Êxtase, Poesia e Dança Em Rumi e Hafiz

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS.

    DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS JUDAICOS E RABES

    LEANDRA ELENA YUNIS

    xtase, poesia e dana em Rm e Hfi

    VERSO CORRIGIDA

    SO PAULO

    2013

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    LEANDRA ELENA YUNIS

    xtase, poesia e dana em Rm e Hfi

    VERSO CORRIGIDA

    Dissertao apresentada rea de Estudos Judaicos e rabes

    do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para

    a obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    rea de Concentrao: Estudos rabes

    Orientador: Michel Sleiman

    De acordo:_____________________________

    SO PAULO

    2013

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    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte,

    conforme Resoluo CoPGr-5401e Lei de Direitos Autorais vigente na presente data.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo Cristina Salmistraro, por ter-me feito danar os pssaros de Attar;

    Cristina Schafer, por me transmitir as danas persas e seus segredos; a Robyn Friend e

    Antony Shay, pelos esclarecimentos e dicas de materiais sobre dana e msica persa; a

    Ibrahim Gamard, pelas verses originais em farsi dos poemas de Rm; a James R.

    Newell, pelo poemrio de Hfi, a Arman Entezari, pelas aulas de farsi; aos professores

    Miguel Attie Filho, Mamede Jaruche, Safa Jubran e Iv Lopes, pelos ensinamentos,

    materiais e incentivo; a Marco Lucchesi, por presentear-me com seus livros; s

    professoras Adma Muhana e Alice Kiyomi, pelas valiosas crticas e sugestes;

    CAPES, pela concesso da bolsa e ao pessoal do Departamento de Letras Orientais da

    USP, pela solicitude. Agradeo especialmente ao meu orientador Michel Sleiman pela

    confiana, dedicao, entusiasmo e generosidade.

    Dedico este trabalho aos meus avs, Hermnia Rodrigues Almorim, Vicente

    Coutinho Sacchitiello, Maria Miguel, Luis Yunis, e aos meus pais, Flavia Regina

    Coutinho Sacchitiello e Cristian Luis Yunis, pelos dons, amor, apoio, amizade e certa

    dose de humor com que cada um, a seu modo, ensinou-me que no devo crer em bruxas,

    pero que las hay...E, portanto, aos invisveis que habitam os seres, as pedras, as plantas,

    o fogo, o mar, a terra, o cu, as estrelas.

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    RESUMO

    O xtase mstico costuma ser estudado a partir da anlise de rituais de incorporao,

    possesso de espiritos, transe de curanderia e outros processos que no raro envolvem

    msica para propiciar estados alterados de conscincia. Considerando que os rituais

    sufis integram msica, dana e poesia com propsito exttico, este trabalho aborda a

    relao entre a poesia e a dana mstica em Rm e Hfi, propondo uma metodologia

    que utiliza noes de linguagem da dana para a anlise de poemas.

    Palavras-chave: xtase, dana, poesia, sufismo, literatura persa.

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    ABSTRACT

    The mystical ecstasy is usually studied from the analysis of rituals of incorporation,

    possession of spirits, trance curanderia and other processes that often involve music to

    provide altered states of consciousness. Whereas Sufi rituals integrate music, dance and

    poetry with purpose ecstatic, this work addresses the relationship between poetry and

    mystical dance in Rm and Hfi proposing a methodology that uses notions of dance

    language for analyzing poems.

    Keywords: ecstasy, dance, poetry, Sufism, Persian literature.

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    SUMRIO

    INTRODUO...............................................................................................................7

    CAPTULO I: Sufismo e cultura persa...........................................................................10

    CAPTULO II: Dana e jogo exttico.............................................................................29

    CAPTULO III: Poesia persa..........................................................................................49

    CAPTULO IV: Versos ldicos......................................................................................64

    CONCLUSO...............................................................................................................101

    APNDICES.................................................................................................................111

    GLOSSRIO: Termos rabes e persas.........................................................................118

    BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................120

    ANEXO.........................................................................................................................128

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    INTRODUO

    Quem no conhece a prpria essncia e fecha os olhos para essa beleza lunar,Faz o qu com a same o pandeiro?A sam para a unio com o Bem Amado.

    Os que se voltam para a qblahtm nela a samdesse mundo e do outro.Que dir este crculo de danarinos que giram e tm dentro de si a prpria kabah!

    RM1

    O presente trabalho aborda a interao entre elementos da poesia e da dana

    persas na produo do xtase mstico; destacando o papel das imagens centrais das

    danas persas como elementos significadores da poesia sufi, apresenta uma abordagem

    analtica de poemas de Rm(1207-1273) e de Hfi (13251390), que utiliza noes

    de linguagem da dana. Com isso, propomos um horizonte interpretativo e

    metodolgico que pretende aproximar os campos tericos da poesia e da dana e

    verificar como estas se inter-relacionam no mbito especfico da cultura persa e do

    sufismo.

    Num primeiro olhar, encontramos nas danas tradicionais persas

    deslocamentos simtricos e giros que finalizam as frases coreogrficas tal como as

    rimas fecham os versos persas, divididos em hemistquios. No entanto, verificamos uma

    relao ainda mais profunda entre as imagens poticas e os elementos coreogrficos

    com origem mitopotica em comum, que interagem tanto no mbito da construo dosentido potico quanto da significao coreogrfica para promover o xtase.

    No capitulo Sufismo e Cultura Persa que abre este estudo, discutem-se algumas

    definies da dana exttica e apresentam-se os princpios coreogrficos e musicais

    1RM, 1973, p.217-218. Verso nossa da traduo de Eva de Vitray-Meyerovich e Mohammad Mokri.

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    relacionados ao xtase na cultura persa, considerando-se que o ritual da audio

    caracterstico do giro dervixe e de outras tradies persas, de modo geral tambm

    denominadassam, possui forte vnculo com a poesia do renascimento literrio persa.

    Hfi e Rm abordaram explicitamente os temas da audio (sam), da dana

    (raq) e do xtase (l) em seus poemas, que buscaremos compreender a partir da

    perspectiva sufi no capitulo seguinte Dana e Jogo Exttico. Recorremos ali aos tericos

    medievais do sufismo que abordaram os fundamentos do processo exttico, destacando

    o conceito-chave de imaginao criativa de Ibn Arab (1165-1240), as definies de

    audio e corao apresentadas por Alazl (1058-1111) e o uso das faculdades da

    alma segundo Ibn Sn(980-1037).

    Compreendemos que a poesia e a dana so abarcadas pelos mesmos princpios

    ldicos do ritmo e da imaginao, conforme a teoria formulada por Johan Huizinga em

    Homo Ludens (1971), e que o xtase compartilhado corresponde catarse na dana.

    Apoiados num estudo de Jean Michot sobre a dana exttica, propomos um paralelo

    entre os conceitos dos msticos medievais e dos tericos contemporneos, buscando

    definir os modos e usos das faculdades anmicas em termos de atitudes ldicas.

    sabido que o processo da imaginao na dana exttica encontra paralelo

    com a metfora potica persa, pelo uso de imagens em comum e pelo modo similar designificao dinmica. Contudo no possvel verificar isso nos poemas sem antes

    explicitar os princpios compositivos da poesia persa e suas particularidades, como

    faremos no capitulo Poesia Persa. Como a metfora consiste numa rede de significaes

    que utiliza o silogismo para dotar o poema de profundidade interpretativa, adotaremos a

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    perspectiva de Paul Ricoeur em Metfora Viva. (2005) para observar o seu carter

    discursivo.

    No capitulo seguinte Versos Ldicos, analisaremos trs poemas a partir dos

    princpios compositivos da poesia persa, observando o modo como as imagens da dana

    por eles veiculadas produzem a sensao de movimento corporal. Para isso, seguiremos

    o carter cintico das imagens poticas e utilizaremos os elementos coreogrficos como

    metforas no verbais do fator movimento no plano da significao do poema. A

    metodologia baseia-se na concepo cognitiva de Gibbs (2007).

    Por fim, apresentaremos o resultado de nossas investigaes e anlises feitas

    nos captulos anteriores e as nossas consideraes finais sobre o intercmbio relativo

    mmesisda natureza, representao cultural e significao existencial entre dana e

    poesia.

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    CAPTULO I: Sufismo e cultura persa

    Em nossa ordem o vinho lcitoMas, cipreste, rosa do corpo! Sem tua face, ilcito

    Meu ouvido est todo na voz da flauta e na melodia da harpaHFI2

    O sufismo, expresso do misticismo islmico, tem o auge de sua visibilidade

    nos sculos XI, XII e XIII, perodo que coincide com o surgimento de grandes escritores

    persas, como Ferds,Attr, Nizam, Rm, Jm, Sad, com sua poesia mstica repleta

    de referncias alquimia e ao zoroastrismo, ao simbolismo platnico-cristo e s

    correntes pags, sincretizadas, incorporadas e como que destiladas pelo islamismo

    emergente na regio.3 O florescimento dessa tradio potica e mstica ocorre numa

    poca de retrocesso religioso com severas censuras e proibies dana e msica por

    sua associao ao vinho, prostituio e s prticas mgicas. Como o prprio Coro

    surgira em linguagem fortemente potica possvel que, por esse motivo, a poesia no

    somente estivesse imune a tais proibies, como fosse altamente estimulada e cultivada

    como uma arte de refinamento que refletia erudio e distino social, tal como ocorria

    entre os rabes.4

    No sculo X, em meio s infindveis discusses legais sobre a licitude da

    msica no contexto devocional destaca-se a figura de Alazl, cuja teoria apresentada

    2HFI, 1974, azal 46, p.47. Verso nossa da traduo de Wilberforce Clarke.

    3Ver CAMARGO, 2002, p. 29.

    4Ver SLEIMAN, 2007, p. 23 em diante.

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    no captulo oitavo de Revificao das cincias religiosas (Iy ulm addn) 5 teve

    grande peso no estabelecimento e regularizao das ordens sufis, que obtiveram

    permisso para preservar tradies musicais e coreogrficas em distintas localidades do

    isl.6Nesse livro, o autor defende que a msica no incita ao pecado, apenas estimula o

    que j existe no corao do ouvinte conforme sua prpria inclinao moral e seus

    desejos, sendo a dana mera expresso corporal disso. Ademais, por modos poticos e

    musicais apropriados, a audio feita com inteno em Deus confere dana e msica

    carter sagrado.7

    A despeito das acusaes contra os sufis e suas prticas pouco ortodoxas

    que preconizavam a embriaguez espiritual, Alazlafirma ser possvel atingir o xtase

    sbrio, sem prejuzo da conscincia. Sutis e variados estados anmicos (l) levam ao

    estado de unidade no Ser (wujd), ou unio do homem com Deus, atravs dos seguintes

    estgios: a) receber a impresso fsica do som; b) sentir prazer e ouvir com

    entendimento o som agradvel; c) aplicar o que se ouve ao sentido interno; d) observar

    seu estado e ento desvelar os mltiplos sentidos do verso; e) ultrapassar os variados

    significados poticos e atingir o xtase, que acessvel para aquele que mergulhou no

    oceano profundo das variedades, passou da praia de estados e tarefas e ocupou a si

    5ALAZL, 1901, traduo de Duncan Black McDonald.

    6Ver ROBINSON, 2007, p. 31.

    7Parece ter havido um grande debate a esse respeito, envolvendo legisladores muulmanos de diversascorrentes. Entre os debatedores esto: As, irmo de Alazl, com o tratado Em defesa da audio ,Ab-Bakr Ibn-Alarab (Sevilha, 1076 Fez, 1148), Amad Ibn-Muammad Alixbl (m. 1253)com oLivro da audio e seus regulamentos , Tj Addn Aarad (Sria - m. 1275) com Condenao aosam, Ibn-Ibrhm Alfirkah (m. 1291)com Levantando o vu na soluo dosame Ibn-Taymiyyah(Iraque, 1263Cairo, 1328). Ver: FARMER, 1929; ROBSON, 1938; ARTHUR, 1991, pp. 43-62; IBNTAYMIYYAH, 1991, traduo para o francs de Jean R. Michot.

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    mesmo com a pureza da Unidade, confirmado em absoluta sinceridade. 8 A

    embriaguez exttica consiste aqui na contemplao da beleza, atributo da criao

    divina. Segundo Alazl, se at os animais possuem propenso natural para a

    apreciao esttica, aquele que no se deixa levar pelos estmulos musicais mais bruto

    que as bestas, desprovido de simetria e alheio espiritualidade.9

    Essa problemtica do xtase mstico retomada com frequncia nos estudos

    contemporneos sobre o ritual dasamdos dervixes rodopiantes, que comparado aos

    transes de curanderia, possesso ou incorporao de espritos. Na tese Uma Perspectiva

    Antropolgica da Epistemologia Sufi, Lena Tatiana Dias Tosta indica que o sam

    requer uma abordagem especfica por ser uma forma especial de ikr que utiliza

    diferentes recursos meditativos a partir da epistemologia sufi.10

    Gisele Guilhon de Camargo, em seu trabalho Sama, etnografia de uma dana

    sufi, faz uma descrio detalhada do ritual que se realiza atualmente na ordem Mavlevi

    de Konya, onde a prtica do giro foi estabelecida por Rm.11Na introduo, a autora

    descreve o estado de xtase provocado pela dana sufi, da seguinte maneira:

    No Sama, a ao de girar repetidamente, e por um tempo prolongado, coloca o

    danarino em harmonia com o movimento dos astros e do cosmos, produzindo nele

    8This is the rank of him who wades the deep sea of varieties and has passed the sh oreland of states andworks, and has occupied himself with the puritiy of the Unity and is confirmed in absolute sincerity.ALAZL, 1901, p. 717. Trata-se de uma provocao que o autor dirige aos proibidores da msica.

    9 he who is not moved by them [music and singing] is one who has a lack, declining from symetry, farfrom spirituality, exceeding in coarseness of nature and in rudeness camels and birds, even all beasts, forall feel the influence of measured airs. ALAZL, 1901, p. 219.

    10 Ver TOSTA, 2000, p. 58. Ver tambm DURING, 2006, pp. 79-92. O ikr consiste em recitarmentalmente os 99 nomes (atributos) de Deus, conforme a prtica sufi, com foco na respirao e narepetio da imagem simblica que lhes associada.11Ver trecho do ritual em Istambul:http://www.youtube.com/watch?v=S45OJnQp6mI

    http://www.youtube.com/watch?v=S45OJnQp6mIhttp://www.youtube.com/watch?v=S45OJnQp6mI
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    uma espcie de transe, ou xtase mstico. Os sufis chamam esse estado de fana

    (aniquilamento), a anulao do ser individual. Nesse estado, as caractersticas do

    pequeno ser se dissolvem para que o grande Ser possa se manifestar. um estado

    ao mesmo tempo de transe e alerta, quando somos capazes de perceber nossa prpria

    voz interior, apurando nossa percepo intuitiva. Nesse estado, corpo e mente esto

    intensamente ocupados na atividade, as ondas cerebrais esto to sintonizadas com o

    ritmo da dana, que o self normal se anula e a mente atinge um estado de ampliao

    da conscincia.12

    No trecho acima, a alterao da conscincia resultado da repetio do

    movimento corporal. Nesse estado a nica coisa que importa a dana, e no o

    danarino: ser e ambiente se fundem como na brincadeira infantil, onde a criana se

    absorve inteiramente, e numa tal concentrao, que tanto ela como o mundo se

    esvanecem.13A dana meditativa implica, portanto, numa transformao ambivalente,

    interna e externa, de dissoluo e integrao.

    Camargo tambm diferencia osam de outros processos meditativos. Osam

    seria uma meditao ativa e participativa em contraposio yoga, na qual a

    permanncia na posio (ssana) mxima e a repetio mnima. Novamente ela utiliza

    o critrio da repetio para diferenciar contemplao e participao, ainda que tal

    oposio no tenha sentido para os sufis, pois, como observou o mestre andalusino Ibn

    Arab, a contemplao, a orao ou a unio com Deus pode ocorrer tanto com o corpo

    em movimento como com o corpo em repouso.

    14

    12CAMARGO, pp. 22-23.

    13CAMARGO, pp. 23.

    14Ver IBN AL-ARABI, 1980, traduo de Ralph Austin; ver tambm ADONIS, 1990, traduo de JosMiguel Puerta Vlchez.

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    Quanto ao fenmeno espiritual em si da experincia exttica, Camargo faz uma

    interessante comparao entre danas sufis e rituais afrobrasileiros:

    Os dervixes acreditam que no contemplando, mas sim participando do rodopio doscus que se pode atingir uma completa unio com a divindade. Encontramos

    atividades anlogas na tradio afro-brasileira do Candombl e da Umbanda, que,

    assim como os dervixes, tambm giram. Porm h uma diferena substancial entre as

    duas tradies: apesar de ambas considerarem o giro, acompanhado de msica e canto,

    formas eficazes de orao e meditao, somente na Umbandae no Candombla noo

    de incorporao est associada ideia de possesso por espritos; no Sufismoessa

    noo totalmente descartada; o que se incorpora, por assim dizer, o barakah

    (substrato material e espiritual da vida, que deve ser invocado e percebido durante aprtica), anloga sim, ao ax afro-brasileiro.15

    Podemos dizer que a autora diferencia o sufismo das prticas de possesso

    espiritual pelos seus objetivos e efeitos; porm, h que se fazer ressalvas a essa

    comparao. mais apropriado afirmar que no candombl no se incorporam espritos e

    sim entidades divinas atribudas de diferentes poderes e funes (simultaneamente

    espirituais e naturais). Quanto ao formato do ritual, se nos batuques afrobrasileiros as

    cantigas se adequam ao ritmo,16na msica oriental o inverso: o ritmo que segue a

    escala meldica ou a cano que, por sua vez, baseia-se na poesia. E apesar da

    descrio detalhada que faz do ritual, com direito a um mapa etnogrfico contendo

    partituras e poemas, ela considera o uso da msica e da poesia pelo seu carter

    simblico e no funcional, desconsiderando, assim, os elementos que poderiam dar

    15 CAMARGO, p. 23.

    16As entidades espirituais afrobrasileiras tm pontos ou toques, isto , ritmos, que as caracterizam eservem para invoc-las, e os instrumentos de percusso so dotados de alma com funes rituaisespecficas. Ver SILVA, V. G. e AMARAL, R, 1992. Artigo eletrnico acessado em 02/11/2012:http://www.n-a-u.org/Amaral&Silva1.html

    http://www.n-a-u.org/Amaral&Silva1.htmlhttp://www.n-a-u.org/Amaral&Silva1.html
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    pistas do percurso interno que leva ao xtase. 17 Se ambas as tradies tm algo em

    comum, talvez no seja o carter giratrio (nem sempre caracterstico das

    afrobrasileiras) ou simplesmente rtmico de suas danas (isto, por definio, toda dana

    ), mas o uso de movimentos especficos que tornam o poder da divindade ( barakahou

    ax) efetivamente manifesto.

    Em Sentidos do caleidoscpio. Uma leitura mstica a partir de Muhiyyddn

    IbnArab, Beatriz Machado tambm descreve a dana exttica da perspectiva sufi como

    um lugar de errncia onde ocorre o dilaceramento do ego, transformando suas paixes

    na Paixo, isto , no estado de amor e unio com o divino.18O ego considerado um

    centro de positividade, de fixidez e de iluso, provavelmente no sentido islmico

    atribudo alma em estado primitivo, que consiste na parte demonaca do ser humano.

    Porm, a adaptao conceitual, que tambm foi proposta por Camargo, infeliz, pois a

    definio de ego no tem paralelo entre os antigos msticos.

    Para Machado, o mstico v a relao entre o plano divino e a realidade

    sensvel como um caleidoscpio vivo, em que:

    o tecido da realidade plstico. A natureza no possui leis; o que h, segundo uma

    concepo tipicamente muulmana, so hbitos de Deus, que podem variar a qualquer

    momento. O corpo no uma massa estvel, um conjunto de significaes, os

    objetos no so coisas, so relaes, a impermanncia constante.19

    17 Pesa o fato de que o ritual observado pela pesquisadora seja, como ela mesma sublinha, umaformatao moderna, algo que simplesmente no era assim no tempo de Rm.

    18Ver MACHADO, 2000, p. 61 em diante.

    19MACHADO, p. 77.

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    O corpo se define como conjunto de significaes submetidas ao campo da

    transitoriedade, e a dana mstica seria a via do autoconhecimento que consiste na

    experincia direta do caminho a Deus, sem interferncias nem mediaes. A

    representao corporal disso se d pelo uso simblico de eixos espaciais e direes do

    corpo,20no qual o sagrado representado pela combinao do eixo vertical com o fator

    peso. Esse simbolismo tambm foi assinalado por Camargo; entretanto, em Machado

    ele se define somente a partir da perspectiva islmica.

    Lorenzo Macagno, professor do departamento de antropologia da Universidade

    Federal do Paran, um pouco mais ousadamente, pesquisou os sufis da ordem Rifaiyya

    de Moambique, que se autodenominam Maulide e se mutilam fisicamente durante o

    ritual. No artigo Isl, transe e liminaridade, ele apresenta o enigma da dana exttica

    por outro prisma:

    O ritmo e a dana vo in crescendo, o clmax atingido e o transe e a autoflagelao

    consumam-se. Mas foram a msica, a dana e a repetio frentica dos cnticos que

    conduziram a um transe anestesiado e, portanto, a uma autoflagelao indolor ou

    foram a dor e o sofrimento que acabaram por provoc-lo? Essas questes encobrem,

    na verdade, um dilema ilusrio, pois qualquer resposta, alm de no fornecer nenhum

    dado relevante problemtica sobre a qual pretendemos debruar, corre o risco de

    assumir a forma de uma mera fico explicativa. Em linhas gerais, podemos dizer que,

    atravs do ikr, os homens do Maulide tentam possuir e, ao mesmo tempo, serem

    possudos por Deus

    21

    .

    20HENNI-CHEBRA e POCH, 1996.

    21MACAGNO, 2007, p. 107. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto tambm discutiu as relaes de poderenvolvendo as ordens sufis da Siria, num vis mais sociopoltico do que antropolgico, ver PINTO, 2005.

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    Para este autor, a questo da liminaridade no s espiritual, mas tambm

    social, uma vez que a prtica dos cultos de transe e possesso, especialmente nas

    culturas africanas e afroamericanas que subsistem em sociedades dominadas por

    monotesmos de pretenso universalista, tende a funcionar como uma ferramenta

    catrticae, por conseguinte, uma sada simbolicorreligiosa para os excludos. Aqui, a

    renncia ao mundo na extino do eu por meio do autoaniquilamento ocorre atravs

    da automutilao e representa a liminaridade espiritual e social simbolizada diretamente

    no corpo, denominado pelo autor como n semntico:

    fornece limites e fronteiras e tambm a possibilidade do estabelecimento de fluxos e

    canais produzidos, neste caso, pelos estiletes que possibilitam a transposio das

    barreiras materiais e simblicas (...) J os limites do corpo expressam a simbolizao

    de um outro tipo de ambiguidade social, na qual os homens do Maulide teriam sido

    lanados em virtude de uma ligao a uma cosmogonia de renncias.22

    Desprezando as estratgias musicais para se atingir o estado de transe,

    Macagno conclui que o poder reside, fundamentalmente, na simbolizao das

    condies existenciais. A msica e a poesia atuam de forma secundria, servindo apenas

    para criar um ambiente propcio para a catarse.

    Tendo em vista que o xtase provocado pelo processo da audio que,

    segundo a definio de Alazl, leva ao xtase, no compreendemos por que tais

    estudos enfatizam o ritmo ou a repetio de imagens simblicas para explicar o

    processo exttico e ignoram a melodia. O xtase no resultaria de um jogo entre a

    variao meldica e as combinaes rtmicas? Ademais, no podemos pensar numa

    relao direta entre a dana e a poesia para efeito do xtase? Para responder a tais

    22MACAGNO, 2007, pp. 108-109.

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    questes devemos considerar, sobretudo, a definio do xtase segundo a tradio persa,

    na qual outras danas desam, alm do giro dervixe, tm sua origem.

    No sufismo persa o termosam, que de origem rabe, designa toda forma de

    audio de poesia, msica e dana com inteno meditativa. Em termos compositivos, a

    dana guiada pela msica, mas ambas baseiam sua estrutura formal e tematica em

    imagens e modos poticos e, em contrapartida, a poesia persa incorpora tambm a

    musicalidade e as imagens coreogrficas, tal como vemos na poesia de Hfi e Rm.

    Para Hfi, que experimentou na prpria pele as turbulentas invases mongis

    do sculo XIV, os versos polissmicos de intensa musicalidade falam da embriaguez e

    da dana como reflexos de uma existncia mundana catica, que desmascara a

    desconexo e a bipolaridade espiritual do homem.23 Para Rm que, pelo contrrio,

    tivera uma existncia contemplativa no sculo XIII, a dana sintoniza o homem ao

    universo:

    dia, levanta-te! Enquanto as partculas de ar danam.

    Almas alegres, levadas pela inteno e pelos ps, danam.

    Para quele em torno do qual giram e os cus danam,

    Vou lhe contar ao ouvido aonde se dana.24

    O rodopio anti-horrio dessa dana mimetiza o movimento de rotao e

    translao dos astros em torno de um ponto csmico central que, semelhana dos

    23Ver RIDGEON, 2006, p. 137.

    24Traduo nossa. RM, 2008, p. 702, G:712.

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    planetas em torno do sol, fazem reverncia ao Criador, centro de toda a Criao.25 O

    Homem Perfeito, como definiu o mstico Ibn Arab, sendo feito imagem e

    semelhana do Criador, tem em si a fagulha divina, que se expressa no ser humano

    atravs da autoconscincia. Essa autoconscincia se completa no movimento, que

    combina a experincia exterior do corpo com a atividade espiritual interior.26

    A concepo cosmognica do medievo oriental transparece nos versos msticos

    do poeta danarino, que incorporam tambm a funo filosfica e didtica de revelar a

    ordem do mundo: a Terra, o centro mais denso do universo onde os seres se formam

    pela combinao dos quatro elementos, terra, gua, fogo e ar, e ordenam-se na seguinte

    escala evolutiva: mineral, vegetal, animal e humano, sendo este ltimo o nico dotado

    de esprito. Em torno dela esto as esferas da Lua, Mercrio, Vnus, Sol, Marte, Jpiter,

    Saturno, zodaco e estrelas fixas, que sendo dotadas de alma se regem pelo princpio

    pitagrico do movimento das esferas celestiais. Sua irradiao passvel da influncia

    musical, por sua vez capaz de alterar o estado corporal e anmico dos seres na matria

    sublunar.27

    Em tal cosmologia, correspondncias entre elementos, planetas, qualidades,

    tons, cores, perfumes, nmeros, metais, ervas, animais e emoes, eram encontradas por

    25 Na dana tradicional persa se gira em ambos os sentidos. Uma dana do povo uyghur, de carterxamnico, pode ter originado o giro dervixe. A esse respeito ver JOHN, s/d, acessado em 20/10/2011:http://www.easternartists.com/DANCE%203%20Central%20Asia.htmle MARKOFF, 1995, acessado em20/12/2012:http://www.alevibektasi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=686:introduction-to-sufi-music-and-ritual-in-turkey&catid=46:aratrmalar-ingilizce&Itemid=69

    26Ver IBN ARAB, 1980.Traduo para o ingles de R.W.J. Austin e prefcio de Titus Burckhardt.

    27Ver FARMER, 1929,p. 151, 144 e 203. Traduo de trecho do Kitab al-musiqa al-kabirde Alfrbpara o espanhol em FUERTES, 1853. Existe tambm um livro latino atribudo a Al Knd, que aborda arelao entre os raios estelares e a msica. ALKND, 1975. Traduzido por Robert Zoller.

    http://www.easternartists.com/DANCE%203%20Central%20Asia.htmlhttp://www.alevibektasi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=686:introduction-to-sufi-music-and-ritual-in-turkey&catid=46:aratrmalar-ingilizce&Itemid=69http://www.alevibektasi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=686:introduction-to-sufi-music-and-ritual-in-turkey&catid=46:aratrmalar-ingilizce&Itemid=69http://www.alevibektasi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=686:introduction-to-sufi-music-and-ritual-in-turkey&catid=46:aratrmalar-ingilizce&Itemid=69http://www.alevibektasi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=686:introduction-to-sufi-music-and-ritual-in-turkey&catid=46:aratrmalar-ingilizce&Itemid=69http://www.easternartists.com/DANCE%203%20Central%20Asia.html
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    meio de contiguidade, analogia, afinidade ou semelhana. Nesse tecido de relaes

    sincrnicas, as cincias, a religio e as artes tambm operavam de forma inter-

    relacionada, pois a viso medieval do mundo baseava-se no conceito de semelhana

    que, como notou a pesquisadora Sylvia Leite, direcionou no somente a explicao das

    coisas visveis e invisveis, mas tambm a interpretao de textos e a organizao de

    smbolos, alm de ter dado suporte para as artes. 28Nesse sistema, o fazer potico

    consistia numa cincia da alma, tal como a filosofia e a msica e, no tecido persa

    propriamente dito, a dana ressaltava os elementos zoroastrianos, sobretudo o principio

    da conexo espiritual interna e direta com a divindade, sem intermediaes.

    Danas persas

    As danas tradicionais persas esto repletas de referncias ao zoroastrismo e

    outras religies pr-islmicas, devido sua origem em antigos ritos dedicados s

    divindades locais.29 Elas agregam a sofisticao sufi tnica dada pelos elementos

    mazdestas (ou zoroastrianos) que preservaram traos do mitrasmo, como o ritual da

    dana em torno do fogo durante os solstcios e equincios anuais. 30 O fogo no centro

    representaria simbolicamente o antigo deus solar, suplantado no zoroastrismo por Ahura

    Mazda (senhor sbio), cujos atributos centrais so a sabedoria e a vida, presentificadospela luminosidade e o calor.

    28 A autora elenca quatro tipos de semelhana mais frequentes: convenincia, emulao, analogia esimpatia, sendo que esta ltima se distinguia pelo seu poder de transformao de uma coisa em outra, apartir da aproximao e identificao por qualidades. LEITE, 2007, p. 30-31.

    29Ver SHAHBAZI, 1993, pp.640-641.

    30Ver KIANN, 2000. Acessado em 20/10/2011:http://www.artira.com/nimakiann/history/preislamic.html

    http://www.artira.com/nimakiann/history/preislamic.htmlhttp://www.artira.com/nimakiann/history/preislamic.html
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    Tais traos caracterizam as danas tpicas que se apresentam nas festividades

    pblicas ou familiares,31cujos repertrios musicais e coreogrficos so preservados por

    msicos e artistas de diversas etnias da sia Central, como uzbeques, tadjiquis, afegos,

    armnios, bakhtiaris, mazandaranis, lores, balchis, bandaris, curdos, azeris, iranianos,

    entre outros, muitos dos quais se encontram em companhias profissionais atualmente

    estabelecidas no estrangeiro desde a proibio da dana em 1982, no Ir.32H ainda as

    danas cnicas e as representaes da tradio, devendo-se observar estas ltimas em

    seu hibridismo que mescla os aspectos da tradio com os princpios cnicos, conforme

    indicou Anthony Shay.33 De forma geral, todas essas modalidades compartilham de

    certos elementos coreogrficos, como giros e transies de braos em alternncia e

    simetria contralateral de membros superiores e inferiores.34

    Algumas modalidades de danas tradicionais esto explicitamente ligadas

    poesia: 1) o zorneh, mistura de dana de guerra com arte marcial, em que se

    executam movimentos ao ritmo da percusso e da leitura de trechos de poesia pica ao

    31Consideramos danas tradicionais aquelas cujos elementos coreogrficos centrais se definem por suaorigem mtica, religiosa, ritualstica, mgica ou laboral, com uso determinado por regras prefixadas e suatransmisso, de gerao em gerao, restringe-se a uma dada coletividade, conforme observou CmaraCascudo em CASCUDO, 1971. A tradio responsvel pela preservao e transmisso dos elementoscoreogrficos centrais, que podem ou no ser transpostos para o palco, podem ou no ser populares,podem ou no fazer parte de repertrios folclricos. No lugar de tradicional tambm se costuma utilizaros termos popular, folclrico e tnico, mas de forma incorreta, ideolgica ou imprecisa. VerORTIZ, 1985.

    32Atualmente no Ir e no Afeganisto danar proibido, mas apesar da condenao religiosa, se danaem festas particulares e familiares. A maior parte das representaes cnicas realizadas pelas companhiasem territrio estrangeiro so reconstituies de tradies histricas e coreografias de dana clssica persa.

    33 O autor denominou de tradio paralelaas tradies inventadas (no sentido dado pelo historiadorEric Hobsbawm) por companhias folclricas nacionais, em cujas representaes aparece a problemticapoltica e ideolgica da identidade nacional. Ver SHAY, 2001; HOBSBAWM e RANGER, 1997. Deve-se distinguir ainda a representao da tradio da dana de gnero, que uma modalidade de bal queempresta figurinos, adereos e as vezes tcnicas de outras danas, parecendo tradicional, mas sem s-lo.

    34Ver FRIEND, 1996, pp. 6-18.

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    fundo;352) as danas de celebrao de colheitas (arroz, norte do Ir) e da passagem das

    estaes, como o Nrz, ano novo que inicia o equincio de primavera, que conta com

    cortejos de dana, recital de poesia e musica, numa espcie de benzedeira artstica

    semelhante das festividades de rua no Brasil; 3) a sam, que na cultura persa designa

    um tipo de dana giratria executada de modo mais livre do que no ritual dos dervixes

    rodopiantes de Konya,36e uma modalidade sacra que representa o universo e as quatro

    estaes, 37sendo que todas envolvem audio de msica e poesia mstica; 4) as danas

    de corte, que remontam aos saraus de pocas dinsticas e utilizam a poesia como fonte

    temtica. Consideramos entre elas a dana persa clssica,38 a dana das rosas (ras-e

    gol) de estilo palaciano39e o solo improvisado, que utiliza livremente os elementos de

    todas as anteriores.40

    35A dana ocorre numa espcie de grande gaiola em formato circular. Foi utilizada por lutadores livrespara preparar grupos subversivos contra a polcia do governo de Reza Pahlevi.

    36Representaes cnica dasampersa:http://www.youtube.com/watch?v=3_LkxdUYA_8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=41http://www.youtube.com/watch?v=9w77oOQjMbo&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=39

    Representao cnica de giro dervixe com elementos da sam persa:http://www.youtube.com/watch?v=9wCinU_ymeU

    37Essa tradio teria influenciado a dana andalusina, que realizada ao som da muachahat, sob o ritmosamai 10/8, praticada no Iraque e na Sria. Marcia Dib coletou uma verso palaciana, que distingue da

    sufi nos seguintes termos: samah qadim, ou seja, a samah antiga, tambm chamada melaouie. umadana devocional, ligada mstica islmica, e sua complexidade solicita um trabalho parte. DIB, 2009,p. 283. Segundo os msticos, a figura rtmica dosamai, DssTsDDTss (D: grave, T: agudo, s: silncio),sintetiza ritmicamente a oraoLa ilaha il allah(no h divindade seno Deus).

    38Dana persa clssica:http://www.youtube.com/watch?v=p_4m3MyOqb8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=42http://www.youtube.com/watch?v=wFaYms5GWnQ&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=7

    39Coreografia:http://www.youtube.com/watch?v=T0SLS3IbmVw&list=5E6FB3B37548D3E1

    40Improviso tradicional:http://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=related

    Solo contemporneo:http://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=related

    http://www.youtube.com/watch?v=3_LkxdUYA_8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=41http://www.youtube.com/watch?v=9w77oOQjMbo&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=39http://www.youtube.com/watch?v=9wCinU_ymeUhttp://www.youtube.com/watch?v=p_4m3MyOqb8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=42http://www.youtube.com/watch?v=wFaYms5GWnQ&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=7http://www.youtube.com/watch?v=T0SLS3IbmVw&list=5E6FB3B37548D3E1http://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=T0SLS3IbmVw&list=5E6FB3B37548D3E1http://www.youtube.com/watch?v=T0SLS3IbmVw&list=5E6FB3B37548D3E1http://www.youtube.com/watch?v=T0SLS3IbmVw&list=5E6FB3B37548D3E1http://www.youtube.com/watch?v=wFaYms5GWnQ&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=7http://www.youtube.com/watch?v=p_4m3MyOqb8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=42http://www.youtube.com/watch?v=9wCinU_ymeUhttp://www.youtube.com/watch?v=9w77oOQjMbo&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=39http://www.youtube.com/watch?v=3_LkxdUYA_8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=41
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    Os elementos coreogrficos compartilhados por essas danas tm sua

    significao nas imagens de referncia mitopotica e ritual: o fogo, que significa a

    chama da sabedoria divina; o cipreste, imagem da conexo espiritual do homem com o

    deus celeste Ahura Mazda;41 a gua, imagem do curso e fonte da vida. A rosa, que

    significa a paixo e a revificao da existncia na primavera e permutvel com a

    imagem do fogo e do pavo, sendo este ltimo signo da realeza e do olho que v alm

    da aparncia; o vinho, signo do sacrifcio e da embriaguez da conexo com a divindade;

    o sol, fonte da vida e da sabedoria tanto no mitrasmo como no zoroastrismo, imagem

    sufi do corao de Deus, cuja contrapartida no homem o seu prprio corao;42 a

    espiral, que engloba todas e designa tanto a infinitude como a conexo espiritual.43

    Em termos de espacialidade segue-se o principio medieval e antigo que atribui

    ao quadrado a estrutura primeva do mundo e ao crculo a expresso do plano divino. O

    eixo vertical simboliza o uno e imutvel, enquanto o eixo horizontal refere-se ao

    mltiplo e mutvel.44O deslocamento em redor de um eixo central constri uma rosa

    dos ventos em que s quatro direes principais correspondem os respectivos

    41 Ver JACKSON, 1899 e artigo on line : The Cypress of Kashmar and Zoroaster. Acessado em15/11/2011: http://www.cais-soas.com/CAIS/Religions/iranian/Zarathushtrian/cypress_zoroaster.htm

    42

    Para visualizar os elementos coreogrficos ver imagens da seo Anexo.43Cada uma dessas imagens se realiza por meio de diferentes combinaes de signos coreogrficos: o

    cipreste representado pela postura reta com os ps em meia-ponta, indicando a sua direo ascendente.A rosa, o fogo e a pena de pavo se realizam pela juno dos dedos polegar e mdio, que partem emalternncia da regio articular do externo. A gua se representa pela movimentao ondulada edescendente de mos e braos, frontal ou lateral. A espiral se realiza pela diagonal ou oposio no eixosagital (frente/trs) de braos e mos, com uma das palmas voltada para cima e outra para baixo, emsentido horrio e/ou anti-horrio.

    44Ver MACHADO, pg 82 -100. Christian Poch tambm verificou que a dana mstica se define pelo usodo espao circular, do eixo vertical e do fator peso. Ver HENNI-CHABRA e POCH, pp. 38-40.

    http://www.cais-soas.com/CAIS/Religions/iranian/Zarathushtrian/cypress_zoroaster.htmhttp://www.cais-soas.com/CAIS/Religions/iranian/Zarathushtrian/cypress_zoroaster.htm
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    elementos: terra, gua, fogo e ar, estaes e signos cardinais do zodaco.45Os elementos

    coreogrficos da rosa/fogo so alternados com o da gua, por contraste, e utiliza-se o

    giro da espiral como figura de fechamento ou transio entre as frases meldicas ou

    entre os pontos cardeais na formao circular. O uso repetido desses elementos, no

    entanto, apresentado por meio de variaes sutis que exprimem as diferentes intenes

    coreograficas surgidas na interpretao da musicalidade.

    Anthony Shay, que no estudo Choreophobia: Solo Improvised Dance in the

    Iranian World evidenciou a inter-relao das danas persas com outros elementos

    daquela cultura,46verificou que essas danas, assim como a caligrafia e as artes visuais,

    esto fortemente submetidas aos fatores da geometria, como proporo e formas, e a

    outros fatores de ordem visual de provvel influncia islmica. Por outro lado, as danas

    tambm se vinculam s artes orais, ao teatro cmico, contao de histrias, literatura

    e, sobretudo, msica por meio do improviso,47que caracterstico da tradio. Nesse

    procedimento a audio preponderante e a dana segue as regras e princpios da

    msica persa.

    45O signos cardinais so aqueles que iniciam as estaes: ries, Cancer, Libra e Capricrnio, sendo que otermo cardinal tambm se relaciona com a qualidade e classificao elemental, no caso, respectivamente,fogo, gua, ar e terra. As outras duas condies so fixa, para os signos centrais, e mutvel, para os finais.

    46 Ver SHAY, 1999. O autor segue o pressuposto antropolgico de Cliford Geertz, de que todos oselementos dentro de uma dada cultura esto em inter-relao. Ver GEERTZ, 1999, p. 142-154

    47Ver SHAY, 1999, pp. 48-50.

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    Msica

    Os princpios fundamentais da msica persa so a circularidade e a ascenso

    tonal rapsdica, que devem ocorrer pelo trnsito sutil entre famlias de tons atravs de

    notas interligadas por contiguidade ou semelhana sonora.48Essas famlias de tons so

    ambientes sonoros formados pela sobreposio das microescalas do sistema microtonal

    oriental, em persa chamado dastgh, em rabe maqm, em mongol muam, em turco

    makam, em hindu ragas etc. Cada modo ou tom predominante possui associaes

    extramusicais com as cores, os elementos, as estaes, as plantas, os metais, os astros,

    os signos e as imagens poticas, que evocam variados estados de nimo no ouvinte. 49

    Para o msico Mortez Vrzi, a associao da msica clssica persa ao

    misticismo persa, especialmente por sua similiaridade em forma e propsito ao sam,

    deriva, sobretudo, da sua relao com a poesia, uma vez que:

    A poesia considerada como o principal veculo para converter conceitos do

    misticismo persa. A msica vista como um meio de iluminar e extrair o significado e

    a emoo latentes dentro dessa poesia. As formas poticas principais para essa msica

    so os clssicosazal, masnav e ruba; particularmente os poemas de Hfi, Sad e

    Rm. Eles contm smbolos msticos que retratam o desejo de reunio, descrevendo

    os estados para se alcanar a intoxicao.50

    48Ver DIB, 2009, CATON, 1988, FARHAT, 1990.

    49 Trata-se de um sistema microtonal meldico e sem polifonia, polirritmias ou harmnicos, com umtemperamento natural de tons, muito diferente da msica ocidental moderna. Diz-se que uma escalacromtica, por possuir microtons, e diatnica, porque ainda assim possui notas tnicas principais. Como aafinao natural dos instrumentos tradicionais permite que cada uma tenha acento tonal especifico, algunsestudiosos chegam a afirmar que existem mais de 2.400 escalas no mundo oriental. Ver artigo deKAROMAT, acessado em 20/12/12:http://web.mac.com/wvdm/JIMS/Issue_36-37_files/6_karomat.pdf

    50 Poetry is considered ad the major vehicle for conveying the concepts of Persian mysticism. Music isseen as a means of heightening and bringing out the meaning and emotion latent within this poetry. The

    primary poetic forms for this music are the classical azal, masnavand rubi; particulary the poems of

    http://web.mac.com/wvdm/JIMS/Issue_36-37_files/6_karomat.pdfhttp://web.mac.com/wvdm/JIMS/Issue_36-37_files/6_karomat.pdf
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    Segundo Margareth Caton, a msica persa construda diretamente a partir do

    padro prosdico dos versos, que imitado pela melodia.51O contraste entre o tom e o

    ritmo indica tpicos e motivos, sendo que o azal, uma forma de poesia lrica, a

    principal forma potica utilizada no corpo da vocalizao (avz) do dastgh. Ele unifica

    a msica temtica e ritmicamente.52

    O etnomusiclogo Steve Blum informa que, nas combinaes do ritmo com a

    melodia, as transies temticas so enfatizadas do seguinte modo:

    Ao preparar uma performance, os cantores escolhem linhas de um nmero de poemasem diferentes mtricas poticas. Eles devem em seguida estabelecer uma sequncia de

    formas musicais, acordes e ritmos, para dramatizar a transio de um poema a outro.

    Intrigantes conexes assim como contrastes relevantes entre tpicos e imagens dos

    poemas emergem enquanto os msicos passam de uma combinao de melodia e de

    ritmo outra. (...) O impulso rtmico das batidas previsveis em tanf e arbi

    realizadas pelo cantor solicita que ns escutemos mais claramente cada slaba de um

    novo poema quando ele inicia uma seo nova do sz e do vz. Nestes momentos

    mais introspectivos ns reconhecemos que o cantor e o instrumentista esto

    improvisando em resposta um ao outro, at que a intimidade do sz e do vz leve

    mais uma vez sociabilidade mais extrovertida de um tanfou de um arbi.53

    Hfi, Sadi, and Rm. They contain mystical symbols that portray the desirability of reunion, describingthe state one attains as intoxication, VRZI apud CATON, 1986, p. 16.

    51

    Exemplifico com uma verso musicada de Parvaneh ode Rm, que ser analisado no captulo IV: http://www.youtube.com/watch?v=F8JXTtNZkBE

    52 The azal, a form of lyric poetry, is the main poetic form used in the body of vocal performance(vz) of the dastgh. It unifies the music thematically and rhythmicallyque . CATON, 1986. pp. 15-23.

    53Tasnifsignifica cano. o modo correspondente baladalirica-medieval europeia, executado emandamento lento. Ozarbisignifica composio ritmica e indica a passagem de um tema a outro no radf(sute). Sze avzso, respectivamente, improviso instrumental e vocal. FARHAT, 1990.

    As they prepare a performance, singers choose lines from a number of poems in different poetic meters.They must next establish a compelling sequence of musical forms, tunes and rhythms, in order todramatize shifts from one poem to the next. Intriguing connections as well as striking contrasts in the

    topics and images of the poems emerge as the musicians pass from one combination of melody and

    http://www.youtube.com/watch?v=F8JXTtNZkBEhttp://www.youtube.com/watch?v=F8JXTtNZkBE
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    Assim, enquanto a interpretao musical d vida e explicita os significados

    poticos latentes na composio, o improviso serve para afinar os msicos ao estado

    anmico da audincia, visto que o lleva o msico a improvisar da mesma maneira que

    o improviso leva a audincia ao l. Assim, o l ocorre quando os msicos

    estabelecem entre si um dialogo focado no sentido potico e o compartilham com a

    audincia.54

    Acredita-se que Rm tenha adotado metros poticos simples e repetio de

    figuras rtmicas curtas para gerar a dana cerimonial tipo momentum, durante a

    execuo da qual pode ter criado alguns de seus poemas lricos.55 O ritmo simples

    serviria para propiciar a sensao de extino do tempo e traduzir a experincia da

    unidade no Ser, em contraste com as variaes tonais que expressariam a

    multiplicidade. Mas, segundo Caton, no caso da msica persa, isto no se d por meio

    de repetio rtmica ou corporal, mas primariamente por meio da tenso dinmica entre

    os acentos e as tonalidades de referncia.56Ou seja, o foco no est na repetio, mas

    justamente na variao meldica, que conduz o nimo da audincia.

    Para Vrzi, desse modo que se purifica corpo e alma, uma vez que :

    rhythm to another. () The rhythmic momentum of the predictable beats in tanfand arbiyields to thesingers request that we listen more closely to each syllable of a new poem as she begins a new section ofsz and vz. In these more introspective moments we recognize that singer and instrumentalist areimprovising in response to one another, until the intimacy of szand vzonce again gives way to themore extroverted sociability of a tanf or arbi. BLUM, s/d. Acessado em 03/11/2011:http://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetry

    54 VARZI, 1886, p. 2.

    55 Ver BLUM, s/d. Acessado em 03/11/2011: http://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetry

    56 In the case of Persian classical music, it is not done by means of repetitive rhythm or bodymovements, but primarly by means of the dynamic tension between stress and reference pitchesCATON, 1986, p. 18.

    http://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetryhttp://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetryhttp://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetryhttp://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetryhttp://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetryhttp://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetry
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    A msica pode modificar o ouvinte e tir-lo de si mesmo, e num sentido mstico, lev-

    lo ao encontro com Deus. l o estado em que algum est fora de si. (...) Depois da

    msica os ouvintes sentem que retiraram um grande peso de seus ombros. Ela purifica

    o ouvinte ao retirar a alma do corpo e deixar a msica fazer o trabalho no corpo.57

    Tal como teorizaram os msicos rabes e persas medievais, a proeza da magia

    musical ordem alqumica: o corpo se precipita retido pela audio, enquanto a alma

    passeia pelos diferentes estados que a msica evoca. O lsepara e une corpo e alma,

    instaurando, como define o poeta e crtico contemporneo Adonis, as duas dimenses

    fundamentais da experincia potica: a externa e a interna. Diz ele:

    O externo (hir) e o interno (bin), ou, digamos, o visvel e o invisvel, so duas

    palavras chaves para compreender a experincia potica moderna e suas dimenses da

    representao formal. Para esta experincia, que sufi no fundamental, todas as coisas

    e fenmenos tm duas qualidades, uma externa e outra interna. O modelo principal de

    ambas em uma mesma coisa e num mesmo fenmeno o corpo. Cada um de ns vive

    seu corpo internamente (subjetividade, fantasias, sentimentos, sensaes etc) e

    externamente (o vemos e o tocamos como uma coisa a parte).58

    O xtase, portanto, consiste em percurso e estgio final do trnsito anmico

    atravs de variaes meldicas, rtmicas e imagticas que ocorre na interface entre as

    dimenses interna e externa da experiencia esttica. Para Adonis, essa interface est no

    corpo; mas na concepo dos msticos islmicos medievais ela ocupa uma dimenso

    mais sutil e abstrata, que eles designam como sendo a do corao.

    57 Music can change the listener, and take him out of himself, and in a mystical sense, join him withGod. Hl is the state where one is taken away from oneself () After the music the listener feels a greatweight lifted from his shouders. It purifies the listener by taking the soul out of the body, and lets themusic do the work on the body. VARZI, 1986, p.3-4.

    58 Lo externo (zhir) y lo interno (batin), o digamos lo visible y lo invisible, son dos palabras clave paracomprender la experiencia potica moderna y sus dimensiones de representacin formal. Para estaexperiencia, que es sufi en lo fundamental, todas las cosas y todos los fenmenos tienen dos cualidades,una externa y otra interna. El patrn principal de ambas en una misma cosa y en un mismo fenmeno, esel cuerpo. Cada uno de nosotros vive su cuerpo internamente (subjetividad, fantasas, sentimientos,sensaciones, etc) y externamente (lo vemos y lo tocamos como una cosa ms). ADONIS, p. 258.

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    CAPTULO II: Dana e jogo exttico

    Tem um reino de metamorfose para experincia:seu corpo o seu prprio jogo

    e sua eternidade ldica.CECLIA MEIRELES59

    A descrio que os artistas contemporneos da msica e da dana persas

    fazem do xtase deriva da concepo elaborada pelos msticos medievais. Para estes

    ltimos, o corao o campo de autoconhecimento e da experincia do encontro com

    Deus.60 Nele, as dimenses externa e interna se interligam pela atuao conjunta de

    faculdades da alma na atividade imaginativa.

    Para Alazl, o corao se situa numa dimenso intermediria entre a

    realidade sensvel e a realidade invisvel.61 Alm da dimenso fsica (qalb), possui

    outras trs dimenses que se manifestam como esprito (rh), alma (nafs) e intelecto(aql) e compartilham entre si uma tnue substncia sutil que a essncia espiritual do

    homem.

    O esprito como um vapor produzido pelo calor do corpo que circula e dota

    de vida todas as suas partes, como um lampio iluminando as paredes ao percorrer uma

    casa. Essa dimenso do esprito responsvel pelo movimento, a vida e o calor de todo

    59MEIRELES, 2001, p. 42.

    60 Henry George Farmer apresenta definies de diversos msticos sobre a natureza da msica e suarelao com o corpo, Deus e o universo, especialmente dos irmos Ijwan al-Safa, Abu talik Al-Makki, AlJunayd, Al-Shibli, Abu-Yazid Al-Bustami, entre outros. SHARIF, s/d. Acessado em 20/01/2012:http://www.muslimphilosophy.com/hmp/LVII-Fifty-seven.pdf

    61WENSINCK, A. J., 1940. p. 83.

    http://www.muslimphilosophy.com/hmp/LVII-Fifty-seven.pdfhttp://www.muslimphilosophy.com/hmp/LVII-Fifty-seven.pdf
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    o corpo. A alma consiste no prprio ntimo do homem que conhece a Deus e todas as

    coisas conhecveis. Passvel de movimento e transmutao, modifica-se e adquire a

    forma dos diversos estados pelos quais passa, sendo seu estado ideal o de repouso. Sua

    natureza como a da gua que espelha perfeitamente o que reflete quando em repouso

    absoluto, mas que ao ser agitada tudo distorce e desfigura. E por fim, o intelecto, que se

    define em trs sentidos: 1) capacidade de conhecimento da real natureza das coisas, 2)

    autoconhecimento e 3) inteligncia suprema de Deus, que no pode ser concebida como

    acidente, sendo o prprio princpio do conhecimento. Esta a faculdade no homem que

    decide e dirige a ao interna ou externa.

    Assim, o esprito conhece, experimenta e percebe o corpo, a alma conhece,

    percebe e experimenta todos os estmulos do plano sensvel e estados internos e o

    intelecto conhece, percebe e experimenta a si mesmo na forma do princpio

    autoexistente, do livre-arbtrio e da autoconscincia. Assentados no corao fsico, as

    dimenses do esprito, corpo, alma e intelecto se interligam por meio de uma tnue

    substncia sutil de natureza etrea.

    Para Ibn Arab, o corao a porta de acesso realidade superior onde o ser

    humano conhece a Deus por meio da unio dos opostos.O ser humano, feito imagem e

    semelhana do Criador, possui a estrutura essencial do cosmos e experimenta

    integralmente a existncia atravs de seu corao, que integra em si os polos opostos da

    Multiplicidade na existncia sensvel e da Unidade no Ser: exterior (sensvel) e interior

    (oculto), feminino e masculino, matria e esprito, experincia e conhecimento,

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    manifesto e imanifesto, respectivamente. Assim, a potncia divina criadora se realiza no

    ser humano enquanto sntese da unio entre o cosmos e o impulso criativo divino.62

    J para o filsofo Ibn Sn, que no considerado mstico, a alma a dimenso

    e substncia do corao que se relaciona tanto com a parte corporal e sensvel do

    homem como com a parte inteligvel, e suas faculdades correspondem s funes dos

    planos vegetal, animal e humano. Para interligar os sentidos externos e internos, o

    homem utiliza as faculdades intermedirias da alma: a faculdade imaginativa, que torna

    as ideias inteligveis ao apresent-las em formas sensveis; a faculdade estimativa, capaz

    de obter ideias abstratas a partir de experincias concretas, apreendidas por sua vez pela

    faculdade perceptiva. Ambas as faculdades, a imaginativa e a estimativa, se relacionam,

    por um lado com a faculdade prtica, que rege corpo, paixes, emoes e capacidade

    artstica, e por outro com a faculdade intelectiva, que puramente especulativa e recebe

    de maneira autnoma e passiva o conhecimento divino.63

    Para Ibn Arab, a imaginaocriativa (ayl) uma faculdade intermediria

    que se relaciona tanto com as formas sensveis como com as verdades inteligveis.

    Campo da criatividade, nela ocorre a locuo teoptica, por meio da qual a divindade

    fala ao homem atravs de smbolos e imagens. A locuo teoptica o acontecimento

    (wqia) que se produz por meio da locuo (ib) ou do smbolo (mil),64que a

    forma imaginativa da ideia original, inicialmente oculta ou absorvida na sombra

    62Ver IBN AL-ARABI, 1980, pp. 145-158.

    63Ver ATTIE FILHO, 1999, pp. 50-52.

    64Lo que llega al corazn proveniente del mundo superior es llamado por Ibn Arab el acontecimiento(al-waqia) y se produce por medio de la alocucin (jitab) o el smbolo (mizal) IBN ARAB apudADONIS, p. 102.

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    divina. Tal smbolo consiste numa forma sensvel que, por semelhana imagtica, d

    inteligibilidade ideia abstrata e espiritual.

    Atravs de projees oriundas da sombra divina,

    a essncia latente dos seres

    contingentes se revela nas imagens sensveis geradas pela ao inventiva e criativa de

    Deus,que as projeta em sua imaginao separada:

    a [imaginao] separada a presena intermediria universal e unificadora, a presena

    em que se estabelece a semelhana e a mistura imaginativas. Nessa presena se

    manifesta a Verdade em imagens, aparecem os espritos angelicais, tambm em

    imagens, e as ideias sob formas e moldes sensveis65.

    A mistura imaginativa composta da imaginao separada com a

    imaginao unida. A imaginao unida a contraparte criativa no ser humano que

    experimenta o processo imaginativo de modo passivo, como criao divina, e de modo

    ativo, atravs da sua prpria ao criativa. Assim, a imaginao para Ibn Arab uma

    potncia criativa abrangente que integra as faculdades, imaginativa, estimativa, prtica e

    intelectiva,postuladas por Ibn Sn.

    Com sua imaginao unida o ser humano acessa a imaginao separada

    por meio de vises durante a viglia ou em sonhos atravs dos quais ascende ao universo

    das Realidades Espirituais. por meio dela que o sinal divino chega ao corao do ser

    humano, tal como a revelao no corao dos profetas, em linguagem simblica:

    65La separada es la presencia intermediaria universal y unificadora, la presencia em que se establece lasemejanza y la mezcla imaginativas. En esta presencia se manifiesta la Verdad en imgenes, aparecen losespritus anglicos, tambin en imgenes, y las ideas bajan a formas y moldes sensibles ADONIS, 1990,p. 99.

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    O simbolismo se desenha sempre numa forma, que no fixa, mas que uma casa

    visvel para um habitante invisvel. A forma um corpo: o corpo do significado. Entre

    a forma e o significado existe uma unidade imagem.66

    A imaginao, portanto, consiste em criar imagens mentais que so como

    reflexos da essncia divina dos seres. A imagem que aparece na imaginao no

    somente similar imagem produzida na sombra divina, mas tambm veicula a verdade

    que lhe intrnseca. Ela uma forma sensvel e inteligvel, condutora de uma revelao

    divina destinada a ser conhecida pelo homem. Ela ao mesmo tempo determina e

    determinada pela comunicao que ocorre no corao do homem, entre ele e Deus.

    Portanto as concepes de corao, alma e imaginao em Alazl, Ibn Arab

    e Ibn Sn, embora diversas entre si, se autorreferenciam e se complementam. Tanto o

    conceito de corao de Alazl como o de imaginao de Ibn Arab supem um

    campo intermedirio para a comunicao teoptica. A alma de Ibn Sn, por sua vez, a

    substncia e dimenso intermediria do corao que, no sendo individual nem

    particular, permite interagir e participar da experincia externa e interna ao receber

    estmulos ou assumir determinado estado. Apenas a concepo de Alazl destoaaqui,

    por considerar a presena de uma substncia espiritual que ativa, dirige e integra o

    corao. Mas, em todos esses autores, durante a experincia contemplativa o corpo

    dirigido pela atividade do corao.

    Assim, para Alazl, durante o xtase a substncia etrea afina todas as

    dimenses do corao para que o corpo apenas exteriorize o que ocorre interiormente.67

    66 La imaginacin es una potencia inventiva de formas e imgenes, y solo a travs de esta potenciarenovadora se revela lo oculto en toda su magnitud, ADONIS, 1990, p. 264. La forma es una casavisible para un habitante invisible. La forma es un cuerpo para el significado. Entre la forma y elsignficado hay una forma imagen'. ADONIS, 1990, p. 265.

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    J segundo Ibn Sn, o uso pleno da imaginao e do corpo na dana que propicia a

    intuio, liberando o campo para o recebimento da verdade emanada do Intelecto

    Agente. De modo similiar pensa Ibn Arab, para quem a dana enquanto meditao

    ativa facilita a funo da imaginao criativa. Ademais, da perspectiva desse ltimo

    autor, podemos considerar que a dana meditativa integra a ao do esprito

    corporalidade e estabelece (ou reestabelece) o elo entre a existncia sensvel, exterior,

    fugaz e transitria e a realidade intangvel, oculta, perene e atemporal, tornando visvel

    e corpreo o que invisvel e incorpreo: ideias, imagens, emoes. De certo modo, ao

    simular o vir-a-ser das coisas e sua passagem do inexistente para o existente por meio

    da dana, o homem, feito imagem e semelhana do Criador, mimetiza o prprio

    processo da Criao.

    ***

    Segundo alguns tericos contemporneos, a dana uma linguagem cintica

    deliberada e a combinao dos signos coreogrficos pode compor smbolos de

    significao cultural pr-fixada.68 Porm, a significao em dana permanente e

    dinmica e mesmo que os seus elementos coreogrficos baseiem-se em elementos

    extracinticos de significao cultural fixa, nem por isso seu sentido unvoco, fixo eimutvel e pode ser, inclusive, alterado e at mesmo invertido atravs da manipulao

    de diversas variantes do movimento.

    67Traduo de Walter James Skelie. Ver o captulo 4 em ALAZL, 1938.

    68Ver WILLIAMS, 2004, p. 168.

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    Transpostas do mito e da poesia para a dana, as imagens so os fatores

    extracinticos mais frequentes na significao dos elementos coreogrficos tradicionais,

    por constiturem o fundamento da atividade imaginativa e terem dupla penetrao no

    campo cognitivo e afetivo.

    Segundo a pesquisadora Proca-Ciortea, a dana uma linguagem cintica

    deliberada em oposio linguagem cintica espontnea que envolve a expresso

    corporal humana como um todo. Numa perspectiva semiolgica, a autora prope que a

    linguagem da dana se compara linguagem verbal, sendo que a lngua e a palavra

    correspondem, no plano do movimento corporal, linguagem coreogrfica e dana.

    Danas populares e de carter tradicional teriam seu sistema de comunicao

    restrito a uma coletividade, pois:

    A distino entre os signos produzidos pelas alavancas e articulaes do corpo no

    reside na estrutura do corpo que evidentemente, idntica para todos mas namaneira de formular os comandos, que s vezes contradizem at mesmo as leis

    biomecnicas do movimento do corpo humano. Esto condicionadas por seu turno por

    mltiplos fatores, como por exemplo: as caractersticas psicofsicas, o horizonte

    ideolgico e artstico de uma dada coletividade. [...] Sendo um meio de comunicao

    artstica, os signos coreogrficos da dana popular no tm uma individualidade

    prpria no processo da comunicao. Esto agrupados sobre estruturas e formas (com

    funcionalidade interna bem precisa) conforme certos modelos estabelecidos pela

    tradio e determinados pela lgica do pensamento coreogrfico, constituindo destamaneira os elementos expressivos capazes de transmitir uma mensagem.69

    69 La distinction entre les signes produits par les lviers et les articulations du corps ne rsident pas dansla estructure du corps qui, videmment, est partout identique, - mais dans la manre de formuler lescommandes que parfois contreviennent mme aux lois biomcaniques du mouvement du corps humain.Elles sont conditiones leur tour par des facteurs multiples, comme par exemple: les caracterespsychophysiques, lhorizon idatique et artistique dune colletivit done. () tant un moyen de

    communication artistique, les signes choreographiques de la danse populaire nont pas une individualit

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    Para essa autora, a linguagem coreogrfica se estrutura em trs planos

    fundamentais: plano rtmico, eixos espaciais e signos coreogrficos. Sobre eles se

    estruturam os gestos, passos e figuras de deslocamento, que podem ou no se referir a

    algum elemento extracintico. Assim, por exemplo, em danas com deslocamentos

    circulares, o crculo pode ter uma conotao cosmolgica e organizar espacialmente os

    signos coreogrficos a partir desse elemento extracintico que lhe d significao.70

    Diferentemente da ao motora, um fator extracintico no pode ser descrito

    em termos puramente cinticos. Se o corpo dana uma estrela do mar, sua descrio

    cintica pode ser assim: corpo em irradiao central, conexo cabea-cauda (cccix)-

    membros superiores e inferiores. Corpo em respirao celular: centro-periferia, umbigo-

    extremidades.71 Essa descrio do movimento puramente cintica e no revela o

    aspecto extracintico da imagem de estrela do mar, cujo significado est oculto na

    inteno do danarino. Imagens poticas, narrativas, padres geomtricos, sistemas

    cosmolgicos, objetos, ideias e outros fatores estticos ou culturais que estejam no

    horizonte mental ou real do danarino e da audincia so fatores extracinticos que

    funcionam como referentes do elemento coreogrfico.

    propre dans le processus de la communication. Ils sont groups dans des structures et des formes (fonctionalit interne bien prcise) suivant certains modeles tablis par la tradition et dtermins par lalogique de la pense chorographique, constituant de cette manire les lments expressifs capables detransmettre un message. PROCA-CIORTEA, 1968, pp. 87-93.

    70Nesse caso, uma aproximao com a teoria semitica de Charles Sanders Peirce mais frutfera do quecom a da escola de Greims, pois a proposta trptica do primeiro considera signo, referente e interpretantesempre presentes no processo de significao. Ver PACHECO, 2003.

    71Ver FERNANDES, 2002, p. 57. Essa autora explora o corpo-texto em movimento do corpo poticopara a criao em artes cnicas, inspirada nos estudos de Janet Ashead-Lansdale sobre intertextualidade einterpretao entre dana e literatura. Ver ADSHEAD, 1999.

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    Segundo Judith Lynne Hanna, a dana, por consistir numa transformao

    simblica da experincia humana atravs do movimento corporal, deve ser estudada a

    partir da cinesiologia, ou seja, em termos fisiolgicos, musculares e neurais. 72Sendo

    composta de propsito, intencionalidade rtmica e sequncias de movimentos corporais

    no verbais de valor esttico, ela completa seu processo na comunicao cintica, onde

    os aspectos motores, afetivos e cognitivos so encadeados. O aspecto afetivo costuma

    preponderar j que as funes cognitivas e afetivas so consideravelmente

    intercambiveis, pois:

    A dana tende a ser o testamento de valores, crenas, atitudes e emoes. Como Mills

    pontuou, os modos cognitivos e qualitativos so margens de um fluxo de

    experincia. Mesmo se a dana executada mecanicamente e deixa o observador e o

    bailarino insatisfeitos ou enfastiados, tais reaes so respostas afetivas.73

    Ora, quando os signos coreogrficos so operados somente a partir da funo

    motora ou cognitiva, como no exemplo acima, no esto evocando o elemento

    coreogrfico na sua totalidade, que no se restringe ao encadeamento linear de signos no

    eixo rtmico ou espacial e cuja significao depende tambm da energia afetiva, que se

    relaciona ao modo como se incorpora o elemento extracintico na mensagem. Isso

    determinado pela ao imaginativa do danarino, que lhe permite expressar diferentes

    ideias e intenes por meio de variadas qualidades do movimento.

    72Ver HANNA, 1979, p. 19.

    73 Dance tends to be a testament of values, beliefs, attitudes, and emotions. As Mills points out, thecognitive and qualitative modes are banks of one stream of experience (1971:85). Even if dance ismechanically performed and leaves the performer and observer unsatisfied or bored, these reactions areaffective responses. HANNA, 1979, p. 28.

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    A significao dos elementos extracinticos tambm atualizada pela

    interpretao subjetiva dos fenmenos da memria coletiva. O historiador da dana

    Curt Sachs, no seu trabalhoclssicoEine Weltgeschichte des tanzes, mostra a forma

    como se processa e atualiza o uso das imagens na ao concomitante da imaginao

    e da memria, por um lado, e da representao corporal, por outro:

    A memria introvertida. necessariamente uma funo do lado imaginativo do

    homem, no do perceptivo. Logo a temtica retrospectiva ir por si mesma revelar-se

    primeiro em danas imagticas. Isto ocorre inclusive quando uma memria no muito

    remota adere ao passado imediato quase ao presente mas mede-se por coisas

    anteriores, quando a lembrana de antigas migraes e de fenmenos naturais

    preservada e quando a conscincia da progresso histrica toma forma em assombrada

    venerao aos ancestrais. (...) A representao, entretanto, solicita a faculdade

    perceptiva: o homem imaginativo forado a responder ao homem sensorial, quando

    ele deseja dar forma concreta memria, e o homem sensorial recompensado pela

    ideia do drama alimentado na conscincia do passado.74

    A partir de uma relao ao mesmo tempo contemplativa e imitativa, ou passiva

    e ativa, que o danarino estabelece o vnculo com seus ancestrais, criando uma

    atmosfera atemporal e ideal para o encontro com a Divindade:

    O ancestral se torna o portador de todas as foras da natureza; ele o demnio da

    fertilidade ou o esprito da vitria, o deus da lua ou o deus do sol. O danarino,

    entretanto, possudo pelo ancestral etreo e deificado e compelido a mover-se como se

    ele tivesse sido transformado naquele esprito, agora submerso dentro do crculo

    74 Memory is introversive. It is necessarily the function of the imag inative side of man, not theperceptive. Hence the thematic retrospection will reveal itself first in imageless dances. This will be soeven when memory no longer clings to the immediate past almost to the present but seizes uponthings lie far back, when the remembrance of ancient migrations and natural phenomena is preserved, andwhen the consciousness of historical progress takes shape in the awed veneration of ancestors. ()Representation, however, calls for the perceptive faculty: the imaginative man is forced to ask aid of thesensory man, when he wishes to give concrete form to memory, and the sensory man is rewarded by theidea of the drama nurtured on the consciousness of the past. SACHS, 1937, p. 226.

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    daquelas pantomimas que tornam manifesta a operao da fertilidade, a vitria, o

    curso das estrelas.75

    Assim, a passagem da experincia interior da dana para a exteriorizao

    dramtica define o seu carter mgico: representao de fenmenos e espritos pela

    imitao (pantomima) de sua ao ou atributo, numa forma exteriorizada que tem como

    objetivo tornar manifesto e efetivo o seu poder. A incorporao, por si s, contm a

    ideia de que o corpo humano mais do que um veculo ou instrumento deste poder

    mgico, visto que deve manifestar foras invisveis, ilimitadas ou infinitas numa forma

    visvel, finita e limitada. Movendo-se como se estivesse transformado naquele

    esprito, o danarino torna-se sua representao viva.

    importante notar que a funo da dana est primordialmente relacionada

    simbolizao de processos temporais e produo de um elo entre passado e presente.

    A representao do passado uma presentificao constante de algo significativo,

    impresso na memria coletiva e traduzvel em imagens e gestos. A funo de separar

    presente e passado est ligada ideia de que a dana marca um ciclo. Ela ritualiza a

    morte do antigo e o nascimento do novo, marcando a passagem, a mudana, a

    transformao. Alm disso, ela tem o papel de preservar as tradies (podemos pensar

    em identidade e cultura) e assegurar o elo constante com a ancestralidade.

    Sachs tambm associou a dana esfera do mito, sobretudo em seu carter

    ritualstico. Os elementos do mito formaro o corao da tradio coreogrfica, pois

    75The ancestor becomes the bearer of all the forces of nature: he is the damon of fertility or the spirit ofvictory, the moon god or the sun god. The dancer, however, possessed by his etherealized and deifiedancestor and compelled to move as though he had been transformed into this spirit, is now drawn into thecircle of those pantomimes which make manifest the operation of fertility, victory, the course of thestars. SACHS, 1937, p. 227.

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    deles se originam as imagens relativas ao repertrio de reverncia aos ancestrais e

    mesmo que o sentido original de um elemento coreogrfico seja perdido ou modificado,

    ele preservado pelo uso de recursos mnemnicos e transmitido de gerao em gerao.

    O processo pelo qual as imagens so abrigadas pela memria e corporificadas

    na exteriorizao dramtica geram um campo prprio experincia da imaginao na

    dana, definido pelo historiador e filsofo Johan Huizinga como esfera ldica e pelo

    psicoterapeuta Donald Winnicott como campo potencial e transicional. Tanto a esfera

    ldica como o campo transicional se aproximam da ideia que os antigos msticos tinham

    do corao.

    EmJeu et realit, Winnicott afirma que a experincia da dissociao da figura

    materna vivida pelo beb conduz conscincia de si em oposio a uma realidade

    exterior objetiva, gerando o que o autor denominou espao potencial:

    Para assinalar o espao do jogo, proponho a hiptese de um espao potencialentre o

    beb e a me. Esse espao varia conforme a experincia de vida do beb em sua

    relao com a me ou a figura maternal. Oponho esse espao potencial (a) ao mundo

    de dentro (relacionado associao psicossomtica) e (b) realidade existente ou

    exterior (que tem suas prprias dimenses e pode ser estudada objetivamente e que,

    embora parea variar conforme o estado do indivduo que a observa, se mantm de

    fato constante).76

    O espao potencial onde o indivduo diferencia entre realidade interna e

    realidade externa, atravs de uma experincia intermediria. Segundo esse autor, o

    76Pour assigner une place au jeu, jai fait lhypotse dun espace potentiel entre le bb et la mere. Cetespace varie beacoup selon les experiences de vie du bb en relation avec la mere ou la figurematernelle. Joppose cet espace potential (a) au monde du dedans (reli lassociation psycosomatique[psychosomatic partnership]) et (b) la ralit existant ou du dehors (qui a ses propres dimensions et peurtre tudie objectivement et qui, bien quelle puisse paritre varier selon ltat de lindividu quilobserve, reste, en fait, constant). WINNICOTT, 1975, p. 90.

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    espao potencial se ampliar na vida adulta para constituir o campo transicional da

    cultura, onde a experincia infantil dar lugar a uma experincia ldica coletiva.

    Segundo Huizinga, o aspecto ldico a base de toda cultura, e como resqucio

    da sociedade arcaica teria sobrevivido, ao menos em grande dose, at o perodo

    medieval.77 Baseia-se num processo de suspenso da referncia ao real e

    estabelecimento de uma dimenso paralela que ocorre independente das regras

    socialmente estabelecidas, onde sagrado e profano podem coabitar, j que na dimenso

    ldica no h distino entre rito, diverso, simulao, competio, feitio, persuaso,

    doutrina, encantamento, liturgia e jogo social. Poesia, canto e dana, tendo origem

    comum na atividade ldica, atuariam atravs dos mesmos princpios:

    Elementos como a rima e o dstico s adquirem sentido dentro das estruturas ldicas

    intemporais e onipresentes de que derivam: golpe e contragolpe, ascenso e queda,

    pergunta e resposta, numa palavra, ritmo. Sua origem est inseparavelmente ligada aos

    princpios da cano e da dana, os quais por sua vez fazem parte da imemorial funo

    do jogo. Todas as qualidades da poesia reconhecidas como prprias, como a beleza, o

    carter sagrado, a magia, so desde o incio, abrangidas pela qualidade ldica

    fundamental.78

    O jogo consiste na combinao de certos elementos, onde preponderam as

    funes do ritmo e da imaginao. Enquanto o ritmo delimita a estrutura e o tempo da

    atividade ldica, a imaginao transforma o inexistente em existente e vice-versa sendo

    que eles se autorregulam, j que o ritmo sem a imaginao incuo e a imaginao sem

    o ritmo catica. Alm disso, seu principal trunfo o de transcender o juzo lgico:

    77Ver HUIZINGA, 1996.

    78Traduo de Joo Paulo Monteiro. HUIZINGA, 1971, p. 157.

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    Procuremos, antes de tudo, investigar a tripla relao existente entre a poesia, o mito e

    o jogo. Seja qual for a forma sob a qual chegue at ns, o mito sempre poesia.

    Trabalhando com imagens e a ajuda da imaginao, o mito narra uma srie de coisas

    que se supe terem sucedido em pocas muito recuadas. Pode revestir-se do mais

    sagrado e profundo significado. Pode ser que consiga exprimir relaes que jamais

    poderiam ser descritas mediante um processo racional. (...) Tal como tudo aquilo que

    transcende os limites do juzo lgico e deliberativo, tanto o mito como a poesia se

    situam dentro da esfera ldica. No quer isto dizer que seja uma esfera inferior,pois

    pode muito bem suceder que o mito, sob essa forma ldica, consiga atingir uma

    penetrao muito alm do alcance da razo.79

    O mito aparece aqui como uma espcie de fonte da imaginao, pois seus

    elementos so conhecidos previamente, subentendidos e aceitos tacitamente pelos que

    participam do jogo. Isso reitera a ideia de Sachs, que considera a imaginao o principal

    mecanismo para traduzir corporalmente as imagens criadas a partir do mito. O jogo da

    dana consiste em dispor tais imagens de acordo com os princpios do ritmo e da

    melodia e atualizar o seu significado para o presente, tanto atravs de combinaes

    criativas dos elementos coreogrficos como das variaes na forma ou qualidade do

    movimento que alteram o seu teor afetivo e simblico.

    Vemos assim que a esfera ldica pode ser definida como campo potencial e

    intermedirio que se estabelece entre real e fictcio, tal como o espao transicional.

    Potencial, porque no prvio ou posterior, subjetivo nem objetivo, se cria

    simultaneamente ao processo de manipulao dos elementos do ritmo e da imaginao.

    Intermedirio, porque se instaura na polarizao entre passado e futuro, introverso e

    extroverso, corporal e anmico e, no nvel mais complexo do jogo social, entre a

    experincia subjetiva e a experincia coletiva do fenmeno cultural. Esse campo parece

    79HUIZINGA, 1971, p. 144.

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    corresponder, generosamente, definio de corao dos msticos e onde ocorre a

    experincia compartilhada do xtase, ou a catarse na comunicao cintica.

    Um jogo exttico

    Diferentes modos de operar ritmo e imaginao podem determinar variados

    tipos de experincia ldica. Roger Cailois ampliou a teoria de Huizinga, propondo

    quatro categorias bsicas para o jogo: competio (agn), sorte (alea), mscara

    (mimicry) e vertigem (ilinx). Essas categorias correspondem a impulsos primordiais de

    organicidade e transcendncia, que nos acompanham da infncia at a vida adulta.

    80

    Assim, a competio (agn) consiste no uso mximo de potencialidades dentro

    de um campo restrito e altamente regrado. Demanda esforo e aprimoramento de

    aptides fsicas ou intelectuais especificas, uso de clculo e a possibilidade de vencer

    pelo mrito. A sorte (alea), pelo contrrio, consiste na ausncia de esforo individual e

    total entrega ao acaso, resultando da combinao aleatria de elementos ou eventos

    imprevistos sob determinadas regras previamente estipuladas. A mscara (mimicry)

    consiste na imitao ou inveno incessante de personagens com o objetivo de tornar-se

    um outro e adquirir ou simular um poder atravs da transfigurao e da imaginao. A

    vertigem (ilinx) a experincia do assombro, xtase, transe, pnico voluptuoso

    momentneo, experimentado por turbilhonamento, agitao corporal, drogas ou outros

    recursos que provoquem a desestruturao perceptiva e a alterao da conscincia.

    80O autor encontra esses impulsos primordiais tambm entre os animais e sugere que combinaes dediferentes atitudes ldicas produzem distintas formas de civilizaes. A experincia humana se difere nopelos fenmenos em si, mas pela capacidade do ser humano em perceber o jogo como uma dimensoseparada e distinta da realidade, transitando livremente entre ambas. Ver CAILLOIS, 1967, pp. 61-64.

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    A combinao em pares dessas categorias gera o que Caillois define como

    atitude ldica. Assim, a juno da mscara (mimicry) com a vertigem (ilinx) produz

    sociedades consideradas arcaicas, como aquelas em que um sacerdote se faz passar pela

    divindade e dirige rituais coletivos de transe que alteram a percepo espao-temporal e

    dissolvem a individualidade dos participantes. J a combinao da competio (agn)

    com a sorte (alea), ambas orientadas por regras e pela preservao da individualidade,

    produziria, segundo o autor, as civilizaes complexas onde h uma ruptura com o

    sagrado, no sentido anterior. Embora em cada sociedade predominem determinadas

    categorias, em todas elas subsistem atitudes secundrias, que podem inclusive produzir

    efeitos sociais inoportunos ou imprevistos.81Assim, por exemplo, o culto aos atletas,

    musas e polticos em nossa sociedade competitiva pode ser visto como uma combinao

    das atitudes de sorte, vertigem e mscara para produzir formas indiretas, distorcidas ou

    projetivas de vivenciar a vitria, a fantasia e o poder.

    Caillois classifica a experincia dos dervixes rodopiantes como vertigem e

    aponta o binmio ilinx-mimicrycomo sua atitude determinante, por combinar mmesise

    dissoluo do ego:

    Os dervixes buscam o xtase girando sobre si mesmos, atravs de um

    movimento que acelerado conforme os batimentos dos tambores se

    precipitam. O pnico e a hipnose da conscincia so atingidos pelo paroxismode uma rotao frentica contagiosa e compartilhada.82

    81Ver CAILLOIS, 1967, p.145.

    82Les derviches recherchent lextase em tournant sur eux-mmes, selon un movement quacclrent desbattements des tambour plus prcipits. La panique et la hhypnose de la conscience sont atteintes par leparoxisme dune rotation frntiques contagieuse et partage. Caillois, 1967, p. 68. Cailois retirou essadescrio de DEPONT e COPPOLANI, 1887, pp. 156-159, 329-339.

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    arrebatamento e embriaguez espiritual. Por outro lado, o uso pleno das faculdades

    avicennianas corresponde tambm ao uso pleno da imaginao em Ibn Arab que tem

    funo teoptica. Porm Jean Michot no aborda a questo do compartilhamento do

    xtase que, como sabemos, caracteriza o l na dana persa. Vejamos, ento, este

    aspecto da perspectiva ldica.

    As imagens, enquanto elementos extracinticos de significao cultural

    preestabelecida, possibilitam que a experincia imaginativa do danarino seja

    cineticamente compartilhada com a audincia, justamente por sua funo referencial ao

    mito e poesia. Se a imagem produto da imaginao e da interpretao subjetiva da

    memria, conforme afirmou Curt Sachs, o xtase compartilhado deve ocorrer atravs do

    processo pelo qual o danarino comunica cineticamente o que ocorre em sua

    imaginao unida para a audincia. Caso ele esteja em estado de comunicao

    teoptica, ou seja, recebendo o sinal divino em seu processo imaginativo, precisar

    comunicar esse estado de modo que toda a audincia consiga imagin-lo tambm, isto ,

    senti-lo. Isso s poder ser feito atravs de um movimento corporal que veicule o

    smbolo e transmita sua energia, simultaneamente.

    Vimos em Judith Lyne Hanna que a comunicao cintica encadeia plenamente

    os aspectos do movimento, isto , o cognitivo, o motor e o afetivo, e apresenta seus

    ndices nas respostas motora e afetiva da audincia. Podemos dizer que quando todos os

    aspectos esto plenamente contemplados, temos o compartilhamento imagi