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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA EXPRESSÕES REFERENCIAIS EM TEXTOS ESCOLARES: A QUESTÃO DA (IN)ADEQUAÇÃO Valdinar Custódio Filho Fortaleza - Ceará 2006

EXPRESSÕES REFERENCIAIS EM TEXTOS …livros01.livrosgratis.com.br/cp019675.pdfÀs professoras Irandé Antunes, Ana Célia Moura, Maria Elias Soares e Bernardete Biasi-Rodrigues, por

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

CENTRO DE HUMANIDADES

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA

EXPRESSES REFERENCIAIS EM TEXTOS ESCOLARES: A

QUESTO DA (IN)ADEQUAO

Valdinar Custdio Filho

Fortaleza - Cear

2006

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1

Valdinar Custdio Filho

EXPRESSES REFERENCIAIS EM TEXTOS ESCOLARES: A

QUESTO DA (IN)ADEQUAO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Lingstica do Centro de Humanidades da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Lingstica. rea de Concentrao: Prticas Discursivas e Estratgias de Textualizao. Orientadora: Profa. Dra. Mnica Magalhes Cavalcante

Fortaleza - Cear

2006

2

Esta dissertao foi submetida ao Programa de Ps-Graduao em Lingstica como parte dos requisitos necessrios para a obteno do grau de Mestre em Lingstica, outorgado pela Universidade Federal do Cear, e encontra-se disposio dos interessados na Biblioteca de Humanidades da referida Universidade. A citao de qualquer trecho da dissertao permitida, desde que seja feita de acordo com as normas cientficas.

_____________________________________

Valdinar Custdio Filho

Banca Examinadora

_______________________________________________________________ Profa. Dra. Mnica Magalhes Cavalcante

(Orientadora)

_______________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Irand Costa Morais Antunes UECE/UFPE

(1 Examinadora)

_______________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Clia Clementino Moura UFC

(2 Examinadora)

_______________________________________________________________ Profa. Dra. Marlene Gonalves Mattes UFC

(Suplente)

Dissertao defendida e aprovada em 24 / 03 / 2006.

3

DEDICATRIA

A duas grandes mulheres: minha esposa, Richeyla, e minha me, Llia.

A dois outros Valdinares: meu pai, Valdinar, grande homem que j se foi, e meu

filho, Valdinar Neto, pequeno garoto que um dia ser grande.

4

AGRADECIMENTOS

A minha esposa, Richeyla, por me apoiar incondicionalmente, por sonhar com o melhor, por saber como dissipar minhas tristezas e inseguranas, por aceitar com naturalidade (durante muito tempo) sustentar o marido-estudante, por lutar pelo prazer da convivncia; A meus pais, Valdinar e Llia, por proporcionarem a criao mais sensata que um filho poderia ter, por darem o exemplo de que grandeza e humildade podem estar associadas, por terem ensinado (e aprendido) que suas convices pessoais no podiam ser mais fortes que as escolhas dos filhos, por terem ensinado (com exemplos e palavras) que a famlia sempre a prioridade; A minha orientadora, Professora Mnica Magalhes Cavalcante, por ser tudo de bom: competente, justa, crtica, solcita, rpida, bem-humorada... Enfim, por ser a Mestra; A minha eterna conselheira profissional, Professora Nukcia Almeida, por ter escrito as primeiras palavras de incentivo a um empolgado graduando do primeiro semestre (e por ainda hoje se lembrar desse gesto), por me iniciar na pesquisa acadmica, por me oferecer as mais variadas oportunidades de trabalho, por sempre me incentivar a ser competente; colega Professora urea Zavam, por ter lido, junto com Nukcia, a parte inicial de meu trabalho, providenciando um dos puxes de orelha mais necessrios de todo meu percurso acadmico; Professora Maria Aurora Rocha Costa, por me abrir sua biblioteca nas muitas vezes em que a ela recorri. s professoras Irand Antunes, Ana Clia Moura, Maria Elias Soares e Bernardete Biasi-Rodrigues, por participarem dos momentos (cruciais) de apresentao deste trabalho, dando sugestes valorosas para o aprimoramento da pesquisa; A minha grande famlia, irmos, cunhados, tios, primos e sogros, por torcerem e vibrarem pelo sucesso de todos e de cada um; Aos colegas do mestrado e do Grupo Protexto, por saberem compartilhar conhecimento e experincia; Aos funcionrios do Programa de Ps-Graduao em Lingstica e do Departamento de Letras Vernculas, em especial Antnia e Rejane, por resolverem (sempre sorridentes) meus abacaxis, desmistificando assim o clich do funcionrio pblico desinteressado; CAPES, por financiar meus estudos de ps-graduao financiamento absolutamente necessrio para a qualidade da pesquisa desenvolvida.

5

As inovaes [...] vo sendo incorporadas pela lngua. E vai dizer que est tudo errado? No est. Ingedore Koch (em entrevista a O Povo, 20/02/2006)

6

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo propor uma anlise acerca do julgamento de adequao dos usos de expresses referenciais. Partindo do pressuposto de que a referenciao implica uma atividade discursiva voltada para a construo de verses pblicas do real, trazemos discusso o fato de que nem sempre as negociaes intersubjetivas so harmnicas, do que pode resultar o estabelecimento de referncias mal-sucedidas. A fim de analisar os fatores lingsticos que podem ser advogados para se considerar uma expresso referencial como inadequada, levantamos a hiptese de que tal inadequao pode decorrer ou de quebra localizada da coerncia textual ou de desobedincia a alguma norma lingstica. A partir da anlise de 77 textos produzidos por alunos pr-universitrios, e levando em conta os dois fatores mencionados (coerncia textual e norma lingstica), propomos um quadro classificatrio das inadequaes referenciais. Especificamente em relao s questes prescritivas, atentamos ainda para o fato de que, se a norma lingstica pode servir como pretexto para o julgamento de expresses referenciais bem-sucedidas, no menos verdade que o processamento cognitivo dessas expresses tambm serve ao mesmo propsito. Dessa forma, a partir de uma anlise mais completa da questo da inadequao, pretendemos fornecer contribuies para o ensino de lngua, partindo da hiptese de que os postulados da referenciao podem oferecer novas perspectivas atividade de avaliao e correo de textos escolares.

Palavras-chave: referenciao; coerncia textual; norma lingstica; aceitabilidade.

7

ABSTRACT

The main objective of this work is to propose an analysis concerning the use of referential expressions that could be considered inappropriate. Once the referentiation implies a discursive activity related to the building of public versions of the real world, we discuss the fact that intersubjective negotiations are not always harmonious, from which could result some unacceptable references. In order to analyze linguistic factors that could be concerned when one consider a referential expression as inadequate, we raise the hypothesis that such inadequacy may be consequent to two causes: local broke of textual coherence or disregard to linguistic norm. With these two factors in mind, we analyze 77 texts produced by pre-college students and propose a classification of the inappropriate referential expressions. Concerning prescriptive issues, we call the attention for the fact that, if linguistic norm is a useful tool for the judgment of well-succeeded referential expressions, so is the cognitive process of these expressions as well. This way, we believe we provide a more complete investigation about the issue of inadequacy. Therefore, we intend to contribute for language teaching, considering the hypothesis that referentiation postulates may offer new perspectives to the activity of writing evaluation. Key words: referentiation; coherence; linguistic norm; acceptability.

8

SUMRIO

INTRODUO ------------------------------------------------------------------------- 11

1 EXPRESSES REFERENCIAIS VISTAS SOB A TICA DA REFERENCIAO --------------------------------------------------------------------

15

1.1 Postulados da referenciao -----------------------------------------------------

15

1.2 Tipos de processo referencial --------------------------------------------------- 24

1.3 Sugesto de tratamento para alguns casos de anfora indireta esquemtica pronominal -------------------------------------------------------------

36

2 FATORES RELACIONADOS AO JULGAMENTO DA INADEQUAO REFERENCIAL: PARTE 1 COERNCIA TEXTUAL ------------------------

47

2.1 Evoluo do conceito de coerncia e implicaes para a pesquisa --------

47

2.2 Critrios de coerncia ------------------------------------------------------------ 50

2.2.1 Continuidade --------------------------------------------------------------- 52

2.2.2 Progresso ------------------------------------------------------------------ 53

2.2.3 No-contradio ------------------------------------------------------------ 55

2.3 O interlocutor e a compreenso das expresses referenciais: o papel da aceitabilidade --------------------------------------------------------------------------

58

3 FATORES RELACIONADOS AO JULGAMENTO DA INADEQUAO REFERENCIAL: PARTE 2 NORMA LINGSTICA -------------------------

69

3.1 Teorizao sociolingstica sobre norma --------------------------------------

70

3.2 Norma na modalidade escrita --------------------------------------------------- 76

3.3 Norma textual-discursiva -------------------------------------------------------- 81

3.4 Tratamento escolar da norma --------------------------------------------------- 85

3.5 Relao entre norma e referenciao ------------------------------------------- 87

4 PROPOSTA DE CLASSIFICAO PARA AS INADEQUAES

REFERENCIAIS ------------------------------------------------------------------------

91

4.1 Metodologia ----------------------------------------------------------------------- 91

4.2 Classificao das inadequaes referenciais ------------------------------- 94

4.2.1 Inadequao referencial e coerncia textual ------------------------- 96

4.2.2 Inadequao referencial e norma lingstica ------------------------ 110

4.2.2.1 Inadequao referencial e norma gramatical ------------------ 110

9

4.2.2.2 Inadequao referencial e norma textual-discursiva --------- 115

5 CONTRIBUIES DA REFERENCIAO PARA A AVALIAO DE

TEXTOS ESCRITOS -------------------------------------------------------------------

125

5.1 Ensino, Lingstica Aplicada e referenciao: algumas ressalvas --------- 125

5.2 Referenciao como porta de acesso para a compreenso ------------------ 127

5.3 Mais um fator para o julgamento da adequao: a eficcia pragmtica --- 129

5.3.1 Adequao referencial e coerncia textual ----------------------------- 129

5.3.2 Adequao referencial e norma lingstica ----------------------------- 132

5.4 Para alm do julgamento de adequao --------------------------------------- 136

CONSIDERAES FINAIS ---------------------------------------------------------- 140

REFERNCIAS ------------------------------------------------------------------------- 144

ANEXOS --------------------------------------------------------------------------------- 149

Anexo A Textos analisados ------------------------------------------------------- 150

Anexo B Propostas orientadoras das produes textuais ---------------------- 177

10

LISTA DE QUADROS E FIGURAS

Quadro 1 - Esquema geral dos processos de referenciao (KOCH e MARCUSCHI, 1998) --------------------------------------------------------------------

25

Quadro 2 - Quadro geral das relaes anafricas (MARCUSCHI, 2000) --------

27

Quadro 3 Representao esquemtica da classificao de Cavalcante (2003) para as expresses referenciais ---------------------------------------------------------

35 Quadro 4 Representao esquemtica da classificao de Cavalcante (2003) para as expresses referenciais aps modificaes sugeridas ----------------------

46 Quadro 5 Inadequaes referenciais decorrentes de prejuzo coerncia textual --------------------------------------------------------------------------------------

109 Quadro 6 Inadequaes referenciais decorrentes de desobedincia norma lingstica ----------------------------------------------------------------------------------

123 Quadro 7 - Classificao geral das inadequaes referenciais ---------------------

123

Figura 1 - Representao da operao de avaliao textual (CHAROLLES, 1988) ---------------------------------------------------------------------------------------

62

Figura 2 - Representao modificada da operao de avaliao textual (CHAROLLES, 1988) -------------------------------------------------------------------

63

11

INTRODUO

O estudo dos referentes enveredou por um caminho diferente a partir da proposta

terica denominada referenciao. Ao postular que, no texto, d-se por meio da linguagem a

discretizao do mundo, que resulta obrigatoriamente de uma elaborao cognitivo-social, a

proposta toca na questo fundamental de que os referentes textuais (ou objetos-de-discurso)

no so representaes extensionalistas dos fenmenos empricos. Em outras palavras, a

referenciao apresenta como posio central a idia de que a experincia perceptual

elaborada, cognitiva e socialmente, dentro do processo discursivo, pelos interlocutores.

A proposta acaba se incluindo muito pertinentemente dentro dos estudos em

Lingstica Textual (LT), uma vez que se alicera em dois aspectos bastante caros ao

momento atual da disciplina: o social e o cognitivo. De um lado, o aspecto social pe em

relevo a necessidade de se analisarem os referentes lingsticos sob o foco da Pragmtica, o

que garante destaque aos vrios fatores que interferem na configurao textual e que se

localizam alm dos fatores estritamente lingsticos. Por outro lado, o aspecto cognitivo

enfatiza que o processamento referencial estratgico, no sentido de que os interlocutores

selecionam formas de atuar sobre a produo e recepo de textos, utilizando para tanto o

conhecimento (em algum nvel) proveniente de sua bagagem intelectiva.

Alm da comunho entre os componentes social e cognitivo, deve-se destacar que o

estudo do processamento referencial contribui sobremaneira para a reflexo acerca dos

fenmenos da coeso e da coerncia. A forma como se ativam, reativam e desativam os

referentes textuais condio das mais fundamentais para o aprofundado conhecimento sobre

continuidade e progresso textuais (dois processos relevantes para o estabelecimento da

coeso e da coerncia).

Portanto, dentro da LT que a referenciao encontra terreno frtil para uma

explorao exaustiva. Ao longo da ltima dcada, a produo cientfica, em LT, que toma

como pressupostos os postulados desta proposta considervel. Alguns estudos, pelo carter

de novidade da teoria, pretendem fornecer um quadro discriminatrio dos diferentes tipos

de expresses referenciais, principalmente no que toca ao papel dessas construes na

continuidade e progresso textuais. H ainda as pesquisas que se preocupam em analisar um

12

tipo especfico de construo referencial, por exemplo: anfora recategorizadora, anfora

indireta, encapsulamento.

Tanto nos trabalhos do primeiro quanto nos do segundo tipo, h a inteno de

investigar o papel dos fatores contextuais nas escolhas das expresses referenciais

presentificadas na superfcie textual. O objetivo dessas anlises esclarecer as motivaes,

pertinentes para o produtor de textos, que concorrem para a seleo de expresses que

representem os referentes textuais pretendidos. Contudo, no mbito das motivaes, sentimos

falta de trabalhos que se preocupem com o processo interpretativo dessas expresses por parte

do interlocutor. Se aceitarmos que a designao referencial envolve um processo submetido

no apenas a escolhas diversas, mas tambm a algumas restries (ou vrias, dependendo da

situao de interao), no ser difcil constatar a possibilidade de haver expresses

referenciais que sejam rejeitadas em algumas situaes de interao.

As imposies a alguns usos referenciais constituem um fenmeno ainda no

explorado em pesquisas na rea de referenciao. Partindo desse enfoque, julgamos pertinente

que haja uma discusso a respeito das restries aos usos referenciais presentes em textos

escritos de aprendizes. Nos textos escolares, possvel flagrar com mais freqncia a

ocorrncia de expresses referenciais no-aceitas. Nestes textos, os produtores-alunos, por

ainda estarem aprendendo as caractersticas especficas de textos da modalidade escrita (e

dentro destas as caractersticas especficas de cada gnero textual), ainda desconhecem muitas

das restries envolvidas nesse tipo de interao.

Encontramos nessa seara uma justificativa para propormos uma pesquisa que

possibilite esclarecimentos sobre a considerao da inadequao de expresses referenciais

presentes em textos de aprendizes. Propomo-nos a gerar uma reflexo em torno de dois

questionamentos: 1) que fatores podem ser alegados, por interlocutores, como responsveis

pela inadequao de expresses referenciais presentes em textos escritos por produtores

inexperientes?; 2) h interpretaes, luz da proposta da referenciao, que possam advogar

em favor da adequao de usos referenciais tidos como inadequados?

Para o primeiro questionamento, levantamos a hiptese de que h, basicamente, duas

motivaes para se considerar uma expresso referencial como inadequada: a ruptura na

construo do sentido e a desobedincia a coeres normativas. Em relao ao segundo

questionamento, sugerimos a hiptese de que o entendimento do processamento referencial

13

como uma atividade sociocognitiva pode ajudar a compreender certos usos referenciais como

adequados, tanto no que diz respeito avaliao da coerncia quanto em relao avaliao

da adequao prescritiva.

Nossos objetivos principais, resultantes dos questionamentos postos, so, pois,

investigar as motivaes levadas em conta para se julgar a adequao de expresses

referenciais e discutir a possibilidade de os postulados da referenciao interferirem nesse

julgamento. Alm desses, temos outros dois objetivos. O primeiro propor um quadro

descritivo, abrangendo tanto os aspectos normativos quanto os concernentes construo da

coerncia textual, para expresses referenciais consideradas problemticas em textos

escolares; o segundo propor uma discusso acerca da correo escolar de textos escritos, em

que vislumbramos o lugar do processamento referencial dentro desta atividade.

A fim de atingir esses objetivos, fizemos um levantamento das expresses referenciais

presentes em textos produzidos por alunos pr-universitrios, a partir do qual selecionamos

ocorrncias passveis de serem consideradas inadequadas. Essas ocorrncias foram, ento,

classificadas e analisadas de acordo com a motivao alegada como responsvel pela

inadequao. Posteriormente, analisamos as mesmas ocorrncias em relao ao que diz a

referenciao. A partir desses dois parmetros, pudemos refletir acerca das contribuies ao

ensino de lngua advindas da referenciao.

O trabalho est organizado da seguinte maneira: no captulo 1, apresentamos

detalhadamente a proposta terica da referenciao. Trata-se da teoria de base em que nos

ancoramos, a partir da qual orientamos boa parte de nossas leituras e para a qual pretendemos

contribuir com nossas descobertas. Tambm nesse captulo comentamos algumas pesquisas

que propem classificaes mais gerais para os fenmenos referenciais e justificamos nossa

filiao a uma delas. Fechamos o captulo inicial apresentando algumas sugestes proposta

classificatria que adotamos, relevantes para o tratamento que daremos aos dados levantados

em nossa pesquisa.

Nos captulos 2 e 3, continuamos a discusso terica, abordando os dois fatores que

defendemos serem responsveis pela inadequao referencial: coerncia textual e norma

lingstica. No captulo 2, lidamos com a coerncia textual. Inicialmente, esclarecemos a

noo de coerncia com que trabalhamos para propor categorias de inadequaes

referenciais. Continuando a reflexo terica sobre textualidade, discutimos a noo de

14

aceitabilidade, uma vez que nossa investigao diz respeito atividade de interao

focalizada no leitor (no caso, o professor-corretor).

No captulo 3, discutimos a norma lingstica. Apresentamos as principais

contribuies da pesquisa sociolingstica para o entendimento da atividade prescritiva e

defendemos que h uma gama de ocorrncias sujeitas a prescries que vo alm dos aspectos

normativos pertencentes ao escopo da Gramtica Tradicional. Tambm mostramos aqui como

encaramos a relao entre norma e referenciao.

No captulo 4, apresentamos a anlise dos resultados propriamente ditos. Iniciamos

com a descrio da metodologia utilizada e, em seguida, a partir dos fatores arrolados nos

captulos 2 e 3, sugerirmos uma proposta inicial de classificao para possveis inadequaes

referenciais. Procuramos demonstrar a pertinncia das categorias e subcategorias propostas a

partir de exemplos retirados dos textos analisados. Principalmente, tentamos mostrar de que

maneira os pressupostos tericos da referenciao podem interferir no julgamento da

adequao de certos usos lingsticos.

No captulo 5, fazemos uma discusso relacionada a nossos achados. Focalizamos a

questo em termos de possveis contribuies da referenciao para a correo e avaliao de

textos no ambiente escolar. Para tanto, remetemos importncia de se analisar as ocorrncias

atravs de um vis pragmtico, que privilegie os usos efetivamente acionados em interaes

pelo texto escrito.

Fechamos o trabalho com a seo de consideraes finais, na qual pontuamos os

principais resultados encontrados em nosso trabalho, bem como indicamos novas perspectivas

que se abrem a partir da.

15

1 EXPRESSES REFERENCIAIS VISTAS SOB A TICA DA

REFERENCIAO

Neste captulo, apresentamos a proposta terica da referenciao e sua conseqente

aplicao ao estudo das expresses referenciais. Inicialmente, apresentamos os postulados da

proposta, ancorando-nos principalmente no trabalho de Mondada e Dubois ([1995] 2003), e

recorrendo a outros autores para complementar alguns pontos. Na seo seguinte, mapeamos

os tratamentos tipolgicos dos processos referenciais que tomam como pressuposta a noo

da referenciao. Explicamos ainda a importncia de uma tipologia para a operacionalizao

da pesquisa que desenvolvemos, bem como justificamos nossa escolha por uma dessas

propostas, a saber, a distribuio classificatria de Cavalcante (2003), detalhada nesta seo.

Por fim, sugerimos uma nova proposta de tratamento para alguns casos classificados como

anfora indireta com recategorizao lexical.

1.1 Postulados da referenciao

Antes de falarmos em inadequao das expresses referenciais, preciso entender

como a proposta conhecida como referenciao contribui para o entendimento da relao

entre lngua e realidade. Encontramos em Mondada e Dubois (2003) o quadro terico

norteador desta perspectiva.

As autoras rejeitam as concepes que vem o processo de referir como uma relao

especular lngua-mundo, nas quais as coisas da realidade j existem, e a funo dos sujeitos

apenas nome-las por intermdio da lngua1. Elas optam por contrapor a essa viso

apriorstica a possibilidade de reconsiderar a questo partindo da instabilidade constitutiva

das categorias, por sua vez cognitivas e lingsticas, assim como de seus processos de

estabilizao (MONDADA e DUBOIS, 2003, p.19). As autoras, ento, propem o termo

referenciao para expressar a idia de dinamismo que envolve o processo no qual se d

1 Esta seria, por exemplo, a posio de Milner (2003, p.85), confirmada nas seguintes passagens: Costuma-se reconhecer que, sob certas condies, as seqncias lingsticas podem ser associadas a certos segmentos da realidade, os quais elas supostamente designam e que so sua referncia [...] Uma seqncia nominal possui, ento, uma referncia, a qual o segmento da realidade que lhe associado.

16

uma construo de objetos cognitivos e discursivos na intersubjetividade das negociaes, das modificaes, das ratificaes, de concepes individuais e pblicas do mundo. [...] Esta abordagem implica [...] um sujeito scio-cognitivo mediante uma relao indireta entre os discursos e o mundo (MONDADA e DUBOIS, 2003, p.20).

A proposta das autoras sedimenta uma posio, disseminada em vrios estudos

lingsticos de orientao sociocognitivista, de que os usos lingsticos revelam no a

realidade, mas, sim, uma percepo do real. Ou seja, a experincia que os sujeitos tm do real

sofre obrigatoriamente elaboraes e reelaboraes cognitivas por parte desses sujeitos, que

explicitam essas (re)elaboraes por meio da linguagem.

Em suma, sob a viso de Mondada e Dubois a respeito da instabilidade constitutiva

das entidades da lngua e do mundo, conclui-se que uma mesma realidade pode ser expressa

sob diversas maneiras, dependentes de vrios fatores (intencionalidade, considerao da

aceitabilidade, momento scio-histrico etc.). A fim de ilustrar essa posio, vejamos o

exemplo abaixo, um excerto da reportagem Falar e escrever, eis a questo, que tem como um

dos objetivos relatar as atividades do professor Pasquale Cipro Neto:

(1) Pasquale, no entanto, no uma unanimidade. [...] inevitavelmente ouve crticas. Elas ecoam o pensamento de uma certa corrente relativista, que acha que os gramticos preocupados com as regras da norma culta prestam um desservio lngua. De acordo com essa tendncia, o certo e o errado em portugus no so conceitos absolutos. Quem aponta correes na fala popular estaria, na verdade, solapando a inventividade e a auto-estima das classes menos abastadas. Isso configuraria uma postura elitista. Trata-se de um raciocnio torto, baseado num esquerdismo de meia-pataca que idealiza tudo o que popular inclusive a ignorncia, como se ela fosse atributo, e no problema, do povo. O que esses acadmicos preconizam que os ignorantes continuem a s-lo. Que percam oportunidades de emprego e a conseqente chance de subir na vida por falar errado. (Veja, 7 nov. 2001. p.112)

Nesse trecho, a realidade representada diz respeito rejeio da comunidade

acadmica de lingistas atuao profissional de Pasquale Cipro Neto. A revista Veja

interpreta essa rejeio como o pensamento de uma certa corrente relativista, ou ainda como

um raciocnio torto.... V-se bem que essa situao caracterizada por Veja de forma

desprestigiada. Ora, a mesma rejeio, dentro do meio acadmico, percebida (com certo

consenso) como uma crtica ao ensino de lngua que prestigia somente a norma-padro em

detrimento de outras variedades lingsticas (ver, por exemplo, BAGNO, 1999, 2000;

SCHERRE, 20022; ALMEIDA e ZAVAM, 2004), o que pode ser tomado como uma postura

elitista. Portanto, o que temos aqui so duas verses (duas elaboraes), orientadas para a

obteno de objetivos especficos, de uma mesma situao do mundo ordinrio. 2 O texto de Scherre, por sinal, foi motivado pela reportagem de Veja, tendo sido o excerto acima a gota dgua para que a autora se manifestasse.

17

Vemos, ento, que, de acordo com a proposta da referenciao, pela expresso

referencial remete-se a uma entidade que construda na atividade discursiva e resultante da

elaborao perceptual da realidade. Pode-se dizer, assim, que o referente, aquilo a que remete

uma expresso referencial, na verdade uma entidade do discurso; por isso, Mondada e

Dubois (2003) sugerem que o referente seja denominado de objeto-de-discurso3.

A construo dos referentes, enquanto atividade constitutivamente discursiva, decorre

da ao de sujeitos em interao, que trabalham de forma colaborativa. Essa cooperao

percebida, por exemplo, em (2), retirado de Mondada e Dubois4. O contexto de interao o

seguinte: num laboratrio de pesquisas neurofisiolgicas, dois estudiosos observam

micrografias eletrnicas, a fim de verificar a presena de axnios terminais.

(2) (...) J: isso sujeira oh, tem um bem ali! (2 segundos) M: isso? J: bom, eu num sei M: no, isso no parece com vesculas (0.3 segundos) M: parece mais com uma espinha ou algo assim(1 segundo) J: hum bom isso s pode ser uma coisa entre duas hum eu acho que aqueles ali microtbulos cortados e

um ngulo e ento (ns no iremos) circund-los

V-se bem que, nessa interao, a deciso quanto caracterizao do objeto-de-mundo

como sendo ou no um axnio negociada entre os interlocutores (perceba-se a maneira

como M intervm e acaba por modificar a atuao de J). Dessa negociao, resulta a iniciativa

de no tratar o objeto em questo como um axnio. Assim, discursivamente, instaurou-se um

objeto-de-discurso: um no-axnio, caracterizado, pelo menos pelo cotexto disponvel,

como uma espinha ou algo assim.

A partir dessa e de outras ocorrncias, oriundas de conversaes comuns ou mesmo

de situaes em que os locutores tentavam controlar seus processos de construo de sentido

(como (2)), Mondada e Dubois (2003, p.38) concluem que as descries so menos

orientadas para a realidade em si mesma que para a realizao negociada de uma verso

pblica e aceitvel do mundo.

3 Utilizamos, neste trabalho, os termos referente e objeto-de-discurso como sinnimos, o que deixa clara a nossa vinculao concepo de referente assumida nesse pargrafo, e, ao mesmo tempo, afasta-nos da concepo de referente como objeto da realidade denotado pela lngua. 4 As autoras retiram o exemplo de Lynch (apud MONDADA e DUBOIS, 2003).

18

Os objetos-de-discurso, enquanto entidades construdas ao longo da interao

discursiva, podem sofrer modificaes. Koch (2003, p.83-84) defende que, dentro do esquema

de ativao e reativao de referentes em um texto, os elementos textuais j existentes podem

ser constantemente modificados ou expandidos. Durante o processo de compreenso,

desdobra-se uma unidade de representao extremamente complexa, pelo acrscimo sucessivo

e intermitente de novas informaes e/ou avaliaes acerca do referente. So os acrscimos

postos aos referentes, explcitos ou no, que vo colaborar para a progresso referencial. o

que podemos perceber no exemplo abaixo, que contm um trecho de uma resenha sobre o

desenho animado Caverna do Drago:

(3) Nesta terra sinistra, estes rapazes e moas ganham como mascote Uni, um filhote de unicrnio pentelho pr cacete - quem no lembra do grito fininho do Bobby gritando "Uniiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!" e o pequeno bichinho respondendo "B" do outro lado. [...]

O maior problema do grupo era realmente voltar para casa. Caceta, quantas vezes eles no tentaram retornar nossa terra e acabaram impedidos por este ou aquele motivo? Uma hora era o Vingador, outra hora eram as armas msticas (que teriam que ser deixadas para trs e poderiam cair nas garras do vilo) e, na maioria das vezes, a coisa descabaava por causa...do Uni. Pois : o desgraado do chifrudinho tambm no poderia sair daquela terra mgica e, na ltima hora, o Bobby se arrependia de ter que deixar seu bichim pra trs...e fodia tudo. (http://www.a-arca.com/v2/artigosdt.asp?sec=4&ssec=11&cdn=1386)

No excerto acima, um mesmo objeto-de-discurso, estabelecido pelas expresses

sublinhadas, apresenta-se sob formas diferentes (diz-se que ele sofre recategorizaes lexicais

ver, sobre isso, APOTHLOZ e REICHLER-BGUELIN, 1995). Inicialmente, opta-se por

utilizar o nome da personagem, imediatamente seguido de uma expresso que recategoriza

esse objeto, deixando clara a avaliao depreciativa do enunciador: um filhote de unicrnio

pentelho pr cacete. Em seguida, utiliza-se uma expresso no-pejorativa o pequeno

bichinho , tambm construda a partir de um ponto de vista, o da personagem Bobby,

trazido ao texto pela voz do enunciador-locutor. Posteriormente, pe-se em destaque uma

caracterstica fsica do animal (o desgraado do chifrudinho), a expresso igualmente

portando o tom avaliativo pejorativo5; ao final, o objeto referido por um nome genrico

(bichim), que parece remontar mais uma vez perspectiva da personagem Bobby. Portanto,

um mesmo objeto-de-discurso passou por cinco formas referenciais, que modificam seu status

ao longo do texto.

At aqui, foi enfatizado o carter dinmico inerente atividade discursiva de atribuir

referncia. Contudo, Mondada e Dubois (2003), ao mesmo tempo em que propem a

5 Saliente-se desde j que as vrias acepes por que passa um objeto-de-discurso no precisam necessariamente ser dotadas de carga avaliativa explcita. Veja-se, no mesmo excerto, que a expresso estes rapazes e moas recategorizada como o grupo, sendo esta ltima expresso uma forma no-avaliativa de se referir.

19

instabilidade nas relaes entre a linguagem e o mundo, reconhecem haver processos que

buscam a estabilizao dos referentes. No fosse assim, a reelaborao mental necessria

construo dos objetos-de-discurso no teria uma base em que se assentar. Os trs processos

de estabilizao de referentes comentados pelas autoras so os prottipos, as anforas e as

tcnicas de inscrio.

Segundo as pesquisadoras (2003, p.42), a criao de prottipos possibilita uma

ancoragem s interpretaes que fazemos do mundo. A nomeao do prottipo torna

possvel seu compartilhamento entre muitos indivduos atravs da comunicao lingstica, e

ele se torna, de fato, um objeto socialmente distribudo, estabilizado no seio de um grupo de

sujeitos.

J as anforas seriam responsveis por uma estabilizao ad hoc, uma vez que podem

ter a funo de focalizar uma denominao particular, excluindo para isso outras

possibilidades, mesmo se elas estiverem potencialmente no texto (MONDADA e DUBOIS,

2003, p.43).

Sobre as tcnicas de inscrio, Mondada e Dubois comentam que a escrita possibilita

uma descontextualizao dos itens lexicais, o que permite pensar a lngua como objeto de

estudo em si mesmo, independente da atividade discursiva. Lembram ainda elas que o

surgimento da imprensa possibilitou o sucesso da cincia moderna, que passou a fornecer

enunciados visuais produzveis com exatido e longevidade. Uma vez assim estabilizados

pelos textos e pelas inscries visuais, os fatos resistiro s desestabilizaes possveis da

controvrsia, terminando por se impor como sendo evidentes e por tornar-se referentes

estveis da cincia (MONDADA e DUBOIS, 2003, p.48).

Os fatores de estabilizao, de carter eminentemente social, promovem restries aos

interlocutores no que toca atividade de referir. Portanto, no se pode concluir que o objeto-

de-discurso, mesmo se tratando de uma entidade criada mediante a elaborao cognitiva, seja

conseqente vontade individual do sujeito, que tem um pensamento e o elabora

independentemente de quaisquer fatores. Isso revela uma concepo de uma atividade

cognitiva isolada, completamente alheia a outros fatores que competem para a tarefa de

produzir textos.

20

preciso, pois, no extrapolar no que diz respeito ao papel da subjetividade dentro das

negociaes de sentido (da Mondada e Dubois falarem em intersubjetividade, salientando a

idia de subjetividade partilhada e dependente do receptor). Caso contrrio, cair-se-ia no

extremo oposto da idia de lngua como espelho da realidade: a idia de lngua como

expresso do desejo e pensamento individual do falante. Quanto a isso, concordamos com

Marcuschi (2000, p.82), para quem a realidade emprica extra-mental existe, mas mais do

que uma experincia estritamente sensorial e especularmente refletida pela linguagem

discretizada no processo de designao discursiva e dependente de um trabalho cognitivo

realizado no discurso6.

Ainda falando sobre a reelaborao dos dados sensoriais mediada pelos sujeitos,

acrescenta o autor (2000, p.82):

Nossa tese a de que essa reelaborao se d essencialmente no discurso. No postulamos uma reelaborao subjetiva, individual, em que cada qual pode fazer o que quiser. A reelaborao deve obedecer a restries impostas pelas condies culturais, sociais, histricas e, finalmente, pelas condies de processamento decorrentes do uso da lngua.

Portanto, o sujeito no cria sua realidade do nada, conforme seus desejos. Em primeiro

lugar, deve-se levar em conta que, ainda que no seja igual ao objeto-do-mundo, o objeto-de-

discurso uma construo que se ancora no mundo real ordinrio7, j que ele resulta de uma

elaborao do real, o que implica que a sua construo est sujeita a restries concretas,

dentre as quais o entorno sociocultural e o contexto imediato de interao.

Em segundo lugar, saiba-se que o escopo do componente cognitivo, acionado na

produo e processamento dos referentes textuais, no est restrito apenas a conhecimentos

individuais, imutveis e independentes que um sujeito possa ter, mas, sim, maneira,

6 Cardoso (2003, p.84), analisando a problemtica da referncia para trs grandes perspectivas de anlise lingstica (Estruturalismo, Lingstica Enunciativa e Filosofia da Linguagem), vinculando-se Anlise do Discurso, postula posio semelhante: A realidade no existe em si e por si como um objeto dado, objeto de contemplao, esperando para ser compreendido e interpretado, mas a realidade existe e inteligvel somente com relao ao humana (grifo nosso). 7 Veja-se o caso do exemplo (1): o objeto de discurso construdo a partir das expresses o pensamento de uma certa corrente relativista, uma postura elitista e um raciocnio torto, baseado num esquerdismo de meia-pataca que idealiza tudo o que popular tem como base experincias de situaes vividas no mundo real ordinrio.

21

dinmica, como esse conhecimento arquivado, processado e ativado frente a presses

sociais8.

O que podemos afirmar que o objeto-de-discurso, pelo menos quanto aos aspectos

analisados at aqui, apresenta duas faces (concorrentes, no-excludentes); de um lado, resulta

de escolhas dos indivduos; de outro, est restrito a constries diversas. Em outras palavras:

as escolhas, embora mltiplas, no so infinitas.

A ttulo de exemplificao, tome-se a restrio que alguns gneros no-humorsticos

vinculados ao discurso poltico apresentam em contraste com os gneros humorsticos.

Reportagens, notcias e editoriais (gneros srios) de jornais e revistas, embora tenham um

vasto leque de expresses (mais ou menos avaliativas) para construir referentes ancorados nas

personalidades Fernando Henrique Cardoso, Lus Incio Lula da Silva e Severino Cavalcante,

no podem, por exemplo, escolher as expresses Don Doca FHC Boca de Sovaco, Lus

Enrolcio Lula da Silva e Jeguerino Cavalcante9.

H ainda restries de ordem gramatical. Por exemplo, a escolha de uma expresso

referencial adequada deve atender s exigncias de concordncia se a situao de interao

demandar um grau de alta formalidade. Refora-se, com esses exemplos, a idia de que as

escolhas dos sujeitos no so completamente livres nem muito menos aleatrias.

Em suma, o processo de referenciao pode ser entendido como o conjunto de

operaes dinmicas efetuadas pelos sujeitos, medida que o discurso se desenvolve, com o

intuito de construir, compartilhadamente, os objetos-de-discurso que garantiro a construo

de sentido(s), ressaltando-se que tais construes so ancoradas nas experincias situadas no

real. Desta maneira, entendemos que a mudana de nomenclatura (de referncia para

referenciao) no apenas esttica. A idia de referenciao engloba os estudos dos

fenmenos textuais em um contexto bem mais abrangente, o da sociocognio, que no era

8 Conferir a discusso de Koch e Cunha-Lima (2004) sobre o sociocognitivismo. As autoras mostram que essa tendncia interdisciplinar no apenas uma juno dos aspectos sociais e cognitivos conforme so definidos pela Pragmtica e pelo Cognitivismo Clssico. Mais que isso, os estudos dessa rea de investigao pretendem demonstrar como as concepes de atividade social e atividade cognitiva mudam por se considerar que ambas se relacionam intrnseca e constitutivamente. 9 A primeira expresso era utilizada nas crnicas humorsticas de Jos Simo, poca em que Fernando Henrique era presidente; a segunda e a terceira apareceram nos esquetes do programa humorstico Casseta e Planeta Urgente.

22

considerado nos estudos iniciais sobre referncia, limitados, por exemplo, ao campo de

estudos da coeso cotextual (cf., por exemplo, KOCH, 1999).

De fato, a proposta terica da referenciao casa bem com o atual momento da

Lingstica Textual, que, segundo Koch (2003, 2004), apresenta forte tendncia

sociocognitivista. Assim que o estudo das formas de se atribuir referncia tem muito a

contribuir para o entendimento da continuidade e progresso textual, ampliando o espectro

para alm da progresso tpica e da retomada correferencial lineares.

Um exemplo desse alargamento do espectro seria o trabalho de Apothloz e Reichler-

Bguelin (1995) sobre a estratgia referencial de recategorizao, cuja nfase se encontra na

atuao dos sujeitos para a construo dos referentes textuais. Ao procurar descrever os

diversos tipos de recategorizao10, os autores mostram que os interlocutores tm a seu dispor

um leque de escolhas para designar um referente, sendo o lxico entendido como um conjunto

de recursos para as operaes finalizadas de designao.

A referenciao tambm tem muito a dizer sobre as relaes entre referentes

estabelecidas pelas anforas, pois permite que essa categoria seja entendida numa concepo

mais ampla, uma vez que o limite para as relaes pode ultrapassar o cotexto (sem

desconsider-lo, bvio) e seguir em direo memria discursiva compartilhada entre os

interlocutores. Numa estratgia como a anfora indireta, por exemplo, a relao entre

referentes pode se dar num plano essencialmente cognitivo-discursivo, possibilitando a

evocao de um contexto relevante para a interpretao adequada do anafrico. Temos, ento,

que aos sujeitos dada a possibilidade de estabelecer relaes de continuidade referencial

com ou sem retomada de referentes cotextuais. o que pode ser observado no exemplo a

seguir, retirado de Marcuschi (2005):

(4) Nos ltimos dias de agosto... a menina Rita Seidel acorda num minsculo quarto de hospital... A enfermeira chega at a cama...

Marcuschi comenta que a expresso A enfermeira no correferencial a uma

expresso anterior; entretanto, apresentada como conhecida porque se trata de um elemento

passvel de ativao pelo esquema cognitivo que se ativa com o item quarto de hospital. 10 Lembramos que a diviso de tipos de recategorizao proposta pelos autores peca pela ausncia de uniformidade quanto aos critrios estabelecidos. Isso j foi comentado por Tavares (2003), que, tomando como ponto de partida o trabalho de Apothloz e Reichler-Bguelin, prope uma classificao a partir de critrios mais ntidos.

23

Dessa forma, no se trata de uma anfora ancorada em relaes semnticas estritas, como so

as relaes meronmicas (relaes parte/todo) ou outras relaes semnticas inscritas nos

SNs definidos (MARCUSCHI, 2005, p.62).

Voltemos agora questo da dupla face do processo de se atribuir referncia. H de se

reconhecer (e isso que queremos enfatizar com nosso trabalho) que, na reelaborao

perceptual sociocognitiva que subjaz referenciao, o componente social (e tambm o

cognitivo), ao mesmo tempo em que permite diversas possibilidades de designao para um

referente, impe algumas (ou vrias) restries a essa designao. Claro est que, dependendo

de como a interao se processa, as restries podem ser maiores ou menores. Tomamos

como pressuposta a posio de Apothloz e Reichler-Bguelin (1995, p.239): A existncia

[...] de uma evidncia de adequao do vocabulrio (cada vez que um referente parece bem

merecer seu nome), a busca de normas de denominao e de um consenso social d-se

evidentemente1112 (grifo nosso). Ressalte-se, ainda levando em conta Apothloz e Reichler-

Bguelin, que a adequao referencial deve estar sujeita a restries culturais. Ou seja, essas

restries devem ser consideradas no como absolutas, mas, sim, como permanentemente

contextualizadas, variando, obviamente, de situao para situao. preciso, ento, investigar

as motivaes para certas restries, tarefa que tentaremos empreender nos prximos

captulos desta dissertao.

Por fim, acreditamos que o referencial terico que escolhemos essencial para

interpretarmos a situao de interao descrita e pode oferecer novas discusses para a

questo de como se encara a produo textual escolar. Uma vez que a sugesto de como a

referenciao concebe os referentes propicia uma maneira diferente de se encarar as

expresses referenciais acionadas no texto, possvel crer que essa nova sugesto teria

aplicaes inovadoras na atividade de avaliao de textos escolares. Portanto, como

contribuio de ordem prtica advinda dessa discusso, podemos pensar sobre de que maneira

a aplicao pedaggica de alguns dos princpios da proposta da referenciao poderia

contribuir para a maestria do aluno no que diz respeito construo de referentes textuais.

11 Apothloz e Reichler-Bguelin lembram que tais necessidades no devem mascarar o fato de que as designaes so funes das variveis mltiplas (1995, p.239). Os autores pretendem enfatizar o carter da construo referencial como escolha, ao passo que ns desejamos ver tambm os fatores de restrio a essas escolhas. 12 Para as citaes deste artigo, utilizamos a traduo (no-publicada) de Mnica Magalhes Cavalcante.

24

Essa discusso, no entanto, ser postergada para os captulos 4 e 5, referentes anlise e

discusso dos resultados.

Voltemos a ateno, neste momento, para os estudos que propem classificaes para

as expresses referenciais. Na prxima seo, veremos como alguns autores descreveram as

distines (funcionais e formais) das expresses referenciais luz dos postulados da

referenciao.

1.2 Tipos de processo referencial

J citamos na introduo deste trabalho a existncia de alguns estudos que procuram

traar um panorama geral da referenciao, propondo inclusive quadros classificatrios que

descrevam as diversas formas e/ou estratgias utilizadas pelos indivduos quando do

processamento referencial. Acreditamos que, mais do que um carter meramente descritivo,

esses trabalhos tm suma importncia na preciso de conceitos (condio necessria para o

desenvolvimento cientfico), uma vez que a sistematizao terminolgica inerente a

qualquer construo terica. Alm disso, as classificaes oferecem suporte metodolgico

para que outros trabalhos, ao tratarem de questes especficas da referenciao, possam

operacionalizar uma anlise textual sistemtica e efetiva.

No caso de nossa pesquisa, por exemplo, utilizamos uma proposta classificatria para

os processos referenciais a fim de: a) reconhecermos nos textos escolares as estratgias

utilizadas nas escolhas das expresses referenciais (por exemplo: recategorizao;

pronominalizao; encapsulamento; utilizao de anforas cossignificativas, parciais,

indiretas); b) procurarmos determinar que expresses referenciais podem ser consideradas

inadequadas e em que medida a estratgia utilizada por trs da escolha da expresso poderia

ser justamente considerada a causa da inadequao. Logo, o estabelecer uma classificao e o

poder utiliz-la com desenvoltura nos auxiliam na investigao, na medida em que nos

permitem uma viso mais precisa do fenmeno.

No Brasil, Koch e Marcuschi (1998), Marcuschi (2000) Koch (2003) e Cavalcante

(2003) so autores que se preocuparam em propor uma classificao mais abrangente para os

processos referenciais. Optamos por utilizar em nossa pesquisa a proposta de Cavalcante

(2003), por esta apresentar maior clareza na hierarquizao de critrios de delimitao e por

25

ser a mais completa no que diz respeito contemplao de vrias estratgias referenciais.

Antes de apresentarmos essa classificao, porm, descrevemos brevemente as outras

propostas, bem como as justificativas para no as termos escolhido.

Em um dos estudos pioneiros sobre a referenciao no Brasil, Koch e Marcuschi

(1998) propem o seguinte esquema geral para os processos de referenciao:

a) referenciao explcita: (correferenciao, co-significao = vinculao textual e antecedentes explcitos)

b) referenciao implcita: (correferenciao e no-co-significao = vinculao textual)

c) referenciao implcita: (correferenciao e no-co-significao = vinculao contextual)

d) referenciao implcita: (no-correferenciao nem co-siginificao = vinculao situacional, no-textual)

Quadro 1 - Esquema geral dos processos de referenciao (KOCH e MARCUSCHI, 1998)

Uma virtude desse esquema apontar que h diferena entre correferenciao e co-

significao, conceitos que podem, para os desavisados, parecer correspondentes. Conforme

veremos quando abordarmos a classificao de Cavalcante (2003), os dois conceitos dizem

respeito a nveis diferentes de classificao das expresses, sendo a co-significao um tipo

(dentre outros) de correferncia.

Entretanto, vemos nesse esquema geral trs problemas bsicos, a saber:

a) ausncia de exemplos que demonstrem que ocorrncias so contempladas por cada um

desses itens. Quando utilizam exemplos, os autores o fazem com base na classificao

de Apothloz e Reichler-Bguelin (1995) para as recategorizaes (retomadas de um

mesmo referente que lhe acrescentam alguma modificao) sem deixar claro de que

maneira os exemplos comentados corresponderiam ao esquema geral que eles

propem13. Na verdade, ao optarem por trazer exemplos que corroboram a

classificao de Apothloz e Reichler-Bguelin, Koch e Marcuschi nem poderiam

contemplar todas as categorias de seu esquema geral, j que o primeiro item diz

respeito co-significao, que no ocorre em recategorizaes;

13 Como a recategorizao se trata de uma condio de correferncia sem co-significao, conclumos que os casos apresentados por Koch e Marcuschi estariam includos nos itens b e c de seu esquema geral, embora isso no esteja claro no trabalho dos autores.

26

b) a falta de explicao sobre o que vem a ser uma referenciao implcita. Pelo esquema

apresentado, os autores do a entender que casos de no-co-significao seriam

sempre considerados como ocorrncias com referenciao implcita. Ora, se

pensarmos nas recategorizaes como casos anafricos de correferncia (mesmo

referente) e no-co-significao (mudana de atributos desse referente), por que

considerar essa relao como resultado de uma referenciao completamente

implcita? Parece-nos que a relao entre o anafrico e o antecedente (relao

anafrica direta, portanto), ainda que no seja co-significativa, pode em muitos casos

ser percebida na superfcie textual, no havendo, ento, uma implicitude14;

c) a ausncia de uma explicao para diferenciar vinculao contextual de vinculao

situacional. Em que sentido, ento, est se usando o termo contextual, seno para

estabelecer os elementos exteriores superfcie textual que entram na depreenso do

sentido? Se essa diferena entra na delimitao das categorias, preciso que ela seja

explicada a contento, j que no pode nem ser inferida, em virtude da ausncia de

exemplos.

Marcuschi (2000), procurando analisar os aspectos da progresso referencial no que

tange s suas diferenas entre o portugus brasileiro falado e escrito, amplia o quadro

classificatrio proposto por ele e por Koch, do que resulta o seguinte esquema:

14 Parece que o mesmo raciocnio utilizado por Koch e Marcuschi (1998), j que os autores, em seguida proposta de classificao, falam em recategorizao lexical explcita.

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Relao anafrica Esquema categorial {1} Retomada explcita de antecedente por repetio de item ou construo lingstica com estabilidade/continuidade referencial {2} Retomada explcita do antecedente por pronome com estabilidade/continuidade referencial {3} Retomada implcita de antecedente por sinonmia, parfrase, associao, metonmia com estabilidade/ continuidade referencial

{1} + correferncia - recategorizao + co-significao {2} + correferncia - recategorizao - co-significao {3}+ correferncia + recategorizao co-significao

{4} Com remisso e retomada implcita de antecedente no pontualizado e com reorientao referencial realizada por diticos textuais {5} Com remisso e retomada implcita de antecedente e reorientao referencial por nominalizao/verbo ou hipo/ hiperonmia {6} Com remisso sem retomada de antecedente e reorientao referencial por rotulaes metalingsticas ou de fora ilocutria {7} Sem remisso e sem retomada de antecedente, com construo referencial induzida por pronome/nome ou construo nominal

{4} correferncia + recategorizao - co-significao {5} correferncia

+ recategorizao - co-significao {6}- correferncia (?) recategorizao (?) co-significao {7}(?) correferncia (?) recategorizao (?) co-significao

Quadro 2 - Quadro geral das relaes anafricas (MARCUSCHI, 2000)

Marcuschi apresenta exemplos para a maior parte das estratgias de seu quadro (a

exceo a falta de exemplos da estratgia {4}), os quais no apresentamos por falta de

espao. Porm, o autor ainda mantm uma distino no explicada entre o que se est

considerando como explcito e implcito. Alm disso, como as estratgias de Marcuschi

podem ser percebidas na classificao de Cavalcante (2003), optamos por esta ltima,

tambm em virtude da nomenclatura mais simplificada.

Koch (2003) tambm prope uma descrio do que chama estratgias de progresso

referencial, que podem ser trs: uso de pronomes ou elipses, uso de expresses nominais

definidas, uso de expresses nominais indefinidas. Dentro das expresses nominais definidas,

a autora distingue as descries definidas das nominalizaes.

Nessa proposta, Koch apresenta muitos exemplos que facilitam a compreenso da

delimitao das categorias. No entanto, a proposta da autora enfoca mais o trao formal das

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expresses referenciais. Por exemplo, funcionalmente, tanto o uso de pronomes quanto o uso

de descries definidas no revelam estratgias distintas. Em ambos, o que est presente

uma estratgia anafrica, que tanto pode ser direta quanto indireta. A rigor, Koch no

classifica as expresses referenciais anafricas em relao transformao que podem exercer

nas expresses introdutrias ou em relao s conexes ncora/anfora indireta; por isso so

postas em segundo plano, nessa tipologia, as recategorizaes, as anforas indiretas ou as

relaes entre anfora e dixis, embora a autora trate desses fenmenos em separado.

Em virtude das ressalvas feitas s tipologias brevemente descritas, optamos por

utilizar, em nossa pesquisa, a proposta classificatria de Cavalcante (2003), por acreditarmos

que esta , at o momento, a mais completa e coerente para a classificao das expresses

referenciais. A seguir, apresentamos essa proposta em detalhes, fechando a exposio com um

quadro que d uma idia da totalidade de categorias descritas. Posteriormente, propomos uma

reviso de duas das categorias descritas por Cavalcante, para, ento, apresentar um novo

quadro que contemple as alteraes que sugerimos.

Com sua proposta, a autora explicita que pretende preencher uma lacuna nos estudos

sobre referenciao: a ausncia de uma classificao geral de anafricos e diticos. Seguindo

o lastro da referenciao como motivao terica, Cavalcante concebe que, na construo do

referente, tem papel essencial a interao de variados contextos (cotexto, situao de

interao, conhecimento sociocognitivo partilhado). Da ela afirmar que qualquer anlise

lingstica que no leve em conta o contexto finda por ser incua. Assim, seu trabalho se ope

a estudos que optam por analisar a lngua de maneira exclusivamente formal (anlise da

langue, do sistema).

Sua classificao fornece uma sistematizao, ao mesmo tempo simplificada e

abrangente, que leva em conta trs fatores concernentes s expresses referenciais, na

seguinte ordem de importncia: funo referencial, traos de significao e aspecto formal.

Em relao ao primeiro critrio, Cavalcante inicialmente enxerga duas funes gerais

das expresses referenciais: 1) introduzir um novo referente no universo discursivo, ou 2)

promover a continuidade de referentes j estabelecidos no universo discursivo. Tais funes

dividem, portanto, os processos referenciais em dois grandes grupos: os introdutores de um

novo referente no universo discursivo; os promotores da continuidade referencial de objetos j

presentes no universo discursivo.

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Cavalcante chama as expresses do primeiro grupo de introdues referenciais, cujo

aparecimento no est atrelado a nenhum elemento do contexto discursivo ou da situao

imediata de comunicao. Neste grande grupo, ainda pensando em funo referencial,

encontrar-se-iam dois subgrupos: o das introdues referenciais puras (no-diticas) e o dos

introdutores referenciais diticos (de pessoa, tempo, espao e memria), cuja interpretao

depende da posio espcio-temporal do enunciador. Como exemplos de introduo

referencial pura, vejam-se os seguintes15:

(5) Se um homem bate na mesa e grita, est impondo controle. Se uma mulher faz o mesmo, est perdendo o controle. (Piadas da Internet)

Cavalcante afirma que, no exemplo, os termos sublinhados aparecem pela primeira

vez no texto e no dependem, para sua compreenso, de nenhum outro termo cotextual.

A seguir, apresentamos exemplos de introdues diticas16, respectivamente, de

pessoa, tempo, espao e memria:

(6) - Este sou eu. - Voc estava presente quando esta foto foi tirada? (Piadas da Internet) (7) Apresentada na ltima sexta-feira pela polcia como uma das autoras do assassinato de seus pais, ocorrido no ms passado, em So Paulo, Suzane Richthofen, de 19 anos, tem muito a ensinar sobre a atual gerao de jovens de classe mdia. (Artigo de opinio, de Gilberto Dimenstein Folha de So Paulo) (8) Cantadas que no deram certo Homem: Este lugar est vago? Mulher: Est, e este aqui onde estou tambm vai ficar se voc se sentar a. (Piadas da Internet) (9) Tudo comeou quando eu tinha uns 14 anos e um amigo chegou com aquele papo de experimenta, depois, quando voc quiser, s parar... e eu fui na dele. Primeiro ele me ofereceu coisa leve, disse que era de raiz, da terra, que no fazia mal, e me deu um inofensivo disco do Chitozinho e Xoror e em seguida um do Leandro e Leonardo. (crnica Drogas do submundo autor desconhecido)

As expresses referenciais de (6) a (9) so diticas porque a correta depreenso do

referente pretendido demanda que se conhea a posio espcio-temporal dos enunciadores.

Por exemplo, para se saber o ms a que se refere a expresso no ms passado, em (7),

preciso ter conhecimento sobre a que momento atribuda a publicao do artigo. Em outras

palavras, preciso saber a partir de que coordenadas o enunciador produz seu texto, a fim de

15 Todos os exemplos dessa seo foram retirados de Cavalcante (2003). 16 No item b da seo 4.2.2.2 (Expresso referencial incongruente com a marcao das pesoas do discurso), damos uma breve explicao sobre o que vem a ser o fenmeno da dixis, chamando a ateno para a dixis pessoal, por ser esta uma componente da inadequao discutida nesse item.

30

se reconhecer a gama de pontos prximos e distantes a este enunciador. O mesmo raciocnio

deve ser aplicado s outras expresses desses exemplos.

So estas, portanto, as expresses referenciais de carter introdutrio. No segundo

grupo da classificao de Cavalcante, esto as expresses responsveis pela continuidade

referencial. A autora (2003, p.108) salienta que este segundo grupo o reino das anforas,

sugerindo que neste nicho se abriguem todas elas: diretas e indiretas, com diticos e sem

diticos.

Na proposta terica assumida pela autora, continuidade no significa obrigatoriamente

manuteno de um mesmo referente. De fato, um dos critrios de subdiviso desse segundo

grupo seria justamente a capacidade de o anafrico acarretar ou no manuteno (total ou

parcial) do referente. Ou seja, a continuidade referencial um fenmeno mais amplo que a

manuteno correferencial.

Para o segundo grupo, ento, Cavalcante define dois subgrupos (ainda levando em

conta a funo referencial): as anforas com retomada (ou seja, com manuteno do referente)

e as sem retomada17. Estes subgrupos, com base nos traos de significao e nos aspectos

formais, podem ainda sofrer subdivises.

Quanto s anforas com retomada, que implicam, em maior ou menor grau, a

manuteno de um referente, a autora reconhece dois tipos (distintos em virtude do segundo

critrio classificatrio: os traos de significao): as anforas correferenciais e as anforas

parciais. As correferenciais so oriundas de um processo em que duas expresses

referenciais designam o mesmo referente (Cavalcante, 2003, p.109). Nesse grupo, tomando-

se como base os traos de significao e os aspectos formais, so possveis os seguintes casos

(seguidos de exemplos):

a) anfora correferencial co-significativa: reiterao de termos, promovida pelo

emprego de repetio ou palavras sinnimas;

17 A noo de retomada em Cavalcante distinta da noo presente em Koch e Marcuschi (1998) e Koch (2003). Nesses trabalhos, admite-se que a retomada pode ocorrer em relaes anafricas associativas, nas quais no ocorre correferencialidade. Cavalcante, como se v, restringe as retomadas referenciais aos casos de manuteno dos referentes.

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(10) Na embarcao desconfortvel, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criana e eu.

O velho, um bbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisvel e agora dormia. (conto de Lygia F.T. Protexto)

b) anfora correferencial recategorizadora: remodulao da forma de designar o

referente com o intuito, por exemplo, de evitar repeties ou de dotar o referente

de alguma carga avaliativa, realizada por meio de hipernimos, expresses

definidas, nomes genricos e (em casos especiais) pronomes: (11) No deixe acumular gua em pratos de vasos de plantas e xaxins. Na hora de lavar o recipiente, passe um pano grosso ou bucha nas bordas para remover os ovos do mosquito que podem estar nas paredes ou no fundo do recipiente. Substitua a gua dos vasos de plantas por areia grossa umedecida. (campanha contra a dengue divulgada em panfleto) (12) SOBE CARLOS ALBERTO PARREIRA * O treinador tetracampeo do mundo voltou ao comando da seleo brasileira. PAULO LACERDA * O delegado que ajudou a desvendar o esquema de corrupo de PC Farias foi escolhido para dirigir a Polcia Federal. (Notas - Veja, 15/01/03) (13) Dividimo-la em dois grupos de definies: num deles listamos as definies de cunho metafsico e psicolgico; noutro, algumas de carter mais lingstico, em que se consideram os seguintes fatores: nfase; escolha; caractersticas individuais (...). (artigo cientfico Revista de Letras, 1996). (14) Largo dos Lees Ento o Largo dos Lees isso?... Essa porcaria! - Mas voc no queria tanto ver o Largo dos Lees? A est o Largo dos Lees. - No. Eu queria ver era o Laargo dos Le--es! Um que eu ouvi falar muito. - Pois este! (...) - No , papai! O Largo dos Lees ento isso?!... (romance Joo Ternura, de Anbal Machado)

c) anfora no-co-significativa e no-recategorizadora: formalizada por pronomes

pessoais: (15) Betsy esperou a volta do homem para morrer.

Antes da viagem ele notara que Betsy mostrava um apetite incomum. (conto Betsy, de R.Fonseca)

A anfora no-co-siginificativa e no-recategorizadora um subtipo postulado pela

autora para dar conta do fato de que, em Lingstica, pronomes no tm o mesmo grau de

significao de formas lexicais. Como, ento, sustentar que o nome antecedente nominal e o

anafrico pronominal so co-significativos se, por definio, a peculiaridade de significados

que os distingue? (2003, p.112). Assim, Cavalcante estabelece uma distino ainda no

considerada por outros autores, que tratam essa anfora como co-significativa. Observe-se

que, mesmo no sendo co-significativa ou recategorizadora, a anfora pronominal possibilita

a manuteno do referente, sendo, portanto, correferencial.

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O segundo tipo de anfora com retomada o das anforas parciais, nas quais h uma

repetio de um sintagma precedente sem que haja correferencialidade, devido a este

sintagma estar acompanhado de um quantificador ou de um adjetivo que garantam ao

anafrico a idia de parte de um conjunto. Cavalcante mostra que esta anfora pode ocorrer

sob a forma de um SN, um numeral ou um adjetivo (cujo ncleo sintagmtico esteja oculto).

Vejam-se como exemplos os seguintes:

(16) Bifes com molho de tomate Ingredientes de xcara de leo; 1kg de bifes de vaca ou de vitela, cortados finos (...) Modo de fazer Numa frigideira de 25 ou 30cm de dimetro, esquente o leo em fogo forte e frite poucos bifes de cada vez, por 2 ou 3 minutos de cada lado ou at o ponto desejado. (receita Protexto)

(17) * Dois litros de leite atravessaram a rua e foram atropelados. Um deles morreu e o outro no, por qu? R: Porque um deles era Longa Vida. * Estavam dois caminhes voando. At que um disse: - Pera, caminho no voa! Um caiu no cho mas o outro continuou voando. Por qu? R: Porque era um caminho-pipa. (Piadas da Internet) (18) Vereadores renunciam ao mandato Aps Luclvio Giro (PL) renunciar ao mandato de vereador, na ltima quinta-feira, para assumir seu assento na Assemblia Legislativa, ontem foi a vez dos demais vereadores eleitos apresentarem suas cartas de demisso Cmara Municipal de Fortaleza. O ltimo a enviar o documento foi o Jaziel Pereira (PHS). (notcia jornal Dirio do Nordeste)

Seriam esses, portanto, os casos de anfora com retomada. J as anforas sem

retomada estabelecem continuidade no por manuteno de referentes, mas por uma ligao

estabelecida entre uma ncora e outro elemento cotextual introduzido pela primeira vez no

texto. Entendemos que, embora no haja retomada, a continuidade se estabelece pela

manuteno de uma base de referencialidade, que se percebe por algum gatilho no

co(n)texto (CAVALCANTE, 2003, p.108). Tais anforas podem se dar sob a forma de

anfora indireta ou de anfora encapsuladora (com ou sem ditico).

A anfora indireta, em seu conceito clssico, caracteriza-se pelos seguintes traos: no

apresentar correferencialidade; e introduzir um novo referente como se este j fosse

conhecido. Tal introduo s possvel porque h uma ncora (sempre em relao semntica

estrita com o anafrico, para os partidrios da concepo mais estreita de anfora indireta; ou

podendo ser inferida sociocognitivamente, de acordo com os partidrios da concepo mais

ampla) que permite uma interpretao satisfatria do anafrico. Abaixo, tem-se um exemplo

que pode ser considerado como um caso clssico de anfora indireta:

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(19) Modo de preparar: Coloque o amendoim em uma assadeira e leve ao forno mdio por 30 minutos. Mexa sempre at que o amendoim esteja torrado e a pele saindo com facilidade. (receita - Protexto)

No caso em questo, o termo a pele (ancorado em o amendoim) preenche os dois

requisitos bsicos para ser considerado anfora indireta, alm de apresentar a estrutura de

sintagma nominal definido, outro critrio essencial (cf. KLEIBER, 1991 e 2001) para os

partidrios da concepo estreita.

Alm da anfora indireta clssica, Cavalcante sustenta que existe uma anfora indireta

com recategorizao lexical explcita. Nesta, o novo referente, cuja existncia possibilitada

por uma ncora, j aparece recategorizado, estando associado a um modificador, conforme

vemos no exemplo a seguir:

(20) Qualquer que seja a chuva desses campos devemos esperar pelos estios; e ao chegar os seres e os fiis enganos amar os sonhos que restarem frios. Porm se no surgir o que sonhamos e os ninhos imortais forem vazios, h de haver pelo menos por ali os pssaros que ns idealizamos. Feliz de quem com cnticos se esconde e julga t-los em seus prprios bicos, e ao bico alheio em cnticos responde. E vendo em torno as mais terrveis cenas, possa mirar-se as asas depenadase contentar-se com as secretas penas. (poema de Jorge de Lima)

O comentrio de Cavalcante (2003, p.115) para o exemplo o seguinte:

a ncora pssaros que ns idealizamos autoriza a categorizao de anforas indiretas como seus prprios bicos, ao bico alheio, cnticos, assim como favorece a introduo de asas e penas, pelo mesmo processo meronmico. Entretanto, no lugar de simplesmente asas e penas, ocorre uma recategorizao por asas depenadas e secretas penas, que, neste discurso literrio, tem a finalidade de ratificar a metfora do pssaro, reconstruindo os sentidos e os referentes dos termos em grifo.

A autora cita ainda um outro caso de anfora indireta (apontado por Marcuschi): a

anfora indireta com recategorizao lexical implcita. Neste caso, a ncora sofreria uma

espcie de recategorizao no estabelecida na superfcie textual, sendo a anfora indireta um

resultado possvel de uma ligao com o termo recategorizado. No caso, o elemento anafrico

mais comumente um pronome no-correferencial, e por isso essa ocorrncia tambm

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chamada anfora indireta esquemtica pronominal (AIEP). Abaixo, esto os exemplos

apresentados por Cavalcante:

(21) A equipe mdica continua analisando o cncer do Governador Mrio Covas. Segundo eles, o paciente no corre risco de vida18. (22) Os alunos da primeira srie aprenderam as vogais. Ela utilizou um mtodo novo para ensin-los. (idem)

Em nosso entendimento, h em (21) uma espcie de retomada, o que descaracterizaria

a anfora indireta. Deixamos, porm, para tecer comentrios sobre este fenmeno na prxima

seo (Sugesto de tratamento para alguns casos de anfora indireta esquemtica

pronominal).

O outro tipo de expresso anafrica, que promove continuidade sem retomada, a

anfora encapsuladora, consiste em usar um anafrico que se refira no a um referente

especfico e pontual, mas a um contedo proposicional, que, ao ser encapsulado, ganha o

estatuto de objeto-de-discurso e, portanto, passa a ser um referente. Cavalcante ressalta que

tais anforas, por recuperarem o que h no cotexto, podem ser consideradas meio diretas.

Frise-se que, no caso dos encapsulamentos (chamados por alguns autores de nominalizaes),

preciso estender a noo de ncora textual para um segmento proposicional, e no entend-

la apenas como uma expresso referencial localizada pontualmente. Segue um exemplo:

(23) Um dos pontos de discusso no governo do PT diz respeito extenso da jornada de trabalho. Por sugesto da CUT, estuda-se a hiptese de apresentar um projeto de lei reduzindo a carga semanal de trabalho das atuais 44 horas para 40. A idia inspirada no modelo europeu, principalmente o francs, e tem um objetivo principal: se as pessoas trabalharem menos, mais gente pode ser contratada. Um estudo sobre o assunto realizado pelo socilogo Jos Pastore mostra que a estratgia pode no funcionar. (reportagem - Veja, 15/01/03)

Perceba-se, por exemplo, que o item lexical A idia no uma introduo

referencial pura, pois encapsula todo um contedo proposicional (A hiptese ... para 40) e

tem, portanto, uma ncora difusa.

Dentro dos encapsulamentos, Cavalcante pe as expresses referenciais

acompanhadas de diticos discursivos, j que estas encapsulam resumitivamente um contedo

prvio, ao mesmo tempo em que promovem um procedimento ditico (pela presena do

demonstrativo), conforme o exemplo a seguir:

18 Os exemplos (21) e (22) so retirados de Marcuschi (2001b).

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(24) Veja Uma mulher que trabalha o dia inteiro, cuida de filhos, tem de resolver problemas da casa nem sempre consegue arranjar tempo para praticar esporte. O que fazer para resolver esse dilema? (entrevista - Veja, 15/01/03)

Terminam aqui as categorias descritas por Cavalcante. Esquematicamente, propomos apresentar, ainda que previamente, a classificao de Cavalcante da seguinte maneira19:

Grupo 1 Introdues referenciais: Introdues referenciais puras Introdues referenciais diticas (de pessoa, tempo, espao e memria)

Grupo 2 Continuidades referenciais (anforas):

Anforas com retomada: Anfora correferencial:

Anfora correferencial co-significativa Anfora correferencial recategorizadora Anfora no-co-significativa e no-recategorizadora

Anfora parcial Anforas sem retomada:

Anfora indireta: Anfora indireta no-recategorizadora Anfora indireta com recategorizao lexical explcita Anfora indireta com (re)categorizao lexical implcita (AIEP)

Anfora encapsuladora (incluindo o encapsulamento com ditico textual) Quadro 3 Representao esquemtica da classificao de Cavalcante (2003) para as expresses referenciais

Acreditamos que a classificao cumpre o que se props. Enfatizamos especialmente a

explicitao dos critrios utilizados, o que nos permite entender as relaes entre os diferentes

tipos de processos referenciais, bem como suas subdivises. Tambm percebemos uma

adequao do modelo aos princpios tericos, visto que se percebe a necessidade de levar em

conta o contexto na hora de analisar os referentes discursivos, alm de se notar a idia da

formulao de referentes como uma construo textual mediada pelo processo discursivo.

Entretanto, cremos ser necessrio propor dois questionamentos acerca da classificao.

O primeiro diz respeito s anforas no-co-siginifcativas e no-recategorizadoras,

caracterizadas, basicamente, pelos usos pronominais correferenciais de terceira pessoa.

Achamos que deveria haver uma maior preocupao em especificar a que teoria lingstica

(ou a que tericos) se est seguindo quando se afirma que formas pronominais divergem das

lexicais devido ao baixo grau de significao das primeiras. Dizer que tal alegao comum

na Lingstica (que lingstica?) no nos parece suficiente.

19 O quadro apresentado proposto por ns. Falta ao trabalho de Cavalcante uma esquematizao grfica da classificao em forma de quadro, o que facilitaria a compreenso do seu carter geral e globalizante.

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Se seguirmos a hierarquia de critrios de Cavalcante funo referencial, traos de

significao e aspecto formal , cremos que o trao de significao de um pronome anafrico

direto cumpre bem as necessidades da estratgia de co-significao. Essa estratgia, como

mostram Koch e Marcuschi (1998) e Cavalcante (2003), sustenta-se em oposio

recategorizao, cuja ocorrncia se d quando uma forma referencial for renomeada no

discurso, a fim de se adaptar aos objetivos comunicacionais persuasivos do enunciador

(CAVALCANTE, 2003, p.109). Parece-nos que o uso correferencial do pronome acena

exatamente para a possibilidade de no renomear discursivamente o referente, igualando-se,

assim, s formas referenciais co-significativas (repeties20 ou palavras sinnimas, de acordo

com CAVALCANTE, 2003).

Em virtude disso, optamos, em nossa pesquisa, por considerar a anfora pronominal

como correferencial co-significativa, podendo a co-significao ser realizada, portanto, por

repetio do SN, uso de palavras sinnimas ou uso de pronomes21. A sugesto feita demanda

uma alterao no quadro 3, que ser postergada para a prxima seo, aps apresentarmos a

outra sugesto proposta classificatria.

O segundo ponto diz respeito anfora indireta com recategorizao lexical implcita,

ou anfora indireta esquemtica pronominal. Como nossa posio requer uma reflexo mais

pormenorizada, optamos por faz-la em uma nova seo, aberta a seguir.

1.3 Sugesto de tratamento para alguns casos de anfora indireta esquemtica pronominal

Para ilustrarmos nossa posio, repitamos os exemplos (21) e (22), relativos a essa

categoria:

(21) A equipe mdica continua analisando o cncer do Governador Mrio Covas. Segundo eles, o paciente no corre risco de vida.

(22) Os alunos da primeira srie aprenderam as vogais. Ela utilizou um mtodo novo para ensin-los.

20 Atualmente, Cavalcante j admite que nem toda repetio co-significativa, embora ainda no tenha assumido essa posio em publicaes cientficas. 21 Cavalcante tambm j reviu essa posio, e passou a considerar a anfora pronominal como co-significativa, embora ainda no tenha publicado nada em que aparea essa retificao.

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Em (21), Cavalcante afirma (e concordamos com ela) que h uma recategorizao

transformando A equipe mdica em os mdicos, a qual no ocorre na superfcie textual

(da se tratar de uma recategorizao implcita). Em seguida (e no vai nisso nenhuma

ordenao temporal), ocorre uma anfora pronominal cujo antecedente seria o elemento

recategorizado, que est implcito.

Parece-nos, no entanto, que, neste processo, no se perde a correferencialidade: a

expresso os mdicos correferencial em relao equipe mdica; eles correferencial

em relao aos mdicos e, conseqentemente, em relao equipe mdica. Logo, nos

usos das trs expresses, d-se a manuteno referencial, o que nos faz pensar que, de fato,

trata-se de uma anfora com retomada (anfora direta, portanto).

Cavalcante (2003) assinala que um caso diverso ocorre com o exemplo (22). Aqui h,

de fato, uma anfora no-correferencial, j que o termo ela no apresenta um antecedente

correferencial. Entretanto, conforme Cavalcante (2003, p.114),

No afirmaramos que a se constri uma recategorizao, mas uma categorizao lexical [...] em que, dentro de um esquema mental que se abre para alunos e aula, muito pertinente incluir professora, numa referenciao implcita, e depois represent-la pelo pronome ela, sem necessidade de maiores explicaes num contexto de informalidade. Julgamos, portanto, que no se trate de recategorizao lexical, uma vez que no houve exatamente a transformao de uma expresso nominal designadora em outra.

Os exemplos (21) e (22), portanto, refletem processos anafricos distintos. Podemos

dizer que (22)22 de fato uma anfora indireta esquemtica pronominal (AIEP) (e

percebemos bem, nesse exemplo, a idia de esquema como entidade cognitiva no caso, o

referente implcito a professora pode ser recuperado pelo esquema [SALA DE AULA]).

Entretanto, como j frisou Cavalcante (2003), no se trata de uma recategorizao, mas sim de

uma categorizao lexical implcita.

Trata-se de uma questo muito mais polmica, porm, considerar o exemplo (21)

como correferencial, em vez de anfora indireta, j que os autores que lidam com o assunto

postulam o contrrio. De fato, a anlise que propomos para (21), que consiste em considerar

os itens A equipe mdica, os mdicos e eles como expresses referenciais designadoras 22 Para um caso semelhante (Em Boston, eles rodam como doidos), Kleiber (1991) considera haver um emprego genrico textual indireto, o qual ele diferencia da anfora por associao, sem explicar, no entanto, qual a diferena entre os dois processos.

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de um mesmo objeto-de-discurso, pode parecer para alguns uma simplificao generalizada,

contestvel se se levar em conta outros exemplos semelhantes. Por isso, preciso uma

discusso mais pormenorizada a respeito dessa questo. De incio, apresentamos um exemplo

retirado de Koch (2003), que guarda semelhanas com (21):

(25) Tenho 17 anos, sofro de acne, e na minha famlia ningum leva a srio meu problema. Eles me dizem que no nada23.

Semelhantemente ao que Cavalcante prope para (21), podemos advogar que em (25)

h uma recategorizao lexical implcita que transforma minha famlia em meus

familiares, e, conseqentemente, h uma pronominalizao, expressa na superfcie textual,

de meus familiares atravs da forma eles. Mais uma vez, estaramos, de acordo com o que

propusemos para (21), diante de trs expresses referenciais utilizadas para um mesmo

objeto-de-discurso.

Koch (2003, p.115-116), contudo, apresenta, para esse exemplo, uma anlise diferente.

Tomando como base a reflexo de Berrendonner e Reichler-Bguelin, a autora mostra que a

ocorrncia do pronome eles pode ser explicada da seguinte maneira:

O exemplo, muito comum, clssico: ele supe uma deduo lgica que, tomando por premissa a existncia de um indivduo coletivo (famlia, classe, grupo, bando, regimento), conclui pela existncia de um outro objeto, necessariamente implicado por todo e qualquer coletivo: a classe de seus membros. Isto , a interpretao de plural supe que seja catalisada uma classe, que deve ser unificada, por abduo, com a classe co-extensiva que se pode deduzir do coletivo j conhecido24 (grifo nosso).

Koch (2003, p.116) assevera ainda que um indivduo coletivo e a classe de seus

membros constituem, sem dvida, duas representaes da mesma realidade, mas sob formas

lgico-cognitivas diferentes, sendo, pois, objetos-de-discurso distintos (grifo nosso).

A posio de Marcuschi (2005) semelhante apresentada em Koch. Vejamos seu

comentrio para o exemplo abaixo:

(26) Essa histria comea com uma famlia que vai a uma ilha passar suas frias. Quando eles chegam eles vo logo explorando a ilha e explodem uma barreira que os impediam de passar para o outro lado da ilha.

23 O exemplo e seu posterior comentrio, trazidos por Koch, encontram-se originalmente em Berrendonner e Reichler-Bguelin (apud KOCH, 2003). 24 Marcuschi (2001b, p. 238) discorda que a relao entre na minha famlia e eles se d por deduo lgica, pois esta inferncia no tem carter vericondicional nem pode ser verificada empiricamente.

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Certamente, ningum fica em dvida quanto a quem sejam os indivduos referidos por eles [PAI, ME, FILHOS, IRMOS, MARIDO, ESPOSA...], embora no haja antecedente pontualizado, mas um modelo cognitivo adequado para que se d a inferncia construtiva ancorada em [UMA FAMLIA]. No se trata de entidades necessariamente presentes na noo de famlia, mas que podem ser ativadas por esse item na conjugao com conhecimentos de mundo. O pronome no reativa indivduos, mas constri (e ativa) um conjunto difuso de indivduos e introduz esses indivduos com base em uma anfora esquemtica... (MARCUSCHI, 2005, p.69-70. grifos do autor).

A partir do que Koch (2003) e Marcuschi (2005) postulam25, se voltarmos a (21),

teremos de admitir que A equipe mdica e os mdicos so dois objetos-de-discurso

diferentes. O processamento seria, ento, considerar os mdicos como uma associao

ativada pela expresso A equipe mdica, associao essa que possibilitaria a apario do

pronome eles.

O que podemos questionar se o termo coletivo e a classe de seus membros so

realmente dois objetos-de-discurso distintos. Ser que, cognitivamente, os interlocutores

percebem, nesses casos, duas entidades distintas? Ou, na verdade, no se trataria de dois

pontos de vista, distintos, lanados sob um mesmo objeto?

Defendemos aqui a segunda hiptese: em casos como (21), (25) e (26), o que h um

mesmo objeto-de-discurso, encarado sob duas formas diferentes. Como justificativa,

inicialmente, discutamos o processamento de depreenso, pelos interlocutores, de um

referente textual a partir das vrias expresses referenciais utilizadas para design-lo. Esse

processo usado por Antunes (1996) em seu estudo sobre a repetio e a substituio lexicais

como fatores coesivos26.

Quando trata da substituio lexical, na determinao de cadeias coesivas de

correferencialidade (ou seja, cadeias constitudas por duas ou mais expresses referenciais

utilizadas para representar um mesmo referente), Antunes encontrou em seu corpus (dez

editoriais de um jornal pernambucano) alguns exemplos que interessam para sustentar nossa

hiptese, tais como as seguintes cadeias coesivas: [o regimen, as instituies], [a 25 A mesma posio defendida em Koch e Marcuschi (1998). 26 Salientamos que o trabalho mencionado foi produzido antes da proposta de referenciao sedimentada por Mondada e Dubois ([1995] 2003). Todavia, as anlises de Antunes so completamente coerentes com o entendimento de que o discurso (re)orienta a seleo de expresses referenciais, postura a qual a autora corrobora com remisso a diversos pesquisadores que entendem o texto como uma atividade interacional (sendo Halliday e Hassan sua principal fonte).

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demanda, os reclamos do comrcio], [foras, capacidade de reagir e de resistir], [o

Tesouro, o errio, os cofres nacionais, as finanas pblicas], [linchamento,

massacres coletivos], [tributao, leis fiscais]27. O que salta aos olhos em todas essas

cadeias o fato de um mesmo referente poder ser representado por formas disjuntas quanto

flexo de nmero (e s vezes de gnero).

Ainda que no se trate de casos envolvendo o termo coletivo e a classe de seus

membros (talvez isso valha para a cadeia [o regimen, as instituies]), os exemplos nos

mostram que um mesmo objeto-de-discurso pode ser representado sob pontos de vista

distintos, inclusive quanto ao aspecto morfolgico das representaes.

Essa viso corroborada pela observao de Brown e Yule (1983, p.200-201) acerca

do carter relativo da manuteno formal do termo antecedente de uma cadeia coesiva.

Segundo os autores, o processador [de um texto] estabelece um referente na sua

representao mental do discurso e relaciona as referncias subseqentes a esse referente de

volta sua representao mental, mais do que expresso verbal original do texto28.

Comentando sobre a afirmao de Brown e Yule, Antunes (1996, p.85) diz que o referente

lingstico [...] no retido no seu aparato formal. A autora credita aos dois estudiosos

britnicos a observao sobre o carter relativo da explicitude formal do termo antecedente do

nexo coesivo.

Ora, tomando como base o carter relativo das formas referenciais (e percebendo

que, se trocarmos relativo por instvel, estamos aludindo