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Obsessão e Êxtase

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A história aborda um tema polêmico e atual: a busca incessante da beleza e do corpo perfeito. Homens e mulheres, jovens e adolescentes se autoescravizam em exercícios físicos, cremes de beleza, alimentação supostamente ideal, cirurgias plásticas obtendo como resultado, na maioria das vezes, o desagrado e a frustração. Esta busca não poupa nem as crianças. É comum mães presentearem suas filhas desde pequenas com estojos de maquiagem, esmaltes e roupas sensuais estimulando e valorizando a vaidade e a beleza. Os cirurgiões plásticos acabam se tornando reféns desta paranoia que é atingir o padrão de beleza, uma vez que, concordam em realizar intervenções cirúrgicas desnecessárias, aplicação de Botox e tantos outros procedimentos estimulando uma vaidade exagerada e uma compulsão que resulta, muitas vezes, em uma insatisfação continuada. Após esta breve reflexão convido a todos para acompanharem a trajetória do tão empenhado médico Miguel Prado que, justamente movido pela busca da receita da beleza perfeita e da fama que esta descoberta poderá lhe proporcionar, não poupa esforços em testar suas descobertas. Boa leitura!

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MEYER, Cybele

Obsessão e Êxtase/Cybele Meyer

Esta obra é uma iniciativa sem fins lucrativos licenciadaem Creative Commons.

2013Indaiatuba – São Paulo

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Cybele Meyerem

Obsessão e Êxtase

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Sobre o livro

A história aborda um tema polêmico e atual: a busca incessante da beleza e do corpo perfeito.

Homens e mulheres, jovens e adolescentes se autoescravizam em exercícios físicos, cremes de beleza, alimentação supostamente ideal, cirurgias plásticas obtendo como resultado, na maioria das vezes, o desagrado e a frustração.

Esta busca não poupa nem as crianças. É comum mães presentearem suas filhas desde pequenas com estojos de maquiagem, esmaltes e roupas sensuais estimulando e valorizando a vaidade e a beleza.

Os cirurgiões plásticos acabam se tornando reféns desta paranoia que é atingir o padrão de beleza, uma vez que, concordam em realizar intervenções cirúrgicas desnecessárias, aplicação de Botox e tantos outros procedimentos estimulando uma vaidade exagerada e uma compulsão que resulta, muitas vezes, em uma insatisfação continuada.

Após esta breve reflexão convido a todos para acompanharem a trajetória do tão empenhado médico Miguel Prado que, justamente movido pela busca da receita da beleza perfeita e da fama que esta descoberta poderá lhe proporcionar, não poupa esforços em testar suas descobertas.

Boa leitura!

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Chovia muito. O vento jogava os pingos da chuva de encontro à vidraça produzindo um ritmado tilintar. Dr. Miguel Prado sentado na cabeceira da enorme mesa de jantar de ébano, circundada por 16 cadeiras finamente revestidas de veludo verde musgo, debruçava-se sobre os livros de pesquisa que estavam espalhados sobre ela.

Envolvido em suas anotações e leitura nem percebeu que os óculos haviam escorregado sobre seu nariz afilado fazendo crer que cairiam a qualquer momento.

Às vezes interrompia sua atividade e ficava olhando para o nada, segurando a cabeça com as mãos tendo os cotovelos apoiados sobre os livros, mas depois de longo tempo voltava às suas anotações até o momento em que levantava e caminhava ao redor da mesa com passos tão apressados que fazia voar o jaleco branco que vestia.

Anoiteceu e o ritual continuava o mesmo.

A madrugada já avançava quando deixou cair sua cabeça sobre os livros, e lá ficou inerte até o dia amanhecer.

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Ao acordar, Dr. Miguel Prado percebeu que a chuva havia dado uma trégua, porém o dia mostrava-se cinza e nostálgico.

Suas costas doíam muito em razão do mau jeito da posição que havia ficado ao dormir sobre a mesa. Com as mãos apoiadas sobre os rins flexionava o corpo para frente e para trás tentando colocar a coluna no lugar. Depois, juntou os papéis que havia registrado suas anotações, os dobrou e os colocou na maleta que estava sobre a cadeira. Empilhou os livros deixando-os ainda sobre a mesa. Passou então a andar freneticamente de um lado para o outro, alisando de vez em quando os cabelos como que querendo encontrar o melhor caminho a seguir.

Entre uma passada e outra murmurava: - Preciso aplicá-lo. Preciso ter certeza de que o resultado será um

sucesso. Tenho que testar! Tenho que testar!

Miguel estava alucinado. Fazia mais de mês que não colocava os pés fora de casa. Estava abatido em razão do pouco sono e magro, pois não fazia uma boa refeição há muito tempo, somente lambiscava para tapear a fome.

Agora que praticamente havia chegado bem perto do fim das suas pesquisas, precisava testá-las. Porém, tudo teria que acontecer em total sigilo. Só

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de pensar na possibilidade de o resultado ser satisfatório seus olhos brilhavam freneticamente.

Envolvido por seus pensamentos começou a sorrir e a falar consigo mesmo:

- Ficarei milionário, ficarei famoso, todos vão saber que eu sempre tive razão e vão ter que me respeitar. Quero ver a cara daqueles incompetentes quando ficarem sabendo do meu sucesso. Vão se arrepender amargamente por terem me expulsado do hospital.

Conforme ia falando, Miguel ia se empolgando e alterando a voz:

- Aqueles cretinos pensam que podem me tirar do mercado. Pois sentirão o peso da minha descoberta e irão se prostrar, todos, aos meus pés. Cambada de dissimulados. CAMBADA DE INCOMPETENTES!

Ao gritar bateu com violência o punho fechado contra a mesa e a dor fez com que voltasse à realidade, porém prosseguiu com seus murmúrios:

- Preciso de uma mulher de meia idade, gorda e feia para servir de

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“voluntária”. Eu a farei a mulher mais linda do planeta. Nem ela mesma acreditará.

Só preciso me concentrar e arquitetar uma maneira de trazê-la até aqui sem que ninguém desconfie.

Preciso ser perfeito, não posso deixar rastro.

Após uma semana Dr. Miguel sente-se confiante para colocar em prática o plano programado.

- Primeiramente preciso de um bom banho, com este aspecto ninguém se aproximará de mim.

Será hoje que darei o primeiro passo rumo à maior descoberta de todos os tempos. Tudo terá que correr como planejei. Nada pode sair errado! Com certeza, nada há de sair errado!

Miguel toma um banho caprichado, coloca sua calça social marrom café, uma camisa marfim e um pulôver caqui. Os sapatos são do tom da calça. Penteia os cabelos, se perfuma, pega sua maleta e caminha até o carro que está guardado na garagem há alguns metros da casa. Tem dificuldades em colocá-lo para funcionar,

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afinal está há mais de um mês sem ser ligado. Tenta algumas vezes, mas nada de conseguir. Resolve então aproveitar o declínio do terreno para empurrá-lo fazendo-o pegar. Este procedimento tem sido rotineiro nos últimos oito meses, desde que deixou de trabalhar no hospital.

Assim que o carro começa a funcionar, Miguel assume a direção e pega a estrada rumo à cidade de Cruz Alta que fica a quase 300 km de Porto Alegre. Sua casa é bem afastada e a estrada de terra não está em boas condições devido as chuvas dos últimos tempos.

Chega à cidade após quarenta minutos e se dirige para a rua perto da antiga Estação Férrea. Estaciona seu velho Ford e fica observando as pessoas que transitam apressadamente por ali quando começa a chuviscar novamente facilitando o fato de ele permanecer dentro do carro sem levantar suspeitas.

Faz praticamente duas horas que está parado observando as pessoas, quando avista a mulher perfeita, segundo sua necessidade, vindo na direção do carro. Miguel então se prepara para agir. Sai do carro, joga um molho de chaves dentro do bueiro que margeia a calçada e onde o carro está estacionado e começa a representação mostrando desespero por tentar recuperar as chaves que deixou cair.

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Assim que a mulher se aproxima ele a aborda mostrando as chaves dentro do bueiro e perguntando se ela emprestaria o celular para que pudesse chamar um chaveiro, pois na pressa de sair, esqueceu o celular no escritório.

Em seguida abre o carro e pega um cartão de um chaveiro que estava no quebra-vento e entrega-o para a senhora que se dispõe a auxiliá-lo.

A chuva aumenta e a mulher se atrapalha segurando o guarda-chuva e tentando pegar o celular que está dentro da bolsa. Miguel, muito cavalheiro, a convida para entrar no carro assim se abrigaria da chuva e poderia ligar com tranquilidade.

Meio receosa a senhora concorda, afinal as chaves estavam no bueiro.

Ela se senta no banco do passageiro e entrega o guarda-chuva para Miguel segurar enquanto abre a bolsa para pegar o celular. Miguel aproveita e usa o guarda-chuva como barreira para impedir que as pessoas consigam ver dentro do carro, e retira do porta-luvas um lenço embebido em éter e sufoca-a até perder os sentidos. Em seguida, fecha a porta do carro do lado em que a mulher se encontra, dá a volta, entra no carro e dirige-se à saída da cidade rumo à sua casa.

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Sente um êxtase como nunca sentiu em toda a sua vida. É uma mistura de poder com satisfação. Poderia dizer que se sente um pouco deus neste momento tendo acesso ilimitado sobre sua cobaia.

A chuva aumenta muito, o limpador do para-brisa funciona na velocidade máxima e a mulher está ao seu lado completamente inconsciente.

Miguel chega em casa depois de mais de uma hora “penando” na estrada que havia ficado muito pior com a chuva que não cessava.

A mulher está completamente desacordada e Miguel coloca o dedo indicador e médio no pescoço dela tentando sentir sua pulsação, que permanece normal.

Com muito sacrifício tira-a do carro, coloca-a nos ombros e em seguida deita-a na maca que já estava preparada aguardando sua chegada.

Conduz a maca pela rampa que dá acesso a seu laboratório e trava suas rodas uma vez que ela servirá de leito.

Em seguida pega uma tesoura, corta as roupas da sua “voluntária”

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deixando-a completamente nua e amarra suas pernas, braços e pescoço imobilizando-a totalmente.

Após todos os procedimentos, afere a pressão arterial e coloca-a no soro sedando-a para que continue desacordada.

Volta então para o carro, pega a bolsa da vítima para saber um pouco mais sobre ela. Entra em casa e despeja o conteúdo da bolsa sobre a mesa da sala de jantar procurando o documento de identidade. Ao ler o nome Laura Toledo de Aguiar sente um arrepio na espinha:

- Toledo é o sobrenome do Diretor do Hospital onde eu trabalhava! Pensou em voz alta. Será que é irmã? Prima? Sobrinha? Esposa sei que não é, pois a conheço.

Bom, sendo ou não da família dele, agora não há como recuar. Só preciso ficar atento às notícias.

Resolve deitar e dormir. Precisa estar descansado para o dia seguinte que será muito exaustivo e tenso.

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Miguel acorda ainda de madrugada e vai até o laboratório para trocar o frasco do soro com sedativo por um contendo somente soro para que ela desperte e assim possa dar início às aplicações.

- Preciso dela acordada. Vou cobri-la com um lençol para que não se sinta constrangida quando acordar.

Tenta voltar a dormir, mas a excitação não permite. Vira-se de um lado para o outro sem conseguir pegar no sono.

Resolve então levantar e checar todos os procedimentos iniciais.

Miguel está impaciente! Anda do laboratório para a sua casa e vice-e-versa inúmeras vezes.

- Que diabo de mulher molenga, já era tempo de ela acordar! A pressão está normal, temperatura normal, e não acorda. É por isso que é gorda desse jeito. É mole e devagar.

Fica pelo laboratório mexendo aqui e ali quando percebe que os pés de Laura se mexem por debaixo do lençol. Ele, quase sem respiração, se aproxima e

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percebe que ela está recobrando os sentidos.

Então se afasta. Fica aguardando atrás da cabeça de Laura para que ela não o veja quando acordar.

Laura abre os olhos e com expressão de espanto tenta se mexer. Percebe que está completamente imobilizada, nem a cabeça consegue levantar, pois a faixa em seu pescoço a prende junto à cama lhe enforcando sob qualquer tentativa de movimento. Sua respiração se altera, seu batimento cardíaco acelera conforme mostra o monitor e o grito é interrompido quando avista Miguel.

- Quem é o senhor? O que estou fazendo aqui? Espere... parece que lhe conheço... o senhor não é aquele...

- Acalme-se Laura! Diz Miguel aparentando calma

- Como sabe o meu nome? Por que me trouxe para cá? Por que estou toda amarrada?

- Como poderei responder a todas estas perguntas se você não me dá chance? Diz Miguel com voz rude.

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- Acalme-se e então lhe direi o que está fazendo aqui.

- Pronto! Já estou bem calma, diz Laura tentando reverter a situação.

- Pode me soltar que eu escuto quietinha o que o senhor tem para me dizer.

- Muito bem Laura, fala Miguel pausadamente enquanto caminha pelo Laboratório tendo as mãos enlaçadas nas costas.

- Não posso te soltar ainda, mas irei te explicar direitinho o que vai acontecer com você.

- Como assim? O que vai acontecer comigo?

- De novo com este monte de perguntas? Vamos fazer o seguinte. Você fica aí tentando se acalmar e mais tarde eu volto para conversarmos tranquilamente.

- Eu já estou calma. Não me deixe aqui. Minha família deve estar muito preocupada comigo. Eu sempre os aviso quando vou atrasar.

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- Não se preocupe Laura. Sua família já sabe que você está aqui e ninguém está preocupado. Então procure se acalmar e quando eu voltar lhe explicarei tudo.

- Espere... Gritou Laura em tom de súplica.

Mas Miguel continua andando e deixa o laboratório seguindo para sua casa. Sentia uma satisfação indescritível. O peito parecia que estouraria a qualquer momento de tanta alegria. Nunca esteve tão perto do troco que daria aos que lhe humilharam, e nunca poderia imaginar que seria com um membro da família do diretor do Hospital. Era sorte demais.!

Ligou a televisão para saber se havia alguma notícia quanto ao desaparecimento de Laura. Enquanto ouvia o noticiário comeu como há muito tempo não fazia. Saboreou cada bocado, depois se esticou no sofá tentando também recobrar a calma.

Passado algum tempo resolve voltar para o laboratório e ao chegar encontra Laura desesperada aos prantos. Miguel fica nervoso e grita com ela:

- Não quero saber de choro, você ainda vai me agradecer e muito pelo

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que estou lhe fazendo. Fez uma pausa e em seguida continuou tentando parecer simpático:

-Você vai ficar belíssima! Vai deixar de carregar este corpo pesado e sem forma. Vou te deixar uma miss, acredite em mim. Quando você voltar dirá que preparou uma surpresa para sua família. Ao vê-la totalmente transformada ninguém se importará com o tempo que passou fora e nós dois colheremos os louros da minha descoberta.

- O senhor deve estar louco. Eu não quero deixar de ser do jeito que sou. Minha família gosta de mim assim. Por favor, me deixe ir embora.

- Cale-se. Não estou nem um pouco disposto a ouvir suas lamúrias. Dediquei dias e noites a estas pesquisas e não deixarei de dar prosseguimento por causa de suas lágrimas.

Laura apavorada se cala. Miguel começa então a preparar uma série de seringas e conforme as vai abastecendo coloca-as lado a lado, na pia do laboratório. Em seguida afere a pressão e verifica os batimentos cardíacos, somente então se sente pronto para iniciar o tratamento.

- Laura, vou lhe aplicar algumas injeções. Elas agirão na camada de

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gordura dissolvendo-a. É muito importante que você vá me relatando o que está sentindo enquanto aplico o conteúdo das seringas. Para isso você tem que se manter calma. O nervosismo pode camuflar os sintomas.

Laura trás o pavor no olhar. Não consegue falar nenhuma palavra. Miguel então remove o lençol e inicia as aplicações no abdômen, depois nas coxas e na parte interior do antebraço. A cada aplicação Miguel pergunta se Laura sente alguma coisa e ela responde que somente a picada. Foram ao todo quinze aplicações. Em nenhum momento Laura apresentou qualquer reação.

Passado alguns minutos após o término das aplicações, Laura dorme.

Miguel a cobre com o lençol e o cobertor para que se sinta aquecida. Por precaução, resolve passar o resto da noite no laboratório. É muito importante observar todo o processo.

Quando amanhece Miguel ainda está perto de Laura e a acorda perguntando como ela se sente.

- Me sinto normal. Não estou notando nada de diferente. Então posso ir embora?

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- Já vai começar com o chilique? Você só vai embora quando eu achar que deve. Eu te comunico, então nada de perguntas repetitivas.

Enquanto fala, Miguel retira o lençol para ver se houve alguma mudança, mas tudo está igual. Com o dedo médio dá leves batidas nos lugares onde aplicou as injeções e pergunta se está dolorido. Laura responde que não.

Inicia então à preparação de uma nova leva de injeções só que desta vez o local aplicado será o roso. Aplica no pescoço, na papada e nas maçãs do rosto.

Apesar da aflição sentida por Laura, até que ela se comportou bem e novamente diz que nada sentiu.

◊ ◊ ◊ ◊

No terceiro dia de aplicação Miguel, com ar apreensivo, começa a falar consigo mesmo, como de costume:

- Já era tempo destes minerais radioativos terem se decomposto e liberado a energia suficiente para produzir a queima destas gorduras.

- O senhor injetou material radioativo em mim? Disse Laura desesperada.

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- Não é o que você está pensando sua bisbilhoteira. Este líquido que te injetei é justamente o resultado de toda a minha pesquisa. É o que vai fazer dissolver toda a sua gordura e devolver a você o corpo de quando tinha 15 anos.

- Eu não quero isso. Quem foi que lhe falou que eu quero emagrecer?

- Ninguém me falou nada, eu vi este desejo na sua silhueta.

- A única coisa que eu quero é ir embora. Me solte, por favor. Falou aos prantos.

- Imagine se depois de todo esse trabalho e investimento eu vou lhe soltar antes de obter os resultados. Tenha calma! Nós estamos só no começo.

Hoje farei mais aplicações. Preciso registrar que o tempo para que metade dos átomos do material radioativo se desintegre varia de corpo para corpo, e o seu, pelo jeito, é o mais demorado.

Laura é novamente sedada e continua sendo alimentada por sonda.

Ao final do dia Miguel volta para casa, liga a televisão para assistir o jornal e verificar se há alguma notícia referente ao desaparecimento de Laura. Dito e feito. Logo na abertura noticiam o possível sequestro de Laura Toledo de

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Aguiar, irmã do Diretor do Hospital das Clínicas de Cruz Alta, Dr. Fabiano de Souza Toledo.

Miguel não sabe ao certo que sensação é esta que está sentindo, pois nem que tivesse programado daria tão certo. Começou a rir, talvez até de nervoso, e dizia em voz alta:

- Espere só até lhe mostrar o resultado, Dr. Fabiano. Espere só! Mal posso esperar o momento em que virá se retratar pelas calúnias que proferiu contra mim.

◊ ◊ ◊ ◊

No décimo dia pela manhã, Miguel acorda e vai até o laboratório para ver Laura. Ao entrar já sente o cheiro azedo característico do vômito. Laura está toda suja, pois vomitou em si própria por continuar amarrada.

Miguel corre em seu auxílio. Combina que irá desamarrá-la, mas terá que prometer que nada fará para fugir. Laura consente com a cabeça.

Miguel solta as amarras e tenta levantá-la porém Laura está completamente sem sensibilidade nas pernas em razão de estar tanto tempo

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Imóvel.

Ele a auxilia a sentar-se na maca, mas tem que deitá-la novamente, pois ficou completamente tonta chegando quase a desmaiar. Ele umedece uma toalha e passa sobre seu corpo tentando livrá-la daquele cheiro horroroso.

Deixa-a desamarrada por enquanto, e a orienta para que deite de lado e que tente se sentar aos poucos.

Laura reclama que sente náuseas, porém Miguel diz ser normal.

Aos poucos ela consegue sentar-se. Quando olha para a cabeceira da maca percebe que há tufos de cabelos nela. Ao passar as mãos sobre seus cabelos mais tufos são removidos, Laura então reúne as poucas forças que ainda lhe restam e fala quase num sussurro:

- O que afinal o senhor está fazendo comigo, olhe o meu cabelo, está caindo. São estas malditas injeções. Me mate de uma vez, mas não me deixe sofrer tanto.

- Acalme-se, eu não quero lhe matar e muito menos lhe deixar careca. Deve ser por causa do seu emocional. Vamos caminhar um pouco, assim você

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fica mais fortalecida.

- E minhas roupas? Eu não quero ficar assim, nua!- É mais prático. Não se incomode comigo, sou médico, nem percebo que

você está nua. Além do mais não posso ficar pondo e tirando suas roupas cada vez que tiver que lhe aplicar as doses injetáveis.

Laura caminha um pouco e sente-se melhor. Havia emagrecido, mas não sabia se era em razão das aplicações ou do fato de não comer nada sólido desde que ali chegara. Sua única alimentação se restringia ao soro na veia.

Após a caminhada Miguel a ajuda a deitar e amarra-a novamente deixando somente a cabeça livre.

- Por hoje você está livre das picadas. Falou Miguel em tom de brincadeira.

- Descanse que amanhã daremos prosseguimento.

◊ ◊ ◊ ◊

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No dia seguinte ao entrar no laboratório se assusta ao ver que apareceram no rosto de Laura umas feridas purulentas de aspecto assustador como se tivesse sido queimada com soda cáustica.

Preocupado se aproxima e a examina com mais atenção. Em seguida arranca-lhe o lençol constatando que estas feridas estão pelo corpo todo. Algumas, principalmente nas pernas, são tão profundas que deixam à mostra os nervos.

Laura está desacordada, e sua expressão é de dor. Miguel se desespera por não saber o que fazer. O seu aspecto é amedrontador. Está completamente deformada. Acredita que na ânsia do sucesso, deva ter excedido nas doses de radioatividade contaminando-a totalmente.

Se sente completamente desnorteado sendo-lhe difícil, inclusive, raciocinar.

Precisa fazer algo para interromper este processo, mas o quê?

- Meu Deus! Se ela está contaminada está me colocando em risco também. O que fazer?

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A cada momento que olha para Laura tem a certeza de que o quadro é irreversível e desesperador.

Miguel está completamente chocado:

- Isto não pode estar acontecendo! Qual terá sido meu erro? O quê deu errado? Como farei se descobrirem o que aconteceu aqui neste laboratório?

- Não! Ninguém vai descobrir nada. Preciso me livrar dela o mais rápido possível.

Desesperado anda de um lado para o outro sem saber o que fazer. Sai do laboratório, ajoelha-se na grama e chora muito. Permanece assim por algum tempo, porém se recompõe e resolve que a única saída será matá-la e enterrá-la no quintal.

Corre para a garagem e pega a pá e a enxada. Procura um lugar no jardim que tenha somente grama. Começa então a arrancar blocos de grama e deixa separado para replantar novamente após tê-la enterrado para que ninguém desconfie.

Em seguida começa a cavar a sepultura de Laura. Sente suas forças

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evaporando.

Sempre que interrompe para tomar fôlego vai até o laboratório para ver como ela está, e constata que está cada vez pior.

Já não há mais pele sobre ela, parece que derreteu. Em seu rosto só dá para ver os olhos e os dentes, o resto não existe mais, desintegrou.

Miguel então resolve amenizar este sofrimento aplicando-lhe uma dose de coquetel letal. Prepara um composto de tiopental de sódio, brometo de pancurônio e cloreto de potássio. Coloca dois cateteres, um em cada braço, tendo grande dificuldade para encontrar a veia, e aplica.

Fica ao seu lado por pelo menos quinze minutos até ter certeza de que está morta.

Deixa-se então cair numa cadeira e lá fica como que hipnotizado olhando fixo para o vazio. Sente-se prostrado sem forças para nada. Quer acreditar que tudo não passou de um pesadelo, mas o odor que começa a exalar do corpo de Laura o trás de volta à realidade.

Enrola-a num lençol e a arrasta até a cova.

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Coloca-a lá dentro e faz uma oração como forma de amenizar sua culpa.

Em seguida começa a jogar terra em cima tapando totalmente o buraco. Depois coloca os blocos de grama como que apagando o que ali aconteceu.

Exausto caminha até sua casa e chora até adormecer.

◊ ◊ ◊ ◊

Não sabe ao certo quanto tempo faz que está nesta cama. Prefere dormir e imaginar que tudo não passou de um pesadelo.

Mas dormir não vai apagar tudo que aconteceu ali.

Sente-se acabado. Não sabe exatamente se por ter provocado a morte de uma pessoa saudável ou se por ter falhado em suas pesquisas.

Lembra-se neste momento do Dr. Fabiano, e sente um fogo a lhe queimar por dentro.

Resolve então que não pode desistir. Estes pensamentos lhe dão ânimo e sente como se suas forças começassem a voltar.

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Decide então que não vai mais pensar no que aconteceu e que irá se dedicar a aprimorar suas pesquisas.

Toma banho, coloca sua calça social marrom café, a camisa marfim, o pulôver caqui e os sapatos do tom da calça.

Penteia os cabelos. Se perfuma. Pega sua maleta e caminha até o carro.

Este está com a bateria arriada, então aproveita o declínio do terreno, o empurra fazendo-o pegar e ruma até Cruz Alta.

Ao chegar, estaciona seu velho Ford na rua perto da antiga Estação Férrea e fica observando as pessoas que transitam.

De repente avista a mulher perfeita.

Fim