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203 Porto Alegre, v. 16, n. 2, jul./dez. 2013 ISSN impresso 1516-084X ISSN digital 1982-1654 INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO: teoria & prática 1 Sobre o fotografar como questão A produção deste texto/imagem é efeito do trabalho de dois grupos de pesquisa 1 , que vêm investindo em experimentações fotográficas como estratégia metodológica. O encontro entre estes grupos é marcado por in- dagações originadas das práticas de pesquisa 1 Estamos nos referindo, de um lado, ao grupo de pesqui- sa Trabalho, Ética e Estética, vinculado ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universida- de Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, coordenado pela Professora Doutora Jaqueline Tittoni. Este grupo busca na pesquisa intervenção e na produção de fotografias, subsídios metodológicos para as pesquisas na área da Psicologia Social e Institucional. De outro, também compõe este texto o grupo de pesquisa vinculado ao Laboratório de Estudos em Linguagem, Interação e Cognição da mesma Universidade (LELIC/UFRGS), coordenado pela Professora Doutora Margarete Axt, compro- metido com Contextos Interativos e Virtuais com Tecnologias para Aprendizagem e Simulação (Civitas), os quais têm se constituído em dispositivo de in(ter)venção para pensar e atu- alizar modos de conhecer, de conviver e de expressar, numa perspectiva ético-política e estética, no âmbito da pesquisa em educação. Experimentações fotográficas: o tempo como tema-dispositivo na pesquisa com imagens Photographic experiments: time-device in research with images Resumo: Este texto trata da discussão sobre o tempo e a fotografia através do trabalho de dois grupos de pesqui- sa que utilizam a fotografia como estratégia de pesquisa e produção de conhecimento. Neste texto, a problematização teórica faz referência aos conceitos de tempo em Bergson e de cronotopo em Bakhtin, para pensar os modos como tem- po e espaço podem ser considerados através da fotografia. A fotografia é entendida como produção e como forma de habitar a duração no tempo, sua fugacidade e instantanei- dade. A partir de duas narrativas fotográficas, que têm o tempo como tema-dispositivo para produção das imagens, as autoras discutem os efeitos nos modos contemporâneos do vi/ver. Palavras-chave: Fotografia. Tempo. Pesquisar. Narrar. Abstract: This paper deals with the quarrel on time and photography in the work of two academic groups that use photography as strategy of research and production of knowledge. In this paper, theoretical issues make refer- ence to the concepts of time in Bergson and chronotope in Bakhtin, to think the ways as time and space can be thought through photography. Photograph is understood as produc- tion and as form to inhabit the duration in time, their fugac- ity and immediacy. From two photographic narratives, that have the time as subject-device for production of images, the authors argue the effect in contemporary ways of living. Keywords: Photography. Time. To research. Narrate. Paula Marques da Silva Jaqueline Tittoni Margarete Axt Universidade Federal do Rio Grande do Sul SILVA; Paula Marques da; TITTONI, Jaqueline; AXT, Mar- garete. Experimentações fotográficas: o tempo como te- ma-dispositivo na pesquisa com imagens. Informática na Educação: teoria e prática, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 203- 216, jul./dez. 2013.

Experimentações fotográficas: o tempo como tema-dispositivo na … · 2014-08-28 · 203 Porto Alegre, v. 16, n. 2, jul./dez. 2013 ISSN impresso 1516-084X ISSN digital 1982-1654

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1 Sobre o fotografar como questão

A produção deste texto/imagem é efeito do trabalho de dois grupos de pesquisa1, que vêm investindo em experimentações

fotográficas como estratégia metodológica. O encontro entre estes grupos é marcado por in-dagações originadas das práticas de pesquisa

1 Estamos nos referindo, de um lado, ao grupo de pesqui-sa Trabalho, Ética e Estética, vinculado ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universida-de Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, coordenado pela Professora Doutora Jaqueline Tittoni. Este grupo busca na pesquisa intervenção e na produção de fotografias, subsídios metodológicos para as pesquisas na área da Psicologia Social e Institucional. De outro, também compõe este texto o grupo de pesquisa vinculado ao Laboratório de Estudos em Linguagem, Interação e Cognição da mesma Universidade (LELIC/UFRGS), coordenado pela Professora Doutora Margarete Axt, compro-metido com Contextos Interativos e Virtuais com Tecnologias para Aprendizagem e Simulação (Civitas), os quais têm se constituído em dispositivo de in(ter)venção para pensar e atu-alizar modos de conhecer, de conviver e de expressar, numa perspectiva ético-política e estética, no âmbito da pesquisa em educação.

Experimentações fotográficas: o tempo como tema-dispositivo na pesquisa com imagens

Photographic experiments: time-device in research with images

Resumo: Este texto trata da discussão sobre o tempo e a fotografia através do trabalho de dois grupos de pesqui-sa que utilizam a fotografia como estratégia de pesquisa e produção de conhecimento. Neste texto, a problematização teórica faz referência aos conceitos de tempo em Bergson e de cronotopo em Bakhtin, para pensar os modos como tem-po e espaço podem ser considerados através da fotografia. A fotografia é entendida como produção e como forma de habitar a duração no tempo, sua fugacidade e instantanei-dade. A partir de duas narrativas fotográficas, que têm o tempo como tema-dispositivo para produção das imagens, as autoras discutem os efeitos nos modos contemporâneos do vi/ver. Palavras-chave: Fotografia. Tempo. Pesquisar. Narrar.

Abstract: This paper deals with the quarrel on time and photography in the work of two academic groups that use photography as strategy of research and production of knowledge. In this paper, theoretical issues make refer-ence to the concepts of time in Bergson and chronotope in Bakhtin, to think the ways as time and space can be thought through photography. Photograph is understood as produc-tion and as form to inhabit the duration in time, their fugac-ity and immediacy. From two photographic narratives, that have the time as subject-device for production of images, the authors argue the effect in contemporary ways of living.Keywords: Photography. Time. To research. Narrate.

Paula Marques da Silva

Jaqueline Tittoni

Margarete AxtUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

SILVA; Paula Marques da; TITTONI, Jaqueline; AXT, Mar-garete. Experimentações fotográficas: o tempo como te-ma-dispositivo na pesquisa com imagens. Informática na Educação: teoria e prática, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 203-216, jul./dez. 2013.

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e relacionadas à trajetória investigativa vincu-lada à fotografia. Fotografar o tempo em sua fluidez e inscrevê-lo em alguma linha de vi-sibilidade possível constitui uma provocação ao incansável desejo de fixá-lo, organizá-lo e circunscrevê-lo, traduzindo-o por intermédio de imagens instituintes de narrativas sobre a vida e o viver.

Tempo e fotografia estão, desde as primei-ras experimentações fotográficas, ligados por múltiplos modos de inscrição em superfícies sensíveis à definição de contornos de luz. Para além da inscrição da luz no plano das superfí-cies e do espaço, Batchen (2004) aponta que o surgimento da fotografia está relacionada, em particular, à possibilidade de registrar e fixar o tempo nas imagens. As imagens fotográficas, assim, provocam os domínios do tempo como captura de um instante preciso e sensível e como possibilidade de duração, definindo a fotografia, como sugere Geoff (2008), como um instante contínuo. Mas também o provo-cam enquanto intervalo entre instantes, “ali onde se dá o corte” - o click do fotógrafo; um entre-tempos que, “ao alojar as emoções, as afecções”, aloja, também “uma multiplicidade de sentidos” (AXT; MARTINS, 2008).

Para Batchen (2004), é necessário pensar que o surgimento da fotografia implicou em processos técnicos - químicos, físicos, mecâ-nicos, entre outros - mas também no dese-jo de dominar o tempo, fazendo-o durar no exercício de torná-lo visível por meio de algu-ma tradução. O desejo de fotografar, para o autor, foi tão importante quanto os recursos técnicos que o tornam possível.

Este texto convida a “ver” o tempo nas marcas que lhe dão passagem através dos recursos fotográficos e, assim, problematizar sua potência nos modos de viver, conhecer e pesquisar. Trata-se, portanto, de um convite

para uma aventura nas experimentações do fotografar, onde o sensível e o impossível nos provocam a ser diferentes.

2 Sobre tempo e fotografia

A história da produção fotográfica nos con-voca a pensar nas múltiplas maneiras como o tempo vem sendo experimentado nos mo-dos de viver. Lissosvky (2003) aponta que nas primeiras produções imagéticas de Niépce, a partir de 1829 e também de Daguerre, a par-tir de 1840, o tempo se configurava como um elemento problemático no campo do registro. Isso se dava, sobretudo, em função das longas horas de exposição da “chapa” nos processos de fotossensiblização e também pela impossi-bilidade de registrar corpos em movimento. Por volta de 1870, a fotografia tornou-se instantâ-nea em virtude, principalmente, da utilização de substâncias mais sensíveis e de obturado-res mais rápidos. A tecnologia do instantâneo, segundo o autor, marcou uma época em que os fotógrafos buscavam dominar o tempo, acessando velocidades maiores e minimizando o “tempo” de exposição no ato fotográfico.

Nessa mesma linha de pensamento, Sanz (2011) aponta que, na modernidade, as no-ções de fotografia e de instante passaram a se configurar de maneira recíproca e simul-tânea. As tecnologias visuais modernas esta-vam atreladas ao processo de fragmentação e de microdinamização do tempo. Do mesmo modo, o próprio conceito de instante transitou culturalmente no percurso de produção das tecnologias da imagem, sobretudo da foto-grafia. A autora julga importante destacar que a incessante busca pela captura de aconteci-mentos atuais e efêmeros no campo da ins-tantanização fotográfica não é efeito apenas

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de uma “corrida técnica”, mas de múltiplos vetores constituídos nos planos da ciência, da estética e da política.

Sanz argumenta ainda que a fotografia esteve amplamente entrelaçada aos valo-res indexibilidade e legibilidade temporal. No plano da ciência, por exemplo, sobretudo as cronofotografias de Jassen, Muybridge, Jules Marey e Albert Londe2, são instauradoras de efetiva aderência entre o instante e a foto-grafia, demarcando um sincronismo entre o movimento do relógio e a produção de ima-gens instantâneas. Nesse contexto, o tempo métrico, homogêneo e espacializado encontra na produção fotográfica grande legitimidade. Em outro texto Sanz (2008) sugere que a fo-tografia configurou-se circunscrita ao instan-tâneo, mas fortemente ligada à cronologia e à captura espacial, encontrando-se, em relação ao tempo, fora da duração. Imagem fotográ-fica como paralisia e contração radical do mo-vimento, demarcando “fotografias no tempo e não tempos na fotografia” (p.4).

Seguindo essa mesma linha de reflexão, Wunder (2006) argumenta que a racionalida-de científica moderna dá ênfase a um modo de visão regularizado, formalizado e pautado, principalmente, em procedimentos de avalia-ção e controle que produzem um olhar geo-metrizado que classifica, avalia, corrige e se distancia das sensibilidades. Tal discussão ga-nha relevância e se desdobra no próprio pro-cesso de como a produção de imagens opera nos modos de olhar e na produção das formas de visibilidade e de visibilização da vida e do viver (TITTONI, 2011).

2 De acordo com Lissovsky (2003), por volta de 1870 fotó-grafos como Muybridge e Jules Marey dedicaram-se à produ-ção de cronofotografias. Na cronofotografia diversas câmeras eram disparadas com intuito de capturar seqüencialmente o movimento de corpos humanos e de animais. Esse modo de produzir imagem colocava a produção fotográfica vinculada ao tempo como movimento.

Ao trazermos nuances da história da foto-grafia, não buscamos evidenciar os processos evolutivos que perpassam as tecnologias da imagem: a história aqui é margeada através da transitoriedade dos acontecimentos, dos movimentos que seguem fluxos diversos, das tensões permanentes no jogo de forças cons-tituído por saberes e poderes. Trata-se de um movimento que, tanto pode encontrar regula-ridades, quanto seguir rupturas nos contextos a serem percorridos. Nesse sentido, assume uma função de assinalar o fotografar e a fo-tografia na medida em que carregam marcas instituídas e modelares que operam nos mo-dos de olhar, determinando o sentir e o viver.

Neste texto, ao instaurar o tempo como tema-dispositivo (TITTONI, 2011), colocamo--nos no movimento fotográfico e de escrita, em relação de tensão com essas lógicas de fixação do tempo e de enquadramento do es-paço. A pergunta que insiste diz então sobre o tensionamento entre instante e duração na fotografia e no fotografar.

A noção de tema-dispositivo está ligada à noção de dispositivo em Deleuze (1990) que, a partir de Michel Foucault, nos mostra o dispositivo como um arranjo composto por linhas multíplices e heterogêneas, as quais se articulam em formas plurais e se ressignificam constantemente de maneira simultânea. Den-tre as diferentes linhas que compõem este “no-velo multilinear” estão pelo menos duas, as li-nhas de estratificação ou de sedimentação (as linhas molares, duras) que normatizam; e as linhas de ruptura ou fissura (frágeis linhas de criação) que, ao mesmo tempo, no dispositivo, marcam “a sua capacidade de se transformar, ou desde logo se fissurar em proveito de um dispositivo futuro” (p. 6).

Linhas de sedimentação, reguladoras e in-flexíveis, instituem as formas duras do viver e

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indicam os padrões culturais (“ser mulher é...”; “ser homem é...”). Já as linhas de fissura ou de ruptura deslocam e tensionam os fluxos ve-dados para abrir passagem à invenção de ou-tros modos de existência. Deste modo, fazem irromper forças em confronto no curso do vi/ver: ver no infinitivo, fluxo em puro devir; vi, enquanto memória virtualizada que tanto pode molarizar quanto molecularizar, na dependên-cia das forças segundo as quais a memória é provocada/convocada; vi/ver, enquanto com-posição de modos de existir em movimento num presente, desde sempre invadido e deter-minado por um passado passando, tanto quan-to em permanente escoamento em direção a um porvir se insinuando.

No campo da pesquisa com imagem, o uso da noção de dispositivo em interface com o tema “tempo na fotografia”, nos lança no plano dos regimes de visibilidades e dizibili-dades que indicam os modos de vi/ver nos movimentos de uma determinada época. Ma-pear linhas desta rede de conexões implica instalar-se no dispositivo e percorrer fios da experimentação fotográfica que compõe este pesquisar sempre em processo. Pista potente para tensionar lógicas que instituem a fixidez do tempo e o esquadrinhamento do espaço no ato fotográfico, produzindo também ou-tras potências nas trajetórias investigativas. É quando, para nós, se instaura então um cam-po de experimentação afetiva e de análise dos fluxos do sentir/sentido com forte acento na criação. Uso das imagens compondo, a um só tempo, o traçar nos planos ético-político dos encontros com a alteridade no tensionamento eu-para-mim-eu-para-o-outro; e estético das provisórias produções (polifônicas e polissê-micas) do vi/ver.

Em outras palavras, ao trajetarmos (AXT, 2011) o tema-dispositivo “tempo na fotogra-

fia”, hibridizamos este texto nas tramas de uma experimentação fotográfica. Fotografar “o tempo” tornou-se de uma só vez desafio e possibilidade de borrar as fronteiras rígidas entre pesquisa, arte e sensibilidade. Exercício fotográfico que acolhe o tempo como elemen-to paradoxal nos modos de pesquisar com imagens.

Nessa composição, produzimos duas nar-rativas fotográficas que se interpelam mu-tuamente, fazendo-se tapeçaria na urdidura conjunta de imagens, olhares, palavras e con-ceitos. A primeira narrativa é intitulada “Na superfície da pele: imagemnarrada no tem-po”, agenciando imagem verbal-fotográfica em seus sentidos polissêmicos, produzindo no tempo - pois narração é sempre no tempo dobrada-desdobrada -, uma hibridação luz--palavra-linhas-superfícies.

A segunda narrativa “tempos fugidios: detalhes, instantes e instantâneos”, provoca tempo e espaço, dando visibilidade às marcas do tempo nas inscrições de espaços urbanos. O recurso fotográfico do tom “sépia” mostra o jogo das imagens onde as tonalidades se pro-duzem nos jogos sensíveis entre uma certa homogeneização da cor e as múltiplas pos-sibilidades de diferenciação provocadas pela incidência da luz, do foco ou de suas combi-nações. Este recurso busca intensificar a sen-sação da ação do tempo e sua visibilidade nas imagens produzidas, assinalando-o na produ-ção das imagens, e ainda na sua concepção, dessa maneira permitindo pensar também a intencionalidade do fotógrafo e dos modos de fotografar.

As narrativas estão compostas de imagem e de escrita e foram realizadas como um exer-cício fotográfico das autoras na produção do campos de análise das pesquisas em desen-volvimento. Este exercício foi proposto tendo

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o tempo como tema-dispositivo e sua experi-mentação em imagens, como a proposta do trabalho. Desta forma, estão entrelaçadas as escritas e as imagens produzidas como diários de campo e como experimentações do pes-quisar. Estas narrativas indicam que há um campo de relações de força entre o visível e o enunciável e não uma relação de conformida-de, de correspondência ou de redutibilidade. Esta perspectiva, de irredutibilidade entre o dizer/escrever/ver, está embasada nas con-cepções foucaultiana e deleuziana e suge-re mais fortemente uma relação agonistica, podendo provocar diferentes combinações e modos de dizer/escrever/ver.

Para os autores, os enunciados não são as unidades lingüísticas signifi cantes, palavras, frases, proposições ou atos de linguagem, mas uma função que cruza as diversas unida-des e, de igual maneira, as visibilidades, que não se confundem com os elementos visuais. Assim, como é preciso “rachar” e abrir as pa-lavras, as frases e as proposições, também é preciso “rachar” as coisas e a vista, para ex-trair, delas, as possibilidades e os enunciados de cada estrato (DELEUZE, 1988).

As refl exões produzidas nas narrativas ori-ginam-se deste jogo entre a escrita e a ima-gem, ou, da mesma forma, entre as dizibili-dades e visibilidades. Ambas buscam o tempo como tema-dispositivo e o constroem de for-mas diferenciadas. Na primeira, a concepção da imagem do tempo na fotografi as passou pelas imagens da pele, do tempo que se faz corpo, sensível, trabalho. Na segunda, o tem-po aparece como traços, resquícios e marcas que tratam as palavras como imagens. Desta forma, a proposta de realizar imagens tendo o tempo como tema-dispositivo construiu os jo-gos de visibilidade-dizibilidade que compõem nossas refl exões.

3 Na superfície da pele: imagem-narrada no tempo

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Habitar uma experimentação fotográfica per-correndo as linhas de força do tempo como tema-dispositivo foi a provocação que abriu possibilidade para este narrarfotografar. Exercício que, inicialmente, parecia fácil. Bas-tava uma câmera fotográfica e o percurso do olhar à espreita daquilo que é tão cotidiano e onipresente, o tempo. No entanto, os dias, os minutos e segundos se passavam e algo parecia “silenciar” o olhar na cadência de uma temporalidade fatigada e mecânica. Tal qual areia movediça, o tempo se fez armadilha. Os ponteiros dos relógios pareciam ditar e conter os modos de ver. Era preciso deslocar os pon-tos de vista que se mantinham tão ancorados em uma cronologia linear e deixar-se arrastar pelo movimento vivo da vida. Nesse fluxo de hesitações, a geografia da pele de mulheres que trabalham em vários lugares da cidade fez tessitura com os trajetos do olhar-fazer--sentir fotográfico. Encontrei Magnólia à beira do fogão, mexendo o feijão em uma grande panela. Perguntei a ela se podia fotografar as linhas de sua mão. Com uma gargalhada que apimenta o caldo denso, ela responde: “a li-nha da vida que está marcada na minha mão não pode ser essa que todos dizem ser”. Tra-balho há 28 anos na cozinha e a minha mão tem a marca das queimaduras de panela, dos calos feitos pelos cabos da colher de pau e das preocupações com um tempo que está sem-pre por chegar. De tempo eu sei muito e mui-to pouco. De “olho” sei que a carne no fogo já se deu pronta, que o arroz passou do ponto, que as bolhas de água na chaleira fazem re-clamar a patroa que não gosta do chimarrão fervendo. Mas, às vezes sinto que a vida pode virar o caldo, ficar perigosa e sem rumo”. Um outro encontro se faz em um agitado sa-lão de beleza.Carmem e Cecília estão frente a frente com as mãos entrelaçadas. Em uma harmoniosa dança feita de ferramentas e to-ques, Carmem, manicure e contadora de his-tórias, faz das mãos de Cecília palco de arte e precisão. Unhas vermelhas vão se desenhan-do no esboço de gestos sutis e de cumplicida-de. Após fotografar as mãos destas mulheres e mostrar-lhes o que foi fotografado, Carmem

se surpreende ao olhar as imagens produzi-das: “há cinco anos ‘faço a tua mão’ e nunca tinha olhado para os traços que acabo de ver. Para mim, a mão de uma mulher está toda nas unhas”. “Acho que também nunca olhei direito para as tuas mãos”, responde Cecília diante das observações feitas pela manicure. Cecília continua a conversa dizendo que “se as linhas da palma da mão definem o tempo e o jeito de uma vida, eu, ao menos, dou uma colorida na vida de muita gente”. Acostumada com os disparos fotográficos, Eugênia, diz que eu poderia fotografar, tran-quilamente, as suas obras. Mulher de deli-cados movimentos, faz do barro forma e expressão em uma artesania que prende o olhar dos transeuntes que passeiam pelo Parque da Redenção/POA. Perguntei a ela se poderia fotografar as linhas de sua mão. Ela abre a mão dizendo que as linhas foram se apagando e tomando outros desenhos de tanto mexer com barro e fazer dele gente. (M.-S, 20/03/2012, notas – cenas, imagens - do diário de campo).

No movimento imagéticonarrado dessa pri-meira narrativa, “Na superfície da pele: ima-gemnarrada no tempo”, o percurso do nosso olhar-falar fez morada movente no encontro com a geografia da pele das mãos de mulhe-res trabalhadoras. Mulheres que laboram o cotidiano e texturizam a vida nas amarras de um tempo automatizado, mas também, que podem se abrir a um vi/ver inventivo levadas nos fios de uma imagemnarrada. Desafios do escrever e exercício foto-sensível que ganham densidade nas cenas fotográfico-verbais que a narrativa enuncia, rompendo com o instituído que confina o ato fotográfico-verbal no campo do registro e da instantanização espacializada. Trata-se de trajetar imagensnarradas e deixar--se afetar por hesitações - escolhas no plano da criação e da invenção.

Trajetar fotográfico que faz elos com Deleu-ze (1992) quando menciona a frase “O mais

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profundo é a pele” de Paul Valéry (VALÉRY apud DELEUZE, 1992 p. 109). A partir deste fragmento poético, Deleuze afirma a possibi-lidade de pensarmos a filosofia como a arte das superfícies. Superfícies que remetem à constituição de um plano de inscrição enquan-to resistência ao que não está oculto. O autor sugere ainda que “Se você não constituir uma superfície de inscrição o não oculto permane-cerá não visível (p. 109)”.

Deleuze nos convoca a pensar em uma ex-perimentação fotográfica que não está volta-da para o oculto, àquilo que poderia estar por detrás da imagem. Não há, nesta perspectiva, o que desvelar; tampouco há uma essência es-condida no plano da superfície desta imagem/pele: superfícies resistem escrachando o não--oculto. Seguindo esta linha de reflexão, afir-mamos que, no campo da pesquisa com ima-gens, o nosso interesse recai sobre os regimes de visibilidade e invisibilidade que, inscritos nos planos de superfície, constituem cronoto-pos (BAKHTIN, 1997) para modos de vi/ver. Nesse processo, a visibilidade não se restringe ao objeto, tampouco reside no sujeito, “mas no reconhecimento de que cada visível guar-da também uma dobra invisível que é preciso percorrer a cada instante e a cada momento” (NOVAES, 2000, p. 27).

Nesse processo, o encontro com as traba-lhadoras, o produzir as fotografias e o compor o mapa/pele/imagemnarrada são linhas que se agenciam e se sustentam num mesmo campo problemático: “o tempo do fotografarnarrar” instaura, não tanto uma geometria temporal abstrata do espaço, antes uma geografia da pele, linhas inscritas em uma superfície: na duração do tempo, um lugar concreto para o sentido, vale dizer um cronotopo para vi/ver imagensnarradas.

Axt (2011) define assim o conceito de senti-do – “Inscrito no passado, o sentido produz-se

concretamente no presente, no trajeto-ima-gem de um corpo: este presente, este corpo – tempo-lugar do sentido – sentido emergido--ativado por trajetos-imagens, constituindo um agir e um dizer singulares, histórias narrativas inéditas” (p. 100) –, enquanto pensa a imagem como lugar de inscrição do tempo-movimento concernido à duração bergsoniana, um crono-topo na inspiração bakhtiniana:

tempo em escoamento e lugar concreto en-trelaçam-se em um’cronotopo’, sustentando o lugar do sentido, sentido em movimento, movimento em ação produzindo trajetos, trajetos em processo de enredamento com emoções-sensações produzindo imagens, imagens abrindo as portas à criação (AXT, 2011, p. 100).

Com a noção de ‘cronotopo’ o fotografar-narrar torna-se, num mesmo movimento, “lu-gar e tempo” em se fazendo no fluxo do de-vir.3 Este movimento cronotopico, que se faz no curso vivo da experiência, parece que nos lança, quando se trata do pesquisar, a fluxos incessantes, da ordem do imprevisível. Não se planejou a fotografia, embora fotografar es-tivesse na mira do olhar; não se planejou a narração embora dizer-falar estivesse na ponta da língua. Tais argumentações ganham força no âmbito do percurso desta narrativa visual indicando um trajeto investigativo que se faz no próprio trajetar. Trata-se de movimento que não se reduz a um espaço parametrizado ou a um tempo pontual-instantâneo, mas que se configura como lugar-tempo no próprio ato de

3 Remetendo a Deleuze, Axt (2010) aponta o devir como aque-le processo do tempo em sua duração que se faz a si no fluxo, em meio à contingência da vida, que não pretende alcançar determinada forma, uma identidade, mas que vai ao encontro de uma zona que, em lhe sendo vizinha ou próxima (o próxi-mo passo), todavia lhe é indiscernível, desconhecido destino (vazio em aberto). Não se trata de futuro, ressalta Deleuze, devir e futuro se distinguem, pois que futuro planeja-se, es-quadrinha-se.

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percorrer uma geografia que se inscreve nessa superfície à medida que emerge.

Em diálogo com Bergson (2006), podemos pensar que, neste trajetar-narrar-fotográfico, “o tempo é móvel e imedível” (p. 5). O autor ressalta que medir o tempo trata-se de uma convenção formulada pela força de sua imobi-lização. Dessa maneira, ao tomarmos o tempo seguindo um ordenamento métrico acabamos por excluir a mobilidade no percurso de algo móvel por natureza: é quando se perde o cro-notopo para o sentido!

Elaborações como as de Bergson nos dei-xam no rastro de uma pista fundamental para pensarmos o trajetar no plano do narrar fo-tográfico. Estamos referindo ao tempo como duração. Ao trazer a ideia da duração, Bergson (2006) tensiona os processos da vida enquan-to pensados a partir de um tempo cronologi-camente linear e enquanto submetidos a uma lógica do espaço. Nesse entendimento, a “pre-visibilidade é uma abstração” (p. 104).

Para o autor, o movimento da vida implica indivisibilidade, duração e continuidade, adqui-rindo “formas inesperadas”. A duração, nessa concepção, não corresponde a algo linear, mas é do fluxo da vida em que o tempo age tornan-do-se “veículo de criação” (p. 107). Trata-se, como sugerem Marques-Silva et al. (2011), de um constante exercício de desacomoda-ção dos atos mais conhecidos e mecanizados, dando consistência a formas inesperadas que, em geral, deixam de ser enunciadas por serem capturadas pelo modo instituído, normatizado, automatizado de vivermos.

Seguindo essa linha de pensamento Lisso-vsky (2003) sugere pensar o instante de forma imanente, e não como uma exterioridade que se abate sobre um contínuo. O instante foto-gráfico remete a uma deriva, onde nos mistu-ramos e nos dissolvemos nele. Esta concepção

segundo o autor “procura reconhecer o devir do instante como uma modulação no âmbito da duração” (p. 4).

Ao instalarmo-nos na duração, o pesquisar passa a nos provocar para adentrar no território do sensível, território existencial provocando rachaduras no já dito-visto e suas obviedades; e alçando o tempo em campo problemático no próprio movimento em curso, ali onde os processos fluem. A produção da narrativa ima-gemnarrada se manifesta, desse modo, em um “processo-durando, no entre-tempos [...] uma diminuta hesitação produzindo escolhas, ao emergir entre instantes, mas na continui-dade da duração, na sucessividade do tempo em relação a si próprio” (AXT, 2010, p. 10). O entre-tempos, situado entre dois instantes, não é propriamente tempo, dirão Deleuze e Guattari (1997, p. 203), é antes de tudo devir, acontecimento. Para nós, acontecimento que dura em potência intensivo-afectiva na ima-gemnarrada, inscrita e atualizada como luz e letra na superfície do suporte, e por isso du-rando: mas não por se encontrar fixada num tempo pontual ou imobilizada-enquadrada num espaço; e sim, por fazer retornar, no novo presente, a emoção, a intensidade do aconte-cimento passado-durando, assim abrindo “aos processos de virtualização do atual, deixando--se impregnar de séries de sentidos em fluxo, estetizando-se e, logo, tornando-se expressão estética” (AXT, 2010, p. 11). Em nosso enten-der, o entre-tempos inscreve-se como cronoto-po para “a produção de sentidos, de escolhas, de criação... [...], transbordando percepções e afecções vividas/sentidas” (AXT; MARTINS, 2008).

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4 Tempos fugidios: detalhes, ins- tantes e instantâneos

Andar pela cidade à procura do tempo foi o exercício proposto neste fotografar. Andar pela cidade, na cidade e nos seus detalhes, em caminhos que permitem “ver” outras vi-sibilidades, percorrer outros trajetos e assim reconstruir a cidade com outras referências ou referentes. Na simplicidade do caminhar, a complexidade do olhar provoca e produz outras cidades, compondo territórios existen-ciais: na prática, outras cidades-territórios para viver o provisório, o passageiro e não a cidade onde vivo ou suponho viver, estan-do mais fortemente fixado, permanente... Na prática, uma cidade-território em que me é possível ser fotógrafa, pois os tempos que definem as interações possíveis podem ser menos velozes, definidos e intencionais. Pode-se habitar, de certa maneira, a instabi-lidade do instantâneo, do fugidio, do que “es-capa” dos rumos pré-definidos que orientam, na maioria das vezes, nossos percursos pelas

cidades, onde vivemos as supostas perma-nências. Sim, outra cidade e, assim, a pos-sibilidade de também ser outra e provocar o devir fotógrafa que sempre se enuncia...O detalhe, já nestas fotos antigas produzi-das em 2006... Sim, “antigas” é uma pro-vocação... A visibilidade do tempo está nos detalhes que persistem nas imagens, apesar das condições desfavoráveis. O tempo mar-cado como o detalhe que persiste. Mosaico de informações, imagens, textos, os murais de uma universidade transbordam de vida: alguém precisa de um quarto para viver, al-guém possui um quarto desabitado em casa. Alguns vendem seu trabalho e sua experiên-cia profissional e outros precisam de alguém que traduza alguma coisa para que possa acessar outra língua, outras passagens...Luta-se muito nos detalhes: ali, em quase dez centímetros quadrados exige-se a liber-dade da Catalunha, doma-se um tigre a cada dia e a liberdade encontra pequenas passa-gens, onde protege-se dos arroubos neolibe-rais e se faz brotar nos detalhes a lembrar que é nos atos micropolíticos, até mesmo in-visíveis para quem passa em alta velocidade, focado em seus objetivos, que a liberdade se faz durar...O instante duradouro que se faz visível no tablado que esconde a biblioteca: certa feita, mais ou menos em 2006, o Instituto de Psico-logia da Ufrgs fez uma reforma no seu prédio e construiu a nova biblioteca. O tapume que a escondia - depois de uma noite de muito pensar dos estudantes que sempre se encon-travam pontualmente às 8h30min e fizeram “parar” o tempo no “psico oito e meia” que existe até nossos dias - apareceu marcado pelas suas idéias, desejos e temores. Como tapume provisório, marcou e passou. Tapume que se mostrou, naquele instantâneo, como um avesso do conhecimento que se armaze-na e cataloga, pulsando de afeto e de vida... Em seu avesso, a biblioteca e seus volumes nos mostravam cenas da vida e duas análi-ses. Onde foi parar aquele tapume marcado? (T, j. Arquivos - imagens de diário de campo em 2006)

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Na narrativa dois, “Tempos fugidios: deta-lhes, instantes e instantâneos”, a discussão sobre o instante e o instantâneo provoca si-multaneamente as noções de duração e de instantaneidade ao mostrar o tempo em dois sentidos, pelo menos: nos efeitos de transfor-mação das colagens e pichações sobrepostas e nos modos como as temporalidades marcam os espaços urbanos, indicando diferentes modos de viver a urbe e suas possibilidades. O tempo na cidade aparece como traços de uma subje-tivação fugaz que, ao passar, marca os trajetos e define percursos no tempo e no espaço. São como rastros e pegadas de alguém que se faz ver pelos efeitos de sua caminhada. Estas mar-cas do tempo na cotidianidade da urbe evocam o tempo nos modos como pode mostrar-se nas diferentes composições da imagem.

A noção de instante decisivo, em Cartier--Bresson (1971) indica que, nas imagens, a duração do tempo se faz perceber na mesma intensidade de sua instantaneidade e precarie-dade, na mesma direção das proposições berg-sonianas e deleuzo-guattarianianas. Para Car-tier-Bresson, a fotografia “fixa, para sempre, o instante preciso e transitório” (p. 21, 1971), mas cabe aos fotógrafos “capturar o movi-mento fugidio e todas as interrelações que se acham em movimento” (p. 21, 1971). Este ato de “fixar”, no entanto, se desfaz a cada olhar que reconstrói a imagem no plano dos senti-dos, retornando o que entendemos por acon-tecimento (no entre-tempos). O cronotopo do sentido, enquanto tempo-espaço em movi-mento, pode tornar visível, no plano apreciati-vo, a experimentação de um instante que será sempre outro em outras experimentações.

A fotografia, na visão do fotógrafo, está na relação possível entre o instante e a cena, en-tre o tempo e o espaço, sintetizados no arranjo composicional das múltiplas linhas que a com-põe.

O instante e o instantâneo provocam a no-ção de duração, trazendo para a espacialidade da imagem fotográfica, o tempo traduzido no instante. Instante que, ao mesmo tempo, pode ser “fixado”, mas que escapa ao ser recompos-to pelos diferentes olhares a que é sujeito.

Alves e Contani (2008) sugerem que o ins-tante decisivo, pensado a partir da noção de signo estético nas formulações piercenianas, é um quali-signo, ou seja, é um ícone ou uma qualidade, que é um signo. Desta forma, ne-cessita existir no mundo, mas é “um sentimen-to, uma consciência que pode ser incluída em um instante de tempo, consciência passiva, sem reconhecimento, sem análise“ (p. 136). Para os autores, as qualidades do sentimento estarão, assim, corporificadas. Por ser um sig-no estético, a fotografia estará marcada pela espontaneidade e pela originalidade, expressas na sua composição como um modo de vi/ver, diríamos nós. Na estética de Cartier-Bresson , o instante compõe a imagem e ordena seus elementos, rearranjando os detalhes e dando voz aos diferentes elementos aí presentes.

Assim, a produção fotográfica produz-se no tempo, na lógica da duração e da intensidade do instante, que ordena sua composição.

Para Alves e Contani (2008, p. 140), o ins-tante decisivo está no campo do indetermi-nado, dependendo da intuição do fotógrafo diante da fugacidade do momento. Segundo os autores, ele é estético “porque explora os momentos fugazes que estão no mundo, para conectar-se a tudo e a todos emanando senti-mentos”

O narrarfotografar o tempo ao produzir-se como cronotopo e como instante decisivo, bus-ca habitar a duração na intensidade dos senti-mentos, dos afetos e das emoções, potencia-lizando a invenção de diferentes modos de vi/ver.

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5 Algumas poucas considerações: fotografarnarrar a imagemnarrada

As narrativas de imagens “Na superfície da pele: imagemnarrada no tempo” e “Tempos fugidios: detalhes, instantes e instantâneos”, mostraram/falaram a intensificação da expe-riência do tempo como duração. Nosso desa-fio se firma em pensar estas estratégias de fotografar e narrar imagens como uma linha de acolhimento das variações da experiência na duração, instaurando movimentos no ter-ritório do tempo inventivo. Desafio que ganha vida e expressão na poesia de Manoel de Bar-ros (2001) ao escrever “Fotografei o sobre. Foi difícil fotografar o sobre” (p. 12). Com esta es-crita fotográfica o poeta abre passagens para pensarmos na complexidade do ato de fotogra-far. Trata-se de arte poética fazendo-nos aden-trar o território existencial das sensibilidades, rompendo com o já dado e com as obviedades.

As narrativas imagéticas produzidas neste narrarfotografa, ou fotografarnarrar, e seus desdobramentos apreciativos querem provo-car a fotografia e sua narrativa como estraté-gia de produção de conhecimento acadêmico, bem como de apreciação ético-estética. Ao provocar, agonisticamente nos colocam no pla-no das experimentações e, então, do acolhi-mento das incertezas como parte do trabalhar, do trajetar e do pesquisar, abrindo passagens para o inventar. Assim, estas considerações se propõem incitar a insistir no trajetar inventivo, pois mesmo trajetando na duração, fronteiras se impõem, limitando, bloqueando linhas cria-tivas a por-se em movimento, fazendo desa-nimar.

Neste texto, tratamos da fotografia narra-da no tempo, aproveitando para definir alguns marcadores históricos que operaram sua fun-ção de dispositivo; também trouxemos duas

narrativas fotográficas, dando a ver temas do vi/ver que nos pungem. Em continuidade, pen-samos apreciativamente através das noções de cronotopo, duração, entre-tempos e instan-te decisivo. Estes movimentos, como referido logo de início, foram realizados na trilha do de-sejo (mais do que impossível, intolerável) de vi/ver o tempo nas marcas que lhe dão passa-gem através dos recursos fotográficos, assim abrindo à sua potência nos modos de fotogra-farnarrar.

O texto tratou-se, portanto, de um convi-te para experimentar o fotografarnarrar, onde o sensível e o impossível vem nos incitando a desviar o tempo-espaço cronológico-parame-trizado em favor de uma estética das intensi-dades afectivas sustentada no virtual das pos-sibilidades de sentido.

Para pensar na sua (do sentido) potência de produção de fluxos, inscrevendo novas/outras linhas de visibilidade/dizibilidade em nossa ati-vidade de pesquisar, perguntamos, inicialmen-te, como operar com a fotografia na imprevi-sibilidade, no movimento e na fugacidade dos instantes, de modo a potencializar a invenção e deslocá-la das lógicas de enquadramento e representação, onde, muitas vezes, se mostra aprisionada, em especial quando se trata de produções acadêmicas.

Algumas pistas apontaram para o fotogra-farnarrar enquanto composição ético-estética dos sentidos em movimento: estes, em ha-bitando a duração em seu devir intensivo, tendem a contaminar os próprios processos analíticos em relação ao ato do produzir ima-gensnarradas, transfigurando-as em aprecia-ções de caráter estético.

Como imagemnarrada técnica, o fotografar-narrar implica aparelhos e sujeitos, saberes e verdades; como experimentação ético-estéti-ca, implica emoções e afetos marcados pelos

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modos de vi/ver. Como imagemnarrada que se produz no desejo moderno de “fixar” o tempo, acaba contraditoriamente por habitar a fuga-cidade do instante, instalando-se no intervalo do entre-tempos. Como imagemnarrada que se produz no desejo de “retratar a realidade”, acaba paradoxalmente mostrando a diversida-de dos olhares, dos pontos de vista, dos ins-tantes fugidios. Como estratégia de pesquisa, mostra que o vivo transborda das verdades pré-definidas e instala-se nas artes da inven-ção e, assim, pesquisar é uma experimenta-ção de vi/ver que pode, sempre, potencializar o virtual em sua mesma potência, para fazer retornar o acontecimento, o diferir em sua di-ferença.

As narrativas “Tempos fugidios: detalhes, instantes e instantâneos” e “Na superfície da pele: imagemnarrada no tempo”, trazem para cena uma prática de pesquisa em que o pes-

quisador faz escolhas, puxa fios, faz conexões com eles, entrando em seu próprio arranjo composicional e participando dos efeitos do seu movimento inventivo. Esses fios constituídos e constitutivos, fazendo elos entre sentidos em produção, entre imagens, falas e audições, po-dem ser compreendidos como linhas de apre-ciação ético-estética (e de análise científica) que implicam a função de dispositivo que as estratégias metodológicas adquirem. No en-contro do fotografarnarrar com os tempos da duração, a imagemnarrada pode operar como dispositivo para potencializar linhas de cria-ção, sustentando o jogo entre (in)visibilidades e (in)dizibilidades enquanto cronotopo para a passagem das intensidades, no complexo diá-logo entre tecnologia, arte, filosofia e ciência, contribuindo para instaurar a multiplicidade n/dos modos de pesquisar e subjetivar.

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Submetido para avaliação em 15 de maio de 2012.

Aprovado para publicação em 02 de maio de 2013.

Paula Marques da Silva: Mestre em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI/UFRGS); doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/UFRGS); Bolsista Capes – Porto Alegre-RS – Brasil. E-mail: [email protected] Jaqueline Tittoni: Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com pós- doutorado em Psicologia Social na Universidade Autônoma de Barcelona; professora adjunta da Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul com atuação no Instituto de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação de Psicologia Social e Institucional (UFRGS) – Porto Alegre-RS – Brasil. E-mail: [email protected] Margarete Axt: Doutora em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; profes-sora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com atuação nos Programas de Pós-Graduação em Edu-cação (PPGEDU/UFRGS) e em Informática na Educação (PPGIE/UFRGS). Coordena o Laboratório de Estudos em Lin-guagem, Interação e Cognição (LELIC), Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Porto Alegre-RS – Brasil. E-mail: [email protected]