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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS DEPARTAMENTO DE DIREITO A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE ESTADO EM MAQUIAVEL E HOBBES André de Sousa Roepke Bacharelando FLORIANÓPOLIS 1997 Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina Professor. Dr. Sérgio Cademartori A presente monografia final, intitulada “A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE ESTADO EM MAQUIAVEL E HOBBES”, elaborada pelo acadêmico ANDRÉ DE SOUSA ROEPKE, e aprovada pela banca examinadora composta pelos professores abaixo assinados, obteve aprovação com nota 9,7 (nove vírgula sete), sendo julgada adequada para o cumprimento do requisito legal previsto no artigo 9 o da Portaria n o 1.886/94/MEC, regulamentada pela Resolução n O 003/95 CEPE. Sérgio Cademartori Professor Orientador Janine Nicolazzi Philippi Membro da Banca 1 1

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICASDEPARTAMENTO DE DIREITO

A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE ESTADO EM MAQUIAVEL E HOBBES

André de Sousa RoepkeBacharelando

FLORIANÓPOLIS1997

Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina

Professor. Dr. Sérgio Cademartori

A presente monografia final, intitulada “A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE ESTADO EM MAQUIAVEL E HOBBES”, elaborada pelo acadêmico ANDRÉ DE SOUSA ROEPKE, e aprovada pela banca examinadora composta pelos professores abaixo assinados, obteve aprovação com nota 9,7 (nove vírgula sete), sendo julgada adequada para o cumprimento do requisito legal previsto no artigo 9o da Portaria no 1.886/94/MEC, regulamentada pela Resolução nO 003/95 CEPE.

Sérgio CademartoriProfessor Orientador

Janine Nicolazzi Philippi Membro da Banca

Cecília Caballero LoesMembro da Banca

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a Deus, à minha família e aos amigos.

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SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO

2. "O PRÍNCIPE" DE NICOLAU MAQUIAVEL

2. 1. VIDA E OBRA DE NICOLAU MAQUIAVEL2. 2. A ITÁLIA DE MAQUIAVEL2.3. ESTADO E MORAL EM MAQUIAVEL2.4. O "PRÍNCIPE" E A CONCEITUAÇÃO DE ESTADO2.5. O "PRÍNCIPE" E A RAZÃO DE ESTADO2.6. CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS2.7. DESTINO DA OBRA

3. "LEVIATÃ" DE THOMAS HOBBES

3.1. VIDA E OBRA DE THOMAS HOBBES3.2. A INGLATERRA DE HOBBES3.3. ESTADO E LEGITIMIDADE

3.3.1. Legitimação Teológica3.3.2. Legitimação Histórica3.3.3. Legitimaçâo Voluntarista

3.4. HOBBES CON'IRATUALISTA3.4. 1. Da natureza humana3.4.2. Estado de natureza3.4.3. O pacto3.4.4. O Estado-Levialã

3.5. HOBBES POSITIVISTA?

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

5. BIBLIOGRAFIA

INTRODUÇÃO

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A presente monografia objetivará apresentar, de maneira simples e clara, aquilo que se considerou como sendo alguns dos mais relevantes aspectos relacionados com a visão de Estado presentes no “Príncipe” e no “Leviatã”.

Obviamente, que, pela própria natureza do presente trabalho, desconsiderada foi a apresentação de uma análise exaustiva das supra-citadas obras (note-se que a respeito do Leviatã, em função do recorte conceitual aqui objetivado, centrou-se o estudo da referida obra nos capítulos 13 a 24 e 29), limitando-se a arrolar, como já afirmado, as principais idéias desenvolvidas por Maquiavel e Hobbes a respeito do fenômeno estatal.

Claro que, sempre que possível, há se procurar passar ao largo de uma mera descrição de idéias já consagradas, realizando-se por meio de uma contextualização histórica, uma análise crítica, que demonstre não só a verdadeira compreensão que cada autor teve a respeito de suas obras, como também o motivo de tais obras transcenderem o ambiente em que foram criadas e permanecerem no cerne do debate político até hoje.

Quanto a estrutura orgânica propriamente dita, optou-se por iniciar o trabalho pelo desenvolvimento de algumas considerações referentes à biografia de cada um dos autores analisados, bem como de uma rápida descrição do período histórico em que se processou a gênese das obras aqui estudadas, seguidas da apresentação, em diferentes tópicos, organicamente ligados entre si, daquelas que se consideraram como as principais idéias relacionadas com o fenômeno político, presentes no “Príncipe” e no “Leviatã”, acompanhadas sempre que necessário, das devidas considerações histórico-críticas. 1. “O PRÍNCIPE” DE NICOLAU MAQUIAVEL

“O destino determinou que eu não saiba discutir sobre a seda, nem sobre a lã; tampouco sobre questões de lucro ou de perda. Minha missão é falar sobre o Estado. Será preciso submeter-me à promessa de emudecer, ou terei de falar sobre ele”. (Carta de MAQUIAVEL à Francisco Vettori, datada de 13/03/1513, apud WEFFORT, Francisco (org). Os Clássicos da Política. São Paulo. Ed. Ática. 1º vol.. 7ª ed. p. 17).

“Temos uma grande dívida para Maquiavel e alguns outros, que descreveram o que os homens fazem, e não o que deveriam fazer, pois não é possível unir a duplicidade da serpente à inocência da pomba, quando não se conhecem exatamente todos os recursos da serpente sua baixeza rasteira, sua flexibilidade pérfida, o ódio que afia seu dardo”. (BACON, Francis. Advancement of Learning, apud, História do Pensamento Político. CHEVALLIER, Jean-Jacques.. Rio de Janeiro. Ed. Guanabara. 1982. Tomo 1. p. 259).

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1.1. Vida e obra de Nicolau MaquiavelNascido em Florença em 3 de maio de 1469, descendia Maquiavel (ou Niccolo

Machiavelli) de família pertencente à alta burguesia florentina. Filho de advogado, recebeu do pai apurada educação em humanidades, tão ao gosto da época, fato que explica sua profunda familiaridade com a história greco-romana, traço bastante característico de Maquiavel e observável ao longo de toda a sua obra. Não obstante sua privilegiada formação e ascendência, data apenas de 1498, quando já com 29 anos, o primeiro registro de Maquiavel a exercer um cargo público de destaque, como Secretário da Segunda Chancelaria do Estado, mesmo ano, aliás, da deposição do monge Savonarola do Governo de Florença, condenado logo em seguida à morte na fogueira.

Até 1513, data da volta dos Médicis à Florença, trabalhou Maquiavel na administração do Estado, onde adquiriu não só familiaridade com o funcionamento deste, mas incumbiu-se também da formação de uma milícia nacional, que liberasse Florença da incômoda necessidade dos condottiere, que com suas tropas mercenárias infestavam todo o território italiano. Todavia, o retorno dos Médicis implicou a queda de Maquiavel, excessivamente comprometido, aos olhos daqueles, com os antigos republicanos, sendo desterrado para sua pequena herdade nos arredores de São Casciano.

Foi durante seu exílio que Maquiavel decidiu transformar todo seu conhecimento prático e erudição em obras de cunho político como a “A Arte da Guerra”, “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, e, confeccionado à margem deste, o pequeno “opúsculo” no dizer do próprio autor, que para o bem ou para o mal, garantiria sua própria imortalidade, “De Principatibus” (Dos Principados), ou, como se tornaria universalmente conhecida, “O Príncipe”.

Contudo, mesmo nos momento de maior aplicação intelectual, jamais olvidou Maquiavel de suas antigas atribuições políticas, razão pela qual tentou reabilitar-se perante os Médicis de todas as maneiras possíveis para conseguir seu retorno às funções públicas (note-se que o próprio “Príncipe” é dedicado a um Médicis). Tanto esforço começou aparentemente a lhe render resultados em 1520, quando o Cardeal Júlio de Médicis, reitor da Universidade de Florença, incumbiu-lhe de escrever uma história de Florença, na qualidade de historiógrafo oficial da cidade, fato que, contudo, serviu apenas para torná-lo suspeito aos olhos dos republicanos, quando sete anos mais tarde, foram os Médicis novamente expulsos. Diante de tais fatos, falece Maquiavel aos 58 anos, tendo a nítida percepção de ter fracassado na vida, sem suspeitar contudo, da imortalidade que haveria de granjear por meio de sua pequena obra-prima, publicada 4 anos após sua morte.

1. 2. A Itália de Maquiavel Viveu Maquiavel em período especialíssimo da cultura ocidental, denominado de

Renascença, sendo desta uma de suas personagens mais representativas.Com marcos cronológicos relativamente tênues, a assinalar seu início e fim, poder-se-ia

dizer, grosso modo, que começou a Renascença em meados do século XIV, indo até finais do século XV, e consistiu, basicamente, em vigoroso movimento cultural de retorno à antigüidade clássica, a desprezar completamente as tradições intelectuais do período medievo. Tal repúdio, todavia, não se operou apenas, como é mais freqüentemente lembrado, no campo da artes plásticas, implicando também em completa reformulação da própria visão de mundo do homem europeu. Neste sentido, é a Renascença o dobre de finados da já milenar ordem medieval, alicerçada sobre duas autoridades de pretensões universais, quais sejam: a do Papa, no plano espiritual, e do Imperador, no plano temporal, sob cujas égides encontravam-se todos os povos da

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Europa cristã. O desmonte desta rígida visão de mundo, não obstante poder ser associada a inúmeras causas, teve como razão preponderante a formação dos Estados nacionais (Inglaterra, França e Espanha), cuja consolidação tanto política como ideológica implicava necessariamente o repúdio a qualquer pretensão universalizante, como as tradicionalmente representadas pelo Papado e pelo Sacro Império. Neste sentido, poder-se-ia dizer que a Renascença, com sua apaixonada volta a um idealizado passado clássico, trazia implícito, um movimento de cansaço e desencanto para como a antiga ordem do mundo medieval.

Se no plano intelectual, conforme já exposto, foi a Renascença marcada pela crítica e pelo questionamento, no plano político não foi menor a instabilidade observada. Com efeito, a consolidação dos Estados nacionais, cuja conseqüência imediata foi o sacrifício das liberdades feudais e comunais, não se operou de maneira tranqüila, estando sujeita a constantes revoltas e guerras civis, fenômenos bastante característicos do século XVI. Quanto ao plano internacional europeu, já tradicionalmente instável, terá no acirramento das disputas comerciais um fator adicional de beligerância. Todavia, será na península italiana que a desordem chegará a níveis incontroláveis.

Por razões históricas várias, que aqui não cabem ser discutidas em profundidade - bastando-nos, no momento, mencionar o papel tradicionalmente desagregador desempenhado pela Santa Sé, que não bastante forte para criar um Estado nacional italiano, era contudo suficientemente poderosa para frustrar os planos de outros que o quisessem fazê-lo1 - chegou a Itália no século XV a um quadro de desagregação política extrema, completamente permeada por pequenos Estados como regimes políticos e estágios econômicos dos mais variados.

Não obstante os esforços diplomáticos de Lourenço de Médicis, O Magnífico, relativamente exitosos até 1494 (no sentido de estabilização da península por meio da divisão da mesma em cinco áreas de influência, a saber: ao sul, o Reino de Nápoles, controlado pela Espanha; ao norte, o Patrimônio de São Pedro, controlado pela Igreja, e a República de Florença; ao norte, por fim, o Ducado de Milão e a República de Milão) o fato é que os últimos anos do século XV viriam a encontrar a Itália transformada num gigantesco campo de batalha, assolada não só por dissensões internas entre seus vários Estados, como também por invasões de exércitos estrangeiros (notadamente da França e Espanha), infestando a Itália de tropas mercenárias, fenômeno que incidiria diretamente na estabilidade interna das cidades italianas.

Foi nesse cenário que se desenvolveu Maquiavel, espírito lúcido e percuciente que soube observar o conturbado contexto de sua época da maneira mais objetiva possível, visando sempre penetrar na verità effetuale dos fatos, e deles extraindo lições que até hoje permanecem no cerne do debate político.

1 Todavia, Perry ANDERSON, em Linhagens do Estado Absolutista. 2ª. ed. São Paulo: Ed. Brasiliense. 1988. p. 143-146, discorda desta explicação tradicional, por entender que o papel do Papado foi de pouca importância para a obstaculização do surgimento de um Estado nacional Italiano, haja vista a nulidade bélica do mesmo em toda a sua história, vendo na profunda divisão econômica entre o sul feudal e norte extremamente desenvolvido para a época, o verdadeiro óbice à unificação da península. Segundo o autor, o estado absolutista que se desenvolvia então era basicamente uma estrutura feudal adaptada a um contexto de mercantilização emergente. Neste cenário, a única parte da Itália capaz de dar ensejo à criação de um Estado absoluto centralizado seria o reino das Duas Sicílias (Nápoles), como realmente ocorreu com a experiência Hohenstaufen, no século XIII, que entretanto não tinha um base sólida para absorver o norte, em função da enorme superioridade populacional e econômica deste. Já o norte, com sua florescente economia urbana, havia anulado a força da belicosa aristocracia rural, maior interessada, segundo Anderson, na construção de um Estado forte por garantir seu domínio sobre as massas, numa época em que os laços tradicionais de dominação se dissolviam completamente em função do advento de um novo modo de produção.

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1.3. Estado e moral em Maquiavel

Tida o “Príncipe” como a obra mais famosa de Maquiavel, conforme já ressaltado anteriormente, achou-se por bem, antes de se adentrar na análise da concepção de Estado porventura existente na referida obra, tecer algumas considerações a respeito desta, no sentido de se tentar extrair aquilo que entenderia como sua mensagem fundamental, o que serviria não só como fundamentação ao fato de tal obra figurar como parte da presente pesquisa, mas que também se prestaria como visão introdutória à analise que se seguiria.

Pequena obra política de vinte e seis capítulos, explica-a o próprio Maquiavel em carta destinada à seu amigo Vettori da seguinte forma:

Compus um opúsculo, De Principatibus, no qual mergulho, tanto quanto possível, nas profundezas de meu tema, investigando qual a essência dos principados, de quantas espécies podem ser, como são conquistados, conservados e por que se perdem.2

Assim, de pronto afasta Maquiavel de seu Estado a análise das Repúblicas, que deixa para uma obra específica sobre o tema: os famosos “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”. Ou como afirma o próprio autor:

Não cogitarei aqui das repúblicas porque delas tratei longamente em outra oportunidade.3

Todavia, não obstante tal aparente restrição, cumpre ressaltar que as considerações desenvolvidas pelo autor acabaram por transcender completamente, quanto à sua aplicabilidade prática, as formas de organização porventura adotadas pelo Estado.

Tal leitura do “ Príncipe” , como uma análise prática da natureza do procedimento político efetivamente adotado pelo homem em sociedade, é reforçada pelo próprio Maquiavel, quando afirma que:

Sendo minha intenção escrever coisas proveitosas para quem as entenda, pareceu-me mais conveniente seguir a verdade efetiva, de fato (verità effetuale), da coisa, do que as sua imaginação. Muitos imaginaram Repúblicas e Principados que nunca foram vistos nem tidos como verdadeiros. Mas existe uma tão grande distância entre a maneira como se vive e aquela como se deveria viver, que aquele que trocar o que se faz pelo que se deveria fazer, aprende mais a se perder do que se conservar.4

Neste ponto, poder-se-ia identificar o primeiro ponto de ruptura relevante entre o pensamento de Maquiavel e a tradição intelectual medieval existente até então. Com efeito, ao

2 MAQUIAVEL, Nicolau apud CHEVALLIER, Jean-Jacques. As Grandes Obras Políticas: de Maquiavel a Nossos Dias. 6ª. ed. Rio de Janeiro: AGIR. 1993. p.23.3 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 10ª. ed. São Paulo: Civilização Brasileira. 1985. p. 9.4 op. cit. p. 89.

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restringir-se deliberadamente ao exame dos fatos concretos, realmente observáveis, analisando-os de maneira objetiva (objetividade esta, diga-se de passagem, uma das grandes responsáveis pela imortalidade do autor), consigna-se Maquiavel como legítimo filho da Renascença, época em que as grandes obras do engenho humano, tanto no plano intelectual como artístico eram fruto de uma criteriosa observação da natureza, num claro repúdio as especulações teológicas características do medium aevum, insuficientemente embasadas em fatos concretos, aos olhos das mentes do período renascentista.

Poder-se-ia dizer, assim, ter adotado Maquiavel um procedimento empírico que teria em Francis Bacon sua mais significativa manifestação, com a diferença, é claro, de ter ousado aplicar tal metodologia a um campo infinitamente mais controverso que a dissecação de cadáveres ou a pintura a óleo, qual seja: o do exercício do Poder

Ora, o método, por mais revolucionário que seja, poucos frutos produzirá se não for adequadamente aplicado ao objeto da investigação, e neste sentido, a crueza impiedosa com que Maquiavel descreve os fatos por ele observados seria, em parte, uma possível explicação para a perenidade de sua obra.

Mas uma vez reconhecido tal método, a onde ele levaria efetivamente quando aplicado à análise da política? Um indício de resposta para tal questão encontrar-se-ia no capítulo XVIII do “Príncipe”, de certa maneira considerada como a quitessência do maquiavelismo, e que versa sobre a maneira como devem os príncipes manter a palavra dada.

Nele, inicia Maquiavel afirmando que:

Existem dois modos de combater; um como as leis, o outro como a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo dos animais; mas, como o primeiro modo não é muitas vezes suficiente, convém recorrer ao segundo. 5

Neste ponto, ao tentar explicar melhor sua visão, é o autor aparentemente acometido de certo pudor, visto que abandona sua natural objetividade e recorre à metáfora do centauro Quíron, lendária personagem, metade homem e metade animal, tida como preceptora de vários heróis e príncipes, para afirmar que:

Isso não quer dizer outra coisa, não ter por preceptor um ser meio animal e meio homem, senão que um príncipe precisa saber usar uma e outra dessas naturezas: uma sem a outra não é durável. 6

Fazendo alusão ao centauro, Maquiavel pretende indicar a própria natureza dúplice do poder político, que embora possa ser exercido por meios pacíficos (próprios do homem), em momento algum poderá prescindir totalmente da fraude ou da violência (próprias dos animais) na execução de seus fins.

Deste modo, adentra-se na idéia básica do “Príncipe” , qual seja, a da completa separação entre moral e política, no sentido e que a busca dos fins políticos, em função de sua importância, implica necessariamente a inobservância de princípios éticos tidos normalmente como essenciais, como não matar, mentir ou trapacear, fenômeno que o autor em momento algum propugna ou condena abertamente, mas apenas analisa como um dado concreto inquestionável, adotando uma

5 op. cit. p. 102.6 op. cit. p. 102.

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metodologia que irá caracterizar-se como um dos pontos de ruptura com a tradição intelectual anterior, conforme já referido.

Reforçando tal entendimento, afirma ainda o autor que:

Logo, um senhor prudente não pode nem deve guardar sua palavra quando isso seja prejudicial ao seus interesses e quando desaparecerem as causas que o levaram a empenhá-la. 7

Tal passagem, é com certeza, uma das que mais contribuíram para associação do termo maquiavélico às idéias de velhacaria e hipocrisia, devendo contudo ser entendidas em cotejo com o que já foi comentado anteriormente à respeito da metodologia adotada pelo autor. Deste modo, as observações desenvolvidas transcendem o conteúdo de um simples manual prático de aspirante à tirania e perfectibilizam-se na constatação de um fato característico da política, de natureza atemporal, qual seja: a inaplicabilidade dos padrões éticos de conduta que regem a vida privada ao campo do exercício da política. Claro que se incorreria em erro, conforme se verá mais adiante, em momento oportuno, caso o racionalismo técnico de Maquiavel fosse analisado do ponto de vista de um puro descritivismo neutro e descontextualizado, tendo o autor, com sua obra, objetivos bastante específicos, dentro de sua própria época.

Rompendo com a tradição medieval que sempre subordinou o Estado à satisfação dos indivíduos, de modo que sua atividade estaria a cada momento cerceada por valores morais, referentes às relações dos homens entre si, Maquiavel propõe uma análise do Estado completamente despida de considerações éticas, para possibilitar o seu correto entendimento.

Não se trataria na verdade de identificar a ética e a política como termos contrários, em estado de permanência beligerância entre si, mas saber reconhecer no fenômeno político um universo completamente distinto do campo da moral, no sentido de referirem-se à áreas do relacionamento humano cujo objeto são distintos. Neste sentido, ao contrário do entendimento vulgar, a considerar ao obra de Maquiavel como um simples libelo oportunista e impiedoso contra a moral., observa-se quanto a esta última apenas seu reposicionamento, restringindo-a ao campo das relações privadas da sociedade

Segundo Maquiavel, os cálculos e empreendimentos desenvolvidos no espaço político, desconhecem completamente considerações de natureza ética, só voltando-se para a moral quando a mesma puder, de alguma forma, contribuir para a realização dos fins políticos objetivados pelo governante, anulando mais uma vez, portanto, a possibilidade da arte política tomar a realização da ética como um fim em si mesmo (neste sentido, lembre-se a famosa passagem de Maquiavel em que o mesmo considera que qualidades morais no governante são lhe desnecessárias, como até prejudiciais, não obstante a necessidade de seus súditos creditarem-lhe todas a sorte de atributos morais, afirmando o próprio autor que:

Não é necessário a um príncipe ter todas as qualidades mencionadas, mas é indispensável que pareça tê-las. Direi, até, que, se as possuir, o uso constante delas resultará em detrimento seu, e que, ao contrário, se não as possuir, mas afetar possuí-las, colherá benefícios. Daí a conveniência de parecer clemente, leal, humano, religioso e íntegro, contanto que, em caso de necessidade, saiba

7 op. cit. p. 103.

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tornar-se o inverso. 8

Assim, a maior e mais controvertida herança de Maquiavel centra-se no corte radical dos fenômenos da ética e da política, idéia inquestionável aos olhos daquele, mas nunca antes formulada de maneira tão clara e objetiva.

De fato, lembra Angel L. Cappelletti, que não obstante já no tempo de Platão, sofistas como Trasímaco procurarem reduzir ao moralidade à força, no sentido de que ético será o governo que se organizar em proveito do mais forte, promovendo uma subordinação da ética a força, é somente com Maquiavel, no começo da Idade Moderna, que se estabeleceu uma verdadeira antítese conceitual e principiológica entre os termos moral e Estado. Ou no dizer do referido autor:

Era preciso que transcurriera más de um milenio de Imperio Cristiano para que alguiem pudiera decir en Occidente que Estado y moralidad no sólo son términos diversos, de tal modo que el Estado há de reconocerse en principio como algo a-moral (o sea, ajino a toda ética, como los entes de la naturaleza, astros, plantas o bestias), sino tambiém como algo contrario a ella y, por tanto, como algo in-moral, en cuanto no puede lograr sus fines próprios sin transgredir los más elementales princípios éticos y sin conculcar los más altos valores morales, como la justicia y la libertad.9 .

De fato, o corte radical entre moral e política, termos absolutamente amalgamados durante o período medieval (apenas no campo teórico é claro), concentra-se em dois pontos. Em primeiro lugar, a política para Maquiavel é contrária à moral (fato suficientemente comprovado pelas citações do “Príncipe” já trazidas à colação). Em segundo, a política é não só contrária, como superior à moral, no sentido de que a política, enquanto conjunto de regras para a conservação do Estado, deve ter absoluta prevalência sobre a moral, esta entendida como conjunto de regras destinadas a regular a vida de particulares.

1.4. O “Príncipe” e a conceituação de EstadoFato já bastante comum é afirmar-se que foi Maquiavel o primeiro teorizador dos Estados

modernos, a analisar-lhes sua verdadeira natureza despida de quaisquer considerações de ordem moral ou religiosa, indo tal assertiva de encontro com uma das propostas do presente trabalho, qual seja, observar o conceito de Estado contido no “Príncipe” e analisar suas possíveis relações com o período histórico de sua gênese, tido como a fase de consolidação dos Estados nacionais, sob forma de organização absolutista.

Quanto à possibilidade de identificação de um conceito de Estado em sentido estrito no âmbito do “Príncipe”, uma leitura ainda que superficial, revelar-nos-á que em nenhum momento chega Maquiavel a formular uma conceituação expressa do Estado, pois, que, pelo contrário, a ele se refere das mais variadas formas e dentro dos mais variados contextos.

Todavia, como afirma Jean Touchard, embora o secretário florentino não tenha em

8 op. cit. p. 52.9 CAPELLETTI, Angel apud CONDE, Francisco Javier. Lo Saber Político en Maquiavelo. 2ª ed. Madrid: Biblioteca de la Revista de Ocidente. 1947. p. 23

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nenhum momento de sua vida formulado uma “teoria geral do Estado”, este encontra-se inegavelmente no cerne de todo seu pensamento10

Conforme já comentado, a mensagem básica do “Príncipe” concentra-se na separação radical entre a política e a moral, com a completa autonomia e primazia da primeira sobre a segunda. Tal primazia, segundo Jean-Jacques Chevallier11, permitiria identificar no “Príncipe” a idéia de Estado como um fim em si mesmo, um valor absoluto cuja finalidade básica concentra-se em sua própria continuação e prosperidade12

É contudo Francisco Javier Conde, em “El Saber Político en Maquiavelo”13, que mais se aprofunda no sentido de extrair a conceituação de Estado que existiria implicitamente no âmbito do “Príncipe”. Entende o referido autor que, por detrás do frio, e por vezes escandaloso, tecnicismo político demonstrado por Maquiavel ao longo de sua pequena obra, encontrar-se-ia como seu objetivo maior a identificação dos meios adequados para se alcançar a estabilidade política (objetivo este perfeitamente justificável se nos lembrarmos do contexto político insuportavelmente instável em que se transformara a Itália de Maquiavel).

A estabilidade política prevista por Maquiavel, contudo, é diametralmente oposta ao conceito de estagnação, pois para este, a vida política era insuscetível de ficar parada, estática, podendo quando muito, ser ajustada de modo a seguir um movimento político ordenado. Tal visão, no entender de Bobbio, teria Maquiavel recebido da obra do historiador romano Políbio, que em sua obra História, descreve a história humana de maneira cíclica, em que estágios de desenvolvimento alternam-se de maneira inexorável com períodos de decadência na vidas das sociedades14.

Quanto à referida estabilidade, é a busca contínua da mesma que se constituiria no objetivo político maior da obra de Maquiavel, ou nas palavras do próprio Conde:

Sujeitar el movimiento humano colectivo a un orden, hacer de la materia humana colectiva una figura perfecta y terminada, mantenerla en equilibrio estable, en forma y unidad, enderezarla por cauce racional de modo que su curso sea previsible y calculable. Esa figura perfecta es el Estado, lo Stato.Stato, es pues, por definición, un orden “estable”, un movimiento ordenado.15

10 TOUCHARD, Jean et alli. História das Idéias Políticas. Lisboa: Publicações Europa América. 1970. vol. 3. p. 22.11 CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do Pensamento Político. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1985. vol. 1. p. 266. 12 Corroborando tal entendimento, é nos “ Discursos” e não no “Príncipe”, que Maquiavel, firma tal idéia de maneira mais explícita. Ao comentar episódio da história romana em que um oficial romano usara de fraude para vencer o exército inimigo, fato que teria despertado críticas entre os próprios romanos, afirma o autor: Quando é necessário deliberar sobre uma decisão da qual depende a salvação do Estado, não se deve deixar de agir por considerações de justiça ou injustiça, humanidade ou crueldade, devendo-se apenas visar à glória ou salvação do Estado e à manutenção da sua liberdade, rejeitando-se tudo mais. Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio. 2ª. ed. Brasília: Ed. UnB. 1982. p. 419. 13 CONDE, Francisco Javier. El Saber Político en Maquiavelo. 2ª. ed. Madrid: Biblioteca de la Revista de Ocidente. 1947. 14 BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo.2ª. ed. Brasília: Ed.UnB. p.32.15 CONDE, Francisco Javier. Op. cit. p. 95.

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Deste modo, o exercício da política, por mais descontrolado e sanguinário que possa parecer nas páginas do “ Príncipe”, mostra obedecer uma lógica interna, que é a construção de uma ordem social “estável”16, resultado de um contínuo esforço consciente e calculado (ou porque não dizer, racional), por parte do homem no sentido de alcançar uma harmonia social.

Nesta visão de política como esforço calculado de busca do máximo equilíbrio, pode-se observar a idéia de ordem política como ordem altamente racional, visto que, todos os aspectos políticos relevantes são analisados e sopesados da maneira mais objetiva possível. Assim, a ordem política (ou o Stato), em Maquiavel, identifica-se como uma ordem racional, razão pela qual afirma J. F. Conde que:

El orden político será, pues, un orden altamente racional, donde todo se halla racionalmente previsto y calculado. A través de ese pasaje de Maquiavelo, se asiste al nacimiento del Estado moderno como forma de organización política ultrarracional, con su tendencia al centralismo racional frente al derecho tradicional y racional frente al derecho tradicional y feudal.17

Todavia, cumpre ressaltar que o simples cálculo racional não é suficiente, por si só, para caracterizar o funcionamento do Estado maquiavélico, a ele aderindo necessariamente a noção de autonomia do Estado, tanto no plano externo (em suas relações com outros Estados), quanto no plano interno (em relação à ordens ou grupos de interesses) , de maneira que a busca da já mencionada estabilidade política não encontre obstáculos de qualquer espécie para sua realização plena.

Tal autonomia remete-nos necessariamente à já comentada primazia da política sobre a moral, que o Estado, por sua própria natureza, não pode ver impedido por quaisquer considerações de natureza ética, seja no plano internacional ou nacional, sob pena de sacrificar-se a tão almejada estabilidade política, objetivo primordial do Estado maquiavélico, cujo funcionamento, conforme já ressaltado, deverá portanto pautar-se apenas pelo cálculo racional, despido de qualquer idéia de moralidade.

1.5. O “Príncipe” e a Razão de EstadoNão obstante abranger a Razão de Estado uma larga tradição intelectual que, iniciada no

alvorecer da idade moderna, vai até figuras modernas como Kissinger e Raymond Aron, poder-se-ia conceituá-la como a doutrina que entende que a manutenção da segurança do Estado é a mais relevante necessidade de uma sociedade, de tal maneira que, para garanti-la, deverão os governantes usar de todos os meios que estiverem à sua disposição. Nesta visão, a doutrina da Razão de Estado, também denominada de doutrina do Estado Potência (machtstaatsgedanke),

16 Quanto a esta estabilidade social, não há que se superestimá-la no pensamento de Maquiavel, pois este, de fortes convicções republicanas, conforme se observa pela leitura dos Discursos aliás, era bastante crítico quantas às pretensões da elites de um modo geral, razão pela qual chegou a afirmar, no Príncipe: porque em toda cidade se encontram estas duas tendências diversas, e isso resulta do fato de que o povo não quer ser mandado nem oprimido pelos poderosos e estes desejam governar e oprimir o povo. (O Príncipe. p. 55). Em tal leitura, poder-se-ia encontrar mais um ponto de ruptura de Maquiavel com a antiga visão medieval, em que cada indivíduo ocupava uma posição predeterminada por Deus na sociedade, sendo esta uma estrutura estática e harmônica, vendo o referido autor na sociedade um contínuo choque de interesses entre grupos sociais (uma primeira antecipação da luta de classes, quem sabe?). 17 op. cit. p. 96.

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preconiza a completa liberação dos governantes de impedimentos jurídicos, éticos ou religiosos, quando os mesmo representarem óbices à manutenção do poder do Estado, pois, ao reconhecer-se a conservação deste como um valor absoluto, forçoso é reconhecer que o estadista possui não a faculdade, mas a obrigação de infringir os referidos impedimentos quando necessário.

Ora, foi Maquiavel o primeiro pensador a formular um dos principais aspectos da Razão de Estado, embora sobre o mesmo não tenha desenvolvido uma teoria completa, já afirmando Swergio Pistone que:

É possível descobrir na história antecipações parciais, as vezes bastante agudas, de tal teoria, mas está fora de dúvida que é só com Maquiavel que se registra um salto qualitativo capaz de constituir o começo de uma nova tradição de pensamento.18

Em Maquiavel, um dos aspectos observados quanto à Razão de Estado é também um dos mais provocadores, qual seja: a emancipação do soberano de todos os impedimentos de natureza ética, entendimento este tradicionalmente chamado, em sentido depreciativo, de maquiavelismo.

Ainda na Idade Média, com a gradual luta dos reis pela imposição de seu poder a todo território que tradicionalmente, apenas em sentido formal estava sob seu controle, em prejuízo de uma vasta gama de ordenamentos jurídicos próprios que limitavam a atuação de um Estado centralizado tanto no plano externo (Papado e Império), quanto no interno (feudos, corporações e comunas livres), já se ouviam as primeiras vozes que afirmavam a supremacia jurídica do soberano ( que “o rei é imperador em seu reino” já era frase bastante repetida, embora não completamente operacionalizada na prática).

Todavia, o cristianismo ainda permanecia forte nos espíritos, e declarar de maneira veemente, como o faria Maquiavel, que, além de tudo, estava ainda o soberano totalmente liberto dos imperativos éticos que regiam os homens comuns era coisa absolutamente inaudita em uma Europa ainda ideologicamente bastante ligada aos valores medievais.

Neste sentido, afirma Norberto Bobbio: Quanto se proclamava que o príncipe estava acima das leis, geralmente não se queria dizer com isso, que ele estivesse acima das leis divinas e morais. Por meio da teoria do maquiavelismo são quebrados também esses limites: o príncipe não é mais somente livre dos vínculos jurídicos, mas também (para usar de uma expressão provocativa), além do bem e do mal, quer dizer, livre dos vínculos morais que delimitam a ação dos simples mortais. O maquiavelismo, neste sentido, é a exposição teórica mais audaciosa sobre o absolutismo do poder estatal. 19

Deste modo, o elo a ligar o “Príncipe” aos sistemas absolutistas da época, encontrar-se-ia na idéia, que posteriormente viria a ser conhecida como Razão de Estado, de que o Rei, no exercício de suas atribuições políticas, estaria liberto de qualquer tipo de sanção, tendo em vista a magnitude dos interesses envolvidos. Ou, usando de uma terminologia tão ao gosto da época, o

18 BOBBIO, Norberto et alli. Dicionário de Política.10ª ed. Brasília: UnB. 1986. p. 1066.19 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Imannuel Kant. 1ª. ed. Brasília. Ed. UnB. 1984. p. 14.

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rei só deveria prestar conta de seus atos a Deus, na hipótese, é claro, de fazer algo que lhe causasse crises de consciência, quando então, iria encontrar nos pensadores políticos modernos conforto muito maior que aquele oferecido pelos antigos moralistas cristãos do período medieval.

Todavia, cumpre ressaltar que tal discurso jamais foi levado, à época das monarquias absolutistas, ao nível de doutrina oficial de legitimação, permanecendo, neste tópico, a realeza fiel à antiga fundamentação bíblica do poder, em que este, sendo proveniente de Deus, deveria ser considerado como sagrado (assim como, por extensão, o monarca que o detivesse), servindo para, acima de tudo, garantir a realização da justiça e a defesa da religião. 1.6. Considerações críticas

Claro que as lições do “Príncipe” continuam a encontrar críticos mesmo nos dias de hoje. Identificando em sua pretensa objetividade, os flexionamentos de sua época, afirma Perry Anderson, que a visão de Estado de Maquiavel, enquanto instrumento de dominação completamente liberto de considerações éticas, mais que primor de análise científica, seria antes de tudo, uma visão reducionista, historicamente condicionada pelo extremamente instável e sanguinário ambiente político do Cinquecento italiano. Ou segundo as palavras do referido autor:

Maquiavel pouco percebia da imensa força histórica da legitimidade dinástica, na qual estavam as raízes do absolutismo emergente. O seu mundo era o dos aventureiros transitórios e tiranos arrivistas das signorie da Itália, o seu ponto de referência, César Bórgia .O resultado do “legitimismo’’ calculado da perspectiva de Maquiavel foi o seu famoso “tecnicismo” para a consecução de fins políticos convencionais, dissociados de imperativos e restrições éticas. A conduta de um príncipe só podia ser uma longa lista de crimes, uma vez que se dissolviam todas as bases da dominação.20

Sem embargo, ousar-se-ia opor pequeno reparo a tal opinião, pois como já observado no tópico anterior, guia-se a prática política de Maquiava por uma lógica mais profunda que uma “longa lista de crimes”, tendente à criação de um ambiente de estabilidade política (que se confunde com a própria conservação do Estado), em que a prática da violência é portanto sopesada com outras alternativas possíveis, dentro de um contexto de racionalidade centralizada, que despreza, acima de tudo, a violência diluída e inconstante do sistema feudal.

Quanto ao fato de desconhecer Maquiava a imensa força histórica da legitimidade dinástica, este não só a conhecia como até a apreciava, tendo em vista as possibilidades de atuação política que a mesma possibilitava nos países em que ela existia em alto grau, afirmando a respeito dos franceses que:

Não admitem que um certo modo de agir possa ser vergonhoso para o monarca; o que quer que faça o rei, dizem eles, não se expõe jamais à vergonha, no êxito ou na desgraça. Vencedor ou vencido, suas decisões são sempre as decisões de um rei. (grifo nosso). 21

20 ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. 2ª ed. São Paulo: Ed. Brasiliense. 1989. p.166.21 MAQUIAVEL, Nicolau. Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio. 2ª ed. Brasília: Ed. UnB. 1982. p. 419

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Destarte, o próprio Maquiavel afirma que, em função das dificuldades maiores apresentadas, irá se concentrar nos principados novos, tendo em vista que, nos principados hereditários, afeiçoados à linhagem de seu príncipe, as dificuldades são assaz menores que nos novos.22

Assim, é a Itália, e não a França, Espanha ou Inglaterra, que Maquiavel tem em mente ao formular seu “programa de governo”, a ser adotado por excelência por um principado novo, não obstante as lições contidas no Príncipe terem sido generalizadas para todos os países mencionados.

Na verdade, uma refutação racional da completa emancipação do Estado dos imperativos morais, teria que aguardar o advento das doutrinas liberais, quando os próprios contextos políticos que se haviam apresentado aos olhos de Maquiavel tinham sofrido sensíveis alterações. Ora, situara-se o referido autor numa época de transição, em que a já milenar estrutura que durante séculos fornecera à Europa a fundamentação ideológica de sua ordem política, qual seja, a Igreja, passava por um processo de questionamento.

Outrora árbitro supremo da Europa, sagrando e depondo reis e imperadores, chegara a Igreja romana à Renascença com imensas dificuldades de controlar não só sua base territorial no centro da península, como seu próprio domínio espiritual, sobre todo o continente, posto em cheque não só pelo cientificísmo emergente quanto por um cristianismo de fundo humanista. Neste contexto de relaxamento dos dogmas religiosos (temporário, diga-se de passagem, visto que a Reforma estava prestes a irromper, e, por conseqüência, a Contra-Reforma), aliado à profunda barbárie política, propício era o surgimento de um espírito que viesse a proclamar o corte entre o Estado e a moral, tese contra a qual as tradicionais obras de “Educação do Príncipe Cristão” valeriam muito pouco, sendo todavia tudo o que a crítica de então poderia oferecer como contra-argumentação à Maquiavel.

Logo, uma base sólida de refutação ao pensamento do florentino teria que aguardar até o século XVII, quando os atores sociais que classicamente respaldaram todas as pretensões absolutistas da monarquia em detrimento da nobreza e da Igreja, começassem a se articular na tomada do poder do Estado, operação esta que passava necessariamente na limitação do poder de seu tradicional aliado, por meio daquilo que se convencionou chamar posteriormente de liberalismo.

À guisa de justificativa, cumpre ressaltar que não obstante as considerações até aqui desenvolvidas tenham tido sempre a preocupação de fundamentar-se nas lições dos mais abalizados autores que escreveram sobre o presente tema, é necessário observar que o pensamento de Maquiavel, mesmo considerada sua aparente clareza de estilo, tem sido motivo para as controvertidas leituras desde o seu surgimento.1.7. Destino da Obra

Já se afirmou que uma obra pode ser considerada clássica quando se presta a várias interpretações23. A se adotar tal assertiva, poder-se-ia afirmar ser a obra de Maquiavel clássica por excelência, tal o número de leituras que suscitou até hoje.

Muito embora tenha o “Príncipe”, à época de sua publicação, em 1531, passado completamente desapercebido (note-se que para sua impressão recebeu, como era de praxe, uma autorização papal), não tardaria a despertar a polêmica que o acompanharia ao longo dos

22 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 10ª ed. São Paulo: Ed. Civilização Brasileira. 1985. p. 9 23 BOBBIO, Norberto. Ensaios Escolhidos. Rio de Janeiro; C. H. Cardim. p. 157

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séculos24.Começa o “Príncipe” a provocar certo rumor apenas a partir de 1550, quando a já atuante

Contra-Reforma provocou um recrudescimento do controle oficial sobre a cultura25, o que não impediu que edições clandestinas da obra se multiplicassem pela Europa inteira notadamente França, Inglaterra e Alemanha, espalhando por todo o velho continente as lições do “the murderous”, como lhe chamaria Shakespeare26, consolidando ao redor do nome de Maquiavel uma aura diabólica e impiedosa que até hoje se perpetua nos meios populares. Mas se durante as guerras religiosas esteve o “Príncipe” firmemente ligado à idéia de apologia satânica da tirania, o fato é que o século seguinte, ou das Luzes, viria a ensejar completa reviravolta na interpretação da obra, destacando-se a lição de Rousseau, que afirmou: Maquiavel, fingindo dar lições aos príncipes, deu grandes lições ao povo27.

Por fim, o risorgimento do século XIX, saberia ver em Maquiavel um dos mais fervorosos defensores da unificação italiana, fato aliás incontestável, haja visto o caráter absolutamente apaixonado do capítulo XXVI, a propugnar por um líder nacional que livrasse a Itália dos invasores estrangeiros, alçando Maquiavel à qualidade de herói nacional, razão pela qual repousam seus restos na Santa Croce de Florença, ao lado de outros italianos ilustres como Galileu e Michelângelo.

Em verdade, respeitadas todas as interpretações referidas anteriormente, que não deixam de representar significativas contribuições para o perfeito entendimento da obra, o fato é que a contextualização de uma obra continua sendo um dos mais eficazes métodos para se adentrar em seu verdadeiro espírito. Desse modo, tentar perscrutar o que pensava Maquiavel a respeito de sua própria obra poderia apresentar indicações bastante reveladoras sobre a mesma.

Conforme já observado anteriormente, foi Maquiavel testemunha não só da consolidação dos primeiros Estados nacionais, mas também da profunda desagregação política em que estava mergulhada a Itália. Contra isso, sentiu a necessidade de implementação na Itália de um Estado poderoso e centralizado, nos moldes dos que vinham se desenvolvendo no exterior. Em suma, tratar-se-ia de implementar e conservar um “principado novo”, na mais pura acepção do termo, embora de âmbito nacional. Tal principado, tendo em vista as circunstâncias históricas de então, seria necesssariamente gerado e mantido pela força e pela violência, aplicadas com extrema perspicácia por indivíduo pleno de virtù.28

24 Sobre o destino do “Príncipe”, vide CHEVALLIER, Jean Jacques. op. cit. p. 44, em que o autor comenta as diferentes interpretações recebidas pela obra.25 Neste sentido, foi a obra de Maquiavel condenada no Concílio de Trento, sendo uma das primeiras a figurar no Index Librorum Prohibitorum26 WEFFORT, Francisco (org). Os Clássicos da Política. 7ª. ed. São Paulo: Ed. Ática. 1996. p. 13.

27 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. 1ª ed. Lisboa: Presença. 1970. p. 46.28 De importância fundamental na obra de Maquiavel, é a virtù, conceito intimamente relacionado com a fortuna. Enquanto virtù para Maquiavel, é qualidade intrínseca à própria natureza humana (embora presente em maior grau em determinadas personagens que outras) que impulsiona os homens a agir no sentido de planejar determinados acontecimentos e promover a realização de mudanças, é a fortuna por sua vez o acaso, o destino, ou o complexo de acontecimentos que escapam ao cálculo humano, influenciando de maneira imprevisível os planos políticos, em regra cuidadosamente medidos e calculados.

Sobre o papel exercido por estas duas realidades, o próprio Maquiavel afirma no 25º capítulo do “Príncipe” (p.139-140) que: Entretanto, como nos temos um livre-arbítrio, é necessário reconhecer que a fortuna seja senhora da metade de nossas ações, mas que nos deixa governar a outra metade,ou pouco menos. Tal visão de mundo, de uma aparente simplicidade, mais do que retratar a interpretação de um autor localizado sobre a impossibilidade de uma previsão total na arte política, mostra também a própria visão de mundo da Renascença, dinâmica e materialista, que se por um lado era obrigada a conviver ainda com o peso milenar de uma misteriosa

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De fato, esta é a interpretação mais coerente do “Príncipe”, quando cotejada com sua obra “Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, em que a cada a momento passa a defender a superioridade política da república sobre a monarquia29, por entendê-la como o regime mais eficaz para a defesa da liberdade!30

Assim, em Maquiavel, a monarquia absoluta não se apresenta como um ideal de Estado, mas, quando muito, um projeto de governo, temporário por excelência, no sentido de que, para o florentino, o absolutismo tinha um valor puramente instrumental, que deveria ser afastado e substituído por uma República que tanto admirava tão logo se tivesse extirpado da Itália a anarquia feudal em que se encontrava mergulhada.

Simultaneamente fundamental e transitória, a monarquia absoluta analisada por Maquiavel no “Príncipe” seria adequada apenas em um momento de decadência dos povos, quando necessário então se estabelecer um Estado forte e centralizado.

Mas, como já se disse, no momento em que um livro é escrito, pertence não mais ao seu autor, mas ao mundo. A revelia do sentido extremamente específico e restrito dado por Maquiavel ao “Príncipe”, a verdade é que a completa emancipação do soberano de impedimentos éticos, tão tranqüilamente exposta na obra, haveria de encantar mais de um déspota do período absolutista31.

Todavia, se tal contextualização explica, ao menos de maneira razoável, a visão que tinha Maquiavel a respeito de sua própria obra, não explica contudo a causa desta ter tido a sorte que teve, exercendo sobre os estudiosos o fascínio que perdura até hoje.

Poder-se-ia dizer, em princípio, que uma das razões da espetacular transcendência da obra aos estreitos limites para a qual foi criada, encontrar-se-ia no seu já mencionado método, que da análise dos fatos políticos tenta eliminar qualquer consideração de cunho valorativo como justo ou injusto, certo ou errado (um primeiro ensaio de positivismo científico quem sabe?), atendo-se unicamente aos resultados da ação política como meio para medir sua validade, implicando numa completa separação entre moral e política que até hoje, cinco.

Ora, considerando-se o ambiente cultural em que tal método foi proposto, sua implicação imediata foi muito mais que a de simplesmente fornecer um relato objetivo da verdadeira arte de governar, atemporalmente considerada - embora este não seja um dado a ser desprezado - afastando a idéia que a Europa Medieval fazia a respeito do Estado.

Na verdade, com o “Príncipe” a tradição política medieval é politicamente anulada, no sentido de que, toda a metafísica e filosofia são postas de lado, ocorrendo a mais absoluta secularização da política. Nesta nova visão, a religião, de elemento (teoricamente, é sempre bom frisar) norteador da atividade estatal, passa a ser mero instrumento, entre tanto outros, usado pelo Estado na execução de seus próprios fins. O resultado dessa visão é a criação por Maquiavel, de um Estado completamente emancipado da moral, dotando aquele de uma supremacia sobre toda a sociedade, que seria, no século seguinte, desenvolvido por Hobbes até suas últimas

Providência, por outro lado tentava redimensionalizar esta dentro de um contexto de tendências antropocêntricas crescentes, onde o papel do homem em sociedade adquiria não só significado próprio, emancipado de uma dimensão teológica, como tornava-se o instrumento essencial de análise dos fatos políticos.

29 Vide neste sentido os “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, p. 99, 128, 130 e 387.30 Note-se que a flagrante contradição entre as lições do “Príncipe” e o republicanismo exaltado contido nos “Discursos” foi tradicionalmente atribuído a um simples cálculo interesseiro de seu autor, compondo cada obra de acordo com o grupo que detinha o poder em Florença: Médicis ou republicanos.31 Neste sentido, mencione-se Richelieu, solicitando ao cônego Machon que escrevesse uma “Apologia de Maquiavel”, conforme lembra CHEVALLIER, Jean-Jacques, em “As Grandes Políticas: de Maquiavel a Nossos dias. p. 46.

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conseqüências.

2. “O LEVIATÔ DE THOMAS HOBBES

2.1. Vida e obra de Thomas HobbesNasceu Thomas Hobbes prematuramente em 5 de abril de 1558, na mesma época em que

notícias da poderosa Armada espanhola de Felipe II deixavam toda a Inglaterra em sobressalto, fato aliás tradicionalmente apontado pelos seus contemporâneos, que consideravam a natureza particularmente assustadiça de Hobbes como oriunda do pavor que sua mãe sentiu da Armada durante a gestação daquele.

Era Hobbes filho de um pastor anglicano humilde e inculto de Wesport, cuja morte prematura fez com que aquele ficasse aos cuidados de um parente relativamente próspero, que o mandou para Oxford, onde travou contato como as disciplinas clássicas, como Lógica e Retórica que permitir-lhe-iam ingressar posteriormente como preceptor na casa dos Cavendish, pertencente à alta aristocracia inglesa, sob cuja proteção permaneceria até o fim da vida, ressalvados é claro os períodos de auto-exílio, motivados pela instabilidade política inglesa.

Não obstante a predileção de Hobbes pela atividade de preceptor dos Cavendish, que lhe dava não só acesso a respeitável biblioteca da família, como também tempo e tranqüilidade para a realização de seus estudos, que iam desde geometria euclidiana até história greco-romana (note-se que é dele a primeira tradução para o inglês da “História da Guerra do Peloponeso” , de Tucitídes, publicada em 1629), o fato é que sua primeira obra política de vulto iria surgir apenas à época de seu exílio em Paris, com a publicação do “De Cive” (Do Cidadão), onde encontrar-se-iam presentes as principais idéias mais tarde desenvolvidas de maneira mais aprofundada no Leviatã, publicado dez anos mais tarde, em 1651, quando já retornara definitivamente à Inglaterra, então sob o governo republicano do lord protetor Oliver Crowell. 2.2. A Inglaterra de Hobbes

Com a morte de Isabel I, encerrava-se a dinastia Tudor na Inglaterra, sendo então coroado rei Jaime Stuart, soberano da Escócia e parente em linha colateral de Isabel, fato que teria como conseqüência a elevação de uma família fervorosamente católica ao trono de um país onde a Igreja anglicana e demais seitas reformadas representavam já a fé da maior parte de seus habitantes.

Sendo os Stuarts oriundos de um país onde as prerrogativas reais eram exercidas sem encontrar forte resistência (Escócia), àqueles era bastante incômoda a presença de um Parlamento com ambições políticas cada vez mais pronunciadas, como ocorria na Inglaterra, fato que resultaria na colocação da coroa e do Parlamento em campos opostos, não só ponto de vista ideológico como também da luta armada, instaurada que seria uma guerra civil entre partidários do rei e do Parlamento (com a posterior vitória dos segundos).

De qualquer modo, tal quadro resultou para a monarquia inglesa durante o século XVII,

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em uma dupla crise de legitimidade, relacionada com os aspectos religioso e político.Crise de legitimação religiosa da monarquia porque, se por um lado, a ruptura da coroa

inglesa com o papado, promovida por Henrique VIII no século anterior, dera àquela a capacidade de que o rei se intitulasse líder supremo da Igreja, o sistemático desmonte da estrutura clerical que lhe sobreveio, facilitou a penetração gradual de elementos de origem protestante, que, ao considerar a Igreja como um corpo de eleitos, dava a estes últimos a capacidade de interpretação das Escrituras e prejudicava, por conseqüência, a consolidação, nas mãos do rei, de um poder dogmático religioso em moldes semelhantes ao que fora exercido até então pela Igreja Católica.

Paralelamente, a gradual consolidação política do Parlamento inglês, ou mais especificamente, da Câmara dos Comuns, impulsionada pelo crescente poder da própria burguesia, permitia que aquela se arrogasse em única representante legítima dos ingleses, pondo em cheque a legitimidade da realeza para continuar dirigindo os destinos da nação.

Neste contexto, não existia ainda uma teoria de fundamentação da centralização do poder soberano que pudesse fazer frente simultaneamente à dupla usurpação de autoridade, religiosa e política, da realeza, promovida respectivamente pelas Igrejas reformadas e pela Câmara dos Comuns, sendo portanto urgente a criação de um novo sistema de idéias que justificasse a necessidade de um poder centralizado nas mãos do soberano, não mais calcado na visão tradicional do rei como personificação do poder porque assim determinara a providência divina.

Tal tarefa foi encampada por Hobbes, e para levá-la a bom termo, utilizou-se este de um sistema teórico extremamente prestigiado em sua época, que era a teoria do direito natural. Mas para tanto, teve Hobbes que esvaziar tal doutrina da forte carga contestadora que possuía ante a hipótese da onipotência do poder, haja visto que, ao fundamentar a existência do poder político no consentimento dos indivíduos, afastava o contratualismo tradicional a hipótese daquele ser exercido de maneira legítima, contra os interesses dos cidadãos.

2. 3. Estado e LegitimidadeConsiderada como inflexível defensora do absolutismo monárquico, por meio da

atribuição ao Estado de uma soberania que, no plano político interno não pode conhecer limites de qualquer natureza, destaca-se o Leviatã, das demais obras surgidas no mesmo período que defendiam a supremacia absoluta do poder do rei, por considerar este não como legítimo representante de Deus na terra, mas, basicamente, por uma característica bastante peculiar, que é a legitimação política desse mesmo soberano em bases puramente racionais, cuja irrestrita supremacia Hobbes defende, afastando-se da doutrina da legitimação divina dos reis, tão querida às monarquias de então.

A afirmação anterior, não obstante sua aparente simplicidade, merece contudo ligeira digressão a respeito das formas clássicas de legitimação política conhecidas pelo pensamento europeu desde seus primórdios, a possibilitar não só uma compressão mais sólida da visão hobbesiana do Estado, como também de parte dos motivos que asseguraram sua perenidade no âmbito do debate político ocidental.

Da análise das formas de legitimação do poder político conhecidas pelo homem desde a antigüidade, não obstante as inúmeras variações existentes ao longo das diferentes épocas, e dentro das mais variadas culturas, possível é a esquematização de tais espécies em categorias relativamente bem determinadas, representativas, em última análise, de diferentes estágios da própria história humana. Nesta linha, podem ser as diferentes teorias acerca da legitimação do poder surgidas ao longo da história reunidas em três grandes grupos, representativos da fundamentação teológica, voluntarista ou histórica do poder

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2.3.1. Legitimação TeológicaConsiderada como a mais antiga forma de legitimação política, implica a fundamentação

teológica do poder político, em se reconhecer este como manifestação do poder da própria divindade sobre o plano físico, completamente subordinado as vontades daquela, sendo portanto, a organização política de uma sociedade, como nada mais do que uma continuação da organização de todo o cosmos, promovido por um ente de natureza supra-humana. Nesta visão de mundo, os crimes perpetrados contra o poder, mais do que uma afronta à integridade da coletividade humana, são vistas como afrontas à própria divindade, pois que aquela (a coletividade) não tem uma existência que se justifica por si só, mas existe basicamente para garantir as devidas homenagens a seus deuses.

Todavia, se a visão aqui exposta de maneira extremamente genérica, permite-nos observar, dentro de uma perspectiva histórica, um fio condutor existente na legitimação do poder desde Mênfis até Versailles, cumpre ressaltar contudo, a alteração introduzida no período medievo, por meio da consolidação do cristianismo, pois se enquanto na antigüidade, ressalvada a civilização clássica, o monarca era visto como uma encarnação do próprio deus (como no caso dos faraós ou imperadores persas), com o advento do cristianismo, o soberano passa a ser visto apenas como um representante de Deus na terra, pois que, dentro da visão cristã, a única encarnação humana da divindade estaria na pessoa do Salvador.

2.3.2. Legitimação HistóricaQuanto a perspectiva histórica da fundamentação do poder, buscava a legitimação deste

último, considerando-o como fruto de uma evolução histórica gradual, tendente a garantir a harmonia social de maneira mais eficaz. Em outros termos, tal teoria, que considerava como insuficientes as abordagens religiosa ou contratualista, esta última por um excesso de racionalidade e autoconsciência inexistentes no plano fático, que a tornava tão metafísica quanto havia sido a visão teológica do poder, considerava o Estado com resultante de uma conjunção de interesses sociais, econômicos e culturais, que impunham um estudo específico do Estado dentro de cada cultura, para saber qual sua verdadeira natureza e quais as demandas para cuja satisfação havia sido criado.

Criada no século XIX, quando a idéia do livre arbítrio humano era cada vez mais problematizada, em função de uma contraposição daquele a fatores econômicos e sociológicos, cuja importância crescia por influência da doutrina marxista, não obstante estar a fundamentação histórica do poder cronologicamente situada em momento posterior ao contratualismo, optou-se por deixar este corrente por último, por ser a tradição intelectual em que se insere a própria obra de Hobbes, não se aprofundando aqui o estudo da visão histórica de legitimação para não se fugir do objetivo do presente trabalho.

2.3.3. Legitimação VoluntaristaEncontra-se a fundamentação voluntarista do poder intrinsecamente ligada à noção do

contrato, razão pela qual tal teoria é também denominada de contratualista. Segundo tal visão, a origem do poder encontra-se não na manifestação de uma entidade metafísica, mas é resultante do acordo de vontades de homens que, cansados de viver em estado de natureza, prenhe de incertezas e adversidades, decidem juntar esforços na constituição de um poder capaz de garantir condições mínimas de sobrevivência para toda a coletividade, concordando esta, em contrapartida, em se submeter em maior ou menor grau segundo o autor considerado, ao ditames

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desta mesma instância superior. Pode o contratualismo ser encontrado já na antigüidade clássica, como por exemplo em

Platão, que em sua obra República, põe sete interlocutores a discutir as diferentes versões sobre a origem da pólis, estando estas divididas em opiniões tradicionais, de fundo mitológico; sofista, de cunho realista, em que o poder não é nada mais que manifestação do domínio do mais forte sobre o mais fraco; organicista (atribuída por Platão a Socrátes), em que a sociedade, e por conseqüência a estruturação de um poder político é um fato natural, resultado de um instinto social inato da humanidade; e contratualista, em que os homens, sofrendo as injustiças típicas de um estado de natureza, decidem instaurar a paz por meio de leis humanas, resultantes de pactos firmados pelos indivíduos.

Não obstante, na obra citada, partilhar Platão da opinião organicista (cujo maior prestígio objetiva atribuindo-a também a Sócrates), e que seria dominante por toda a Idade Média, por influência da obra aristotélica, é possível perceber pela rápida descrição da argumentação do filosófo grego, uma clara percepção da teoria voluntarista de legitimação do poder, naquele apresentada por meio de uma oposição entre nomos (leis instituídas por convenções humanas), e physis ( preceitos ditados pela natureza)32. Todavia, uma elaboração mais sofisticada de tal visão, iria ocorrer apenas com o avento do período moderno, a partir do séculos XVI, tendo em Althusius, Hobbes, Spinosa, Locke, Rousseau e Kant , alguns de seus principais teorizadores.

Claro que tal fundamentação voluntarista do poder, ao contrário do que poderia sugerir diante de uma leitura mais apressada, não implica necessariamente numa proposta de explicação histórica da origem da sociedade e do Estado, mas, em regra, refere-se a uma mera hipótese racional, isto é, uma proposta de visão do Estado como ele deve ser, e não como ele realmente é, fato que resulta portanto numa análise jurídico-racional do poder soberano, em que as obrigações políticas prescindem de uma fundamentação de cunho antropológico do poder estatal (contudo, se tal perspectiva de análise sempre foi a mais aceita por seus principais pensadores, como pelo próprio Hobbes, conforme se verá mais adiante, a abordagem antropológica não foi de todo desconhecida do contratualismo, tendo como exemplo mais expressivo a “Ciência Nova” de Vico, em que a preocupação de dotar o momento de instituição do Estado da maior historicidade possível aos olhos de seus contemporâneos, faz como que aquele chegue a inserir o fim do estado de natureza dentro da cronologia bíblica, supostamente ocorrido após o dilúvio universal33).

Dentro de uma evolução histórica, o motivo do estudo da fundamentação contratualista ter atingido um grau de profundidade maior apenas ao final da Idade Média, haja vista que sua percepção, conforme já demonstrado, já remontava a própria antigüidade clássica, deve-se basicamente ao fato de que, pelo caráter eminentemente lógico e racionalista da análise que o contratualismo faz do poder, resultar, por via de conseqüência, em forte resistência por parte dos segmentos dominantes, em contextos em que a legitimação do sistema político repousa sobre preceitos de ordem religiosa, marca característica aliás de toda a Europa durante o período medievo, caracterizada por um modelo de organização política complemente embasado em uma tradição religiosa milenar. Tal tradição religiosa, dominante até por volta do século XVI, foi, historicamente falando, posta em cheque no plano intelectual, por um racionalismo emergente, que analisava todos os fatos concretos dentro de uma perspectiva puramente humana, lançando mão apenas da razão e da experiência para o estudo do universo sensível (e cuja ressonância mais imediata, no campo da política, é a própria doutrina contratualista). Esta nova forma de

32 sobre a evolução histórica do contratualismo, vide BOBBIO, Norberto et alli. Dicionário de Política. 2ª ed. Brasília. Ed. UnB. 1986. p. 275-276. 33 BOBBIO, Norberto. Teoria das Formas de Governo. 4. ed. Brasília: Ed. UnB. 1985. p. 83-85.

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pensamento, não obstante ser umas das marcas mais características do mundo moderno, não conquistou de pronto uma posição de hegemonia na tradição intelectual européia, permanecendo durante todo o período que assinalou sua lenta consolidação (ocorrida entre os séculos XVI e XVIII) em estado de permanente tensão como os valores tradicionais herdados do período medieval, que não obstante estarem em franco declínio, tinham ainda força suficiente para mandar para a fogueira as vozes que fossem consideradas excessivamente ousadas. Na verdade, tal clima de conflituosidade entre valores tradicionais versus tendências racionalistas, foi a moldura onde se inseriram os mais importantes movimentos que animaram a cultura européia, como Renascença, Contra-reforma ou Iluminismo, atingindo seu clímax no âmbito do espírito europeu em fase denominada de período barroco, que mais do que simples tendência artística, foi na verdade um dos momentos mais perturbadores da consciência européia, em que uma verdadeira guerra de idéias impedia que os espíritos da época encarassem qualquer crença como absolutamente infalível, contraposta que estaria a todo momento, a um argumento contrário que possibilitasse sua refutação. É foi essa época, de generalizado conflito, não só intelectual, como também político, que foi a época de Hobbes, que, amante da estabilidade, teria como maior preocupação justamente propor uma situação de equilíbrio, por meio de sua obra, para o conturbado cenário político de sua época, devendo aquela portanto, sob pena de uma compreensão defeituosa, ser analisada em conjunto com o momento histórico de profunda instabilidade em que esta foi criada.

2.4. Hobbes contratualistaConforme já afirmado anteriormente, foi Hobbes uma dos maiores expoentes da corrente

contratualista, a fundamentar a legitimidade do Estado em um contrato firmado por todos os homens que decidem abandonar um suposto estado de selvageria, normalmente denominado de estado de natureza, e fundar um novo modelo de sociedade, regida por leis que garantam a convivência harmônica entre todos.

Ora, não obstante ser a conceituação de Estado presente no Leviatã um dos objetivos da presente obra, tal compreensão só poderá portanto ser obtida na medida, que for corretamente entendido o sentido que o autor dá ao próprio conceito de contrato, identificando exatamente o que ele encerra e o que cria para os homens. Ora, quanto a esse aspecto (das causas e conseqüências do contrato), Hobbes o analisa por. meio da divisão do problema em várias etapas que se sucedem de maneira lógica e inflexível (lembre-se da proposta cartesiana para superação de problemas, por meio de sua divisão em proposições menores, a serem analisadas separadamente e segundo uma ordem crescente de dificuldade), indo por etapas de um egoísta e belicoso selvagem (o homem natural), até um todo poderoso Leviatã (o homem artificial).

Sobre a sociedade civil organizada tal como a conhecemos, isto é, uma sociedade regida por leis positivas, em contraposição ao estado de natureza, considera Hobbes ter sido aquela criada por um acordo de vontades manifestado por indivíduos que concordaram em viver sob a égide de uma instância superior, que, a partir da celebração daquele pacto, teria então o poder de regulamentar toda a vida da coletividade, com o intuito de garantir um mínimo de harmonia nas relações existentes entre os homens. Por meio deste pacto, renunciaram os homens à liberdade absoluta que desfrutavam no estado de natureza, mas, em compensação, se livraram também da absoluta insegurança que existia nas relações humanas, resultante da mesma já mencionada liberdade. Isso porque, para Hobbes, o estado de natureza era aquele em que o homem poderia dar inteira vazão ao seus impulsos, pois que só encontraria como barreira, os impulsos dos outros homens que se dispusessem a combatê-lo, ensejando tal quadro, para sua maior

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compreensão, uma exposição mais detalhada da natureza humana, tal como esta é entendida dentro do Leviatã.

2.4.1. Da natureza humanaConforme se percebe pela leitura da introdução do Leviatã, Hobbes, ao descrever a

estrutura de seu modelo de Estado, o faz por meio da comparação com o próprio ser humano, considerando que, enquanto o Estado é obra de arte, ou máquina segundo expressão do próprio autor, criada pelas mãos humanas, é o próprio ser humano uma espécie de mecanismo, só que da natureza: “pois o que é o coração senão uma mola, e os nervos, senão outras tantas cordas, e as juntas, senão outras tantas rodas, imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado pelo Artífice?34 Tal descrição, mais do que mera metáfora gratuita visando ao embelezamento do texto, coisa que o próprio Hobbes desprezava, conforme se observa pela leitura do capítulo IV do Leviatã35, em que aquele declara prezar acima de tudo um estilo de linguagem claro e objetivo, revela na verdade uma percepção dinâmica da natureza humana, em que esta é entendida como espécie de autômato, demonstrando na verdade uma clara influência das idéias mecanicistas, tão em voga na época do autor inglês. Segundo tal visão mecanicista, era o homem, assim como o restante dos animais, entendidos como espécies de máquinas, formados pela união de várias peças menores. Tal entendimento, era fruto em grande parte dos progressos ocorridos na época no campo da autonomia, que ao atentar para a complexa estrutura interna dos seres, tentava explicá-la por meio de sua comparação com as estruturas mecânicas então conhecidas.

Dentro de tal perspectiva mecânica da natureza, dois são os tipos de movimentos percebidos por Hobbes, que fazem a máquina humana se mover, denominados de vital e animal. Enquanto ao primeiro tipo pertencem aqueles cuja realização independe do pensamento, sendo portanto movimentos involuntários, como a respiração, circulação sangüínea ou digestão, ao segundo tipo pertencem os movimentos cuja realização depende de uma manifestação de vontade, como falar, andar ou se mover. Tal manifestação de vontade, por sua vez, é ocasionada, segundo Hobbes, pelas sensações, que por sua vez podem ser reduzidas a duas espécies apenas, que são apetite e aversão, assim entendidos todos os esforços de aproximação ou afastamento daquilo que proporcione respectivamente prazer ou dor ao ser humano.

Ora, reconhecer, como faz o próprio Hobbes, que todos os homens são iguais quanto às faculdades de corpo e espírito, significa também dizer que, sob um prisma puramente natural, todos os homens se equivalem em valor , haja visto seus recursos físicos e intelectuais (não obstante as variações existentes de indivíduo para indivíduo) colocarem todos estes em um mesmo nível de capacidade. Deste modo, forçoso é também reconhecer que, no caso de algo proporcionar prazer a dois ou mais homens simultaneamente, estes tenderão, usando de todos os recursos que estejam a sua disposição, tentar se apropriar deste mesmo objeto. O resultado de tal situação, é necessariamente um quadro de conflituosidade entre os indivíduos, que lutam pela posse de um número insuficiente de bens, lançando mão, para tanto, de todos os recursos físicos ou intelectuais disponíveis para satisfizer suas necessidades (observe-se que, pelo fato destas mesmas potencialidades serem mais ou menos iguais entre todos os homens, iguais também serão também as esperanças de cada homem em conseguir obter os bens ambicionados). Neste contexto, poder-se-ia dizer que o direito absoluto que cada homem tem no estado de natureza

34 HOBBES, Thomas. O Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. 1ª ed. São Paulo: Editora Imprensa Nacional Casa da Moeda. 1995. p. 23.35 op. cit. p. 44.

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sobre todas as coisas que se apresentarem ao seu alcance, é permanentemente obstaculizado pelos outros homens como os quais é obrigado a conviver.

Quanto à visão de Hobbes a respeito da natureza humana, tão pouco lisonjeira quanto a desenvolvida por Maquiavel, implicava em reconhecer a cupidez e a ambição como inatas ao próprio gênero humano, e, portanto, incapazes de serem suprimidas pura e simplesmente, ou reformadas por meio da educação. Deste modo, é o homem hobbesiano a personificação do individualismo elevada a sua máxima potência, levando uma existência cujo maior objetivo é a posse. Posse de bens e riquezas materiais que lhe assegurem uma existência faustosa, posse de estabilidade, que lhe assegure o efetivo gozo dos frutos de seus bens, posse de reputação, a garantir um tratamento contido e respeitoso por parte dos outros indivíduos com os quais aquele mesmo homem é obrigado a conviver.

É aliás o próprio Hobbes que afirma que, a raiz de todos os conflitos é causada, simultaneamente pela competição, pela desconfiança e pela glória36: pela competição em função do fato de que, sendo todos os homens iguais em capacidade, também serão iguais quanto à esperança de atingir seus fins, e, havendo um objeto que seja cobiçado por dois homens simultaneamente, estes haverão de ser fatalmente inimigos entre si. Tal inimizade, mesmo que não implique em uma violência imediata, gerará necessariamente um estado de desconfiança entre as partes, em que cada um julgará ser mais seguro se antecipar às investidas do inimigo (numa espécie de violência por antecipação causada pela natureza temerosa do homem). Mas se dentro deste quadro de ambição e covardia, ainda assim, e contra todas os prognósticos continuarem os homens em paz, haverá ainda a vaidade, terceira Éris a semear a discórdia entre os homens, a fazer que estes lutem pelo reconhecimento por parte dos demais, de sua superioridade, razão pela qual, afirma o próprio Hobbes que cada um pretende que o seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio.37

2.4.2. Estado de naturezaPor meio da descrição das principais inclinações da natureza humana, considera Hobbes

ter deixado suficientemente provado que, se aquelas forem deixadas num estado de total liberdade de ação, só poderão redundar numa situação de belicosidade generalizada, ou em outras palavras, de guerra, afirmando o próprio autor que:

Durante o tempo em que os homens vivem sem esse poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra, uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no acto de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. 38

Uma vez provado que tal estado de natureza é necessariamente um estado de guerra, passa Hobbes a descrever os efeitos de tal estado sobre a própria cultura humana, em passagem tida como das mais famosas de toda a obra:

36 op. cit. p. 112.37 op. cit. p. 110.38 op. cit. p. 111.

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Numa tal situação, não há lugar para a indústria, pois o seu fruto é incerto conseqüentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, selvagem e curta39.

Ora, num quadro assim, a violência, e por conseguinte, a insegurança e o medo daquela decorrentes, atingem níveis insuportáveis, que fazem como que o homem, dotado de razão40, reconheça que, malgrado a liberdade absoluta que possua no estado de natureza, já contabilizadas todas as vantagens dela decorrentes, seja ainda assim aquele uma situação desvantajosa para se viver, consideradas as desvantagens ela inerentes, e que consistem não só no medo e a insegurança decorrentes da real possibilidade de cada indivíduo vir a ser vítima de morte violenta, ou, pior ainda, segundo um ponto de vista burguês, ser despojado a qualquer instante, de todos os frutos de seu trabalho. Sim porque, para Hobbes, inexistindo uma instância superior que garanta o reconhecimento de direitos por toda a coletividade (como sói acontecer com o próprio estado de natureza), impossível é falar de direitos, tal como entendem os homens civilizados, no âmbito do estado de natureza. De fato, onde todos podem se arrogar o direito a tudo, ninguém pode ter realmente o direito a nada, pois que sujeito a dele ser despoja do a qualquer momento, por alguém que lhe seja superior em astúcia ou força. Neste ponto, de uma lógica realmente surpreendente, observa-se na verdade o fundamento para que, em momento posterior, promova Hobbes a mais completa absorção da esfera privada pela pública, caracterizando-se em um ponto de ruptura daquele com a maioria dos contratualistas de sua época. Pois se enquanto estes reconheciam ao homem do estado de natureza uma série de direitos que existiriam independentemente do Estado (sendo portanto naturais), para Hobbes, tais direitos surgiriam apenas com o Estado, haja visto que este só poderá garantir sua efetiva observância por todos os homens.

Mas como se não bastasse, afirma ainda Hobbes que dentro do estado de natureza, a própria moral não pode subsistir, isso porque, no estado de natureza hobbesiano, o homem, ao buscar saciar suas paixões, não leva em conta os interesses de terceiros, o que gera um desenfreada competição que não dá margem a tentativas de composição de interesses (não é possível portanto, construir espaços localizados de consenso num universo dominado pelo conflito) o que, em um fim último, impossibilita a criação de um código moral entre os homens. Isso porque, entendo-se por moral determinadas noções sobre o comportamento humano capazes de serem compreendidas de igual maneira por todos os homens, e sendo cada homem, no estado 39 op. cit. p. 111.40 Razão considerada por Hobbes como a mera capacidade de adicionar e subtrair, no sentido de se criar uma soma total ou resto, não só de números, como também de todas as coisas passíveis de cálculo. Ou segundo palavras do

próprio Hobbes: Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma por outra...(sic) Estas operações não são características apenas dos números, mas também de toda a espécie de coisas que podem ser somadas juntas ou tiradas umas das outras. (op. cit. p. 51)

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de natureza, movido apenas pela satisfação de seus próprios interesses, via de regra em choque como os interesse de outros homens, será considerado como bom ou mau apenas aquilo que causa dor ou prazer a cada indivíduo, e nada mais.

Deste modo, a organização dos homens em uma coletividade organizada, para Hobbes, não é fruto de alguma inclinação inata do homem para a vida em sociedade, conforme pensavam os europeus, cultores de uma tradição intelectual oriunda da antiga Grécia, a considerar o homem como naturalmente inclinado para a vida pacífica em sociedade. Ora, pelo que foi demostrado, se inclinação natural no homem hobbesiano existe, com certeza não é tendente à sociabilidade, mas à sua pura e simples auto-conservação, que, considerada isoladamente mantém o homem, antes de tudo, agrilhoado a um cenário de destruição e morte. Será preciso que suas paixões e apetites conjuguem-se como sua razão, entendida pura e simplesmente em atribuir valores a fatos possíveis de serem mensurados e comparados para que se construa um espaço civilizado.

Cumpre contudo ressaltar a inafastabilidade da conjugação de razão e paixão para se sair do estado de natureza, pois a própria razão, quando considerada isoladamente, é incapaz de instaurar, ou ao menos garantir, um estado de paz entre os homens (lembre-se de uma guerra civil, por Hobbes considerada como equivalente ao estado de natureza, em que os homens, mesmo sendo possuidores de todas as suas faculdades, pilham e matam como se jamais tivessem conhecido outro estado que não o de barbárie). Deste modo, será preciso, como já lembrado anteriormente, a união das paixões, a desejar não só a satisfação das ambições, mas num ambiente de paz que garanta a certeza de sua própria fruição, como a razão, a avaliar a inferioridade de uma situação de guerra quando comparada com um estado de paz, onde os homens renunciem a tentar satisfazer plenamente todas as suas vontades.

Todavia, a razão, além de possibilitar comparação entre duas situações, indica também quais os meios de se obter determinados resultados, ou, no caso em tela, mostra a razão quais os meios necessários para a instauração da paz entre os homens, entendendo Hobbes serem tais preceitos racionais como as únicas leis naturais realmente existentes, afirmando o próprio autor inglês que :

Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão , mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir a sua vida ou privá-lo dos meios necessários para a preservar, ou omitir aquilo que pense melhor contribuir par a preservar.41

Destas leis, considera Hobbes como sendo a lei natural por excelência (lei natural fundamental), aquela que afirma que: Que todo homem se deve esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de a conseguir, e caso não a consiga pode procurar usar todas as ajudas e vantagens da guerra42

Todavia, lembra o autor que, a rigor, a lei natural (auferida pela razão) encontra-se apenas no primeiro enunciado (que todo o homem deve se esforçar para alcançar a paz), que caso não possa ser realizado, dará lugar ao completo domínio das paixões, expresso no segundo enunciado (procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra)43.

Não obstante chegar Hobbes em momento posterior de sua obra, a elencar todas as 19 leis da natureza existentes (que os homens consintam em renunciar aos seus direitos sempre e na

41 op. cit. p. 115.42 op. cit. p. 116.43 op. cit. p. 116.

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mesma a medida em que os demais também o fizerem, que os homens cumpram os pactos que celebrarem, que cada um se esforce por se acomodar como os outros, etc 44), todas elas destinadas a implantar da maneira mais eficaz possível a sua lei natural fundamental, não deixa de ser curioso, embora rigorosamente lógico, que para este, se alguma lei natural existe, é aquela que manda os homens saírem o mais depressa possível do estado de natureza.

Realmente, conforme já observado anteriormente, ao descrever o estado de natureza, deixa Hobbes bem explícito entendê-lo como um estado de total anarquia, despido de leis não só em um sentido positivo, como também de qualquer padrão moral hábil a julgar as condutas humanas de maneira objetiva. Neste quadro, ao qual Hobbes recusou-se a reconhecer inclusive a existência de qualquer direito, seria no mínimo um contra-senso começar a se falar de leis naturais, entendidas como comandos que regulassem a conduta humana de maneira obrigatória dentro do estado de natureza, haja vista a completa inexistência de qualquer espécie de órgão que pudesse garantir coercitivamente sua observância, no caso de não ser cumprida espontaneamente por todos os homens, razão pela qual , para Hobbes, as próprias leis naturais, enquanto ainda não instituído um poder soberano, nada mais são do que leis de foro interno (dirigidas à consciência), que apenas impõem o desejo de serem cumpridas, embora a isso não obriguem. É alias o que afirma Hobbes da seguinte maneira: Porque as leis da natureza (como a justiça, a equidade, a

modéstia, a piedade, ou em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de as levar a ser respeitadas, são contrárias às nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar segurança a ninguém.45

Deste modo, para Hobbes, é o estado de natureza a situação onde inexiste qualquer espécie de regimento imposto por leis naturais, que segundo aquele, afirmam, ou melhor recomendam, que tal situação deve ser abandonada em prol de um estado de paz (ainda assim de maneira puramente recomendaria, equiparando-se portanto mais a uma sugestão do que uma norma em sentido positivo, única que, na visão hobbesiana, merece ser denominada de lei).

2.4.3. O pactoMas, conforme já referido anteriormente, estando os homens cansados com esse estado

generalizado de barbárie, por reconhecerem que ele é, em última análise, mais prejudicial que benéfico à satisfação de suas paixões, decidem, por meio da renúncia de parte de sua liberdade, consentir na construção de uma instituição cujo poder seja capaz de proteger cada indivíduo das ambições de seus pares, como também, proteger todos estes de ataques externos de outras nações.

Quanto à cessão de tal poder ao Estado por parte dos indivíduos, poderíamos dizer que se processa por meio de uma procuração , onde cada indivíduo, consente não só em transferir parte de sua antiga e desmesurada liberdade ao Estado, como também se compromete em considerar as futuras atitudes deste poder como se suas fossem, pois, tendo o Estado, como objetivo maior, garantir a estabilidade a qualquer custo, e por conseqüência, preservar a integridade dos cidadãos, compartilha aquele portanto com o mesmo objetivo da maioria dos seres humanos, que a busca

44 op. cit. p. 125-133.45 op. cit. p. 144.

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da auto-preservação destes últimos por meio da conservação de uma situação de paz social.É o que se infere aliás das palavras do próprio Hobbes, quando este, ao comentar o modo

de constituição de um Estado, afirma ser necessário:(sic)...designar um homem ou assembléia de homens como representante de sua pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa a sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e a segurança comuns46.

Mas uma vez passada tal procuração, que Hobbes considerava irrevogável e por tempo indeterminado, sob pena de voltar ao estado de natureza no caso de uma hipotética resolução do contrato47, quais os verdadeiros contornos da estrutura daí advinda?

2.4.4. O Estado-LeviatãDada a já referida insociabilidade natural do homem, o pacto por ele firmado com seus

pares, tem natureza essencialmente artificial, no sentido de ser o fruto de uma conjugação de esforços tendentes à criação de algo que jamais se formaria caso ficasse apenas na dependência dos instintos humanos. Tal visão de Estado, enquanto ser artificial por excelência, verdadeira máquina formada pela concatenação de peças menores que são os indivíduos, encontra-se exposta já na introdução da obra ora em análise, onde afirma Hobbes em famosa passagem que:

Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã que se chama o Estado , ou Cidade (em latim, Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado e no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo inteiro, os magistrados e outros funcionários judiciários ou executivos, juntas artificiais recompensa ou castigo (pelos quais, ligados ao trono da soberania, todos as juntas são levadas a cumprir o seu dever)48

Sobre tal conceituação , pode aqui ser repetida, mutatis mutandis, a mesma consideração feita quando exposta a abordagem promovida por Hobbes a respeito do homem (um autômato cujo movimento contínuo é ocasionado pelas suas paixões), ambas ressonâncias de uma visão de mundo mecanicista, já comentada anteriormente, a considerar , desde o mais ínfimo dos insetos até o próprio universo, como o resultado da concatenação de diferentes peças em um sistema mais complexo e em constante movimento, bastante assemelhado a uma máquina.

46 op. cit. p. 146.47 É interessante observar que, ao tratar da irrevogabilidade do pacto social, Hobbes o faz por meio de uma refutação da teoria aristotélica do zoom politikom (animal político). Segundo o pensador inglês, os instintos naturais do homem são extremamente antisocietários, na medida em que a inveja e a rivalidade fazem como que o homem tente se sobressair incessantemente do resto da coletividade, de maneira diferente portanto das abelhas ou formigas (por Aristóteles também considerados como animais políticos), em que a satisfação dos apetites individuais coincidem de maneira perfeita com a satisfação dos interesses de toda a comunidade. Destarte, além do fato do homem só obter satisfação pela comparação como outros homens, é importante que a razão, privativa do homem, possibilitar a formulação de juízo críticos a respeito das instituições, primeiro passo para uma guerra civil.48 op. cit. p. 23.

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Mas, uma vez formada essa grande máquina artificial que é o Estado, posta em constante movimento pela força combinada de uma infinidade de peças menores, que são os próprios indivíduos, começará o mesmo a agir visando à realização da paz social. Nesta busca do Leviatã pela paz entre os indivíduos, poucos serão, para Hobbes, os direitos naturais que possam servir de óbice para aquele. Ou melhor, segundo uma visão tradicional do contratualismo, existiam certos direitos naturais fundamentais, como direito à vida, à liberdade e à propriedade, cuja vigência apenas se prolongava no estado civil, e que flexionavam a criação do próprio Estado, na medida em que este só seria implantado para garantir uma maior eficácia daqueles. Ora, sendo o Estado o garantidor por excelência dos direitos naturais, toda vez que este promover um ato que fira alguns destes direitos, estará o fazendo de maneira completamente ilegítima, e, por conseqüência, passível de sofrer uma justa resistência por parte de seus súditos.

Já para Hobbes, ao contrário, não pode o Estado, no exercício de seu poder, encontrar limites de qualquer espécie, manifestando-se a superioridade de seu poder sobre todos os membros do corpo social, em um conjunto de enunciados presentes no capítulo XVIII, que dizem respeito não só a atributos clássicos do poder soberano, como por exemplo o monopólio do Estado de resolver as controvérsias entre os súditos, de declarar a guerra e negociar a paz etc, mas se referem também a outras exigências estatais, que, da maneira clara como estão expostas, garantiram à Hobbes a fama de inflexível defensor dos sistemas absolutos, como por exemplo a incapacidade dos súditos de mudar a forma de governo, independentemente das ações deste, que jamais poderão ser consideradas pelos súditos como injustas, tendo em vista que é o próprio soberano a medida do bem e do mal.

Alterando como lógica férrea a idéia de que a doutrina jusnaturalista fazia do contrato social, segundo a qual esta era celebrado entre o soberano e seus súditos, considerava Hobbes ser impossível a celebração de um contrato com alguém que ainda não existia (no caso o Estado, cujo nascimento se dá justamente com a celebração do pacto de sociedade). Nesta linha de pensamento, aquele só poderia ser celebrado entre cada homem com cada homem. A conseqüência desta nova leitura é que, sendo firmado o contrato apenas pelos homens entre si, por meio do qual, todos concordam em renunciar ao direito absoluto sobre todas as coisas que existem no estado de natureza, e não entre os súditos e o soberano, são apenas os súditos que ficam comprometidos, e não o soberano. Deste modo, jamais poderão os súditos cobrar satisfações do Estado, sob cujo poder absoluto concordaram em viver, a respeito do descumprimento de leis naturais (que em Hobbes são esvaziadas quase que complemente, se considerado o conteúdo que o jusnaturalismo tradicional atribuía àquelas).

Mas diante de tal criatura onipotente que é o Estado hobbesiano, diante do qual as próprias leis são incapazes de limitar sua atuação, já que, não podendo estar ninguém limitado por si mesmo, também não pode o soberano estar limitado pelas leis que ele mesmo estabeleceu, não poderá haver segurança alguma dos cidadãos sobre os seus direitos de maneira geral?

Para Hobbes, sendo o estado de natureza um estado de miséria por excelência, por mais prejudicial que possa parecer o exercício do poder soberano (opinião aliás questionável, haja visto os juízo humanos estarem sempre acorrentados a egoístas paixões), este será sempre superior àquele estado de guerra onde a insegurança em relação aos direitos será absoluta. Deste modo, afirma o autor inglês que, mesmo na hipótese do poder do Estado ser exercido em proveito dos ocupantes daquele, que enquanto seres humanos também são dotados de ambições e apetites particulares, tal fato será ainda preferível a qualquer espécie de revolta civil que tente suprimi-lo, em função de que o estado de natureza com aquela instalado será muito mais deletério aos indivíduos. Ou nas palavras do próprio Hobbes:

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“...a condição do homem nunca pode deixar de ter uma ou outra incomodidade, e que maior que é possível cair sobre o povo em geral, em qualquer forma de governo, é de pouca monta quando comparada como as misérias e horríveis calamidades que acompanham a guerra civil.49

De qualquer maneira, fraco consolo é o oferecido por Hobbes àqueles obrigados a viver sob o jugo de um poder tirânico, orientados que são a pensar que, apesar de tudo, o estado de natureza instaurado com a desobediência civil seria sempre pior que o mais terrível dos despostismos, lembrando a clássica visão medieval segundo a qual, pior que se revoltar contra seu soberano, é arder no inferno pelo fato de ter se revoltado contra um poder, que, por mais violento que posa parecer, nada mais faz que exteriorizar os objetivos da própria providência divina com relação à humanidade decaída.

Mas enganar-se-ia que pensasse que tal obediência ao Estado-Leviatã é de natureza completamente ilimitada, pois, chegado o momento em que aquele não consiga mais garantir a principal finalidade para o qual foi criado, qual seja, garantir a paz entre os indivíduos, e, por conseqüência, a própria integridade destes, quebrado estará o vínculo de obediência entre o soberano e súdito, estando este liberado para exercer seu direito absoluto sobre todas as coisas, típico do estado de natureza que o Leviatã deixou que ressurgisse, numa visão absolutamente lógica para um Hobbes que colocava a raiz do Estado no direito absoluto de cada indivíduo de proteger a si mesmo das violências do estado de natureza50.

2.5. Hobbes positivista?Mas diante da absoluta ineficiência prática de qualquer enunciado de ordem puramente

natural, que, conforme demonstrado anteriormente, só são revestidos de real eficácia com a instauração do poder político, a tornar obrigatória a sua observância por todos os indivíduos, poder-se-ia perguntar até que ponto, Hobbes, até agora apresentado como jusnaturalista, não seria na verdade um dos precursores do positivismo jurídico, aqui entendido como a visão que considera como Direito (como lei, segundo diria Hobbes), válido e eficaz, apenas ao conjunto de normas emanadas do Estado, que, por meio de sua coercitividade, garantiria a observância de todas aquelas.

É o que pensa aliás Jean-Jacques Chevallier, que ao comentar a existência de um Hobbes positivista afirma o seguinte:

Sem dúvida, e do mais radical. O Direito para, para Hobbes, não tem nem pode ter senão uma fonte: o Estado, isto é , o Poder, isto é, a ordem, a expressão da Vontade. Direito natural, direito racional, reflexos da Razão, não são, aos olhos de Hobbes, Direito.51

Mas ao enfrentar tal questão , atenta Bobbio inicialmente para a excessiva generalidade de

49 op. cit. p. 155-156.50 A esse respeito afirma Hobbes que: a obrigação dos súbditos para com o Soberano dura enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele e capaz de os proteger. Porque o direito que por natureza os homens tem de se defenderem a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum”(op. cit. p. 182) 51 CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias. 6ª ed. São Paulo: Ed. Agir. 1993.p. 75.

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um conceito como jusnaturalismo, a abranger não só vários séculos de evolução intelectual, como também uma miríade de diferentes autores. Nesse contexto, afirma Bobbio ser possível perceber a existência de três correntes jusnaturalistas, considerando pertencer a um jusnaturalismo latu sensu todo sistema que compartilhar de duas premissas básicas: 1) além do direito positivo, existe também um direito natural. 2) tal direito natural é superior ao direito positivo.

Todavia, é na maneira como se exterioriza a referida superioridade, que, segundo Bobbio, é possível distinguir três correntes distintas no âmbito do jusnaturalismo, ou segundo palavras do próprio autor:

Portanto necessário, para se evitar confusões e desentendimentos, distinguir três espécies de sistemas jusnaturalistas, mediante a formulação de três teses gerais; 1) o direito natural e o positivo mantém entre si uma relação de princípio e conclusão, de máximas gerais e aplicações gerais concretas); 2. o direito natural determina o conteúdo das normas jurídicas; tornando-as obrigatórias, o direito positivo garante a eficácia dessas normas; 3. o direito natural constitui o fundamento da validade do ordenamento jurídico positivo , considerado no seu conjunto.52”

Para Bobbio, alinha-se o jusnaturalismo de Hobbes com a terceira corrente na medida em que as leis naturais, mais do que objeto de mera transposição para uma dimensão positivada, são na verdade o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico.

Não obstante a aparente semelhança entre os três enunciados anteriormente descritos, o fato é que, enquanto a segunda corrente demonstra um visão de direito natural entendido como norma de caráter substancial, de eficácia apenas reforçada com a instituição do pacto social, a terceira, ao seu turno, promove a legitimação de um complexo de normas jurídicas não por considerá-las como meras transposições positivadas de leis naturais, mas remete a fundamentação do sistema positivo inteiro a um contrato social, que legitima de maneira genérica todo o referido sistema, cujas disposições independentemente das verdadeiras causas histórico-sociais que deram origem a cada uma das normas que a compõem, consideradas isoladamente, tem a obrigatoriedade de sua observância genericamente fundamentada no contrato instituidor do poder político.

De fato, conforme já referido anteriormente Hobbes considerava a hipótese do estado de natureza como uma situação de absoluta anarquia, onde a conduta humana, movida apenas pelas suas paixões, impedia a criação de consenso entre os homens sobre determinadas relações, que, por conseqüência, não podiam ser expressadas sob a forma de comandos gerais e abstratos, haja vista que, se porventura implementadas, poderiam ser quebradas sempre que contrários ao interesse de qualquer pessoa. Em tal contexto, onde Hobbes chega a negar a possibilidade não só da propriedade privada (existindo apenas a posse, regida pela “lei” do mais forte), como da própria moral, onde um egoísmo sem limites impede qualquer consideração para com os interesses do próximo, impossível é portanto falar de leis naturais, a regular condutas de maneira objetiva e eficaz, mas, quando muito, de conselhos, dirigidos ao foro íntimo de cada um e obedecidos apenas pelo homem que considerar vantajoso assim proceder.

52 BOBBIO, Norberto. Ensaios escolhidos. Rio de Janeiro: C.H. Cardim. p. 7.

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Ora, não obstante ser a visão de Hobbes a respeito da lei, um entendimento essencialmente positivista (na medida que como lei só será reconhecida caso seja criada e imposta pelo Estado), o fato dele ter deixado a validade das normas positivas se remeterem a um direito natural, é por si só suficiente para considerar o autor inglês como jusnaturalista, haja visto que reconhece expressamente a existência de normas naturais que transcendem ao complexo normativo positivado, e com este não se confundem (independentemente da eficácia ou do conteúdo atribuídos a estas leis naturais).

De fato, como foi observado anteriormente, a doutrina do direito natural, por sua base fundamentalmente voluntarista, colocava sérias limitações ao exercício do poder político, visto ter sido tal poder implementado com a anuência dos indivíduos, para justamente garantir direitos destes preexistentes à sociedade civil (embora a descrição de quantos e quais eram os direitos naturais variasse de autor para autor). Ora, mesmo que Hobbes, ao contrário, construa, a partir deste mesmo estado de natureza, o elemento legitimador de um aparelho onipotente, que em nome da manutenção da tranqüilidade social, monopoliza o poder de criação de normas jurídicas, tal fato não é por si só suficiente para afastar a inegável legitimação destas últimas promovida por Hobbes com base no contrato, por meio do qual, todas as pessoas, devem considerar sua obediência civil como originária de um pacto firmado voluntariamente entre todos os membros da sociedade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAISConforme tentou-se demonstrar até aqui, promoveu Hobbes a legitimação do poder

absoluto por meio de uma doutrina tradicionalmente usada para oferecer limites ao exercício do poder, qual seja, o jusnaturalismo. Com isso, realizou a fundamentação do poder real sobre bases totalmente laicas ,dentro de uma perspectiva racionalista como nenhum pensador havia até então ousado realizar.

Tal atitude, que resultou para Hobbes em não poucas acusações de ateísmo, era uma tentativa de oferecer uma resposta para uma Europa ainda imersa em conflitos religiosos, que além dos prejuízos materiais mais visíveis, implicavam num obscurecimento da própria ciência política, completamente tomada por considerações religiosas que obstavam uma análise racional do Estado.

É aliás num contexto de repúdio a antigas fórmulas medievais sobre o poder que devem ser compreendidas ambas as obras aqui rapidamente comentadas.

Com efeito, não obstante serem tanto “O Príncipe” e o “Leviatã” frutos de condições históricas bastante específicas e voltadas para questões diferentes do fenômeno político (basta aqui lembrar a problemática da legitimidade do Estado, estudada por Hobbes por meio do pacto de sociedade, mas que no “Príncipe” é completamente inexistente, estando Maquiavel muito mais obcecado em descobrir os verdadeiros meios de exercício do poder do que em desvendar as raízes de sua legitimidade), o fato é que ambas as obras, pela perspectiva racional utilizada por seus autores, foram consideradas de importância essencial para a compreensão do próprio Estado Moderno.

Tanto “O Príncipe”, que superou as influências do período medievo por meio do estudo de uma técnica de poder em que a racionalidade era levada as suas últimas conseqüências, como o Leviatã, que como já comentado anteriormente, promoveu a fundamentação do estado absoluto em bases voluntaristas, tornaram ultrapassadas todas as velhas fundamentações do poder baseadas nas Escrituras, inaugurando uma nova maneira de se encarar os fatos políticos, entendidos a partir de agora dentro de uma dimensão essencialmente humana.

Mas além da já referida perspectiva laica desenvolvida por ambas as obras a respeito do poder, sua modernidade deve-se também ao fato de anunciarem o mais característico dos

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fenômenos do mundo moderno, qual seja, o surgimento do Estado-nação. Ambos ao autores aqui estudados, desenvolveram um modelo de Estado completamente

liberado de amarras que porventura pudessem cercear seu campo de ação, liberação esta que significaria um corte não só com princípios morais (Maquiavel), como da própria lei (Hobbes), desnudando uma Soberania que ao se instalar gradualmente sobre o heterogêneo sistema jurídico-político herdado do período medieval, dava origem a um novo modelo de Estado

De fato, durante séculos, viveu a Europa sob a égide de uma organização política denominada de feudalismo, cuja característica essencial poderia ser considerada como o pluralismo jurídico-político, assim entendido não só a fragmentação a que estaria sujeita o poder político, distribuído entre várias instâncias autônomas e independentes entre si, como por exemplo feudos e cidades livres, como também a pluralidade de ordenamentos jurídicos. Tal pluralismo jurídico, por sua vez, desdobrava-se em dois momentos distintos, referentes não só à existência de complexos normativos específicos de determinados segmentos da sociedade, a garantir aos membros daqueles tratamento dotado de direitos e privilégios próprios, como também à existência de inúmeras fontes jurídicas, fazendo como que normas consuetudinárias convivessem normalmente com dispositivos emanados da própria coroa, Igreja ou feudos, refletindo, em última análise, a própria fragmentação política já comentada anteriormente.

Ora, tal forma de organização, mostrava já em meados do século XV, estar sofrendo o embate de novas formas de estruturação política, caracterizadas por uma absorção gradual, promovida pela realeza, de funções tradicionalmente atribuídas à Igreja e à aristocracia feudal, esvaziando não só a avançada e arraigada autonomia local desta última, como também subordinando completamente à sua jurisdição os membros da estrutura clerical, tradicionalmente possuidores de uma jurisdição particular que os colocava afastados do restante da sociedade.

Algumas das principais características dessa nova forma de organização política, mais visíveis aos olhos de seus próprios contemporâneos, era a criação de um aparelho militar e diplomático regular e a encampação pela Coroa de atividades que durante séculos foram realizadas pela nobreza dentro de suas terras, como tributação ou distribuição de justiça. A centralização de todas estas atividades nas mãos de uma única instância, no caso, a monarquia, foi historicamente flexionada por um quadro de mercantilização crescente da sociedade européia, em que o crescimento do poder econômico da burguesia, estimulava a supressão de barreiras feudais que prejudicavam a livre circulação de mercadorias. Tal evolução, implicou na criação do próprio mundo moderno, caracterizado por um modelo de organização política que apenas hoje, transcorridos mais de 5 séculos, começa a dar mostras de uma possível superação histórica, normalmente denominado de Estado -nação. Tal Estado, conforme já comentado anteriormente, desenvolveu-se durante sua fase de surgimento e consolidação, sob a forma de monarquias absolutistas, que, contudo, não conseguiram se impor historicamente sem que tivessem que vergar os interesses representativos da antiga ordem medieval, tanto no plano externo (Papado e Império), como no plano interno (nobreza feudal), tendo ainda que enfrentar as próprias guerras religiosas com que a Europa se viu as voltas durante os séculos XVI e XVII.

Mas dentro deste contexto de guerras e revoltas, permaneceu inflexível o processo de consolidação de um poder central cada vez mais atuante sobre toda a sociedade, fato que não escapou ao olhos perspicazes dos pensadores da época, que se debruçaram sobre esta nova realidade política de cuja implementação eram testemunhas oculares, e que tinham em Maquiavel e Hobbes dois de seus mais destacados estudiosos.

Independentemente de suas razões originais, ambos os supra-citados autores, em suas análises do poder político, desenvolveram teorias que foram identificadas (justa ou injustamente),

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como defensoras da monarquia absoluta, fato que se justifica. Vez que, tanto Maquiavel, com sua ousada declaração da separação entre moral e política, quanto Hobbes, que do direito natural fez a proeza de retirar a justificação de uma soberania onipotente, apresentaram aos seus contemporâneos, e por conseqüência, para toda a posteridade, um modelo de poder que não suportava qualquer espécie de limitação, seja ela de ordem moral ou propriamente política, na persecução de seus fins específicos.

Destarte, mesmo se considerado o triunfo do constitucionalismo, que fez com que idéias como Soberania ou Razão de Estado já não possam ser repetidas modernamente com uma subserviência a conceitos clássicos que desconsidere os séculos de história que nos separam do período absolutista, haja vista que a criação do Estado de direito, sob cuja égide vivem a maioria dos povos ocidentais, restringiu bastante o enorme campo de atuação de que o Leviatã sempre desfrutou ao longo da história, inegável é também a supremacia de seu poder sobre todas as formas de organização oriundas da sociedade civil, bem como de sua violência na defesa do status quo, sempre que este se encontrar ameaçado, fenômenos que foram poucas vezes descritos de maneira tão clara e objetiva como em Maquiavel e Hobbes.

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