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 UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA PRÓ-REITORIA DE ENSINO CAP-COLUNI Disciplina: História Professor: Juliana Jardim de Oliveira Exertos do livro: HIL L, Crist opher. O mundo de pont a-cab eça : idéia s radicais durante a revolução inglesa de 1640. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Cia das Letras, 1987. Tensões sociais Na Ing laterra anterior a 1640 existia um pano de fundo de hostilidade entre as classes bem maior do que os historiadores costumaram reconhecer. Em 1614 um observador escocês comentava, por exemplo, a atitude “amarga e desconfiada” do povo comum inglês frente à peque na e à alta nobrezas. Esses sentimentos eram retribuídos. Apenas os membros da classe dominante fundiária eram autorizados a portar armas: “a parte mesquinha do povo e os criados” eram deliberadamente excluídos do serviço da milícia. Nos séculos XVI e XVII, à medida que a população se expandia rapidamente, Londres tornou-se um refúgio de “homens sem governo” – ti mas do cercamento de terras 1 , vagabundos e criminosos – numa escala que alarmou os contemporâneos. A ar gumento usado para a colonização da Irlanda em 1594 era o de que a população pobre era um fardo para a commonwealth 2 e devia ser retirada das cidades. O mesmo argumento foi utilizado quando queria-se advogar a favor da exportação da “multidão plebéia” pa ra a Vi rg ínia. Es te conflito de classe foi exarcebado pelas dificuldades financeiras entre os anos de 1620 e 1650. O governo era condenado por seu desgoverno da economia e pelos monopólios que visivelmente agravaram o custo de vida da população. Um panfleto de 1649 acusava o governo de “pilhar e picar a nação com sua op ressão” e pe rg untava: “q uantos miseráveis, vendedores de vassouras, mascates de trapos e pobres de toda espécie tiveram de vender e empenhar suas camas, colchões e roupas” para conquistarem sua autonomia nos subúrbios de Londres, antes que eles fossem anexados à capital pelo rei? 1 O cercamento de terras (ingl. Enclousure) era um procedimento adotado desde o século XV at é parte do XIX , tendo seu aug e nos séculos XVII e XVIII. Consistia na divisão da propriedade privada das terras anteriormente comunais (ingl. commons), às quais todos os habitantes de uma aldeia poderiam usufruir, por exemplo, para a pastagem e o plantio. Na divisão os ricos ganhavam mais e os pobres não só nada recebiam como ainda perdiam todo e qualquer direito aos campos comunais. 2 Significa “República” ou “Estado”. Nos séculos XVI e XVII a palavra “república” significava um governo que visasse o bem comum, podendo designar tanto estados republicanos quanto monárquicos.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSAPRÓ-REITORIA DE ENSINOCAP-COLUNIDisciplina: HistóriaProfessor: Juliana Jardim de Oliveira

Exertos do livro: HILL, Cristopher. O mundo de ponta-cabeça: idéiasradicais durante a revolução inglesa de 1640. Trad. Renato Janine Ribeiro.São Paulo: Cia das Letras, 1987.

Tensões sociais

Na Inglaterra anterior a 1640 existia um pano de fundo dehostilidade entre as classes bem maior do que os historiadorescostumaram reconhecer. Em 1614 um observador escocês comentava,

por exemplo, a atitude “amarga e desconfiada” do povo comum inglêsfrente à pequena e à alta nobrezas. Esses sentimentos eram retribuídos.Apenas os membros da classe dominante fundiária eram autorizados aportar armas: “a parte mesquinha do povo e os criados” eramdeliberadamente excluídos do serviço da milícia.

Nos séculos XVI e XVII, à medida que a população se expandiarapidamente, Londres tornou-se um refúgio de “homens sem governo” –vítimas do cercamento de terras1, vagabundos e criminosos – numaescala que alarmou os contemporâneos. A argumento usado para a

colonização da Irlanda em 1594 era o de que a população pobre era umfardo para a commonwealth2 e devia ser retirada das cidades. O mesmoargumento foi utilizado quando queria-se advogar a favor da exportaçãoda “multidão plebéia” para a Virgínia. Este conflito de classe foiexarcebado pelas dificuldades financeiras entre os anos de 1620 e 1650.O governo era condenado por seu desgoverno da economia e pelosmonopólios que visivelmente agravaram o custo de vida da população.Um panfleto de 1649 acusava o governo de “pilhar e picar a nação comsua opressão” e perguntava: “quantos miseráveis, vendedores de

vassouras, mascates de trapos e pobres de toda espécie tiveram devender e empenhar suas camas, colchões e roupas” para conquistaremsua autonomia nos subúrbios de Londres, antes que eles fossemanexados à capital pelo rei?

1 O cercamento de terras (ingl. Enclousure) era um procedimento adotado desde oséculo XV até parte do XIX, tendo seu auge nos séculos XVII e XVIII. Consistia nadivisão da propriedade privada das terras anteriormente comunais (ingl. commons),às quais todos os habitantes de uma aldeia poderiam usufruir, por exemplo, para a

pastagem e o plantio. Na divisão os ricos ganhavam mais e os pobres não só nadarecebiam como ainda perdiam todo e qualquer direito aos campos comunais.2 Significa “República” ou “Estado”. Nos séculos XVI e XVII a palavra “república”significava um governo que visasse o bem comum, podendo designar tanto estadosrepublicanos quanto monárquicos.

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Mesmo assim, o povo comum teve uma participação inusitada naseleições para os dois parlamentos de 1640, votando contra a corte(nobreza) – e muitas vezes também exibindo um elemento de hostilidadede classe. Além disso, quando o Longo Parlamento se viu frente a frentecom um rei que se negava a acatar suas reivindicações, sentiu-se forçadoa procurar apoio fora do círculo encantado da classe dirigente. Em

Londres, multidões de manifestantes costumavam desabar sobre a sededo Parlamento em Westminster nos momentos de crise. Eram “na suamaior parte homens de qualidade mesquinha ou medíocre, não havendoentre eles vereadores, mercadores ou conselheiros (...) era modesta asua roupa, mas não sua linguagem”. Todos os discursos importantes dedeputados da oposição foram publicados e tinham ampla divulgação epodemos ter certeza de que eram lidos e discutidos nas tavernas ecervejarias. Petições muito bem organizadas afluíram dos condados apartir de 1641: o trabalho de coletar assinaturas deve ter sido um modo

novo e muito eficiente introduzir as pessoas comuns na ação política.Os anos da guerra civil presenciaram a abolição dos tribunaiseclesiásticos da censura; os juízes deixaram de cumprir seus itineráriosde rotina. Em algumas partes do país, a lei e a ordem sumiram porcompleto. Antes de começar a guerra civil, Carlos I advertira ospartidários do Parlamento quanto ao perigo de que, “finalmente, o povocomum” pudesse “proclamar suas pretensões, chamar de liberdade àparidade e a independência,... destruir todos os direitos e propriedades,todas as distinções de família e mérito”. Muitos observadores temiam queo povo comum, abaixo da escala do pequeno proprietário rural ( yeoman)se transformasse num terceiro partido. Tinker Fox (Fox, o Latoeiro), oferreiro de Birminghan que comandou forças populares contra os realistasnos primeiros anos da guerra, estava a ponto de constituir uma forçaarmada independente nas Midlands, quando o Exército de Novo Tipoconseguiu repeli-lo.

O Novo Tipo, cuja instituição havia sido contestada tão ferozmentepelos conservadores, parecia haver salvado a ordem social. Mas o Novo

 Tipo não era um vulgar exército mercenário; era o povo comum emuniforme, portanto mais próximo de suas convicções do que das danobreza ou do parlamento. E a liberdade de discussão que foi permitidanesse exército excepcional levou a um desenvolvimento fantasticamenterápido do pensamento político.

Heresia de classe inferior 

Além dessas tensões de classe, ou expressando-as, existia umatradição plebéia de anti-clericalismo, irreligião e ceticismo em relação àsatitudes do clero. Havia a tradição familista, segundo a qual Cristoestava presente em cada fiel; havia a tradição separatista, que se opunhaa uma Igreja oficial que assegurava o domínio à classe dominante; ehaviam ainda as expectativas milenaristas difundidas pelos pregadorespuritanos. A Guerra dos Trinta anos, que entre 1618 e 1648 assolou a

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Europa continental, parecia uma luta de morte entre protestantes ecatólicos e contribuiu para difundir e consolidar as crenças segundo asquais o fim do mundo estava próximo.

Não há, portanto como estranhar, que o fim da censura e aimplantação da tolerância religiosa nos anos que antecederam a guerracivil tenham deixado eclodir uma torrente de especulação que antes

somente em segredo se sussurrava.A impopularidade da Igreja oficial, como um todo, é comprovadapelas revoltas populares que irrompiam a cada oportunidade, no final dadécada de 1630 e durante a de 1640: arrancavam-se as divisórias queseparavam os altares da parte do templo ocupada pelos fiéis, eramprofanados os próprios altares, destruídas estátuas de túmulos,queimados documentos eclesiásticos, batizados porcos e cavalos. “Fazembem os nossos soldados”, perguntava o livro The Souldiers Catechisme (Ocatecismo do soldado), de 1644, “em quebrar cruzes e imagens sempre

que as encontram?”. A resposta era meio envergonhada: “Confesso quenada deve ser feito de maneira tumultuosa. Mas vendo que Deus confioua espada da reforma às mãos dos soldados, não me parece fora depropósito abaterem e demolirem esses monumentos da superstição e daidolatria, especialmente se lembrarmos que o magistrado e o sacerdote,a quem competia fazê-lo, em tempos anteriores negligenciaram o seudever”.  Já nessa data via-se encorajada a massa dos soldados a usurparas funções de sacerdote e magistrado.

Em 1641 houve novecentas petições contra eclesiásticos acusadosde “escandalosos” – uma petição para cada dez paróquias da Inglaterra.Em contraposição, um panfleto realista de 1643 defendia o clero, dizendoque era “a pior escória e ralé de cada paróquia” que faziam estaspetições. Por toda a década há provas abundantes, até em Londres, daimpopularidade dos bispos e do clero das paróquias. Todos estes fatosesclarecem, retrospectivamente, o que foi a relação entre a Igreja e opovo comum antes da Revolução. Não demonstraram apenas asinsuficiências do clero; atestavam também outro fator, de importânciaigual ou até maior: os progressos da autoconfiança e da educação dascongregações de fiéis, especialmente aquelas situadas no meio urbano.“Raro é o homem que saiba ler inglês”, resmungava Thomas Adams,“rara é a mulher se vestindo para ir à igreja, que não se julgue capaz deensinar ao ministro, e por isso ou temos de pregar o que vós quereisouvir, ou não ouvireis o que pregamos”.

O que terminou sendo perigoso nesse amplo conjunto de crençasque compunham o panorama religioso da Inglaterra no século XVII, foi emespecial a convicção de que o povo comum tinha um papel muitoparticular a desempenhar nesta crise. “A voz que virá do reinado deCristo é provável que comece entre aqueles que formam a multidão eque parecem tão desprezíveis, especialmente aos olhos dos espíritos doAnticristo e dos prelados”. Essas palavras são as de um teólogoindependente perfeitamente respeitável, que, sem nada ter de radical ou

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extremista, acreditava que o fim dos tempos principiaria na década de1650.

Muitos sermões foram pregados nessa linha, de modo que o apelopolítico do leveller Richard Overton parecia repetir as palavras de váriosoutros pregadores populares, quando este escreveu: “Eu confio que há deser as coisas pobres, simples e mesquinhas desta terra as que

confundirão as poderosas e fortes”. As palavras de Overton dirigiam-seespecialmente ao povo em armas que se reunia no Exército de Novo Tipo.

Mobilidade e Liberdade

A essência da sociedade feudal residia no elo de lealdade edependência entre um homem e seu senhor. A sociedade era estruturadade forma hierárquica: “De quem és homem?”, perguntava o personagemde uma das peças de Thomas Middleton (1580-1627), dramaturgo do

teatro renascentista inglês. A resposta – “Sou um servidor, porém nãotenho senhor, cavaleiro”, ao que o primeiro contestava incrédulo “Comopode existir isso?”.

É claro que a realidade jamais correspondeu a este modelo e peloséculo XVI a sociedade estava se tornando relativamente móvel: oshomens sem senhor existiam em números alarmantes e não eram maissomente os foragidos da lei. Um levantamento governamental feito em1602 calculou 30.000 deles somente na região de Londres. Mas quemeram estes “homens sem senhor”?

Londres era para o vagabundo do século XVI o que as florestastinham sido para o fora da lei medieval: um refúgio anônimo. A populaçãoda cidade cresceu cerca de oito vezes entre 1500 e 1650. Ali havia maistrabalho informal, mais caridade e maiores perspectivas de ganhar a vidadesonestamente.

Uma espécie bem distinta de homens sem senhores era formadapelos protestantes de diversas seitas. Neste caso, era como se tivessemescolhido a condição de não terem senhores, na medida em que optarampor sair da Igreja oficial (anglicana), rigidamente controlada pelos nobrese padres locais. As seitas eram fortes nas cidades, onde formavamcomunidades para receber as pessoas, na sua maior parte migrantes,trabalhadores temporários e indigentes. No tempo em que podiam operardentro da lei, as seitas organizavam serviços sociais e de socorro aospobres: cuidavam da “previdência social” tanto neste mundo como nooutro.

Havia ainda os equivalentes rurais dos pobres urbanos –camponeses (cottagers); ocupantes ilegais (squatters) de terrenoscomunais e florestas. Eram também vítimas da expansão da populaçãoinglesa ocorrida durante o século XVI: ora vítimas, ora beneficiários docrescimento industrial inglês. Estes homens viviam numa condiçãosemilegal e insegura. Não tinham a quem dever obediência, nem esperarproteção. Tais homens sobreviviam às margens do desenvolvimento

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agrícola inglês, nas frestas da sociedade, aumentando em número graçasàs constantes migrações.

A liberdade nas matas é idealizada nas baladas de Robin Hood, nafloresta de Arden citada nas peças de Shakespeare e na figura dos“sábios selvagens” que apareciam nas festas públicas da época da rainhaIsabel I e de seu sucessor, Jaime I. Isto pode estar relacionado com a

migração para as florestas que acontecia no mesmo período, em buscade segurança e independência. Um contemporâneo referia-se certa vezao “excessivo povoamento da região” à volta de Dudley (Worcestershire),

“onde as florestas e terrenos comunais estão repletos de fabricantesde pregos, de ceifadeiras e outros artigos de ferro, como se fosseuma única aldeia. Entre os tecelões e alfaiates habitualmente seencontra mais conhecimento e religião do que entre os míserosagricultores escravizados. O constante comércio e contato comLondres parecem ter contribuído, em muito, para promover a

civilidade e piedade entre os artesãos”.Uma quarta categoria de homens sem senhores era a dos artesãos

itinerantes, bufarinheiros, carroceiros e outros intermediários nas trocascomerciais. Estes ambulantes, ligando as florestas e charnecas, podemter ajudado a difundir concepções religiosas radicais; as hospedarias etabernas nas partes rurais da Inglaterra constituíam assim centros deinformação e discussão.

Vários historiadores têm sugerido a existência de uma sociedaderelativamente livre e móvel nas florestas e charnecas, e outra

relativamente estática e subserviente nas paróquias das planíciescultivadas. Os ocupantes ilegais, por mais afastados que estivessem dequalquer templo, estavam bastante abertos à influência de seitasreligiosas radicais, ou da feitiçaria. A hostilidade ao clero está presentenas histórias de Robin Hood e existem vários relatos sobre “feiticeiros”nas florestas de Pendle e Knaresborough. As florestas de Northampton,de alta densidade demográfica, eram tidas como centros de puritanismorural, seitas estranhas e bruxaria.

Assim, por baixo da aparente estabilidade da Inglaterra rural, havia

a fermentação e a mobilidade dos invasores de florestas, menestréis,charlatões, ciganos, vagabundos, concentrando-se principalmente emLondres e nas grandes cidades, mas deitando ramificações sobre o meiorural, onde quer que houvesse demanda de trabalho. Nesse submundo éque se recrutavam os exércitos e as tripulações para a marinha, e que seoriginou em boa parte os colonos enviados à Irlanda e ao Novo Mundo:homens dispostos a correr os riscos na esperança da propriedade daterra, cada vez mais difícil numa Inglaterra superpovoada.

Agitadores e oficiais

Um agrupamento de homens sem senhores – de todos o maispoderoso, o mais motivado politicamente e o que teve vida mais curta –

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foi o Exército de Novo Tipo. De um modo geral, os exércitos recrutavamseus praças nas cadeias e junto da mais baixa espécie de indivíduos. Aocontrário, o Novo Tipo era um corpo de voluntários, talvez uma mostramais representativa do povo inglês do que a Câmara dos Comuns, comomuitos proclamavam. Graças à liberdade de discussão e de organização,o Novo Tipo tornou-se uma sementeira de idéias políticas.

Durante a guerra civil, os exércitos do Parlamento atravessavam opaís misturando populações numa escala nunca antes vista. Os capelãesdo Novo Tipo pregavam ao mesmo tempo para soldados e civis. Em “Aúltima narrativa das guerras inglesas”, escrita por Hugh Peter em 1646,encontramos várias propostas reformistas sugerindo que o exército fosseutilizado para “ensinar aos camponeses a entenderem a liberdade”.

Os pregadores presbiterianos e independentes foram responsáveispela difusão de idéias de soberania popular no exército e no povo deLondres. Um deles, William Bridge, dizia que caso um príncipe

negligenciasse a proteção dos súditos, expondo-os à violência, estes nãocometeriam usurpação alguma ao tomarem em suas mãos o própriodestino - estariam apenas assumindo o exercício de um poder que nuncadeixara de lhes pertencer. Tais idéias haviam parecido necessárias, parapersuadir o povo a apoiar a rebelião armada, porém nem todos os que aspregavam esperavam que as ordens inferiores da sociedade as levassemtão a sério.

Naturalmente, o Parlamento e os ministros presbiterianos sentiam-se preocupados com o andamento das coisas no exército e furiosos comos capelães que pareciam estar inflamando as classes inferiores. Aorganização do Novo Tipo era bastante flexível e freqüentemente fluía debaixo para cima, de modo que cada regimento tinha certa autonomiasobre escolha de seu próprio comandante. Quando Carlos I foi preso pelosexércitos do Parlamento, o corneta Joyce e “um pelotão de cavaleirosenviado pelo Comitê dos Soldados de cavalaria” seqüestrou o rei, a 3 de

  junho de 1647. Ao que tudo indica a iniciativa partiu dos própriosagitadores. Joyce e seus homens levaram o rei do cativeiro sem nenhumaautorização legal: quando Carlos pediu ao corneta que lhe mostrasse aordem de levá-lo, Joyce limitou-se a apontar para os soldados que traziaconsigo. “A ordem é de todos”, haviam dito na véspera, às sentinelas quelhe pediram seus documentos. Desde então nenhum general jamaisinvestiria um simples corneta no comando de quinhentos cavaleiros.Pouco tempo depois o próprio Joyce declarou: “Saibam os agitadores,uma vez mais, que nada fizemos em nosso próprio nome; o queefetuamos foi em nome do Exército como um todo”.

Do mesmo modo, quando as tropas de Cromwell e Fairfaxavançaram sobre Londres, embora o Exército se encontrasse unido sob atutela de seus comandantes, a iniciativa dessa ação viera das fileiras emestreito contato com os levellers londrinos.A liberdade que ferve

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Certa vez, o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679) enfatizou em seusescritos a importância da mudança para estimular a atividade mental –“sendo quase a mesma coisa um homem ter sempre a sensação damesma coisa e não ter a sensação de nada”. O que tentei enfatizar nestelivro foram os estímulos tão inusitados que durante as décadasrevolucionárias [1640-1660] produziram uma fantástica irrupção de

energia, tanto física quanto intelectual. A guerra civil propriamente dita, asementeira de idéias do exército de Novo Tipo, a conquista da Irlanda eda Escócia, a mobilidade geográfica e social, o fluxo ininterrupto depanfletos tratando de todos os assuntos que existem sob o sol...

Por um breve espaço de tempo as pessoas comuns tiveram umaliberdade face ao poder da Igreja e das classes dominantes como nuncaantes existira, nem tão cedo voltaria a existir. Por muitíssima sortedispomos de registros bastante completos do que elas discutiram.Especularam sobre o fim do mundo, contemplaram a possibilidade de que

Deus poderia ter a intenção de salvar a todos os homens e de que umacentelha divina poderia existir dentro de cada um de nós, e fundaramnovas seitas para exprimir suas idéias. Contestaram a monopolização doconhecimento pelas profissões privilegiadas – a teologia, o direito e amedicina. Criticaram a estrutura educacional e propuseram a suaampliação. Discutiram as relações entre os sexos e questionaram parteda ética protestante.

Dos escritos da época se exala um frescor que ainda nosimpressiona. Os historiadores podem retraçar a origem dessas idéias atéos neoplatônicos italianos ou os anabatistas alemães, porém o que dávigor a essas idéias é a relevância que seus defensores sentiam que elaspossuíam para o que acontecia na Inglaterra durante os temposrevolucionários. Tais idéias podem ser (ou não) de segunda mão; mas apaixão que está por trás delas certamente não o é. Eles deram forma aidéias vagas que estavam no ar, forma que vinha de sua experiênciacotidiana durante aqueles anos em que se exerceu a “liberdade [que ]ferve”, de Jonh Warr.

A tragédia dos radicais foi que, enquanto durou a Revolução, eles jamais conseguiram forjar uma unidade política: os seus princípios eramassumidos com tanta convicção que só podiam separá-los uns dos outros.Quando as seitas se cristalizaram, porém, a pouca unidade que osradicais jamais conseguiram terminou por se desfazer. Depois de 1649todas as correntes de opinião renegaram os levellers; foram os rantersque acabaram com a comuna dos diggers; os batistas excomungaramtanto os ranters quanto os quakers; estes últimos atacaram os batistas eos ranters, dizendo-os anti-cristãos. A julgar pelo que restou dos livrosdessas igrejas, a excomunhão era uma das atividades prediletas dasprimeiras seitas.

Assim, após a Restauração, os radicais não esperavam mais virar omundo de cabeça para baixo: competiam entre si, desesperadamente, àmedida que iam se adaptando a esse mundo. As seitas se tornaramsectárias. A propriedade triunfou. Os bispos retornaram à Igreja estatal,

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os dízimos foram mantidos. As mulheres conheceram de novo o seulugar. A ilha da Grã-loucura tornou-se a ilha da Grã-Bretanha, com aconfusão de Deus cedendo lugar à ordem do homem. A Grã-Bretanhatornou-se o maior território de livre comércio em toda a Europa, porém alivre circulação de idéias nela era bastante restrita. A nação dos profetas,que queria o poeta Jonh Milton, tornou-se uma nação de comerciantes.

Após a derrota dos radicais em 1660, e a liquidação definitiva doantigo regime em 1688, os dirigentes da Inglaterra organizaram umimpério comercial de extrema eficácia e um sistema de dominação declasses que se revelou extraordinariamente resistente à passagem dotempo. A sociedade produziu grandes cientistas. Newton e Locke ditaramnormas ao mundo intelectual. Esta foi uma civilização poderosa, que paraa maior parte das pessoas representou um progresso face ao que antesexistia. Porém, que certeza podemos ter, em última análise, de que essemundo era o melhor dentre os possíveis? – um mundo em que Locke

temia a música e a poesia, e Newton tinha idéias secretas e irracionaisque não se atrevia a tornar públicas?Podemos estar muito condicionados pela via ascendente que o

mundo tomou nos últimos trezentos anos, a ponto de não conseguirmosser justos com os homens do século XVII, que anteviram as possibilidadesdo avesso, da reviravolta do mundo. Mas pelo menos devemos tentarentendê-los.

“Podeis destruir estes vasos que somos nós”, disse Edward Burroughao governo todo poderoso da Restauração, “mas os nossos princípios

  jamais podereis extinguir, porque eles viverão para sempre e entrarãoem outros corpos para neles viver, falar e agir”. Os radicais acreditavamfirmemente que agir era mais importante do que falar. Falar e escrever,mesmo livros – dizia o [pastor] Winstantley – “nada é e há de morrer; poisa ação é o que tudo vivifica, e se não ages, é porque nada fazes”. Essareflexão deve ser meditada sobre todos aqueles que lêem livros sobre osradicais do século XVII, assim como por aqueles que os escrevem. Soisdos que agem, ou dos que apenas falam? – perguntou [o pastor] Bunyanaos homens de sua geração. E você, o que lhe responderá?