candidatura brasileira por um assento permanente no Con-selho de Segurana da ONU, por exemplo, foi ameaada pela escassa participao do pas em operaes de paz da ONU e, portanto, o Brasil teve de aceitar o convite para participar da MINUSTAH. Considerando esse raciocnio, e tendo em conta o estado atual de uma potncia emergente, recentemente atribudo ao Brasil ver, por exemplo, Burges (2008) , parece provvel que a manuteno dessas posies inconsistentes no mbito da segurana internacional pode ter um impacto negativo sobre a emergncia do Brasil (CAVALCANTE, 2010, p. 155).

    Entre os vrios fatores que necessitam de clariicao e reforma no lado inter-no do compromisso do Brasil com as operaes de paz, trs em particular vm mente como mais urgentes. O primeiro o desenvolvimento de um claro critrio

  • Interesses e Identidade na Participao do Brasil em Operaes de Paz 31

    decisrio para a participao em operaes de paz e outras intervenes militares, que enumere deinitivamente como equilibrar as posies histricas e os prin-cpios constitucionais em determinadas situaes. Este critrio deve explicar, de forma consistente, por que, por exemplo, uma misso nos termos do Captulo VI aceitvel e uma nos termos do Captulo VII no o , e em que circunstncias especicas uma misso nos termos do Captulo VII, ou com caractersticas de im-posio da paz, como a MINUSTAH, pode ser contemplada. De maneira ideal, esta norma seria consagrada em decreto legal a ser aplicado de forma consistente ao longo do processo decisrio. Tal critrio no fenmeno novo internacional-mente, tendo sido instalado em uma srie de pases nos quais as contribuies para as operaes de paz so controversas, como a Alemanha e os Estados Unidos.

    Segundo, o processo decisrio em si deve ser racionalizado e formalizado, a im de reduzir a dependncia nas personalidades, aumentar a participao tanto parlamentar quanto popular e remover os espaos para o abuso do assunto em ques-to por meio de manobras polticas ou burocrticas. Isto tambm deve ser objeto de decreto legal estabelecendo claramente a relao entre as competncias de cada mi-nistrio e, particularmente, as do Congresso, que continua a ser assolado por uma falta de interesse e competncia em assuntos relacionados poltica de segurana.

    Em terceiro e ltimo lugar, na base da elaborao de critrios e objetivos para a participao brasileira em operaes de paz, deve estar a elucidao clara dos motivos para a contribuio, ao longo das linhas de ambas as lgicas esposadas por March e Olsen (1998): a lgica de adequao e identidade, favorecida pelo MRE, e a lgica de consequncias e interesse racional, abraada pelo MD. Alm do papel destes dois ministrios no processo, o pas beneiciar-se-ia imensamente de amplo processo de participao pblica e debate, incluindo-se acadmicos, jornalistas e o pblico informado, bem nas linhas das Consultas de Consolidao da Paz, realizadas no Canad. O cronograma natural para culminar tal processo est na formulao do primeiro Livro Branco de Defesa Nacional do pas.

    De fato, a vinda do Livro Branco representa oportunidade crucial inesti-mvel para sistematizar a abordagem do pas para as operaes de paz pr-requisito absoluto do uso da participao para favorecer seus objetivos de poltica externa; em especial, com vista a demonstrar a aptido para assento no CSNU. Se o Brasil conseguir proissionalizar o lado poltico de como lida com seu papel em operaes de paz, da mesma forma que criou um paradigma de sucesso pela prtica enraizada no nvel operacional, no s beneiciar o pas na busca de seus objetivos por maior participao nos assuntos mundiais, mas tambm o campo de interveno e a resoluo de conlitos, bem como colher os benefcios da as-censo de um parceiro envolvido, inovador e poderoso no Sul global.

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  • EXTREMO ORIENTE MDIO, ADMIRVEL MUNDO NOVO: A CONSTRUO DO ORIENTE MDIO E A PRIMAVERA RABE

    Leonardo Schiocchet*1

    RESUMO

    A principal tese deste artigo que o que explica a chamada Primavera rabe no especialmente o contexto poltico das ltimas dcadas, mas sim, o contexto histrico mais amplo da regio. Isto , a chamada Primavera rabe apenas mais um momento em um complexo processo de assentamento e imbricao de foras polticas, sociais, econmicas, tnicas, religiosas e nacionais. O texto aborda as principais questes histricas relacionadas ao Oriente Mdio, assim como as principais perspectivas contemporneas sobre este. O Oriente Mdio aqui deinido enquanto uma rea cultural e o texto visa responder as seguintes questes: o que levou Primavera rabe e no que ela consiste politicamente? O que se pretende com estas revoltas e, portanto o que vir depois? E, por im, deve-se temer os islamistas?

    Palavras-chave: Primavera rabe; revoluo; ps-colonialismo; Oriente Mdio; nacionalismo; religio; etnicidade.

    ABSTRACTi

    The main thesis of this article is that what explains the so called Arab Spring is not especially the political context of the last few decades in itself, but a much wider historical perspective. The Arab Spring is thus but a moment in a complex process of settlement and imbrication of political, social, ethnic, economic, religious, and national forces. This text is as much about the main historical issues related to the Middle East, as it is about the main contemporary perspectives about it. The Middle East is here deined as a cultural area, and the text seeks to answer the following questions: what caused the Arab Spring and of what does it consist politically? What is intended with these revolts and, thus, what will come next? And, inally, should we fear the Islamists?

    Keywords: Arabic Spring; revolution; post-colonialism; Middle East; nationalism; religion; ethnicity.

    1 ADMIRVEL MUNDO NOVO?

    Osama Bin Laden est morto e o Ocidente se regozija com sua execuo. A despeito de sua real importncia no Oriente Mdio e no mundo muulma-no, no Ocidente Bin Laden ainda evoca uma signiicncia desproporcional. Mas tambm de outra forma o mundo mais uma vez contempla o Oriente M-dio e os muulmanos, enxergando algo novo. Os acontecimentos no norte da frica e no Oriente Mdio em 2011, que vm sendo chamados por alguns de

    * Pesquisador Associado ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal Fluminense (PPGAS/UFF) e ao Ncleo de Estudos sobre o Oriente Mdio (Neom-UFF).i. As verses em lngua inglesa das sinopses desta coleo no so objeto de reviso pelo Editorial do Ipea. The versions in English of the abstracts of this series have not been edited by Ipeas editorial department.

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    Arab Spring (Primavera rabe), vm desaiando muito daquilo que se julgava saber sobre a regio. No processo, muito do poder signiicativo de Bin Laden perdeu fora. Para alguns, as revoltas de meados de 2011 no mundo rabe so uma forma de redeno sociocultural e poltico-histrica, na qual o passado a ser redimido impregnado de signiicaes religiosas que as revoltas deixam para trs com vistas ao (nosso) admirvel mundo novo. De que forma entender hoje, ento, o lugar do isl enquanto fora poltica no Oriente Mdio?

    Muitos analistas polticos se viram tentados a explicar a possibilidade da cha-mada Primavera rabe, que poucos antes haviam sugerido tangibilidade. Onde es-tariam os atores polticos capazes de transformar a regio desta forma? Quais seriam as elites polticas por detrs desse processo, os laos transnacionais e os interesses das grandes potncias? Mal sabia a maioria que o principal agente estava logo ali ao lado: o prprio povo. No sabiam por que no Ocidente o povo do Oriente M-dio evocava outras formas imaginrias. Formas estas, atualmente, sobretudo ps-11 de setembro, dominadas pelas representaes de um conlito entendido enquanto ontolgico entre as foras culturais do Ocidente e as foras culturais do Isl.

    Um mundo no qual a perspectiva hegemnica sobre as relaes entre o Oci-dente e o Oriente Mdio aquela do clash of civilizations de Samuel Hunting-ton (1993; 1996), um mundo radicalmente polarizado. E muito por conta de pessoas como Samuel Huntington, tal tem sido cada vez mais nosso tempo. Quer dizer, ao menos at o lorescimento poltico de meados de 2011. Nesse mundo huntingtoniano, o Oriente Mdio faz parte da Civilizao Islmica classiica-da no de acordo com a unilinearidade tpica da histria positivista, mas de acor-do com uma plurilinearidade antropolgica similar quela do clssico e para a antropologia moderna, inado conceito de raa. Isto equivale a dizer que, para Huntington e seus adeptos, as civilizaes so plurais em suas origens e segundo suas caractersticas intrnsecas; e que estas categorias intrnsecas so essenciais. Assim, esta perspectiva culturalista de Huntington entende que a Civilizao Islmica no politicamente atrasada, mas quase que ontologicamente distinta argumento que, em uma perverso lgica, acha espao frtil em um mundo pluralista e relativista tal como o mundo ocidental de hoje. Huntington toma o termo clash of civilizations (choque de civilizaes) emprestado de Bernard Lewis (LEWIS, 1990). Lewis um especialista no mundo rabe e muulmano cujo enfoque est tipicamente em temas como as razes da ira muulmana ou o que deu errado no mundo rabe, j rendeu um lugar de destaque ao autor como inimigo do isl que foi taxado por falta de neutralidade por conta de sua origem judaica. No entanto, existem aqueles que defendem que Lewis, diferentemente de Huntington, acredita que o suposto radicalismo inerente aos rabes e muulma-nos hoje um desenvolvimento do sculo XX, que no encontra justiicativa nos textos islmicos ou na tradio islmica.

  • Extremo Oriente Mdio, Admirvel Mundo Novo 39

    A concluso de muitos que seguem a tese de Huntington que o autoritaris-mo, a violncia e outras qualidades to caractersticas da Civilizao Islmica tal como seus valores intrnsecos (valores estes islmicos, claro) tornam o Oriente Mdio praticamente incompatvel com a ideia de democracia (que, por sua vez, foi erigida com base em valores Ocidentais). Assim, dada a expanso do mundo islmico dentro e fora das fronteiras do Ocidente concluem muitos dos hun-tingtonianos, atualmente o mundo ps-Guerra Fria est fadado a ver um emba-te entre ns e os muulmanos; no qual estes ltimos so representados como potencialmente trazendo nosso ocaso. Isto , a menos que ns superiores em tecnologia e valores desde j nos protejamos, estaremos correndo o risco de perder as liberdades que nos custaram tanto tempo para conquistar.

    Outra parte da humanidade