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Eugenia Raúl Zaff aroni A questão

criminal

Tradução Sérgio Lamarão

Revisão da tradução Antonio Almeida

ER Editora Revan

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Copyright© 2013 by Editora Revan

Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

Revisão Roberto Teixeira Antonio Almeida

Capa Sense Design & Comunicação

(Com ilustrações de Rep)

Impressão e acabamento (Em papel off-set 75 g. após paginação eletrônica,

em tipos Garamond 11/13) Divisão Gráfica da Editora Revan

Produção de ebook S2 Books

CIP-BRASIL. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Z22q

Zaffaroni, Eugenio Raúl, 1940- A questão criminal/ Eugenio Raúl Zaffaroni; tradução Sérgio Lamarão. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Revan, 2013. il.; 320p.; 23 cm

Tradução de: La cuestión criminal ISBN 978-85- 7106-504-8

1. Criminologia. 2. Direito penal - Brasil. 3. Crimes e criminosos. 1. Título.

13-04452 CDU: 343.2

22/08/2013 26/08/2013

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Ilustração 24

37. A criminologia midiática Desde o princípio, divididimos esses suplementos em três palavras: a da academia, a da

criminologia midiática e a dos mortos. Vocês nos acompanharam no longo curso da criminologia dos criminólogos, ou seja, a acadêmica.

As pessoas comuns, porém, não conhecem essa palavra, uma vez que vivem no mundo da criminologia midiática. E não pode ser de outra maneira, porque as pessoas geralmente não frequentam os institutos de criminologia nem leem os trabalhos especializados, porque têm outras coisas para fazer.

Em alguns momentos, tampouco, foi muito desejável que o fizessem, porque vimos que há livros perigosos e encobridores.

O certo é que as pessoas que todos os dias caminham pelas ruas e tomam o ônibus e o metrô junto a nós têm a visão da questão criminal que é construída nos meios de comunicação, ou seja, se nutrem - ou padecem - de uma criminologia midiática. Isso sempre aconteceu e o que vimos René Girard explica claramente: se o sistema penal tem por Junção real canalizar a vingança e a violência difusa da sociedade) é mister que as pessoas acreditem que o poder

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punitivo está neutralizando o causador de todos seus males. Mas por que as pessoas a aceitam ou ficam indefesas diante dessa construção da realidade?

A disposição em aceitá-la obedece a que, assim, se reduza o nível de angústia que gera a violência difusa. Voltaremos a esse ponto mais adiante, mas a regra é que quando a angústia é muito pesada, ela se converte, através da criminologia midiática, em medo a uma única fonte humana.

Por isso, a criminologia midiática sempre existiu e sempre apela a uma criação da realidade através de informação, subinformação e desinformação em convergência com preconceitos e crenças, baseada em uma etiologia criminal simplista, assentada na causalidade mágica. Esclarecemos que o mágico não é a vingança, e sim a ideia da causalidade especial que se usa para canalizá-la contra determinados grupos humanos, o que, nos termos da tese de Girard, os converte em bodes expiatórios.

Essa característica não muda; o que varia muito é a tecnologia comunicacional (desde o púlpito e a praça até a TV e a comunicação eletrônica) e os bodes expiatórios. O poder da criminologia midiática foi detectado pelos sociólogos desde fins do século XIX. Motivado pelo poder dos jornais no caso Dreyfus, Gabriel Tarde afirmava que no presente (no ano de 1900)) a arte de governar se converteu) em grande medida) na habilidade de servir-se dos jornais. Denunciou claramente a força extorsiva dos meios de comuinicação de massa (no seu tempo, os jornais), a grande dificuldade para neutralizar os efeitos de uma difamação jornalística e a exploração da credulidade pública.

Homo V,Jens

Tarde, porém, foi mais longe, destacando o poder inverso ao da extorsão, ou seja, o do silêncio cúmplice, como o que acontecia diante do genocídio armênio ou da negociata do Panamá. Sem dúvida, foi o sociólogo que descobriu o imenso continente da construção social da realidade que anunciava seu crescente poder.

O socialista Jean Jaurés havia denunciado na Câmara dos Deputados francesa, em 1896, o silêncio cúmplice da grande imprensa perante os massacres de armênios, porque seus principais dirigentes eram beneficiários de empresas otomanas e os jornais levavam adiante sua campanha antissemita - prelúdio europeu da Shoah - difundindo a invenção dos Protocolos, encabeçados pelo delirante Edouard Drumont e por Charles Maurras, que terminaria seus dias imputado como ideólogo do vergonhoso regime de Vichy. Recentemente, Umberto Eco reconstruiu esses anos em sua novela O cemitério de Praga.

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Consequentemente, não falamos nada de novo, embora, como é natural, a criminologia midiática atual tenha características próprias. O discurso da criminologia midiática atual não é outro senão o chamado neopunitivismo dos Estados Unidos, que se expande pelo mundo globalizado. Trata-se do fenômeno que Garland, Wacquant e Simon analisam, ao qual já nos referimos e sobre o qual não insistiremos.

A característica central da versão atual desta criminologia provém do veículo empregado: a televisão. Por isso, quando dizemos discurso é melhor entender mensagem, pois ele se impõe mediante imagens, o que a dota de um poder singular.

Os críticos mais radicais da televisão são Giovanni Sartori e Pierre Bourdieu. Para Bourdieu a televisão é o oposto da capacidade de pensar, enquanto Sartori desenvolve a tese de que o homo sapiens se está degradando em um homo videns, por efeito de uma cultura de puras imagens.

A tese de Sartori é um tanto apocalíptica, embora não seja necessário compartilhá-la em sua totalidade para reconhecer que lhe atribui um alto grau de razão. Efetivamente, uma comunicação por imagens refere-se sempre, necessariamente, a coisas concretas, pois elas são a única coisa que as imagens podem mostrar e, em consequência, o receptor dessa comunicação é instado, de forma permanente, ao pensamento concreto, o que debilita seu treinamento para o pensamento abstrato.

O pensamento abstrato é a base da linguagem simbólica que caracteriza o humano. Explico­ me mais claramente: quando um psiquiatra interroga um paciente e suspeita que ele pode ter um problema de inteligência - certo grau de oligofrenia, para ser preciso - lhe faz uma pergunta por meio de um conceito abstrato para ver se ele pode responder no mesmo nível. Por exemplo, Você acredita em Deus? O que é Deus para você? Se o paciente responde algo assim como os santos ou o que Jaz milagres, está indicando a necessidade de investigar, com métodos mais depurados, a possibilidade de um déficit intelectual.

O gancho da comunicação por imagens está no fato de ela impactar a esfera emocional. Por isso não se pode estranhar que os serviços de notícias pareçam antes síntese de catástrofes, que impressionam mas não dão lugar à reflexão.

Às vezes, a imagem nem sequer necessita de som (a do 11 de setembro era muda), só o intérprete falava.

Por outro lado, também não informa muito, porque passa imagens sem contextualizá-las; é como se cortassem pedaços de filmes e os mostrassem, prescindindo do restante. Vemos, mas não entendemos nada, porque isso requereria maior tempo e explicação.

Aliás, nem sempre se percebe o que se olha. Em um recente livro chamado O gorila invisível - sem nenhuma alusão política, certamente - dois psicólogos estadunidenses demonstraram que, colocados para ver a filmagem de uma partida para contar o número de passes, 50% dos participantes do experimento não registraram que uma pessoa disfarçada de gorila entrava no campo de jogo e fazia uma saudação.

Além do mais, a voz do intérprete vale-se de uma linguagem empobrecida. Diz-se que a televisão não usa mais que umas mil palavras, quando em uma língua podemos chegar a usar umas trinta mil. Talvez o cálculo seja exagerado, mas não muito. Essa interpretação às vezes tem conteúdos implícitos, porque a correção política impede que sejam explícitos, como no caso do racismo, por exemplo.

Nesses casos, muito se insinua, dando a impressão estudada de que se deixa ver, o que afaga a inteligência do destinatário, que acredita que deduz o conteúdo implícito (Como sou

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esperto'), quando, na realidade, é vítima de uma traição comunicacional. A criminologia midiática cria a realidade de um mundo de pessoas decentes, diante de uma

massa de criminoso, identificada através de estereótipos, que configuram um eles separado do resto da sociedade, por ser um conjunto de diferentes e maus. Os eles da criminologia midiática incomodam, impedem que se durma com portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por todos os lados e, por isso, devem ser separados da sociedade, para deixar-nos viver tranquilos, sem medos, para resolver todos nossos problemas. Para isso é necessário que a polícia nos proteja de seus assédios perversos, sem nenhum obstáculo nem limite, porque nós somos limpos, puros, imaculados.

Este eles é construído por semelhanças, para o qual a televisão é o meio ideal, pois joga com imagens, mostrando alguns dos poucos estereotipados que delinquem e, de imediato, os que não delinquiram ou que só incorrem em infrações menores, mas são parecidos. Não é preciso verbalizar para comunicar que, a qualquer momento, os parecidos farão o mesmo que o criminoso. É a velha afirmação do genocida turco Talât: Somos censurados por não distinguirmos entre armênios culpados e inocentes) mas isso é impossível) dado que os inocentes de hoje podem ser os culpados de amanhã.

Para configurar este eles são cuidadosamente selecionados os delitos mais carregados de perversidade ou violência gratuita; os outros são minimizados ou apresentados de modo diferente, porque não servem para armar o eles dos inimigos. A mensagem é que o adolescente de um bairro precário, que fuma maconha ou toma cerveja na esquina, amanhã fará o mesmo que o parecido que matou uma anciã na saída de um banco e, portanto, há que se afastar todos eles da sociedade e, se possível, eliminá-los.

Como para concluir que eles devem ser criminalizados ou eliminados, o bode expiatório deve infundir muito medo e ser crível que seja ele o causador único de todas as nossas aflições. Por isso, para a TV, o único perigo que espreita nossas vidas e nossa tranquilidade são os adolescentes do bairro marginal, eles. Para isso se constrói um conceito de segurança que se limita à violência do roubo.

Quando um homicídio foi por ciúme, paixão, inimizade, conflito entre sócios ou o que seja, para os meios de comunicação não se trata de uma questão de segurança, o que as próprias autoridades também costumam afirmar em declarações públicas e com tom de alivio. O homicídio da mulher a golpes dentro do santo lar familiar não produz pânico moral) é ignorado, e se algum desses homicídios tem ampla cobertura jornalística é por causa de suas conotações sexuais.

Esse eles é construído sobre bases bem simplistas, que se internalizam à força da reiteração e do bombardeio de mensagens emocionais mediante imagens: indignação frente a alguns fatos aberrantes, mas não a todos, e sim somente aos dos estereotipados; impulso vingativo por identificação com a vítima desses fatos, mas não com todas as vítimas, e sim somente com as dos estereotipados e se é possível que não pertençam, elas mesmas, a esse grupo, pois, nesse caso, considera-se uma violência intragrupal própria de sua condição inferior (eles se matam porque são brutos).

É possível que vocês não pensem assim, que racionalmente se deem conta de que esta crença é falsa, mas ninguém me dirá que todos os dias não se sentem obrigados a fazer um esforço de pensamento diante de cada mensagem para não cair na armadilha emocional que a acompanha. Isso se deve ao fato de que a introjeção da criminologia midiática é muito precoce e poderosa, sem contar que é confirmada, todos os dias, na interação social: sua construção se

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tornou uma obuiedade, ou seja, é algo, nos termos de Berger e Luckmann, que se dá por sabido, por efeito da longa e paulatina sedimentação do conhecimento, como poder das bruxas era uma obviedade seiscentos anos atrás, ou que a melancia se endurece com o vinho. É o que mostra a televisão, é o que todos comentam entre si, é o que se verifica naquilo que me contam na fila do ônibus ou na padaria.

Se cada um de nós puxasse pela memória e elaborasse uma lista das pessoas conhecidas pessoalmente e que foram vítimas fatais do trânsito e de homicídio por roubo, verificaria que a hierarquía midiática de riscos à vida nada tem a ver com a real. Somem-se a isso os suicídios e os homicídios fora das hipóteses de roubo e ficaremos ainda mais espantados.

Os bodes expiatórios variam muito conforme o tempo e o lugar. Basta recordar o estereótipo do subversivo dos anos 1970, que abrangia todos os adolescentes de cabelos longos e de barba, que fumavam maconha de vez em quando e que hoje são pacíficos avós. Houve inclusive sentenças nas quais se expressou que eles afetavam a segurança nacional. Todo sinal de inconformismo ou de desvio de qualquer natureza era estereotipado nesses tempos obscuros.

Este eles desenha um mundo de nós os bons e eles os maus) que não deixa espaço para a neutralidade, como também não existe na guerra. A prudência não tem espaço na criminologia midiática, toda tibieza é mostrada como cumplicidade com o crime, com o inimigo, porque constrói um mundo bipolar e maciço, como o agostiniano nos tempos da Inquisição.

A gravidade das infrações não interessa ao três vezes você está fora com que os estadunidenses enchem suas prisões, pois três muito pequenas são suficientes para lhe ser creditado seu pertencimento ao eles e eliminá-lo.

Deve ficar muito claro que a criminologia midiática não se lança contra os assassinos, violadores e psicopatas, pois estes sempre foram e continuarão sendo condenados a penas longas em todo o mundo, mas sim contra um eles poroso de parecidos, que abrange todo um grupo social jovem e adolescente e, no caso de Nova York, de negros.

Eles nunca merecem piedade. Eles são os que matam, não os homicidas entre eles, mas todos eles, são todos assassinos, só que a imensa maioria ainda não matou ninguém.

Identificado o eles, tudo o que lhes for feito é pouco, mas, além disso, segundo a criminologia midiática, eles não são objeto de praticamente nenhum dano, tudo é generosidade, bom tratamento e gastos inúteis para o Estado, que é pago com nossos impostos. Isso, implícitamente, está reclamando morte, exigência que, de vez em quando, alguém inconveniente, que viola os limites da correção política, torna explícita, mas rapidamente é desculpado como um desabafo emocional, porque o alguém inconveniente coloca a descoberto a Tânatos, a necrofilia da mensagem, o grito do sinistro Millán-Astray[18] (General) isso se pensa) mas hoje não se pode dizer).

A criminologia expressa sua necrofilia em seu vocabulário bélico, instigando a aniquilação do eles, o que em determinadas ocasiões é levado à prática sob a forma de fuzilamentos policiais. Quando se pretende encobrir esses fuzilamentos, isso vem acompanhado dos supostos dados do estereótipo - prontuário volumoso) fartas antecedentes) drogado -, de forma automática, confiando em que ninguém raciocine que um par de roubos a mão armada retiram de circulação uma pessoa até quase os quarenta anos, quando quase todos os executados dificilmente passam dos vinte, que o tóxico criminógeno por excelência é o álcool e que ninguém pode cometer um delito violento sob os efeitos da maconha.

A efebofobia manifesta-se em todo seu esplendor. Esquadrões da morte e vingadores justiceiros completam o panorama das penas de morte sem processo em nossa região, centrada

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em jovens e adolescentes. Basta olhar as estatísticas para verificar que são muitos os países onde há mais adolescentes mortos pela polícia do que vítimas de homicídios cometidos por adolescentes.

A criminologia midiática naturaliza essas mortes, pois todos os efeitos letais do sistema penal são para ela um produto natural (inevitável) da violência própria deles, chegando ao encobrimento máximo nos casos de fuzilamentos disfarçados de mortes em confrontos, apresentadas como episódios da guerra contra o crime, em que se mostra o cadáver do fuzilado como indicador de eficácia preventiva, como o soldado inimigo morto na guerra.

Como todos os mortos nessa guerra se contabilizam e divulgam porque são considerados inimigos abatidos) é possível seguir o fenômeno pelas notícias. Quando a frequência é muito irregular (desaparece quando se questiona um ministro ou as eleições se aproximam), a boa pontaria é excessiva (aumenta o número de mortos e cai em muito o de feridos), a concentração é inexplicável (é produzida em determinado circuito e não nos próximos) e a sorte é conhecida (os únicos mortos e feridos são eles), podemos concluir que nos encontramos diante, indubitavelmente, de uma prática habitual de execuções sem processo. Muito à vontade, a criminologia midiática pode prestar este serviço.

A criminologia midiática assume o discurso da higiene social: eles representam, para a criminologia midiática, as fezes do corpo social. Continuando o raciocínio, que costuma ser interrompido aqui, resultaria que este produto normal de descarte deva ser canalizado através de uma cloaca, que seria o sistema penal. Nenhum operador deste sistema deveria omitir esta reflexão. Para essa criminologia, nossa função seria a de limpadores de fezes e o código penal um regulamento para condutos de despejos cloacais. Policiais, juízes, magistrados, promotores, catedráticos, penalistas, criminólogos, poderíamos todos nos despojar de uniformes e togas e imaginar o aparato que esta criminologia que nos amedronta pretende nos colocar.

A criminologia midiática entra em conflito quando o poder punitivo comete um erro e vitimiza alguém que não pode identificar com eles e que, como vítima, não pode negar-lhe espaço midiático. É o collateral damage da guerra ao crime.

Nesses casos, as agências entregam o executor material para acalmar a onda midiática e aproveitam para demonstrar que estão se depurando dos elementos indesejáveis. Na realidade, entregam um policial selecionado de um setor social humilde, ao qual treinaram com singular negligência para fazer isso, e que acabou perdendo.

A construção da realidade não se faz necessariamente mentindo e nem sequer calando. Atrás de cada cadáver há um drama, uma perda, um dolo. Basta destacar o que o estereotipado cometeu, em toda sua dimensão real ou dramatizá-lo um pouco mais, e comunicar assepticamente outro, em espaço muito menor, para que o primeiro provoque indignação e medo e o segundo não.

Em qualquer cultura, a causalidade mágica é produto de uma urgência de resposta. Isso não obedece a nenhum desinteresse pela causalidade, mas justamente à urgência por encontrá-la. Na criminologia midiática sucede o mesmo. Deve-se responder já e ao caso concreto, à urgência conjuntural, ao drama que se destaca e deixar de lado todos os demais cadáveres; a falta de uma resposta imediata é prova de insegurança.

Evidentemente, reclama-se uma resposta impossível, porque ninguém pode fazer que o que aconteceu não tenha acontecido. Frente ao passado a urgência de uma resposta impossível só pode ser a vingança. Como a urgência é intolerante, não admite a reflexão, exerce uma censura inquisitorial, pois qualquer tentativa de responder convidando a pensar é rechaçada e

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estigmatizada como abstrata) idealista) teórica) especulativa) distanciada da realidade) ideológica etc. Isso combina à perfeição com a televisão, onde qualquer comentário mais elaborado em torno da imagem é considerado uma intelectualização que faz perder rating.

Cabe esclarecer que isso não significa que a TV careça totalmente de programas e apresentações que façam pensar. É claro que há comunicadores responsáveis, mas estes devem resignar-se, desde o começo, a um menor rating e a uma crescente redução de espaço por interesses empresariais óbvios.

Temos contado com verdadeiros virtuosos nessa técnica comunicacional na Argentina. Quem, talvez, alcançou o nível mais alto foi um famoso comunicador nos anos 1990, que encaminhava a exigência de resposta urgente por intermédio de uma imaginária matrona de bairro, que usava uma túnica comprida e rolinhas no cabelo, e era incapaz de qualquer pensamento abstrato. Com esse personagem, dona Rosa, subestimava tanto o discernimento dos moradores do bairro como o dos destinatários, aos quais levava a armadilha de forçá-los a raciocionar sem pensamento abstrato, ou seja, no nível do oligofrênico. (Sempre me senti ofendido, porque minha avó se chamava Rosa, morreu com 95 anos de idade e discorria muito mais e melhor do que esse personagem.)

A urgência de resposta concreta e conjuntural leva a duas grandes contradições etiológicas, pois, por um lado, atribui à criminalidade uma decisão individual e, por outro, estigmatiza um conjunto com características sociais parecidas; ademais, proclama uma confiança absoluta na função preventiva dissuasória da pena, mas ao mesmo tempo promove a compra de todos os meios físicos de impedimento e defesa.

Como a emotividade impede que o destinatário perceba as contradições, os controles eletrônicos e mecânicos aumentaram de forma impresionante. Stanley Cohen (Visions of Social Control) destacava esse aspecto há anos e hoje a síndrome de Disneylândia é uma realidade. Praticamente não há momento algum sem que uma câmara esteja registrando quando saímos de nossas casas.

Há fantásticos estudos futuristas, como os dados bancários ocultos no ciberespaço, os cheques eletrônicos, as casas inteligentes etc., com ameaças muito intrusivas à privacidade, mas que não alarmam a criminologia midiática, que as mostra como provedoras de segurança. Como ela minimiza a seletividade da vitimização, converte-nos a todos nós em consumidores da indústria da segurança e em pacíficas ovelhas que não só nos submetemos às vexações do controle, como inclusive as reclamamos e nos enchemos de aparatos controladores.

Em certas ocasiões, o interesse midiático centra-se em alguns delitos sexuais, porque são fatos cujas imagens provocam muita indignação e também despertam grande interesse mórbido, ainda que não em todos os delitos sexuais, mas só naqueles que lhes servem. É claro que não é dito que os violadores seriais são poucos, nem que a grande massa de delitos sexuais contra crianças acontece no interior dos grupos familiares, nem sempre irregulares, nem sempre em bairros precários, nem sempre contra adolescentes, e sim contra crianças, que são um objeto sexual diferente. Essas vítimas não aparecem na televisão, supostamente para ser protegidas, embora, na realidade, é porque elas colocam em evidência a inutilidade do poder punitivo para resolver o conflito.

Mas insistimos, definitivamente, que o grande paradoxo da criminologia midiática é que ela não busca nada contra os criminosos violentos, porque em nenhum país os homicidas e violadores ficam soltos, sendo, sim, submetidos a penas longas, salvo coberturas oficiais. Não se necessita de conhecimento técnico para dar-se conta de que o fato de um homicida ser

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penalizado com 25 anos de prisão ao invés de vinte não tem nada a ver com o risco de que me furtem na bilheteria do metrô.

Para o pensamento mágico da criminologia midiática, a guerra contra eles esbarra no obstáculo dos juízes, que são seu alvo preferido. A mídia oferece um banquete quando um ex­ detento ou um preso em liberdade transitória comete um delito grave, o que provoca uma maligna alegria nos comunicadores. Os juízes são o obstáculo para uma luta eficaz contra eles. As garantias penais e processuais são para nós, mas não para eles, pois eles não respeitam os direitos de ninguém. Eles - os estereotipados - não têm direitos, porque matam, não são pessoas, são diferentes, e os jovens têm que ficar dentro.

Os politicastros, sem muitos méritos nem ideias, estimulam julgamentos políticos contra os juízes para obter seu espaço gratuito de publicidade, reforçando a causalidade mágica.

O juiz singular tenta não abrir a guarda à criminologia midiática porque age solitariamente e demora em conceder saídas da prisão, por isso elas ficam cheias e acontecem motins e mortes, que são mostradas como prova de que eles são selvagens e os juízes pouco diligentes.

A causalidade mágica estimula as reformas legais mais absurdas, porque a imagem transformada em lei também é uma questão mágica. Nosso ancestral desenhava os animais de presa nas paredes das cavernas, pois, segundo o pensamento mágico, quem possuía a imagem acreditava possuir o objeto representado. Agora, a imagem é a descrição do representado no boletim oficial. É o mito da caverna, mas não o de Platão que tanto deu o que falar, e sim o do homem das cavernas que saía para caçar com um pedaço de pau.

Os políticos atemorizados ou oportunistas, que se somam ou se submetem à criminologia midiática, aprovam essas leis disparatadas e afirmam que desse modo enviam mensagens à sociedade, confundindo a lei penal com internet. É tão óbvio que essas leis não têm nenhuma incidência sobre a frequência criminal na sociedade que não estou nada seguro de que entre aqueles que as promovem exista alguém que acredite seriamente nelas.

No entanto, a criminologia midiática não se alimenta somente de notícias, mas também, e principalmente, da comunicação de entretenimentos que banaliza os homicídios e da imaginação da ideia de um mundo em guerra. Em um dia de televisão vemos mais assassinatos ficcionais que os que têm lugar na realidade durante um ano em todo o país, e cometidos com uma crueldade e violência que quase nunca ocorre na realidade.

Além do mais, há sempre um herói que termina Jazendo justiça, geralmente matando o criminoso, alguém que qualquer psiquiatra qualificaria de psicopata. Não tem medo, é hiperativo, ultrarresistente, hipossensível à dor, aniquila o inimigo sem trauma por ter provocado a morte de um ser humano, é hiperssexual, desperta na mulher (sempre em papel de alguém um tanto bobo, que tropeça e cai nos momentos de maior perigo), impõe sua solução violenta às expensas do burocrata que obstaculiza com formalidades (atrás de quem se adivinha a figura do juiz, do procurador ou do policial prudente). Por sorte, os policiais reais não são como eles, pois do contrário seria aconselhável pegar o passaporte e fugir.

Esses seriados transmitem a certeza de que o mundo se divide em bons e maus e que a única solução para os conflitos é a punitiva e violenta. Não há espaço para reparação, tratamento, conciliação; só o modelo punitivo violento limpa a sociedade.

Isso se introjeta muito cedo no equipamento psicológico, principalmente quando a televisão é a baby sitter.

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Ilustração 25

38. A criminologia midiática e a vítima-herói Como a criminologia midiática atual é importada dos Estados Unidos e em nossa região não

existem as condições para manter dois milhões de pessoas presas e baixar o índice de desemprego mediante os serviços necessários para vigiá-los, os efeitos políticos são totalmente diferentes.

No norte, reforça-se a política de prisionização de negros e latinos e na Europa a expulsão de extracomunitários, mas na América Latina é impossível aprisionar todas as minorias incômodas - que, tampouco, são tão minorias assim-, com o qual a vingança, estimulada até o máximo pela criminologia midiática, se traduz em maior violência do sistema penal, leis penais piores, maior autonomia policial, com a consequente corrupção e risco político, vulgaridade de políticos oportunistas ou assustados e redução dos juízes à impotência, tudo o que, como logo veremos, provoca mortes reais em um processo de fabricação de cadáveres que a criminologia midiática ignora ou mostra em imagens com interpretações deformantes.

A criminologia midiática do sul reproduz o discurso do desbaratamento do Estado de bem­ estar do norte, mas em países que o tiveram apenas parcialmente ou que batalham por reestabelecê-lo.

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Os eles do sul não são tão minorias assim, mas antes setores muito amplos e inclusive maiorias, das quais provêm todos os implicados na violência do poder punitivo, ou seja, infratores, vítimas e policiais.

Não interessa à criminologia midiática a frequência criminal nem o grau de violência que exista em uma sociedade, porque na realidade nem os criminosos nem suas vítimas lhe importam. Por isso, envía a mesma mensagem desde o México (com mais de quarenta mil mortos em cinco anos, decapitados, castrados, quinze mil em 2010) até o Uruguai (com um índice quase desprezível de homicídios dolosos), desde a América Central com as maras e os capangas (como os que mataram Facundo Cabralll2]) até uma esquina suburbana de Buenos Aires, com os jovens tomando cerveja e fumando um baseado. Como sempre e em todas as partes quando se comete algum delito violento, jamais faltará material para a criminologia midiática construir um eles maligno, responsável por toda nossa angústia e a quem é preciso fazer crer que é necessário aniquilar.

Entre outras coisas, o que a criminologia midiática oculta do público é a potenciação do controle redutor de nossa liberdade. Ao criar a necessidade de proteger-nos deles, justifica todos os controles estatais, primitivos e sofisticados, para prover segurança. Em outras palavras: o nós pede ao Estado que vigie mais o eles, mas também o nós, porque necessitamos ser monitorados para ser protegidos.

Ilustração 26

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Esta é a chave última da política criminal midiâtica, magistralmente exposta por Foucault há mais de três décadas. Não esqueçam: o que interessa ao poder punitivo não é controlar eles) mas sim nós. Para infundir o medo necessário de modo que as pessoas deixem de valorizar a intimidade e a liberdade, cada homicídio cometido por algum deles é recebido, celebrado e exposto com verdadeiro entusiasmo. O observador pode dar-se conta de que o intérprete da imagem televisionada, que se mostra sorridente e falante na apresentação do noticiário, muda imediatamente, assume uma atitude compungida, adota voz baixa e começa a mostrar o homicídio brutal, o sangue no chão, a porta do hospital, o necrotério, a ambulância, o enterro, os parentes, mas sua forçada compunção não chega a mascarar a íntima satisfação de quem dispõe de um brinquedo novo, que prepara seu embate final vingativo contra os juízes e o código penal, com gesto de resignada indignação.

Quando não há nenhum homicídio mostrável no dia, repete as notícias dos dias anteriores; quando não o tem no lugar, mostra o de outra cidade, minimizando a referência geográfica. Quando termina a notícia sangrenta, o comunicador recupera a sorriso e a eloquência para mostrar a festa com glamour ou a discussão mais vulgar entre personagens do jet set.

O medo de um objeto temível é positivo, serve para a sobrevivência e para isso está filogeneticamente condicionado. Nesse sentido, o medo à vitimização é normal quando é proporcional à magnitude do risco, que, sem dúvida, é algo temível e real.

Porém, quando se crê que um objeto é a única fonte de todos os riscos e não há outros, o medo decorrente deixa de ser normal. Assim, quando não se leva em conta a frequência e a magnitude da vitimização, os outros riscos passam a ser o gorila invisível da experiência dos psicólogos estadunidenses.

Esse medo anormal deixa de cumprir sua função de servir à sobrevivência, pois quando não atribuo importância aos outros riscos me comporto temerariamente diante deles. Assim, cuido do roubo e não me dou conta de que a violência aumenta em meu próprio domicílio; com o pretexto do temor ao roubo ninguém se detém no sinal de trânsito da esquina e todos ultrapassam o sinal vermelho, e, o que é mais grave, por temor ao roubo peço mais vigilância ao Estado e quando dou por mim aqueles que me vigiam me sequestram. Exageros) dirão os publicitários do autoritarismo vingativo? Recomendo-lhes que perguntem às vítimas que não são mostradas, se é que estas têm a sorte de poder dizer algo mais que testemunhar sua condição de cadáveres.

Há vítimas e parentes a quem não se pergunta porque não são funcionais. Não vemos nas telas os fuzilados por policiais. Tampouco interessa aquele que morre numa briga entre bêbados, porque não produz o mesmo entusiasmo comunicacional que o homicídio por roubo ou por motivo torpe, mas seria uma festa se o tóxico não fosse o álcool, o que quase nunca acontece.

A criminologia midiática latino-americana tem uma particular preferência pelos shows em que confronta algumas vítimas com os responsáveis da segurança (policiais, políticos e, se possível, algum juiz). É óbvio que a perda não tem solução e que a única coisa a fazer a respeito da vítima é respeitar sua dor e dar-lhe assistência. O show, porém, pressupõe que, se o Estado não evitou a desgraça, foi por negligência, o que fixa no imaginário coletivo a perigosa ideia de que o Estado deve ser onipotente, capaz de prevenir até os delitos e acidentes mais patológicos e imprevisíveis, que em nenhum país do mundo podem ser evitados.

Quem não ratifica o que as vítimas ou seus parentes expressam é estigmatizado como débil, perigoso e acobertador, além de insensível à dor da pobre vítima.

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Se o delinquente passou pela prisão e foi libertado, pouco importa se devia ou não ser libertado, pois o homicídio é atribuído a quem o colocou em liberdade ou à justiça em geral, ainda que ele tenha sido libertado por passar um cheque sem fundos e que depois tenha sido envolvido na violação da vizinha, porque o pensamento mágico apela à pura causalidade física. No fundo, fica a sensação de que a criminologia midiática pretende que nunca mais um preso seja libertado.

Em alguns casos, a criminologia midiática encontra a vítima ideal para seu propósito, capaz de provocar identificação em um amplo setor social e, nesse caso, converte-a em porta-voz de sua política criminológica, consagrando-a como vítima-herói. O procedimento revela-se de uma particular crueldade, porque o que a criminologia acadêmica chama de vítima-herói é um porquinho da Índia, ao qual se infere um grave dano psíquico; é pouco menos do que uma vivissecção psíquica.

Toda vítima de um fato violento grave sofre uma perda com dano psíquico considerável que, muitas vezes, demanda uma assistência especializada para recuperar sua saúde. Em um primeiro momento, a vítima apresenta um estado de estupefação ou desconcerto ante a perda que lhe custa acreditar. Em uma etapa posterior, é inevitável - e qualquer um de nós conhece a experiência diante de uma perda súbita - que a vítima comece a jogar irracionalmente com a causalidade: se eu houvesse agido de outra maneira, se não houvesse dito, se houvesse advertido, se houvesse proibido, se houvesse ... Produz-se - geralmente, sem nenhum pretexto plausível - uma carga de culpa que se torna insuportável. O peso dessa culpa irracional provoca uma extroversão que projeta a responsabilidade em alguém ou em algo, isto é, em um objeto externo.

Observe-se que não se trata da culpa pelo homicídio ou por o que quer que seja, que sem dúvida tem um responsável, às vezes já bem identificado, mas sim de uma culpa pela situação. Assim como essa culpa não é racional, tampouco o é a responsabilidade do outro pela situação, ou pelo menos não o é na medida em que se pretende.

O tempo e a assistência especializada ajudam a superar essa fase, isto é, a elaborar o dolo. Pouco a pouco, vão desaparecendo as irrupções ou interferências no curso do pensamento que perturbavam a atividade normal da vítima e esta vai recuperando sua saúde mental. Trata-se de um processo doloroso e nada simples, até que a perda se torna razoavelmente convertida em uma das nostalgias e lembranças que todos carregamos.

Quando a criminologia midiática instala uma vítima-herói, explora algumas de suas características particulares, como o histrionismo e talvez traços histéricos, as reforça, oferecendo­ lhe um cenário gigantesco para seu desenvolvimento, mas sobretudo porque a fixa no momento de extroversão da culpa, fortalecendo ao máximo essa fase, imobiliza a pessoa nela e lhe interrompe brutalmente o caminho de elaboração do dolo, ou seja, de restabelecimento de seu equilíbrio emocional. A pessoa redefine sua autopercepção como vítima e fica fixada nesse papel.

A vítima-herói é instada a reclamar repressão por via mágica e é proibido responder-lhe, pois qualquer objeção se projeta como irreverente diante da sua dor. Perante o peso da pressão midiática são poucos os que se animam a desafiá-la e a fazer objeções a suas reclamações. Aqueles que mais se amedrontam são os políticos que, desconcertados, tratam de colocá-la de seu lado, redobrando apostas repressivas de acordo com a criminologia midiática, que são amplamente difundidas por esta, juntamente com a desqualificação dos juízes.

Por causa da interrupção do dolo, a vítima-herói continua acumulando culpa que a pressiona psicologicamente e a leva a incrementar sua extroversão, até que cai em exigências

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que são claramente inadmissíveis e incorre em inconveniências. Quando esse processo se agudiza, a vítima-herói se torna não mostrável por ser disfuncional.

Nesse momento, a criminologia midiática se desprende dela, ignora-a até silenciá-la por completo, sem lhe importar o dano psíquico que lhe provocou ao interromper a elaboração do dolo. Trata-a como uma coisa que usa e quando deixa de lhe ser útil a arremessa para longe e a esquece.

39. A criminologia midiática como reprodutora O poder punitivo não seleciona sem sentido, e sim conforme o que as reclamações da

criminologia midiática determinam. O empresário moral de nossos dias não é, por certo, nenhum Savonarola; são a política midiática, os comunicadores) os formadores de opinião, os intérpretes das notícias que acabam de comentar a disputa entre moças de biquíni para passar a reclamar a reforma do código penal.

Evidentemente, por detrás deles se encontram os interesses conjunturais das empresas midiáticas, que operam segundo o marco político geral, quase sempre em oposição a qualquer tentativa de construção do Estado social e, regra geral, com interesses justapostos aos de outras corporações ou grupos financeiros, dado o considerável volume de capital que controlam.

Por outro lado, a criminologia midiática se entrincheira em sua causalidade mágica e nem sequer admite que alguém suspeite de seu próprio efeito reprodutor do delito funcional do estereotipado, que lhe é imprescindível para sustentar sua mensagem e infundir o pânico moral. De fato, não há dúvida de que o reproduz.

A mensagem contra a pretensa impunidade quando as prisões estão superlotadas e, ainda que o cidadão comum o perceba como uma mensagem de medo, as personalidades frágeis dos grupos de risco o entendem como uma incitação pública ao delito contra a propriedade: delinquem porque há impunidade.

A publicidade dos delitos também difunde métodos criminosos e incita uma criminalidade amateur muito perigosa. Um bom exemplo de reprodução criminal foi a enorme publicidade de sequestros extorsivos que teve lugar faz poucos anos na Argentina, onde esses delitos não são comuns. A insistência midiática fez difundir a falsa crença de que se trata de um delito rentável e fácil de ser cometido, o que provocava medo na população, quando, na realidade, é um dos delitos mais difíceis, salvo quando conta com cobertura oficial.

Não obstante, houve outros receptores da mensagem que a entenderam de maneira muito diversa e isso provocou uma onda de sequestros bobos, com alto risco para a vida das vítimas, pois são os que implicam mais perigo (o sequestrador tonto e desesperado diante da iminência de ser descoberto ou sabendo-se reconhecido pela vítima, mata-o como último recurso diante de sua estupidez).

Não é raro que, nesses casos de sequestro bobo, a criminologia midiática viole todos os protocolos universalmente reconhecidos que assinalam o indicado para essas suposições e, enquanto a vítima permanece em perigo e o delito continua sendo cometido, obtenha inconfidências dos investigadores e difunda toda sorte de notícias acerca dos passos da família e das autoridades, como se não fosse evidente que os criminosos são também destinatários delas, o que pode colocar em maior risco a vida da vítima.

Ademais, a criação de realidade de um contexto violento oferece um pretexto perfeito para

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qualquer delito. Alguém mata a mulher e pretende fazer crer que foi um roubo; outro mata o marido da amante e quer fazê-lo passar por um ato de terrorismo; outro enterra o sócio no fundo da casa e diz que o sequestraram; outro rouba o vizinho e grita que não há segurança.

Ilustração 27

41[20]. A criminologia midiática e os políticos Os movimentos políticos atuais de restauração do Estado de bem-estar não são imunes à

criminologia midiática e costumam cair em seus jogos, o que se traduz em uma permanente ambivalência frente ao fenômeno, ou seja, parecem não saber como proceder frente à agressão levada adiante pelos partidários do Estado spenceriano.

Os políticos latino-americanos são pressionados por soluções imediatas, mas os tempos de mudança social não são os da política, marcados pela proximidade das eleições. A averiguação e o assédio constantes lhes condicionam condutas desconfiadas e até paranoides.

A criminologia midiática vale-se do mesmo veículo de que o político atual necessita: a TV. O político atual costuma ser algo assim como o ator ou a atriz de telenovela, passa a ser um telepolítico. Porém, diferentemente do ator ou da atriz profissional, não pode mudar o personagem, ele fica preso ao seu papel.

A política atual é a política-espetáculo e o próprio Estado é, em alguma medida, um Estado­ espetáculo, como Roger-Gérard Schwartzenberg vem assinalando desde os anos 1970.

Como os políticos não conhecem outra criminologia senão a midiática, frente aos embates desta respondem conforme seu discurso da causalidade mágica e, para demonstrar que estão preocupados com a segurança) caem na armadilha de curvar-se às suas exigências.

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Por isso adotam medidas paradoxais, autonomizam as polícias, dotam-nas do poder de praticar golpes de Estado mais ou menos encobertos quando se veem privadas de fontes de arrecadação, sancionam leis descabidas, pedem castigos para os juízes etc. Vão ficando presos às agências policiais que se descontrolam e desorganizam e à própria TV.

Se bem haja políticos que fazem isso por oportunismo ou por ideologia autoritária, por sorte estes não são a maioria. Sustentar o contrário é cair na antipolítica e isso é o mesmo que ansiar por uma ditadura. A verdade é que a maior parte dos políticos não tem ideia do problema e atuam conforme a criminologia midiática porque não conhecem outra e não sabem como defender-se de seus golpes.

Os políticos desorientados costumam acreditar que fazendo concessões à criminologia midiática conterão seus golpes e, quando se dão conta de que isso não a detém e sim a potencializa, sua desorientação aumenta. Eles ignoram que a criminologia midiática não tem limites, vai num crescendo infinito e acaba reclamando o inadmissível: pena de morte, expulsão de todos os imigrantes, demolição dos bairros precários, deslocamentos de população, castração dos violadores, legalização da tortura, redução da obra pública de construção de prisões, supressão de todas as garantias penais e processuais, destituição dos juízes etc.

Como isso chega-se a um ponto em que tampouco os políticos podem admitir o inadmissível, o embate contra eles continua, montado na mesma causalidade mágica que eles reforçaram com suas concessões. Os políticos desorientados não percebem que a criminologia midiática é extorsiva e que frente a uma extorsão nunca se deve ceder, porque cada vez quem extorque exigirá mais e as concessões não farão outra coisa senão fortalecer seu método.

O maior risco político em nossa região é que os próprios políticos comprometidos com a restauração dos demolidos Estados de bem-estar, ao fazer concessões, acabem serrando o galho em que estão sentados, pois a criminologia midiática faz parte da tarefa de neutralização de qualquer tentativa de incorporação de novas camadas sociais.

Muitos políticos perceberam tarde demais que se trata de um problema central na política, que a criminologia midiática não é um detalhe a mais de algo que sempre consideraram que a polícia devia se ocupar. Na atualidade, é a maior arma com que contam os demolidores do modelo do Estado do bem-estar no mundo, que não são outros senão os beneficiários do caos que produziu sua destruição. Mais ainda. As concessões que os políticos desorientados costumam fazer à criminologia midiática podem desmontar sua própria identidade ideológica.

O público da política-espetáculo cansa-se facilmente do personagem, sobretudo quando este se diferencia pouco dos outros personagens, ou seja, quando perde sua identidade. O político, obcecado pela busca do triunfo eleitoral próximo, não percebe que o maior risco que corre não é o de perder uma eleição, e sim o de perder sua identidade.

Quando, na política-espetáculo, os personagens terminam ficando excessivamente parecidos, abre-se o espaço para que a criminologia midiática saque de seu arsenal e desfralde sua bandeira da antipolítica.

Como vemos, o peso político da criminologia midiática na nossa região não é pequeno. Mas não é só nela, pois parece que também no norte não calcularam o efeito caótico provocado pelo crescimento do aparato punitivo até os extremos atuais e não sabem como contê-lo e menos ainda revertê-lo. A dimensão econômica do aparato penal não é compatível com a necessidade de controlar o gasto público, pois emprega a cifra sideral de 200 bilhões de dólares anuais, ou seja, supera por ano o total da dívida externa argentina. O público, porém, reclama cada vez mais repressão por conta de uma criminologia midiática que não é fácil deter, porque responde

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a demasiados interesses gerados por ela mesma, como são todas as indústrias de segurança, sem contar que é muito difícil desviar para outras atividades a imensa mão de obra ocupada nesses serviços, que somam quase 3.000.000 de pessoas.

Esse problema certamente não é nosso, mas é bem demonstrativo da magnitude do fenômeno e, ademais, nos afeta porque a publicidade se acha globalizada.

Cabe observar que, embora a criminologia midiática atual se globalize a partir dos Estados Unidos, o certo é que a criação midiática de uma realidade caótica para desprestigiar os governos populares é muito velha na América Latina e desde sempre foi preparatória dos golpes de Estado; seu discurso foi o prólogo que nunca faltou a todas as ditaduras militares.

Não houve proclamação revolucionária em nenhum golpe de Estado latino-americano que não tenha invocado a necessidade de deter a criminalidade. Nesse aspecto, não se trata de nenhum invento estadunidense, e sim um velho e batido recurso vernáculo.

42. Como o pensamento mágico pode triunfar? A criminologia midiática está para a acadêmica mais ou menos como o curanderismo está

para a medicina. Cabe perguntar por que tem êxito, quando nos movemos em um tempo em que a ciência tem enorme prestígio. Mais ainda. Com as vítimas-heróis produz-se um fenômeno que equivale a imaginar que a organização hospitalar e as intervenções cirúrgicas ficassem nas mãos dos doentes. Certamente eu daria apoio irrestrito ao protesto dos doentes que não recebessem os medicamentos oncológicos, mas me limitaria a considerar com piedade o paciente que acha que sabe curar sua doença sem ter estudado medicina e ainda fazendo tudo ao contrário do que ela indica.

Já assinalamos, e reiteramos, ser óbvio que ninguém defende a impunidade para homicidas e violadores; a discussão sobre se devem ser penalizados com mais cinco ou dez anos é secundária e isso, com certeza, não impedirá que o número de homicidas e violadores aumente, nem determinará que diminua.

Com relação ao crime de fato, essa criminologia midiática não agrega nada. Todavia, foi capaz de fazer com que os Estados Unidos tenham hoje mais de dois milhões de presos. Alguém poderá acreditar seriamente que pode haver mais de dois milhões de pessoas em um país dispostas a passar ao ato do homicídio?

É indubitável que essas cifras incluem uma quantidade de pessoas que não são os criminosos que a criminologia midiática mostra alegremente todas as vezes que pode, chegando ao cúmulo, em alguns países, de inventá-los. Na Argentina, ela tem como cúmplices as agências policiais que criam Jatos para Jazer estatística, que fabricam delitos para impingir fatos, que deformam outros para a televisão.

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Ilustração 28

Ninguém com certa experiência judicial pode ler muitos expedientes sem reprimir a sensação de que, fora do círculo de autores violentos, e mesmo entre estes, cada condenado parece ser mais estúpido e inábil do que o outro. Mais do que o criminoso sádico da série televisiva, é um infeliz que perde talvez os melhores anos de sua vida por causa de uma conduta absolutamente insensata e que jamais poderia ter tido êxito, sem contar que nenhum sucesso patrimonial valeria a pena diante do risco de se pôr em jogo liberdade, autoestima, saúde e vida.

Acredito piamente - e, certamente, sem subestimar o dano que causam - que na enorme maioria dos casos estamos prendendo pessoas estúpidas e desnorteadas e não aqueles que realmente optaram pelo ato danoso. Mas, de qualquer forma, o peso da criminologia midiática lota as prisões com pessoas que, em quase um terço dos casos, não condenamos, ou seja, que nem sequer são os estúpidos que cometeram delitos.

É uma verdade inquestionável ser necessário, para baixar os níveis de violência em uma sociedade, motivar condutas menos violentas e desmotivar as mais violentas, ou seja, fixado esse objetivo estratégico, é necessária uma tática que se deve basear nas técnicas de motivação de comportamentos.

O curioso é que em todas as outras áreas em que se coloca essa tarefa, ninguém pretende fazê-lo com o pensamento mágico, mas sim usando as técnicas melhores e mais depuradas. Quando um empresário quer impor um produto motivando o público a comprá-lo e

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desmotivando-o a comprar do seu competidor, empreende uma pesquisa de mercado, que é feita sobre sólidas bases da ciência social, da economia, da psicologia social etc. Toda uma disciplina - a técnica de mercado - nutre-se de conhecimentos e métodos científicos. Os próprios políticos apelam a esses conhecimentos em tempos de política-espetáculo.

Entretanto, quando a sociedade quer motivar condutas menos violentas e desmotivar as mais violentas, tudo isso é deixado de lado e se apela para uma causalidade mágica. Nesse caso, a ciência social não tem espaço e cada um opina segundo o pensamento mágico. Os simplismos mais grosseiros e as hipóteses mais estapafúrdias se retroalimentam entre a televisão, a mesa do bar e as decisões políticas. O certo, porém, é que o pensamento mágico substitui esses saberes. A criminologia midiática não pode ignorar a necessidade de vestir-se de cientifica e, para isso, convoca seus especialistas. Nisso há uma diferença considerável entre o norte e o sul. Começamos descrevendo o que se passa entre nós.

Entre os especialistas de nossa criminologia midiática há uma minoria que só é especialista na arte da simulação, mas são muito poucos e, além isso, felizmente eles não costumam ser bons atores. O curioso é que os especialistas da nossa criminologia midiática, em sua grande maioria, o são de verdade, são pessoas que sabem o que dizem, em determinadas ocasiões com um altíssimo nível de conhecimento.

Qualquer mesa-redonda televisiva sobre segurança - no conceito midiático específico-, se é mais ou menos séria, convoca pessoas vinculadas ao sistema penal: policiais, promotores, juízes, peritos médicos etc. São especialistas que, em geral, articulam bem seus conhecimentos e os explicam às vezes com clareza, dependendo de seus dotes de comunicação.

Aqui o paradoxo alcança sua máxima expressão: cria-se uma realidade com base no pensamento mágico disfarçado de cientifico, mediante a opinião de especialistas sérios. Se não fosse trágico e pouco menos que diabólico seria divertido.

A chave reside no fato de a criminologia midiática operar com uma onda de retroalimentação. Assim é denominado o temido fenômeno de que um aparato criado pelos humanos se torne tão inteligente que se retroalimente e nos impeça de desligá-lo, o que faz com que seja impossível pará-lo. E com a criminologia midiática acontece isso: o especialista fala do que sabe (organização policial, dificuldades de investigação, melhoria do processo, diagnóstico de algum caso particular etc.). Em um dado momento, o apresentador o interroga sobre o aumento do delito) da criminalidade) as causas do delito) os fatores sociais) se a droga tem muito a ver) se a liberação sexual tem incidência) se a desintegração da família pesa) se "isso" se conserta com planos sociais) com penas maiores) com o valor simbólico da pena) com a restauração dos valores etc. Ou seja, lhe formula perguntas que só um criminólogo poderia responder e, mesmo assim, depois de pesquisas de campo que, obviamente, não são realizadas em nosso país porque não se destina nem um mísero tostão para isso.

Um policial, um promotor, um juiz ou um médico podem ser muito bons em suas profissões e, no entanto, não saber quem foi Robert Merton, porque nenhuma falta lhe faz isto para desempenhar as suas funções.

Ele pode não ter aberto, em toda sua vida, um único livro de sociologia e desconhecer completamente a teoria sociológica e os métodos de pesquisa empírica, pode não saber o que é uma pesquisa de vitimização ou de autoincriminação, nem um fluxo de casos, pode muito menos saber como eles são realizados, não ter ideia do que é um observador participante, nem da importância das entrevistas, ele pode ignorar tudo o que concerne à estatística social, nunca ter tido contato com uma pesquisa de campo e, no entanto, ser um excelente funcionário e

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profissional em sua matéria. O que acontece é que, quando o apresentador lhe pergunta, o especialista não pode deixar

de responder ao apresentador, porque acha que responde sobre conhecimentos que são comuns e até óbvios, porque pertencem à realidade construída) dada como certa. E é ali onde se produz a onda de retroalimentação: o especialista reproduz o discurso da criminologia midiâtica, fala do que sabe e em seguida fica falando do óbvio, que é a realidade construída midiaticamente, e que assimilou na padaria e no supermercado.

Isso confere autoridade científica à criminologia midiática. A pouca difusão da ciência social entre o público faz com que aquele que observa que tudo o que se diz carece de base empírica e que não há dados disponíveis porque ninguém se interessa em pesquisar a violência, seja visto como um ser extraplanetário, que propõe algo esotérico e sem sentido prático. Entretanto, bastaria perguntar a qualquer empresário sobre o valor prático da tecnologia de mercado para se convencer do contrário: ninguém se empenha em fabricar algo sem saber se poderá convencer o público a comprá-lo e sem que haja um planejamento sobre como vendê-lo.

No norte as coisas são um pouco diferentes, pois o enorme desenvolvimento alcançado pelo sistema penal nos Estados Unidos produziu seus próprios especialistas que integram o think­ tank da direita estadunidense e que se vendem bastante bem, gerando, por sua vez, a indústria de conferências pagas, direitos autorais suculentos, entrevistas televisivas etc. Em revistas de ampla circulação, como a Newsweek, são defendidas as teses mais estranhas, como, por exemplo, a de Morgan O. Reynolds, que afirma ser o crime uma questão de custo-beneficio, e por isso são necessárias penas mais pesadas para forçar a escolha racional do possível infrator. Isso não é nenhuma novidade, visto que provém do século XVIII, como já vimos. Seria bom perguntar a Mr. Reynolds que pena propõe para os terroristas que se imolam. O mais lamentável é que, indo além da Newsweek, uma junta de economistas distinguiu com o Prêmio Nobel um colega que afirma algo parecido acerca do que obviamente nada sabe.

Outro inventor da pólvora é Charles Murray, o coautor do livro racista The Bell Curve, juntamente com Richard Herrnstein, a quem logo me referirei. Murray participa da tese do escritor da Newsweek e, segundo sua disparatada teoria, os jovens de classe pobre delinquem porque são tratados benevolamente pelos programas de desemprego e outros semelhantes. Segundo este pensador, os jovens andam com um computador fazendo um cálculo de custo­ beneficio, assim como as adolescentes que engravidam prematuramente para ganhar o auxílio. Sua proposta consiste em suprimir esses programas e guetizar seus beneficiários para que eles se matem ou morram de fome em seus locais de moradia.

Este é um dos maiores representantes do think-tank de Washington, apesar de aparentar ser mais só do tank, respeitando obviamente a natureza do conteúdo.

Os best seller criminológicos estadunidenses são comentados em generosos espaços em jornais que se supõem sérios, dando lugar a uma verdadeira indústria de fabricação de embustes criminológicos que se vendem em bancas nos aeroportos, juntamente com as novelas policiais e as revistas pornográficas em plásticos lacrados.

Todos eles projetam a imagem do crime como um fenômeno individual. Para isso dão uma enorme divulgação às novidades dos biólogos e geneticistas, mas terminam incorrendo em uma confusão que não faz mais do que ocultar um renascimento do pior reducionismo biológico.

Em linhas gerais me atrevo a dizer que concorrem quatro atitudes diferentes: (a) por um lado, a fraude científica de alguns escrevedores; (b) por outro, a ingenuidade de alguns cientistas sérios, que não são capazes de reconhecer os limites de seus próprios conhecimentos, ou seja,

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que passam da biologia à filosofia sem escalas; (c) a tudo isso se soma a ideologia grosseiramente racista de alguns cientistas e (d) por último, o horrível guisado que os comunicadores ou formadores de opinião cozinham, misturando tudo o que veio antes para reforçar a imagem puramente individual do crime, projetado como o único risco social.

Nessa espécie de guisado ou sopa midiático - ou caldeirão da bruxa - ressurgem coisas tais como a tese da meritocracia biológica segundo testes de habilidade disfarçados de testes de inteligência, a investigação de gêmeos univitelinos, os estudos de herança falsificados dos anos 1920 etc. Esses estudos foram renovados pelo professor de Columbia Henry E. Garrett, que depois de se aposentar passou para a Universidade de Virginia, onde suas ideias foram apoiadas pelo senador Harry Byrd, conhecido promotor da resistência em massa à integração racial. Garrett foi apoiado financeiramente pela Pioneer Foundation, criada em 1937 pelo milionário têxtil Wickliffe Draper, velho eugenista e defensor da segregação racista, que se encarregou de pagar as piores e mais adulteradas pesquisas.

Os embustes da Pioneer Foundation e de seus seguidores se renovaram em 1994, quando Richard J. Herrnstein e o disparatado Charles Murray publicaram The Bell Curve: Intelligence and class structure in American life, exumando os velhos testes que provavam o menor cociente intelectual dos afro-americanos.

Cabe esclarecer que Herrnstein e mais James Q. Wilson publicaram em 1986 um volume com o título pouco científico Crime e natureza humana) que é o mais completo reviva! da biologia criminal, escassamente dissimulado com contradições.

O embuste científico desses autores se descobre com um cuidadoso exame de sua bibliografia, pois eles não rebatem as toneladas de trabalhos demolidores, e sim os ocultam diretamente, apresentando um impressionante arsenal bibliográfico sem mencioná-los. Com isso, conseguem impressionar o leitor leigo. Pode-se dizer que a deslealdade científica beira o escândalo.

Além do mais, propõem algo insólito: não atentando para o fato de que há mais bobos na prisão precisamente porque são bobos, Herrnstein e Murray propõem que o sistema penal seja claro e conclusivo, sem dúvidas nem indulgências, para que os bobos entendam. Em outras palavras: para que os bobos entendam é bom que todos nós sejamos tratados como bobos, o que na esquina se diz pegamos os bobos. Quando assisto TV, tenho muitas vezes a sensação de que eles tiveram êxito.

O reducionismo biológico nunca desapareceu completamente e o risco de seu renascimento, com ampla cobertura midiática, não pode ser subestimado. Até poucos anos atrás, a ciência apressada teve gravíssimas consequências letais, tendo recebido também muita publicidade.

O português Egas Moniz, que não se chamava assim (adotou o nome de um antepassado de oitocentos anos antes), foi famosíssimo e recebeu o Prêmio Nobel por furar a cabeça dos pacientes e destruir-lhes as células frontais. Desse modo, o paciente perdia a vontade e era mais manipulável, com o que a tarefa manicomial ficava mais fácil; cerca de 25% deles puderam ser enviados para suas casas, pois estavam mansos.

Entre 1942 e 1954 foram praticadas na Grã-Bretanha cerca de doze mil lobotomias e nos Estados Unidos umas vinte mil. Estima-se que essa brutalidade foi perpretada em cerca de cem mil vítimas, muitas dos quais hoje reclamam indenizações e pediram que o Prêmio Nobel fosse retirado de Moniz.

A lobotomia teve singular êxito nos Estados Unidos, onde o médico Walter Freeman a praticava a marteladas na cabeça atrás da órbita ocular (lobotomia transorbital).

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Um paciente, que não tinha sido lobotomizado, desferiu alguns tiros contra Moniz, deixando­ º paralítico para o resto da vida, o que tinha pouca importância, pois na realidade ele se valia de um assistente para essas brutalidades, uma vez que suas mãos estavam artríticas. A lenda diz que outro paciente o eliminou, mas isso não é verdade.

Lembro-me disso porque o risco de um neolombrosianismo não se encontra neutralizado, dado que hoje se lança a teoria de que a violência é associada às disfunções frontais e a agressão sexual, às temporais. É um renascimento da frenologia através de meras hipóteses, pois Moniz já se havia ocupado do frontal. As neurociências pretendem prever futuros desvios criminosos de conduta nos jardins de infância aos três anos de idade e esse disparate é levado a sério por alguns funcionários do atual governo francês. Eu começaria a acreditar nessas predições, se as provas fossem aplicadas aos exportadores e vendedores de armas à África.

Pretende-se que a genética ocupe o lugar que nos anos 1930 coube à endocrinologia criminal, mas esta tampouco morreu completamente, porque a tese da constituição criminosa reapareceu em 1989, quando o psiquiatra inglês Hans Eysenck, em colaboração com Gisli H. Gudjonsson, ressuscitou as teorias biotipológicas em um livro que leva, como não poderia deixar de ser, o sugestivo título de As causas e a cura da criminalidade.

É certo que houve surtos muito precoces de criminogenética. Nos anos sessenta do século passado fez furor um renascimento do lombrosianismo com a tese do cromossoma atípico ou adicional, com grande cobertura midiática. A fórmula cromossomática do homem é XY e a da mulher XX. Pois bem, alguns indivíduos apareceram com XYY, ou seja, um cromossoma adicional. Imediatamente, os cientistas apressados lançaram-se a medições e constataram que havia uma frequência um pouco maior de sujeitos com cromossoma adicional na população penal. Pouco depois, os dados se reduziram quando se mediu a mesma classe social. Ademais, a pequena diferença restante se explica pelo estereótipo: os portadores são mais altos, mais assimétricos - mais feios - e um pouco débeis mentais. Hoje ninguém mais resgata o pretenso valor criminógeno do cromossoma atípico.

Todo esse conjunto de descobertas tem uma ampla cobertura midiática, quando, na realidade, não passam de verdadeiras banalidades. As teses mais elaboradas e sérias sobre a biologia criminal não deixam de provar o óbvio. Ninguém ignora que todos os humanos somos diferentes e, portanto, temos diferentes habilidades biologicamente limitadas ou condicionadas: não posso ser bailarino clássico a essa altura da vida nem integrar a seleção nacional de futebol. Também tenho condicionamentos sociais e vivenciais que, em boa medida, determinam meu catálogo de possíveis reações frente a situações determinadas. Esses condicionamentos incidiram sobre minha biologia: se tive vida sedentária, terei mais colesterol, se bebi muito álcool, possivelmente tenho o fígado um pouco maltratado, se comi demais, terei sobrepeso etc. É impossível explicar minha conduta só com base na biologia que herdei, nem sequer em características indubitavelmente herdadas e biologicamente reconhecíveis.

Assim, a pretensa correlação entre o baixo quociente intelectual e o delito não indica uma causa, porque não se leva em conta a frustração escolar da pessoa, sua estigmatização familiar, a lesão sofrida em sua autoestima e o efeito interatuante de outras frustrações e, o que é mais significativo, tampouco se considera a maior vulnerabilidade ao poder punitivo: se temos mais bobos nas prisões, não é porque os menos inteligentes cometem mais delitos, mas sim porque é mais fácil prendê-los.

Nunca se pode confundir uma correlação com uma causa. Um baixo nível de serotonina se correlaciona a uma conduta agressiva, mas é o baixo nível de serotonina que condiciona o

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comportamento agressivo ou é o comportamento agressivo ao longo da vida do sujerto que condiciona o baixo nível de serotonina? Há neurocientistas que afirmam que veem o pensamento. A única coisa que estabelecem é que, quando o sujeito pensa, o cérebro opera de certa maneira, da qual se conhece muito melhor os detalhes e é muito bom que assim seja. Mas são esses contatos que causam o pensamento ou é o pensamento que faz funcionar esses contatos? Não pretendo assumir nenhuma posição metafísica nem falar da alma, mas no mero plano terreno e verificável posso pelo menos afirmar que penso com todo o corpo. Assim, verifico que não poderia pensar sem função hepática ou cardíaca e que penso muito pior quando me sinto mal em qualquer órgão. Não creio que Einstein tenha concluído a teoria da relatividade sob os efeitos de uma cólica.

Explico mais claramente. Suponhamos que todos nós sejamos uns energúmenos e em vez de trocar ideias acabamos trocando socos e cadeiradas. Vem a polícia e acaba com o tumulto. Somos presos. Nesse momento, colhem uma amostra do nosso sangue e verificam que todos nós temos um altíssimo nível de adrenalina.

Será que é a adrenalina que nos faz energúmenos ou será que a adrenalina subiu por causa da nossa conduta de energúmenos? Todos os que brigam têm a adrenalina elevada. Seria uma solução baixar a adrenalina de toda a população para evitar as brigas?

Em síntese e, lamentavelmente, apesar de poucas coisas serem mais irracionais do que a criminologia midiática, a verdade é que as decisões de poder são adotadas seguindo suas incoerências e sua base de causalidade mágica, no mais perfeito estilo oôlleiscb. Spee voltaria a escrever seu livro.

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43. O fim da criminologia negacionista: o que, como e onde? Vimos que a criminologia acadêmica nem sempre andou por caminhos recomendáveis; o

resultado é ainda mais desalentador na criminologia midiática. Cabe perguntar se não será possível se aproximar da realidade ou até mesmo se esta existe. Há algo a que agarrar-se na questão criminal? Existe algum dado forte capaz de nos tirar da confusão? Minha avó me olharia surpresa e me faria notar que o único dado certo na questão criminal são os mortos. Ela estaria coberta de razão: se a única verdade é a realidade, na criminologia a única realidade são os cadáveres.

Sabemos que os cadáveres nos dizem que estão mortos. A criminologia, porém, não os escutou. Comecemos, pois, a escutar os mortos onde eles existem em grande número, nos assassinatos cometidos pelos Estados. O certo é que nem sequer temos dados precisos acerca da quantidade de cadáveres produzidos pelos Estados no curso do século passado, porque há muitas tabelas macabras e todas elas são aproximações.

A de Wayne Morrison traz os seguintes dados: no Congo (1885-1908) 8.000.000; na África do Sul (hereros) (1904): 80.000; na Armênia (1915-1922): 1.500.000; na Ucrânia (judeus) (1918-1922):

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entre 100.000 e 250.000; na Ucrânia por fome 0932-1933): seu número causa as maiores dificuldades de cálculo (para alguns autores supera os 30 milhões121J; na União Soviética (dissidência política) 0936-1939): 500.000; na Europa (judeus) 0933-1945): 6.000.000 (mais 5.000.000 de ciganos, gays, deficientes e outros); na Indonésia (dissidentes) 0965): 600.000; em Burundi (hutus) 0965-1972): entre 100.000 e 300.000; em Bangladesh 0971): 2.000.000; no Camboja 0975-1979): 2.000.000; em Timor 0975-2000): 200.000; em Ruanda (tutsis) 0994): 800.000. A estes devemos somar cifras não estimadas de budistas no Tibet 0950-1959), índios na Guatemala 0965-1992), o povo lho na Nigéria 0966), religiosos Baha'i no Irã 0980-1994), os curdos no Iraque 0991-1994) e os muçulmanos na Bósnia 0992-1998). As cifras contabilizadas por Morrison somam cerca de 65 milhões de cadáveres.

Há outros cálculos mais macabros, como o de Rudolph J. Rummel, que o eleva o total a 165 milhões) pois inclui outros casos, dado que as mortes por fome provocada distorcem os cálculos.

Admitindo que a lista de Rummel seja exagerada e a de Morrison estreita, podemos calcular que no século passado os Estados produziram uns cem milhões de cadáveres fora das guerras. O número de mortos nas guerras tampouco é unanimemente aceito, pois varia segundo a inclusão de mais ou menos vítimas não europeias e de danos colaterais, como a fome e as pestes, mas o certo é que seu número nunca alcança ao de mortos por massacres.

Isso significa que mais de um em cada cinquenta habitantes do planeta foi morto pelos Estados no decorrer do século passado) sem contar os mortos em guerras. Este cálculo de 2% da população mundial terem sido assassinados foi recentemente ratificado pelo professor de Harvard Daniel Jonah Goldhagen, que tampouco descarta as estimativas mais altas, que chegam a 4% da população mundial. Esse cálculo pessimista indicaria que quase um habitante em cada vinte e cinco foi eliminado pelos Estados fora das situações de guerra real.

Mantendo-nos com o percentual mais prudente de 2%, não podemos deixar de ficar alarmados, por menor que seja nossa sensibilidade frente às matanças, e não menos alarmante é que a criminologia o tenha ignorado quase por completo e as estatísticas de homicídios não tenham sido registradas. Os genocidas sempre temeram os cadáveres e, por isso, os reduziram a cinzas, os ocultaram em fossas comuns ou os lançaram de aviões em pleno voo, mas que a criminologia compartilhe desse temor é forte demais. Não podemos continuar fazendo uma criminologia que olhe de frente sem que nos encarreguemos dos cadáveres: minha avó ficaria muitíssimo aborrecida. A criminologia negacionista chega a seu fim. Uma criminologia séria deve começar por escutar que esses mortos estão mortos.

Para nos adentrarmos no tema, percorremos ao caminho das sete perguntas de ouro da criminalística: o que? como? onde? quando? com o que? por que? quem?

Comecemos pelas três primeiras (o que? como? onde?) Para começar a percorrer esse caminho, não nos serve a definição legal, que nesse caso seria

a de genocídio) do direito internacional, cunhada a partir da proposta de Raphael Lemkin e estabelecida na fórmula da Convenção para a prevenção e sanção do delito de genocídio das Nações Unidas, de 1948.

Não nos serve porque foi elaborada na medida das grandes potências no começo da guerra fria e, por conseguinte, não abrange o aniquilamento dos grupos políticos porque não convinha, exige aniquilamento para deixar de fora as matanças neocolonialistas e, também, para evitar que as bombas de Hiroshima e Nagasaki entrassem na definição.

Embora a consagração internacional do crime de genocídio tenha conseguido revelar uns tantos milhões de cadáveres, o que foi muito positivo, o certo é que se tentou calar os gritos de

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muitos milhões a mais no curso das negociações. Como consequência desse recorte microcirúrgico do conceito, em todos os massacres

posteriores se colocaram dúvidas jurídicas. Ainda que possa parecer mentira, foram colocados em dúvida se eram genocídios os massacres perpetrados pelos japoneses na China, na Coreia e em outras regiões; pelos chineses desde 1950, quando ocuparam o Tibete (calculam-se 500.000 vítimas); a destruição da cidade de Hama em Siria, em 1982; as do nosso Cone Sul americano; os deslocamentos convertidos em marchas da morte (a dos armênios, as de Etiópia no regime de Mengistu Hailé Mariam, a recente, de Darfur para o Chade); o massacre dos tutsi em Ruanda (de 1.250.000 ficaram reduzidos a 300.000); a eliminação de 2.200.000 pessoas pelo regime de Pol Pot, no Camboja; a dos paquistaneses em Bangladesh (foram mortos pelo menos 1.000.000), e um muito longo etcetera.

O curioso é que em quase todos esses casos foi a indiferença do resto do mundo que permitiu o massacre. Vejamos o caso de Ruanda, que tem uma população tutsi minoritária, e Burundi (o país vizinho), onde eles são maioria. A maioria dos ruandeses são hutus. Os tutsis ruandeses foram privilegiados pelos colonialistas belgas, de modo que quando Ruanda se tornou independente os hutus mataram uns 14.000 tutsis e expulsaram meio milhão. Em Burundi, por sua parte, uns 100.000 hutus foram mortos e outros 200.000 foram deslocados. Os tutsis expulsos de Ruanda organizaram em Burundi uma guerrilha, que entrou em território ruandense. O governo ruandense gerou pânico na população hutu, manipulada pela mulher do presidente, em especial por meio da Rádio Televisão Livre das Mil Colinas (RTLM), que considerava os tutsis subhumanos, chamando-os de baratas e serpentes.

Quando os franceses conseguiram um acordo mediante o qual hutus e tutsis se comprometiam a resolver seus conflitos recorrendo a um sistema com pluralidade de partidos, o grupo hutu do presidente Habyarimana temeu por seus privilégios e começou a preparar forças paramilitares, até que um misterioso míssil derrubou o avião presidencial. A partir desse momento, desencadeou-se a matança de tutsis, instigada pela mencionada Rádio das Mil Colinas e a cargo de cada chefe municipal, executada geralmente a machadadas. Nem o exército nem a polícia tomaram parte, mas tampouco fizeram coisa alguma para impedi-lo.

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Os homicídios em massa sempre foram cometidos e continuam sendo porque a política de um Estado assim o decide, seu poder punitivo o executa e os demais Estados olham com indiferença, ou complacência. Suas condições indispensáveis são, pois, a decisão política interna e o espaço político internacional. Sem elas não há massacre.

Em cada massacre os responsáveis não são apenas os Estados que o cometem, mas também os que não atuam, os que se omitem e que dominam a política internacional planetária.

É claro que o apoio de Carter e Reagan ao regime genocida de Pol Pot foi vergonhoso e ideologicamente um disparate, com o objetivo de não reconhecer a importância da intervenção vietnamita. É também inegável seu apoio incondicional ao regime de Suharto e ao massacre perpetrado por este entre 1965 e 1966. Em 1975, a Indonésia apoderou-se do Timor Leste, iniciando um massacre que continua até o presente, diante do silêncio cúmplice de todos.

Mais atrás no século, o mesmo vale a respeito do genocídio armênio pelos turcos em 1915 e 1923. Foi a Turquia que decidiu, mas isso foi possibilitado pela indiferença internacional: às potências centrais convinha o silêncio, pois embora o Império Austro-Húngaro estivesse dissolvido e o Império Alemão, substituído pela República de Weimar, os sucessores desses sistemas sabiam que seus predecessores foram aliados complacentes do Império Otomano; a Rússia havia firmado a paz em separado e tinha interesse de sobra em não ter conflitos com a Turquia, com a qual celebrou em 1920 um tratado de amizade e cooperação. Nos Estados

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Unidos, os republicanos se desentenderam com a Europa e não ratificaram o Tratado de Versalhes. França e Grã-Bretanha dedicaram-se a assegurar o resultado que até então haviam obtido do desmembramento do velho Império Otomano. Os armênios ficaram sós.

Houve muitíssimos testemunhos qualificados entre cidadãos, funcionários e diplomatas das grandes potências, e alguns deles tiveram reações muito corajosas, embora seus governos se recolhessem ao silêncio: James Bryce, com a colaboração de Arnold Toynbee, publicou um livro na Grã-Bretanha; o pastor Johannes Lepsius fez o mesmo na Alemanha; o embaixador estadunidense no Império Otomano, Henry Morgenthau, teve uma atuação destacada na publicidade do caso. Ninguém, porém, os escutou.

Em 1939, poucos dias antes da invasão da Polônia, em um discurso dirigido a seus generais, Hitler perguntou: Wer redet noch von der Vernichtung der Armenier? (Quem fala ainda dos armênios?).

Conforme a filigrana que recorta o conceito legal de genocídio, tal como acabamos de expressá-lo, tampouco falariam os cadáveres produto de todos os deslocamentos forçados de população, incluindo os da ex-Iugoslávia na guerra de 1991-1995, que começou com a independência da Croácia e da Eslovênia e terminou com o estabelecimento das fronteiras internas e externas da Bósnia.

O argumento é tomado das justificativas dos deslocamentos na URSS: Stalin não se propunha a aniquilar os kulaks e os expurgos dos anos 1930 também não pretendiam aniquilar nenhum grupo étnico nem religioso. No caso da ex-Iugoslávia, os juristas esforçam-se por distinguir entre limpeza étnica e genocídio.

Quanto à prevenção do genocídio, a convenção de 1948 foi quase uma manifestação de boa vontade, posto que os massacres do século passado só cessaram porque alcançaram seus objetivos (por exemplo, no caso armênio ou no indonésio), porque algum Estado estrangeiro interveio (como no Camboja e em Bangladesh) ou porque os massacradores perderam uma guerra (como os nazistas).

Como tudo isso demonstra que a definição legal de genocídio é produto de um exercício de poder (de uma decisão política de criminalização primária) que não perde seu caráter seletivo por provir do campo internacional, faz-se necessário substituí-la por um conceito criminológico. A esse efeito - e acompanhando, com correções, Semelin, que é um estudioso do tema -, usaremos a definição mais ampla de massacre, entendendo por tal toda prática de homicídio de um número considerável de pessoas por parte de agentes de um Estado ou de um grupo organizado com controle territorial) de forma direta ou com clara complacência destes) levada a cabo de f arma conjunta ou continuada) fora de situações reais de guerra que importem forças mais ou menos simétricas.

Cabe advertir sobre um risco gravíssimo ao conceituar os massacres: embora pareça absurdo, se se tenta hierarquizá-los (meu massacre foi pior que o teu), isso confunde muito e faz perder de vista os cadáveres.

Tais raciocínios são aberrantes e perigosíssimos, porque encerram germes de mitos de alto risco que podem habilitar novos discursos massacradores, uma vez que oferecem elementos para novas técnicas de neutralização. Assim, poder-se-ia dizer que se justifica a morte de 600.000 pessoas por Suharto diante da ameaça comunista proveniente da Revolução Cultural da China de Mao; por sua vez, poder-se-ia justificar a morte dos dois milhões de cambojanos por Pol Pot, diante do temor provocado pelo massacre de Suharto e da submissão da população camponesa

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cambojana; o assassinato a machadadas de 800.000 tutsis em Ruanda se justificaria pelo temor produzido pela morte de 100.000 hutus em Burundi. Esta é a inadmissível consequência da hierarquização dos massacres.

Por um lado, as potências batem-se para fazer com que só a outra seja criminalizada, mas, por outro, as vítimas se batem para ver quem é mais vítima. No meio ficam uns tantos milhões de cadáveres dos quais nem a criminologia se dá conta. Isso deve nos alertar sobre os riscos da armadilha da hierarquização.

Por regra geral, a questão da hierarquização surge diante da Sboab, e a pergunta que se coloca é se ela foi única ou se não se diferencia de outros massacres.

A rigor, todo massacre tem características particulares. Ademais, todo massacre é único para as vítimas. O problema é que se o consideramos substancialmente diferente, estamos a um passo de estimar que é irrepetível e produto de um caminho especial - o Sonderweg alemão dos anos 30 do século passado. Acreditamos que considerá-la irrepetível é muito perigoso e atribuí-la ao Sonderweg é, em algum sentido, uma forma de negacionismo (não do fato, mas sim da responsabilidade).

É indubitável que a Shoah pertence aos judeus - porque para estes é justa a sua dor-, sem prejuízo de que ela se insere em um programa de extermínio organizado, que também massacrou vários milhões de não-judeus, respondendo a motivações profanas abomináveis, sobre as quais não se pode passar, confiando na dor causada e acreditando ingenuamente na impossibilidade da sua reiteração.

O que confere maior particularidade à Shoah é que foi cometida contra europeus e por europeus, tendo à frente uma potência considerada um dos pináculos da cultura universal (ou universalizadora). A flecha da história hegeliana cravou-se em pleno coração do Estado sintético. Os perpetradores não foram asiáticos teocráticos, nem africanos difícilmente reconhecíveis como humanos nem latino-americanos degenerados pela mestiçagem) mas sim quem estava na ponta da flecha hegeliana. E não vale enaltecer nacionalismos para imputar tudo aos alemães, uma vez que não se pode negar a participação do regime de Vichy, de outros aliados do Eixo e dos colaboradores dos países ocupados, que por certo houve e muitos.

Esta é uma característica mais diferencial: a civilização orgulhosa não pode negar o massacre desqualificado. Encobriram-se discursivamente os piores crimes do colonialismo: a criminologia, de mãos dadas com a antropologia colonialista, naturalizou-os, dizendo que os massacres eram inevitáveis. Mas isso já não pode ser encoberto.

A característica da criminalidade nazista - e a mais dolorosa e que a civilização se nega a assumir- é que sintetiza como ninguém o fato de ter feito tudo o que outros haviam inventado e o levou à prática de um modo tão inexorável, aplicando a máxima racionalidade funcional moderna na fabricação de cadáveres (até chegar ao extremo de produzir sabão e cintos e recolher obturações de ouro dos dentes), que apresenta juntas todas as características que os outros massacres costumam oferecer separadamente.

O nazismo careceu da mais ínfima criatividade. Sua originalidade baseou-se somente em seu brutal extremismo assassino: o racismo e o reducionismo biologista eram o paradigma dominante em toda a Europa e nos Estados Unidos; a eugenia negativa estava legalizada nos Estados Unidos desde 1907; o ódio nacionalista a havia alimentado na Primeira Guerra Mundial; a mistura de tudo isso fora sustentada por Chamberlain no livro de cabeceira de Kaiser; o culto natural da lei inexorável do mais forte era de Spencer; o antissemitismo era europeu e os reis católicos haviam expulsado os judeus quatro séculos antes; os outros europeus os

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estigmatizavam como deicidas e comedores de criancinhas; os condenavam a viver nos guetos e impediam que eles tivessem acesso à propriedade imóvel; os ciganos eram perseguidos por toda a Europa; a estigmatização e a punição dos gays se perdem nos tempos medievais; os franceses antidreyfusianos reviveram o antissemitismo até o extremo; o trabalho escravo até o esgotamento e a morte eram praticados em todo o colonialismo; o extermínio havia sido praticado com os bereros, as técnicas de extermínio provinham da indústria.

Nada, o nazismo não inventou absolutamente nada, sua criatividade foi nula, recebeu tudo da civilização, a única diferença foi uma brutalidade tão desqualificada que a linguagem não é capaz de relatá-la, mesmo apelando para os vocábulos mais inadequados para o âmbito acadêmico e que me eximo de reproduzir aqui (no bar o expressariam com maior clareza).

Essa brutalidade se explica porque o nazismo acreditou que se colocava na vanguarda da civilização e a vanguarda da criminalidade não pode ser senão uma criminalidade ainda maior. É isso que a civilização planetarizada não pode dissimular e tenta negar com o Sonderweg, que não é mais do que outra forma de negacionismo de responsabilidade.

44. Os massacres e as guerras Numerosos massacres pretenderam se confundir com guerras. Embora também seja um

crime (remeto-me a Juan Bautista Alberdi)[22], a guerra exige que haja duas forças armadas regulares ou irregulares, porém mais ou menos simétricas. Se bem às vezes há massacres coetâneos, decididos e executados aproveitando a guerra, nada têm a ver com ela mesma. Os turcos aproveitaram a Primeira Guerra para massacrar os armênios, os nazistas fizeram o mesmo com os judeus, ciganos, gays, dissidentes e doentes. Nem uns nem outros eram vencidos, combatentes ou prisioneiros de guerra, como tampouco o era a população civil japonesa de Hiroshima e Nagasaki.

Esses massacres parabélicos foram favorecidos porque, desde a Primeira Guerra (1914-1918), a guerra deixou de ser travada apenas contra exércitos, passando a envolver a população, apelando à sua substanciação como inimigo e como inferior, razão pela qual os mortos não só eram efeitos colaterais, mas também começaram a ser produto de represálias sobre a população civil.

Com a guerra total de Ludendorf os inimigos foram substancializados, e passaram a ser os franceses, os alemães etc., ou seja, deixaram de ser indivíduos para converter-se em uma manifestação dessa substância à qual usualmente se agrega algum genitivo excrementício. A radicalização substancialista da guerra é o que se trata de provocar artificialmente fora da hipótese bélica, e por isso todo massacre se disfarça de guerra, como já havia acontecido com a invenção das pretensas guerras coloniais, disfarçando como tais as ocupações territoriais policiais, das quais as guerras sujas do século passado não seriam mais que uma subcategoria relativamente tardia.

Nossos territórios latino-americanos foram enormes campos de concentração e de trabalhos forçados sob controle territorial policial dos colonizadores: não houve guerras, não houve forças enfrentadas simetricamente armadas. As únicas guerras foram as de independência, mas não a conquista. Algo análogo pode-se dizer do neocolonialismo, quando a Europa se arremessou sobre a África depois do congresso de Berlim de 1885, como antes havia feito sobre o norte da África, a Índia e a Oceania; tampouco houve guerras, e sim ocupações policiais.

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Em 1918, o domínio imperial europeu estendia-se a uns 75 milhões de km2 e a aproximadamente 600 milhões de pessoas. Desde 1895, quando as metralhadoras apareceram, ficou ainda mais claro que não houve guerras, pois na batalha de Omdurman, no Sudão, os britânicos massacraram, com elas, os derviches, inflingindo-lhes 11.000 baixas contra somente 49 em suas fileiras. É óbvio que isso não pode ser chamado de guerra.

As consequências dessas ocupações policiais de território foram desastrosas. Entre 1825 e 1830 os holandeses mataram cerca de 200.000 habitantes em Java, os portugueses uns 100.000 em Moçambique e os alemães 145.000 na África Oriental. A Argélia teve sua população reduzida em 15% entre 1830 e 1870; em toda a África francesa a população diminuiu entre um terço e a metade, no Congo Belga em cerca de 50% (10.000.000), no Sudão inglês passou de nove para três milhões; algo análogo aconteceu na Oceania. A carestia cerealífera provocada pelo mercado livre, somada à seca, provocou mais de trinta milhões de mortes no Sudeste Asiático, na Índia e na África entre 1870 e 1890. Em 2 de outubro de 1904, o Império Alemão declarou que os hereros do África sul-ocidental deixavam de ser cidadãos alemães - o mesmo que foi feito, trinta anos depois, com os judeus - e entre essa data e 1906 foram exterminados.

Hannah Arendt disse, com razão, que os europeus praticaram seus métodos colonialistas brutais e acabaram transferindo-os ao próprio coração europeu, mas - talvez por ficar tomando chá com Heidegger- chegou tarde ao cinema: antes os romanos o haviam praticado em quase toda Europa, os castelhanos haviam colonizado os muçulmanos do sul (embora falem de reconquista) e haviam expulsado os judeus etc.

Se nos instalarmos no cinema antes de Hannah e olharmos o filme todo, veremos que existe uma espécie de pulsão massacradora que se estendeu pela Europa e que, em seguida, a Europa expulsou para outras sociedades indefesas que submeteu ao seu controle e exploração policial e que, com o passar do tempo, refluiu e voltou a seu território. Isso indicaria que a tendência a expandir-se, submeter e hegemonizar às custas de massacres estatais faz parte da civilização que a Europa planetarizou.

Isso é tão certo que a planetarização massacradora continuou funcionando entre nós depois de nossas independências: os massacres dos povos nativos também foram praticados por governos pátrios, como a chamada campanha ao deserto argentina, a contenção das mobilizações do Altiplano (Bolívia) contra a tentativa de reposição de um WilkaI.23] por volta de 1900, Canudos, no Nordeste do Brasil, talvez mesmo nossas insensatas guerras civis e contra os vizinhos etc.

Essa herança europeia se concretizou mais proximamente sob a forma de autocolonialismo. Talvez por sua proximidade não percebamos sua verdadeira natureza, pois em alguma medida assimilamos o colonizador, extremamente parecido conosco e próximo de nós. A expressão autocolonialismo não deve ser descartada pelo fato de que tenha havido uma clara ingerência de interesses forâneos em seu estabelecimento, porque embora isso seja inquestionável, também o é que, sem condicionamentos endógenos favoráveis, o fenômeno não teria sido possível. Quando lutava para manter seu poder colonial, primeiro sobre a Indochina e mais tarde sobre a Argélia, a França apercebeu-se de que tinha de lutar contra um povo, porque, embora nem todos fossem combatentes, a maior parte da população lhes prestava um considerável apoio e, em particular, os escondia, permitindo que se confundissem com ela.

Nessas circunstâncias, os militares franceses inventaram a tese de que não se tratava de uma guerra clássica, mas sim de combatentes irregulares que não respeitavam as leis da guerra e, portanto, eles se consideravam livres da obrigação de respeitá-las e aptos a disseminar o terror

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na população e detectar os combatentes, valendo-se de qualquer meio, em particular da tortura, da conquista e da execução de reféns, das execuções sem processo, do desaparecimento forçado de pessoas etc., o que mereceu a duríssima crítica de Jean-Paul Sartre no famoso prólogo a Franz Fanon.

A tal efeito, esquentaram a guerra fria, alimentando uma guerra entre Oriente e Ocidente da qual seu genocídio colonialista não era mais que uma batalha. Deixando de lado que Marx era bem ocidental - o que, para os teóricos da guerra fria, não passava de um detalhe menor -, nessa guerra suja, como era guerra, não cabia apelar ao direito penal, e como era suja tampouco cabia respeitar as leis de guerra, reservadas para as limpas, razão pela qual eles a deixavam em um limbo do não direito.

A mais completa síntese desta chamada doutrina foi exposta por Carl Schmitt, o velho teórico nazista do Estado absoluto, que a enunciou na Espanha franquista, enquanto a França julgava o general Raoul Salan, chefe da OAS, organização terrorista de extrema-direita colonialista que havia tentado por várias vezes matar Charles De Gaulle, por considerá-lo um traidor a sua causa.

Essa versão do colonialismo foi difundida a partir da Escola das Américas, no Panamá, e na Argentina pelos mesmos franceses instalados em nosso ministério desde 1957. Desde aí envenenaram a mente de nossa oficialidade militar, divulgando essas atrocidades com o nome de doutrina da segurança nacional. No Cone Sul, as forças armadas, tomando como pretexto a violência política na Argentina e os governos antipáticos aos partidários do Ocidente cristão e liberal no Chile e no Brasil, cercaram-se de ideólogos dos movimentos de regressão da cidadania real, verdadeiros defensores dos privilégios lesados pelos movimentos populistas de ampliação da cidadania real. Eles os ajudaram a encetar uma guerra e degradaram-se à condição de forças policiais de ocupação do próprio território, aplicando todas as técnicas do colonialismo francês contra suas próprias populações.

O resultado foram os massacres dos anos setenta do século passado, com milhares de mortos, torturados, presos, exilados e desaparecidos, e uma notória regressão da cidadania real, destruidora dos projetos de Estados de bem-estar.