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FACULDADE DE SÃO BENTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA
MESTRADO ACADÊMICO
Maria Alejandra Caporale Madi
A questão da justiça social: uma leitura de A Cidade de Deus de Santo Agostinho
São Paulo
2015
FACULDADE DE SÃO BENTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA
MESTRADO ACADÊMICO
A questão da justiça social: uma leitura de A Cidade de Deus de Santo Agostinho
Maria Alejandra Caporale Madi
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Filosofia da
Faculdade de São Bento do Mosteiro de São
Bento de São Paulo como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia.
Área de Concentração: História da Filosofia
Orientador: Prof. Dr. Joel Gracioso
São Paulo
2015
Nome: Maria Alejandra Caporale Madi
Título: A questão da justiça social: uma leitura de A Cidade de Deus de Santo
Agostinho
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Filosofia da
Faculdade de São Bento do Mosteiro de São
Bento de São Paulo como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia.
Aprovada em _____ de ____________ de _____.
Banca Examinadora
__________________________________________
Orientador: Professor Doutor Joel Gracioso
__________________________________________
Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva
__________________________________________
Professor Doutor Floriano Jonas Cesar
À minha mãe, Maria Luzdivina (in memoriam),
pelo exemplo do sentido da fé cristã.
AGRADECIMENTOS
Sou grata a Deus, porque me fortalece.
Às minhas filhas e aos meus amigos, desde sempre.
Ao Prof. Dr. Joel Gracioso, orientador da dissertação, pelo incentivo e recomendações.
Ao Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva, pelas sugestões no Seminário Discente.
Aos professores Padre Fernando Rocha Sapaterro e Floriano Jonas Cesar, que aceitaram
compor minha banca de qualificação, pela leitura crítica e atenta.
Aos professores da Faculdade de São Bento de São Paulo, em especial ao Prof. Dr.
Pedro Monticelli, pelos ensinamentos nas aulas de Filosofia Social e nos grupos de
estudo.
Aos funcionários da Faculdade de São Bento de São Paulo, pela gentileza e solicitude.
Com todos vocês divido a alegria deste momento.
RESUMO
MADI, Maria Alejandra Caporale. A questão da justiça social: uma leitura de A
Cidade de Deus de Santo Agostinho. 2015. 102 fls. Dissertação (Mestrado em Filosofia)
– Faculdade de São Bento, São Paulo, 2015.
A atualidade do pensamento de Santo Agostinho remete à necessidade de questionar a
natureza do homem e das escolhas éticas que tornam possível a permanência e a coesão
dos laços sociais no século XXI. A presente dissertação trata da concepção de “justiça
social” em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, entendida como a dimensão social
da concepção de justiça. Ainda que Agostinho não formule explicitamente uma
concepção de “justiça social”, entendemos que é possível refletir sobre seu significado e
seus fundamentos. Para tanto, realiza-se uma leitura em torno das possibilidades de
apreensão da concepção agostiniana de justiça na ordem social. No primeiro capítulo é
apresentada uma análise sobre a relação entre a justiça e a lei divina, baseada nos Livros
II e IV. Mostra-se como Agostinho, fiel à fé cristã, redefine os termos da discussão
sobre o fundamento da justiça e da questão da sociedade justa no século V. No segundo,
explora-se, a partir dos Livros XII e XIV, a relação entre a justiça e a retidão.
Apresenta-se a reflexão de Agostinho sobre o lugar do homem na criação, o sentido da
vida humana e a ambivalência moral do homem, que se expressa na oposição entre as
“duas cidades”. No terceiro, a análise centra-se no Livro XIX, de forma a refletir sobre a
justiça e as verdadeiras virtudes. No quarto capítulo, a análise frisa os fundamentos do
agir do povo cristão e salienta a relação entre o Absoluto e a alteridade na ética da
caridade. Ao final, conclui-se que a concepção de “justiça social” em Agostinho pode
ser pensada na abrangência da dimensão contingente e transcendente da vida social no
devir histórico e destaca a compreensão da subjetividade e da intersubjetividade da vida
humana. É possível dizer que a “justiça social” é a dimensão social da justiça e que ela
se fundamenta no amor à Verdade e na urgência da caridade. Desse modo, o viver
justamente, do ponto de vista social e cristão, é um viver que promove a configuração
das relações humanas segundo os princípios da justiça divina. Do ponto de vista da
permanência e coesão dos laços sociais, as implicações morais, éticas e políticas da
perspectiva agostiniana são decisivas porque somente com justiça social é possível
configurar uma vida realmente social. No âmbito da doutrina de Agostinho, caridade e
justiça são duas expressões fundantes do ethos cristão quando enfatizada a “justiça
social”.
Palavras-chave: Santo Agostinho. Justiça. Justiça social. Ética. Moral. Política.
ABSTRACT
MADI, Maria Alejandra Caporale. The question of social justice: a reading of Saint
Augustine’s The City of God. 2015. 102 pp. Dissertation (Master in Philosophy),
Faculdade de São Bento, São Paulo, 2015.
The current relevance of Saint Augustine’s thinking is related to the need to question
the nature of man and of the ethical choices that allow the permanence and cohesion of
social ties in the twenty-first century. This dissertation discusses the concept of “social
justice” in Saint Augustine’s The City of God, which is understood to be the social
dimension of the conception of justice. Although Saint Augustine does not explicitly
formulate a conception of “social justice”, we understand that is possible to reflect on its
meaning and foundations. This was achieved by conducting a reading around the
possibilities of apprehension in the Augustinian concept of justice in the social order.
The first chapter presents an analysis of the relationship between justice and divine law,
based on Books II and IV. This is seen in how Saint Augustine, faithful to the Christian
faith, redefines the terms of the discussion on the foundation of justice and the question
of a just society in the fifth century. In the second chapter, the relationship between
justice and righteousness is explored through Books XII and XIV. Augustine’s
reflection on the place of man in creation, the meaning of human life, and man’s moral
ambivalence, which is expressed in the opposition between the “two cities”, is
presented. In the third chapter, the analysis centers on Book XIX in order to reflect on
justice and the true virtues. In the fourth chapter, the analysis emphasizes the
foundations of the Christian people’s actions, and highlights the relation between the
Absolute and otherness in the ethics of the charity. Finally, it is concluded that Saint
Augustine’s conception of “social justice” can be considered in the comprehensiveness
of the significant and contingent dimension of social life in the history of becoming, and
highlights the comprehension of subjectivity and the intersubjectivity of human life. It is
possible to say that “social justice” is the social dimension of justice, and that it is based
in love of Truth and in the urgency of charity. In this manner, living justly, from a
Christian and social viewpoint, is a way of living that promotes the configuration of
human relations according to the principles of divine justice. From a viewpoint of
permanence and cohesion of social ties, the moral, ethical, and political implications of
the Augustinian perspective are decisive because only with social justice is it possible to
configure a truly social life. Within the scope of Augustine’s doctrine, charity and
justice are two founding expressions of the Christian ethos when the “social justice” is
emphasized.
Keywords: Saint Augustine. Justice. Social justice. Ethics. Morals. Politics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 9
1 A JUSTIÇA E A LEI DIVINA.................................................................................... 16 1.1 Verdade, justiça e felicidade ................................................................................. 16
1.2 A verdadeira justiça e a política ............................................................................ 21 1.3 Poder, fé e justiça .................................................................................................. 24 1.4 A lei divina na sociedade justa ............................................................................. 29
2 JUSTIÇA E RETIDÃO ............................................................................................... 31 2.1 O homem na criação ............................................................................................. 32 2.2 Os dois amores e as duas cidades ......................................................................... 35 2.3 Vontade, retidão e justiça ...................................................................................... 37
2.4 A cisão da vontade e os modos de vida ................................................................ 39 2.5 A retidão de vida na sociedade justa ..................................................................... 44
3 JUSTIÇA E VIRTUDE ............................................................................................... 47 3.1 O Sumo Bem e a verdadeira virtude da justiça ..................................................... 49
3.2 A ambivalência moral do homem e os juízos humanos ........................................ 55 3.3 Conversão da vontade, justiça e paz: da ordem interior à ordem social ............... 59
3.4 A vida virtuosa na sociedade justa ........................................................................ 63
4 UMA FILOSOFIA DA “JUSTIÇA SOCIAL” FUNDADA NA CARIDADE ........... 66
4.1 Fundamentos do agir do povo cristão ................................................................... 67 4.2 Verdade e Caridade ............................................................................................... 71
4.2.1 Qual a relação entre o amor à Verdade e a urgência da caridade? ................. 71 4.2.2 O que o amor à Verdade nos obriga a manter enquanto conduta do povo
cristão? .................................................................................................................... 74
4.2.3 O que a urgência da caridade nos obriga a sacrificar nas ações do povo
cristão? .................................................................................................................... 76 4.3 A caridade e a política na sociedade justa: poder e serviço .................................. 79
4.4 Verdade, “justiça social” e felicidade ................................................................... 84
CONCLUSÃO ................................................................................................................ 88
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 97 Obras de Santo Agostinho .......................................................................................... 97
Textos clássicos e comentadores ................................................................................ 97 Outras referências ..................................................................................................... 100
9
INTRODUÇÃO
O estudo da natureza humana e dos problemas sociais do homem, a sua
atividade cognoscitiva e afetiva, o seu destino e as condições para atingir a felicidade
marcam a obra de Santo Agostinho, na qual a filosofia e a teologia se entrelaçam. O seu
pensamento suscita uma reflexão sobre os fundamentos filosóficos da justiça social,
assim como também das suas implicações éticas e políticas.
O Bispo de Hipona foi defensor da justiça, amante da paz, atento ao clamor dos
pobres, além de adversário da iniquidade e do arbítrio. Como exemplo da profundidade
da crítica política presente em A Cidade de Deus, o referido autor destacou questões
relativas ao sofrimento moral dos seres humanos, de forma a combater o abuso de poder
na vida terrena. Tal dimensão do seu pensamento e da ação se manifesta nas palavras do
seu biógrafo Posídio, que frisam a preocupação de Agostinho com o socorro aos
pobres.1 Mostrou-se um pensador preocupado em transformar o modo de vida do
homem e participou intensamente das controvérsias religiosas, sociais e políticas da sua
época. Nesse sentido, o Santo procurou denunciar as raízes das doenças sociais e
políticas.
O autor de A Cidade de Deus teve a audácia de pensar o “homem novo”,
inserido num modo de vida cristão que transgredia o modo de vida prevalecente à
época. Na sua perspectiva, todas as coisas do universo existem a partir de Deus, por
Deus e em Deus. A sua filosofia centra-se na relação de Deus com o homem, tendo este
como fim último a Sabedoria, o conhecimento de Deus Uno e Trino, que é “tudo em
todas as coisas”. Assim, ele apresenta uma visão cosmológica na qual a finalidade do
homem é o conhecimento do Deus-Verdade, que é também Deus-Amor. Este é o
conceito metafísico superior, é o limite do cognoscível. O referido autor entende que a
fé é conciliável com a razão e desenvolve uma filosofia a serviço do amor.
A análise sobre as dimensões da justiça marca o pensamento do hiponense — no
qual a filosofia e a teologia se entrelaçam. Ele estabelece novos fundamentos filosóficos
para pensar a justiça, a liberdade e a paz do homem peregrino, inserido no devir
histórico. Considerando este pano de fundo, a presente dissertação trata da concepção de
“justiça social” em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, entendida enquanto a
dimensão social da justiça.
1 POSÍDIO. Vida de San Agustín, Tradução Victorino Capánaga. Disponível em:
<http://www.augustinus.it/spagnolo/vita/possidio.htm>. Acesso em: 7 ago. 2014.
10
Em A Cidade de Deus, o Santo desenvolve reflexões sobre os laços sociais do
povo cristão num período histórico em que se podem identificar duas questões
históricas relevantes: por um lado, o Império Romano fragilizado pelas invasões
germânicas e pela crise interna; por outro, a evolução do cristianismo, que se vai
impondo progressivamente como um novo modo de vida. Nesta realidade histórica, a
vida feliz é uma questão central do debate filosófico.
No contexto do baixo Império Romano, o pensamento de Agostinho revela um
ponto de mutação e propõe um novo fundamento para o sentido da história humana. A
sua crítica à tradição clássica greco-romana coloca a necessidade de fundar a justiça
humana numa forma superior de justiça. Deste modo, ao refletir sobre a sociedade justa,
o referido autor funda a relação entre sociedade e justiça de maneira nova e destaca a
identidade de um novo homem e do povo cristão. Como resultado, o Santo cristianiza o
conceito de “justiça” e ressalta que a verdadeira justiça é Deus imperando na sociedade.
Fundamentado no providencialismo, o filósofo apresenta uma interpretação dos
males na vida social — arbítrio, iniquidade, injustiça. Nesta análise, a afirmação de uma
esperança escatológica e o julgamento transcendente sobre a história embasam a
redefinição dos termos da discussão sobre a política, a justiça e a questão da sociedade
justa.2
Dentro de nossas limitações, a resposta à indagação de quais são os fundamentos
filosóficos da questão da “justiça social” em A Cidade de Deus se desdobra num
conjunto de perguntas. Como nos adverte Ramos,3 é o próprio Agostinho quem afirma,
em uma das primeiras cartas, ao amigo Nebrídio, que de todo “existente” se deve
perguntar pela natureza e pelo valor.4 O que significa, pois, a “justiça social”? Qual é a
sua natureza e seu valor? Para um filósofo cristão, que procura a Verdade que torna o
homem bem-aventurado, de que modo é concebida a “justiça social”? A “justiça social”
é constitutiva da ação humana? Como pode ser atingida senão através da justiça? Qual a
possibilidade de promoção de uma sociedade justa? Mas de que maneira definir, então,
a própria justiça? Quais as dimensões sociais e políticas da caridade? Quais os
fundamentos filosóficos do poder e da ética que promovem uma vida realmente social e
justa?
É na linha dessas preocupações que se coloca a presente dissertação, cujo
2 Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. São Paulo: Loyola, 2001, p. 170.
3 Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.
Agostinho. Loyola: São Paulo, 1984, p. 36. Refere-se à carta do Epistolário (11,4). 4 Ibidem. Introdução.
11
desenvolvimento foi norteado por algumas hipóteses:
A “justiça social” é a dimensão social da justiça fundada na lei divina;
A relação entre a imanência e a transcendência presentes no homem, enquanto
imago Dei, é crucial para fundamentar uma filosofia da “justiça social”;
A conversão da vontade, conforme o amor ordenado, é condição para a
construção da “justiça social”;
A “justiça social”, construída sob a responsabilidade dos homens no devir
histórico, tem como fundamento o amor à Verdade e a urgência da caridade;
A “justiça social” expressa a justiça na ordem social;
Na sociedade justa impera a “justiça social”.
Considerando este pano de fundo, o objetivo deste trabalho é realizar uma leitura
em torno das possibilidades de apreensão da concepção de justiça na ordem social em A
Cidade de Deus sob a ótica da filosofia cristã de Agostinho.5 Seguindo a interpretação
de Ramos,6 entendemos que tal filosofia cristã tem por base uma metafísica da Verdade
e do Bem e é nesta metafísica que se fundamentam não só a antropologia, a ética e a
política mas também a moral, que é uma “moral da felicidade e do dever, do amor e da
liberdade”.7
Assim, nosso objetivo é realizar uma leitura sobre os fundamentos filosóficos da
“justiça social”, entendida enquanto a dimensão social da concepção agostiniana de
justiça. Tal concepção privilegia as relações entre a lei divina, a retidão de vida, a
conversão da vontade e a caridade na conformação da sociedade justa — entendida
enquanto a sociedade organizada em torno do princípio da justiça.
Sobre tais questões centramos a nossa atenção em A Cidade de Deus,8 em
especial nos Livros II, IV, XII, XIV e XIX. Ainda que o hiponense não tenha formulado
5 Sobre o debate a respeito da possibilidade de uma filosofia cristã, ver GILSON, Etienne. A Filosofia na
Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 6 Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.
Agostinho. Op. cit. 7 Cf. Ibidem, p. 74.
8 Santo Agostinho redigiu A Cidade de Deus entre 413-414 e 426-427. Os três primeiros livros iniciam-se
em setembro de 413; os livros IV e V, em 415. Em 417, Agostinho redige o livro XI. Mas é só depois de
ter escrito as Quaestiones in Heptateuchum e as Locutiones que termina e escreve os livros XV e XVI,
isto é, por volta de 420. Em 425, redige o livro XVIII, e somete em 427 termina os outros livros. A esse
respeito, ver AURELL, Jaume. La Ciudad de Dios de San Agustín: el texto en su contexto. In: AMORES
DUO, CIVITATES DUAS: reler De Civitate Dei de Sto. Agostinho (413... – 2013). Colóquio
Internacional. Portugal: Instituto de Filosofia Prática, 14-15 nov. 2013.
12
de forma explícita uma concepção de “justiça social”, entendemos que é possível refletir
sobre seu significado e seus fundamentos sob a ótica da filosofia social do referido
autor.
Nossa investigação contribui para a análise das dimensões da justiça no
pensamento de Santo Agostinho. Em particular, ela contribui para explicitar o conceito
de “justiça social” em A Cidade de Deus na medida em que reflete sobre a dimensão
social da justiça fundada na ética da caridade. O filósofo sempre teve em mente o
homem concreto, criatura ferida pelo pecado e salva pelo auxílio divino. Desta forma,
este trabalho apresenta uma visão integral de homem e aponta para a abrangência da
compreensão da subjetividade e da intersubjetividade da vida humana no devir histórico
na compreensão da filosofia agostiniana de “justiça social”.
Com efeito, o seu pensamento suscita uma reflexão sobre os fundamentos
cristãos da ordem social, assim como também sobre as implicações éticas e políticas da
justiça. Esta tarefa é, por si só, desafiadora no cenário da cultura pós-moderna. Na
atualidade, o sentido social da justiça remete à tensão entre os objetivos da acumulação
de capital e as condições materiais de vida do homem. Neste contexto, de acordo com
Kelsen,9 o relativismo de valores introduz uma incerteza no mundo contemporâneo:
incerteza quanto ao sentido da existência humana.
Em verdade, hoje vivemos uma crise profunda na cultura ocidental por causa da
mercantilização da vida, que coisifica as relações humanas. Importantes questões éticas
e políticas se impõem em face da primazia do poder econômico global e do ethos do
lucro a curto prazo, que não só subordina a dinâmica social mas também legitima as
mais diversas desigualdades. A dinâmica econômica global privilegia a lógica
financeira do capital, que torna o dinheiro um fim em si mesmo, de modo que o homem
torna-se um mero instrumento para atingir esse fim. Tal lógica se impõe na
reorganização empresarial e dos mercados e, como resultado, o sentido da finalidade
humana é atravessado pela “promessa” de ganhos de produtividade no bojo da adoção
de novas tecnologias. A suposta neutralidade da racionalidade econômica se transforma
em desemprego, precarização do trabalho, exclusão social e pauperização. Nesse
quadro, o culto aos bens terrenos — promovidos à categoria dos fins — provocou um
esvaziamento dos valores mobilizadores da justiça social. Ademais, no bojo da
expansão do poder do capital global, prevalecem novos processos de subjetivação.
9 Cf. KELSEN, Hans. Quést-ce la Justice? Genève: Marcus Haller, 2012.
13
Novos modos de ser e de estar no mundo ditam os rumos da vida social, na qual a “ética
do instante” dita normas de convivência. Nesse contexto em que prevalece o
individualismo, dá-se o enfraquecimento e a fragmentação dos laços sociais.
Sem dúvida, a atualidade de Agostinho remete ao debate contemporâneo sobre a
necessidade de princípios universais para as escolhas éticas que tornem possível a
permanência e a coesão dos laços sociais no século XXI. O Santo insere dois problemas
centrais: o do sentido da existência do homem e o da orientação ética das suas ações. Na
medida em que reflete sobre essas questões, considera que a metafísica cristã é o
fundamento da ética, da moral e da política. Na promoção da sociedade justa, o referido
autor condenou a dissociação entre a ética e a política, ou ainda, entre a moralidade e a
justiça. Ao traçar as condições de legibilidade de um escrito filosófico nascido no século
V, entendemos que o Santo refletiu sobre a natureza do poder na vida social, movendo-
se no confronto da pluralidade de debates do seu tempo. Assim, as suas ideias sobre o
poder e sobre a justiça social certamente trazem um potencial para pensar o novo.
Nossa leitura foi inicialmente influenciada pelas reflexões de Robert Dodaro a
respeito da sociedade justa no pensamento de Agostinho. Nos seus comentários, ele
destaca que a apreensão da concepção de sociedade justa deve ter em mente o uso que o
Bispo de Hipona faz do termo “iustitia”. Segundo Dodaro, tal uso envolve a
combinação de três significados.10
O primeiro significado expressa o sentido clássico,
geralmente de tradição grega e também da filosofia romana, e considera a justiça
enquanto virtude, mediante a qual é dado a cada indivíduo o que lhe é devido. O
segundo revela a influência do Novo Testamento e da patrística latina e iguala a justiça,
enquanto virtude, ao amor a Deus e ao próximo. Nesse sentido, as verdadeiras virtudes
— e, em especial, a justiça — são uma forma de amor a Deus, que é a fonte de justiça.
Por último, o terceiro significado, traduzido como “retidão”, denota a influência da
noção paulina de “dikaiosyne” que é a condição da alma mediante a qual ela se encontra
em uma relação “correta” com Deus, o Criador, desde que propriamente ordenada. A
justiça, assim, é concebida em conjunção com o conceito de “ordem do amor” (ordo
amoris), que transmite a hierarquia dos bens estabelecida por Deus. Estas diversas
interpretações abrem perspectivas para pensar as dimensões da justiça em A Cidade de
Deus.
Ademais, entre outras referências importantes para a construção da nossa
10
Cf. DODARO, Robert. Cristo e a sociedade justa no pensamento de Agostinho. Curitiba: Scripta, 2014, p.
17.
14
argumentação, a leitura das interpretações de Markus, Arendt, Curbelié, Ramos e Lima
Vaz nos alertou para a necessidade de uma visão interdisciplinar que considere, entre
outras frentes de pesquisa, as relações entre a filosofia, a antropologia e a história para
dirimir as múltiplas questões que emergem dos escritos de Agostinho.
Cientes das dificuldades de realizar uma síntese da reflexão agostiniana em A
Cidade de Deus, vamos apresentar o percurso de nossa leitura em quatro capítulos. No
primeiro, fundamentamos, a partir dos Livros II e IV, a análise da relação entre a justiça
e a lei divina. O objetivo é evidenciar como o Santo se afasta da referência ao “justo” da
lei romana e propõe um novo fundamento para a justiça. Nesse capítulo, mostramos
como Agostinho apresenta o princípio fundante da justiça, que é a lei divina, e como se
articulam Verdade, justiça, felicidade e fé no seu pensamento. Do exposto, refletimos
sobre a lei divina na sociedade justa.
No segundo capítulo, privilegiamos, a partir dos Livros XII e XIV, uma análise
da relação entre a justiça e a retidão na perspectiva do autor de A Cidade de Deus.
Ressaltamos a concepção agostiniana de justiça enquanto retidão, que denota a condição
da alma mediante a qual o homem se encontra em uma relação “correta” com Deus, o
Criador. Mostramos como o Bispo de Hipona desdobra a reflexão filosófica sobre a
cisão da vontade na oposição e tensões entre as duas cidades: a Cidade de Deus e a
Cidade Terrena. Do exposto, refletimos sobre a retidão do homem na sociedade justa.
No terceiro capítulo, centramos a leitura no Livro XIX, de forma a explorar a
relação que o Santo estabelece entre a justiça e as verdadeiras virtudes. Para o filósofo,
o homem é um ser de natureza social que quer ser feliz. Evidenciamos como
Agostinho, ao refletir sobre a ordem social, redefine a relação entre o Bem Supremo e
as virtudes e funda a concepção de sociedade justa de maneira nova. Resgatamos a
análise agostiniana sobre a conversão da vontade e salientamos a ética social como
aspecto central do pensamento do autor de A Cidade de Deus.
No quarto capítulo, continuamos a leitura do Livro XIX de A Cidade de Deus e
explicitamos as indagações de Santo Agostinho sobre o ser e o agir do povo cristão.
Apresentamos a reflexão agostiniana sobre os fundamentos do agir do povo cristão,
quais sejam, o amor à Verdade e a urgência da caridade. Considerando os pilares da
filosofia social do hiponense, refletimos sobre a ética da caridade e sua relação com a
justiça e a política na conformação da sociedade justa.
Por fim, a conclusão sintetiza, a partir da nossa leitura de A Cidade de Deus, os
pilares da filosofia agostiniana da “justiça social”— que considera a metafísica cristã
15
como fundamento da ética social fundada na caridade. Esta leitura aponta para a
concepção de “justiça social”, enquanto um bem terreno na esperança da vida feliz, que
é expressão do amor Dei e da urgência da caridade.
Na filosofia agostiniana, a promoção da “justiça social” exige como condição a
conversão da vontade do homem. Assim, o povo cristão peregrino, que age por amor à
Verdade e por dever de caridade, vive de acordo com a ordem estabelecida por Deus e
tem consciência da sua responsabilidade na promoção da justiça realmente social. Tal
“justiça social” não deve ser confundida nem com filantropia nem com uma
espiritualidade que desconsidera as estruturas sociais na vida histórica.
De acordo com o pensamento agostiniano em A Cidade de Deus, a verdadeira
justiça é o objetivo e, também, a medida intrínseca de toda política. Ao considerar a
complexidade da experiência da vida humana no devir histórico, Agostinho chama a
atenção para as implicações da responsabilidade ética no processo de construção da
“justiça social”.
16
1 A JUSTIÇA E A LEI DIVINA
No contexto do baixo Império Romano, o pensamento de Agostinho revela um
ponto de mutação e propõe um novo fundamento para o sentido da história humana.
Desse modo, de acordo com Eslin, Agostinho, enquanto primeiro filósofo romano a sair
da Antiguidade, introduz uma desestabilização dentro da história da filosofia
ocidental.11
Assim, a compreensão do pensamento de Santo Agostinho em A Cidade de
Deus não pode ser dissociada da evolução da doutrina cristã que se vai impondo
progressivamente como um novo sistema de pensamento.12
Fundamentado na fé cristã, o Bispo de Hipona apresenta uma nova interpretação
da vida humana na história,13
que se assenta na Metafísica da Verdade e do Bem. Tal
interpretação subjaz à redefinição dos termos da discussão sobre a justiça e a questão da
sociedade justa. Na perspectiva agostiniana, o princípio fundante da justiça é
indissociável da Verdade.
1.1 Verdade, justiça e felicidade
É oportuno lembrar que, no Livro I, Agostinho desenvolve reflexões sobre o
ataque a Roma, por Alarico, em 410, e sobre o papel dos cristãos nesse episódio. O
hiponense analisa a realidade histórica da crise romana, que se caracteriza por um
quadro de corrupção, de injustiça social e de decadência das instituições políticas. Ao
descrever o modo de vida dos homens do seu tempo, o Santo aponta que o maior
problema é o mal moral — reflexo do “coração perverso”.14
Refletindo sobre os males
da vida social, ele chama a atenção para as consequências do comportamento humano
por causa dos “grilhões de certas paixões”15
que induzem a juízos errados, ilícitos, que
estimulam torturas, violências, iniquidades. No seu entender, o homem revela uma
ambivalência que se traduz em conflitos morais: o homem ama a paz e deseja o poder; o
11
Cf. ESLIN, Jean-Claude. La Cité De Dieu: spirituel et politique. Lumière&Vie, n. 280, p. 53-61, 2008. 12
Segundo Peter Brown, no século IV, o Império Romano enfrentava tensões políticas, econômicas e
sociais. Além das invasões dos bandos de bárbaros ao norte, o Império era contestado pelo reino bem
organizado e militarista da Pérsia, no Leste. Do ponto de vista econômico: os impostos haviam duplicado
ou até triplicado; os pobres eram vitimados pela inflação enquanto os ricos acumulavam propriedades.
Qualquer ofensa ao imperador ou a seus servidores podia acarretar a destruição de toda uma comunidade
de aldeãos por meio da mutilação pela tortura ou reduzindo-os à condição de mendigos. (BROWN, Peter.
Santo Agostinho: uma biografia. 4. ed., Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2006). 13
Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. Op. cit., p. 170. 14
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. 4. ed., Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011. Livro I, 1. 15
Ibidem. Livro I, 9.
17
homem ama a paz e pratica a iniquidade porque se desvia da contemplação da
Verdade.16
Ora, na sequência de sua exposição, o autor de A Cidade de Deus apresenta, no
Livro II, a seguinte questão: os deuses pagãos são eficazes para assegurar a
prosperidade da cidade?17
O referido autor desenvolve uma reflexão sobre o papel dos
deuses pagãos na prosperidade de Roma e situa inicialmente a sua resposta no plano da
história.18
Nesse sentido, diante dessa questão, o Santo oferece uma resposta negativa
para demonstrar que os males aconteceram aos romanos quando, antes da propagação
da religião cristã, prestavam culto aos deuses pagãos.19
Assim, demonstra que os
romanos não foram preservados do infortúnio pelos seus deuses. Nas suas palavras:
Mas dos males da alma, dos males da vida, dos males dos costumes
(tão grandes que é deles que a República ruirá, mesmo que se
mantenham de pé as cidades, como testemunham os seus mais doutos
varões) nada os deuses fizeram para que tais males não atingissem os
seus adoradores. Bem ao contrário — procuraram por todos os modos
que eles aumentassem [...].20
No trecho citado, podemos notar que, para o autor de A Cidade de Deus, os
romanos, em verdade, foram oprimidos pelos deuses pagãos com a única, ou pelo
menos a maior, de todas as calamidades — a corrupção dos costumes e os vícios da
alma.
Na sua argumentação, o referido autor retoma a evolução histórica das
instituições e dos costumes na tradição cultural do Império Romano, com destaque para
a importância do direito. Em verdade, o objetivo de Agostinho é resgatar tal aspecto
relevante da vida social entre os romanos para alicerçar a sua crítica aos fundamentos da
justiça. Nesse sentido, o Santo afirma: “Serei comedido e, como testemunha,
apresentarei antes o próprio Salústio que, quando falava em louvor dos Romanos, dizia
isto com que iniciámos esta exposição: Entre eles o direito, tal como o bem, tirava o seu
valor mais da natureza do que das leis”.21
Podemos notar que, no entender do Bispo de Hipona, Salústio indica a existência
16
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro I, 27. 17
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin, Paris: Études
Augustiniennes, 1961, p. 37. 18
Ibidem, p. 38-39. 19
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro I, 36. 20
Ibidem. Livro II, 16. 21
Ibidem. Livro II, 17.
18
de um direito que tem sua origem e seu fundamento na natureza humana. De acordo
com esta concepção de direito natural, as normas estabelecidas pelos homens para viver
em sociedade podem ser julgadas a partir da lei natural, isto é, a lei que reflete a justa
razão, imanente à natureza, e que governa o universo racionalmente ordenado.22
Assim,
o direito natural toma como referência a lei natural identificada com a razão e inscrita
no interior do ser humano. Nesse contexto, o conceito de justiça é fundado na lei natural
que está inscrita na alma do homem. Sendo um ser racional, o homem tem que conhecer
a lei natural e aplicá-la na sua conduta. Ademais, do ponto de vista moral, o bem (o
justo) é o resultado da observância da lei natural. Desse modo, o sentimento natural de
justiça, produto da razão natural, condiciona o comportamento moral de todos os
homens. Nesse sentido, a razão natural é fundamento do direito, da justiça e da moral.
No âmbito da vida social, a identificação da ordem da natureza com a ordem moral cria
vínculos entre homens cuja alma tem uma inclinação natural para identificar o que é
justo, sempre bom.23
Apesar de Agostinho ser um cidadão romano, a sua concepção de justiça se
afasta daquela que afirma que o fundamento do direito e do bem (justo) está na
natureza. De fato, o hiponense não autorizará que as categorias do direito natural
identifiquem o fundamento da justiça ou, ainda, a identidade do homem justo.24
Para
desenvolver este argumento, o Santo apresenta uma segunda questão que é decisiva para
a continuidade de sua reflexão: o que preside o desenvolvimento da cidade no curso da
história? Em outras palavras, o que preside o destino temporal dos homens?25
Para elaborar a resposta à indagação acima referida, o autor conduz a sua análise
para o terreno da moral e frisa que os males morais devem ser considerados os maiores
e verdadeiros males.26
Na sua argumentação, não só refuta o paganismo que busca o
Sumo Bem na vida temporal mas também introduz a dimensão salvadora da doutrina
cristã.27
Lembremos as suas palavras:
22
Cf. BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves de. Direito natural em Cícero e Tomás de Aquino. In:
PISSARA, Maria Constança Peres; FABRINI, Ricardo Nascimento. (Coords.). Direito natural: a noção
de justiça na história da filosofia. São Paulo: Atlas, 2007, p. 43-58, p. 44. 23
Cf. Ibidem, p. 43-45. 24
Cf. BADIOU, Alain. São Paulo: a fundação do universalismo. Tradução Wanda Caldeira Brant. São
Paulo: Boitempo, 2009, p. 21. 25
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin.Op. cit., p.
40. 26
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 2. No Livro III, Agostinho trata dos
males ligados ao corpo e às coisas exteriores que são sujeitas a mutações. 27
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.
38-39.
19
Então, porque é que imputam os males presentes a Cristo, que com a
sua doutrina salvadora proíbe o culto dos deuses falsos e falazes,
detesta e condena, com divina autoridade, estas nocivas e
escandalosas paixões dos homens, subtrai pouco a pouco em toda a
parte, deste mundo que cambaleia e cai nesses males, a família com
que fundará uma cidade eterna, a mais gloriosa, não pelos aplausos de
vãs superficialidades, mas pelo autêntico valor da verdade?28
A partir deste trecho, podemos dizer que Agostinho estabelece um novo
fundamento para a justiça. Cristo é o autêntico juiz e, portanto, a justiça funda-se na lei
divina. Assim, o Santo frisa que Deus é justo e fonte de justiça.29
Ressalta, deste modo,
o julgamento transcendente das ações humanas e afirma a esperança escatológica na
vida feliz, que é eterna. Em particular, o Santo propõe uma relação entre a justiça
divina e a justiça na alma dos homens: a justiça humana deve se subordinar à justiça
divina. Desse modo, o hiponense estabelece uma relação entre Verdade e justiça. A esse
respeito, a interpretação de Curbelié ressalta que esse binômio estará presente de
maneira decisiva em A Cidade de Deus.
Na sequência da sua argumentação, ao refletir sobre o alcance do impacto dos
deuses pagãos na vida dos homens, surge um novo questionamento no pensamento de
Agostinho: qual a relação entre a justiça e a felicidade? A esse respeito, lembremos as
palavras do hiponense quando diz:
E todavia continuam a não imputar aos seus deuses que o Estado se
tornou antes da vinda de Cristo no pior e mais depravado devido ao
fausto, à avareza, aos costumes cruéis e torpes. Mas de tudo por que
estão nestes tempos passando devido à sua soberba e aos seus prazeres
acusam a religião cristã. Se os reis da Terra e todos os povos, os
governantes e todos os juízes da Terra, os jovens e as donzelas, os
velhos com os novos, toda a idade adulta de ambos os sexos, os
cobradores de impostos e os soldados de que fala o Baptista João,
ouvissem e praticassem estes preceitos sobre os justos e bons
costumes — a república teria ornado as terras já cá com a felicidade
da vida presente e teria subido até ao cume da vida eterna para
conseguir um reinado de completa felicidade!30
Esse texto citado indica que o autor de A Cidade de Deus distingue entre a
felicidade da vida presente e a completa felicidade. Assim, o Santo salienta sua
28
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 18. 29
Cf. CURBELIÉ, Philippe. La justice dans La Cité de Dieu, Paris: Institute de D’Études Augustinennes,
2004, p. 94. 30
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 19.
20
preocupação com o tema da felicidade, presente também na filosofia greco-romana;
contudo, ele apresenta mudanças na concepção de vida feliz. Na perspectiva filosófica
agostiniana, a felicidade somente é plena na vida eterna.31
Para ser verdadeiramente
feliz, o homem não pode nortear a sua vida pela posse dos bens terrenos, que são
mutáveis e que ele pode perder. Nesse sentido, os bens terrenos não permitem saciar o
desejo natural do homem à felicidade. O homem somente é feliz se possuir um bem
imutável, que é Deus. Agostinho explicita, dessa forma, uma relação entre Verdade e
felicidade, qual seja, a felicidade encontra-se na posse da Verdade-Deus.
A seguir, no Livro II de A Cidade de Deus, o Bispo de Hipona retoma a questão
do fundamento da justiça e sublinha a relação entre a justiça e a vontade de Deus. O
Santo diferencia seu pensamento filosófico sobre a justiça da tradição greco-romana por
apresentar como fundamento último da justiça é o Deus-Verdade. Com efeito, o referido
autor afirma que a vontade de Deus é a lei eterna. Nas suas palavras:
Mas porque este ouve, aquele despreza e a maioria é mais amiga das
blandícias dos vícios do que da útil aspereza das virtudes, ordena-se
aos servidores de Cristo, sejam eles reis ou governantes, juízes ou
militares, soldados das províncias, ricos ou pobres, livres ou servos de
ambos os sexos, que tolerem o Estado se for necessário, mesmo sendo
o pior e mais depravado e que adquiram para si, pelo preço de uma tal
tolerância, uma morada esplendorosa na santíssima e augustíssima
cúria dos anjos, na república celeste onde a vontade de Deus é lei.32
Nessa afirmação, Agostinho estabelece uma relação entre a justiça divina e a lei
no marco da ordem criada por Deus. Para o filósofo, Deus é o princípio fundante da lei
que governa a ordem por ele criada.33
A esse respeito, Chroust observa que a lei divina e
o conceito de ordem são indissociáveis no pensamento do Santo. A ordem é uma norma
fundamental de acordo com a qual toda a criação existe. A ordem manifesta também a
harmonia da coexistência entre as partes, cada uma no seu devido lugar conforme a lei
divina que é a vontade de Deus.34
31
O tema da felicidade é trabalhado por Agostinho no diálogo A vida feliz. O filósofo faz um itinerário
argumentativo, juntamente com seus discípulos, e indaga: Qual é o bem que a alma deve possuir para ser
feliz? E quais são as maneiras de a alma obter a felicidade? (AGOSTINHO, Aurelius. A vida feliz.
Tradução e notas Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1998). 32
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 19. 33
A reflexão sobre a lei divina é desenvolvida por Agostinho no Livro I de O livre-arbítrio
(AGOSTINHO, Aurelius. O livre-arbítrio. Tradução e notas Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus,
1995). 34
Cf. CHROUST, Anton-Hermann. The Fundamental Ideas in St. Augustine’s Philosophy of Law. In:
BROOKS, Richard. O.; MURPHY, James Bernard. Augustine and Modern Law. Farnham: Ashgate,
2011, p. 60.
21
Na perspectiva agostiniana, a lei eterna é a norma suprema de justiça, é de
natureza imutável e implica a existência de um Deus justo, providente e onisciente,
eterno e perfeito. É a lei eterna que constitui a fonte universal de justiça e identifica-se
com a vontade ou sabedoria de Deus, isto é, com o plano segundo o qual Deus ordena e
dirige todas as coisas criadas em direção ao seu próprio fim que é a vida feliz do
homem. Ademais, a lei divina é transcendente e tem anterioridade ontológica em
relação ao homem. Dado que a lei eterna é a vontade de Deus, o homem deve se
subordinar a ela por completo.
Seguindo a interpretação de Flórez Pérez, podemos afirmar que, para Agostinho,
a lei divina não coincide com a lei natural.35
Todavia, à lei divina lhe corresponde uma
lei natural que está inscrita na alma do homem. Assim, para o hiponense, a lei natural é
expressão da lei eterna.
1.2 A verdadeira justiça e a política
Após fundamentar a sua concepção de justiça no Deus-Verdade, o objetivo de
Agostinho é refletir sobre os fundamentos da política na vida terrena. Assim, no Livro II
de A Cidade de Deus, o Santo apresenta uma discussão a respeito da relação entre a
justiça e a política no contexto das instituições romanas.
É oportuno lembrar que a res publica romana foi uma forma de governo
vinculada ao período da antiga civilização romana, entre os séculos V a.C. e meados do
I a.C. Começou com a queda da monarquia e sua substituição pelo Senado, pelos
magistrados e pelas assembleias populares. O termo “res publica” significa literalmente
“a coisa pública” e é a expressão política do povo em seu conjunto — daí ser chamada
também empresa do povo. Com efeito, o interesse particular de cada homem deve estar
subordinado ao interesse superior do conjunto, à res publica. Embora a República
Romana nunca tenha sido restaurada, o termo “res publica” continuou a ser usado para
referir-se ao Estado. Durante o período da República, a atuação do homem romano na
vida pública, enquanto cidadão, levou ao estabelecimento de valores cívicos, os quais
35
FLÓREZ PÉREZ, Edgar. Elementos de ética, filosofía, política y derecho: los vinculos entre la
filosofía, el derecho, la ética y la política examinados a la luz del pensamiento de los grandes filósofos.
Caracas: El Nacional, 2005, p. 27.
22
perduraram enquanto ideal de comportamento ao longo de toda a história romana. Nesse
contexto, a vida cívica é entendida como o conjunto dos direitos e deveres comuns aos
cidadãos fundado numa comunhão de interesses. Ademais, a cidade (civitas romana)
engloba os espaços comuns aos seus homens: o fórum, os tribunais e também os
templos, porque a religião integra a vida cívica.36
No Livro II, 21, o Santo considera a fala de Cipião em Da República, de Cícero,
sobre os temas relativos à organização do Estado (res publica) e às relações dos homens
na sociedade civil (civitas). No fim do segundo livro de Da República, Cipião teria dito:
“O que os músicos chamam de harmonia no canto, chama-se concórdia na cidade — o
mais seguro e o melhor veículo para a segurança de todo o Estado. E esta concórdia sem
justiça é que não se pode admitir”.37
Na sua argumentação, Cipião define a “república”
como “empresa do povo”, e “povo” como a associação de pessoas baseadas na aceitação
do direito e na comunhão de interesses. E conclui de forma lapidar: “Sem a mais
rigorosa justiça, não é possível governar uma república”.38
Assim, num governo tirano,
a república não só seria corrupta, mas também não existiria a república, porque não se
identificaria com a “empresa do povo”. Mesmo o povo, se fosse injusto, não seria mais
um povo, porque não consistiria em uma pluralidade de pessoas associadas pelo
consentimento sobre o reconhecimento recíproco dos direitos e da comunhão de
interesses. Neste sentido, no entender de Cipião, não há concórdia sem justiça; não há
res publica sem justiça. No seu argumento, subjaz a convicção de um direito civil
fundado na natureza no qual se assenta a concórdia na vida social.39
No entanto, o Bispo de Hipona critica de forma radical a ideia de que o homem
justo é quem obedece às leis do Estado. Com efeito, em A Cidade de Deus, Agostinho
se afasta da referência ao “justo” presente na tradição jusnaturalista clássica, que
considerava a razão natural como fundamento da justiça, do direito e da política.
Lembremos as suas palavras:
Esforçar-me-ei noutro lugar por mostrar que nunca Roma foi um
Estado (República) porque nunca nela existiu uma verdadeira justiça
— isto conforme as definições do próprio Cícero, segundo as quais,
36
Cf. CORASSIN, Maria Luiza. O cidadão romano na República. Projeto História. São Paulo, n. 33, p.
271-287, dez. 2006. 37
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 21. 38
Ibidem. Livro II, 21. 39
Cf. BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves de. Direito natural em Cícero e Tomás de Aquino. In:
PISSARA, Maria Constança Peres; FABRINI, Ricardo Nascimento. (Coords.). Direito natural: a noção
de justiça na história da filosofia. Op. cit.
23
com brevidade, e pela boca de Cipião, ficou assente o que é o Estado e
o que é o povo (apoiando-me também em muitas outras afirmações
suas e dos demais interlocutores do diálogo). Porém, conforme as
mais autorizadas definições, de certo modo houve uma república, e
melhor governada pelos antigos romanos do que pelos mais recentes.
É que a verdadeira justiça só existe naquela república, cujo fundador e
governador é Cristo — se é que convém chamar-lhe república, porque
não podemos negar que ela é “empresa do povo”. Mas se este nome,
que noutros lugares se divulgou com outro sentido, se afastou talvez
do uso da nossa conversação — o certo é que existe uma verdadeira
justiça naquela cidade da qual diz a Santa Escritura. Coisas gloriosas
foram ditas de ti, Cidade de Deus.40
Vê-se, no trecho citado, que o autor evidencia a importância da justiça no âmbito
da política e da constituição das estruturas do Estado enquanto expressão da tradição
cultural no mundo romano. No entanto, o hiponense frisa que a verdadeira justiça
somente existe “naquela República, cujo fundador e governador é Cristo”; em outras
palavras, existe na Cidade de Deus que é uma “empresa do povo” por expressar a
comunhão de interesses dos homens que se fundamenta no amor a Deus.41
Assim, de acordo com Agostinho, a construção da identidade do homem cristão
se afasta da identidade do homem romano — fundamentada em um sentimento de
continuidade atrelado à res publica romana, mesmo após a sua crise e posterior queda.
Na tradição cívica romana havia o sentimento de que a estrutura básica da existência
social, das instituições e do sistema de valores herdado do passado era,
fundamentalmente, o único legítimo para os homens romanos.42
Desse modo, o pensamento do Santo sobre a justiça, em A Cidade de Deus,
revela o seu afastamento em relação à concepção jurídica e às condições de vida cívica
romana que definiam o homem justo. Embora as noções do jusnaturalismo clássico
tenham influenciado o seu pensamento, a reflexão agostiniana redefine, nos termos da fé
cristã, o fundamento da justiça. Segundo o referido autor, a vontade de Deus é lei e o
princípio fundante da justiça, e a política, enquanto expressão da empresa do povo, não
pode estar dissociada da verdadeira justiça. Em outras palavras, a política não pode estar
dissociada do amor a Deus e, deste modo, a concepção de política está atrelada à
Verdade. Nesse sentido, o Bispo de Hipona redefine os termos da identidade do povo
cristão no devir histórico.
40
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 21. 41
Cf. Ibidem. Livro II, 21. 42
Cf. FINLEY, Moses I. A política no mundo antigo. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 36.
24
1.3 Poder, fé e justiça
De forma a refletir sobre a relação entre o poder e a justiça na vida temporal,
Agostinho continua explorando, no Livro IV de A Cidade de Deus, questões relativas ao
destino dos homens. No início de sua argumentação, apresenta a parábola do homem
rico e do homem pobre ou de condição média:
O rico é atormentado de temores, consumido de desgostos, arde em
cobiça, nunca seguro, sempre inquieto, ofegante em perpétuos
conflitos de inimizades, aumentando sem dúvida o seu património sem
limite à custa destas misérias, mas àqueles aumentos juntando também
amaríssimos cuidados. O de condição média, porém, está satisfeito
com o seu pequeno e apertado património familiar, é dos seus muito
querido, goza da mais doce paz com os parentes, vizinhos e amigos, é
piedosamente religioso e dotado de grande afabilidade, tem o corpo
sadio, na vida parco, casto nos costumes, sereno de consciência. Não
sei se haverá alguém tão louco que duvide qual deverá preferir.43
O texto agostiniano não só questiona os fundamentos da justiça e da felicidade
do homem, mas também indica que existe um plano de Deus cujo sentido o homem
deve procurar. Estabelece, assim, uma relação entre justiça e felicidade e acrescenta que
a piedade e a justiça, que são grandes dons de Deus, bastam para a verdadeira
felicidade: “a de viverem bem nesta vida e obterem depois a vida eterna”.44
O hiponense observa que o verdadeiro princípio fundante da felicidade e da
justiça não se encontra na vida terrena. Todos os homens mortais sofrem tribulações,
angústias e aflições. Todavia, nesta vida temporal os sofrimentos dos homens bons não
devem ser entendidos como o “castigo de uma falta, mas a provação da virtude”.45
Em
verdade, a mistura dos bens e dos males que Deus concede ao homem na vida terrena
ensina quais bens convém a ele desejar. Em outras palavras, para apreender a justa
relação com os bens temporais, o homem precisa compreender o sentido da vida terrena
em face da vida eterna.
Quanto ao homem na vida temporal, Agostinho diz: “Por conseguinte, o bom,
mesmo que reduzido à escravidão, é livre; ao passo que o mau, mesmo que seja rei, é
escravo — não de um homem mas, o que é mais grave, de tantos senhores quantos os
43
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 3. 44
Ibidem. Livro IV, 3. 45
Ibidem. Livro IV, 3.
25
vícios”.46
Nestas palavras, ao utilizar a oposição entre escravidão e liberdade, o Santo
indica uma nova perspectiva para o entendimento da condição humana e um apelo para
o questionamento das aparências como base para os juízos dos homens na vida
temporal.
No Livro IV de A Cidade de Deus, o Bispo de Hipona procura desmascarar o
que há por debaixo das aparências da conduta dos homens e dos nobres ancestrais
romanos de forma a questionar a visão que os próprios romanos tinham do seu passado
de glória e poder.47
A respeito das aparências na conduta dos homens — reis ou piratas
—, o Santo indaga: “Afastada a justiça, que são, na verdade, os reinos senão grandes
quadrilhas de ladrões?”.48
Ao narrar o encontro entre Alexandre Magno e um pirata que
tinha sido aprisionado, o hiponense compara e confronta o reino do primeiro com a
quadrilha de ladrões liderada pelo segundo. O filósofo cristão julga “verdadeira” a
resposta do pirata a Alexandre:
[...] quando o rei perguntou ao homem que lhe parecia isso de infestar
os mares, respondeu ele com franca audácia; “O mesmo que a ti
parece isso de infestar o mundo; mas a mim, porque o faço com um
pequeno navio, chamam-me ladrão; e a ti porque o fazes com uma
grande armada, chamam-te imperador”.49
Neste trecho, Agostinho apresenta a metáfora do banditismo bem-sucedido
como modelo básico de qualquer império terreno.50
Assim, ele rejeita a ideia de justiça
vinculada à ambição, à glória e ao poder que permeiam os reinos terrestres. Com efeito,
como esclarece Ramos, o Santo se afasta da noção de justiça aplicada ao campo das
relações entre autoridade que governa e comunidade de governados.51
De maneira a explorar a relação entre o poder e a justiça, o hiponense também
reflete sobre as acusações que os pagãos faziam aos cristãos, responsabilizando-os pelo
relaxamento das tradicionais virtudes cívicas. Reinterpreta a história universal e destaca
o desígnio divino que marca, no seu entender, o curso inelutável da evolução histórica.
O filósofo mostra que a longa duração do Império Romano deve ser atribuída não aos
deuses dos pagãos, dado que seu culto é ineficaz para alcançar as verdadeiras virtudes.
46
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 3. 47
Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Op. cit., p. 383. 48
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 4. 49
Ibidem. Livro IV, 4. 50
Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Op. cit., p. 382. 51
Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.
Agostinho. Op. cit.
26
Ao refletir sobre as contradições na concepção de divindade dos pagãos, o Bispo de
Hipona diz:
Mesmo eles entenderam que na verdade a Virtude se deve distribuir
por quatro espécies — prudência, justiça, força, temperança. E como
cada uma destas tem as suas espécies, a Fé liga-se à Justiça e mantém
o primeiro lugar entre nós, que sabemos o que quer dizer o justo vive
da fé.52
Vemos, assim, que Agostinho estabelece uma relação indissociável entre a fé e a
justiça e caracteriza o homem justo como aquele que vive da fé. Redefine, deste modo, a
concepção do homem justo ao atribuir à relação entre a justiça e a lei divina a chave
para o entendimento da identidade e do sentido da vida do homem cristão.
Com efeito, a sua reflexão tem por objetivo pontuar as diferenças entre a
identidade do homem romano e a identidade do homem cristão. Quanto às
características da identidade dos romanos e seu culto aos deuses pagãos, no Livro IV de
A Cidade de Deus, o hiponense indaga: “como é que se não compreendeu que a Virtude
e a Felicidade são dons de Deus e não deusas?”.53
Em verdade, o filósofo questiona o
poder, a glória e os falsos auspícios dos deuses venerados pelos romanos com cultos
religiosos, tais como Júpiter, Marte, Felicidade, Fé, Virtude, e acrescenta:
Consequentemente, de maneira nenhuma poderiam ter um império se
contra eles tivessem o verdadeiro Deus. Mas, em compensação, se
tivessem ignorado e desprezado essa multidão de falsos deuses e
conhecessem e adorassem com fé sincera e costumes puros o Deus
único, teriam tido cá, qualquer que fosse a sua grandeza, um império
melhor; receberiam depois um sempiterno.54
Nesse trecho do Livro IV, Agostinho critica as falsas concepções de divindade
do politeísmo pagão e conclui que o sucesso de Roma se deve ao único e verdadeiro
Deus, por cujo poder e julgamento os reinos terrestres são fundados e mantidos.55
Assim, contrário aos fundamentos pagãos da glória e do poder na vida terrena, o Santo
critica o fato de que os deuses pagãos são adorados pela vantagem temporal de glória e
poder que os homens podem obter. Em suma, o referido autor expressa que o poder dos
52
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 20. 53
Ibidem. Livro IV, 21. 54
Ibidem. Livro IV, 28. 55
Cf. FORTIN, Ernest. San Augustin (354-430). In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (Orgs.).
Historia de la filosofía política. México: Fondo de Cultura, 2004.
27
deuses pagãos de nada serviu para evitar os males da humanidade.56
Pelo contrário,
estes deuses prejudicaram os homens com os seus enganos e mentiras.57
No confronto com o paganismo, o Bispo de Hipona frisa que somente aqueles
filósofos que distinguem com clareza a diferença entre o criador e as criaturas
conseguem chegar à Verdade — fundamento da verdadeira justiça, glória e poder. É
oportuno lembrar que, em outros livros da Primeira Parte de A Cidade de Deus, o autor
escolhe dois tipos extremos de paganismo para desenvolver a sua crítica às falsas
divindades: Varrão e os neoplatônicos.
No Livro VII, o método de Agostinho consiste em apresentar o pensamento do
filósofo pagão Varrão, como testemunha contra si mesmo, para provar a inadequação da
teologia civil.58
Segundo o hiponense, Varrão não considerava seriamente seus deuses
na medida em que, na sua reflexão, o tratamento das coisas humanas precedia o
tratamento das coisas divinas.59
Assim, este filósofo pagão se preocupava com a
maneira de os homens viverem a religiosidade, que se apresentava numa multiplicidade
de atitudes e de cultos religiosos, cada qual presidido por um deus particular.60
Desse
modo, Varrão dava a entender que os deuses das cidades não existiam
independentemente do homem, mas que os deuses eram produto do espírito humano.61
Neste ponto, diz Agostinho, reside o erro do filósofo pagão: não trata a natureza divina
enquanto superior à natureza humana, mas inverte esta ordem. A alma humana ou sua
parte racional assume natureza divina, convertendo o homem em um deus ao invés de
convertê-lo em servidor de Deus. Assim, o Santo considera que tal doutrina da teologia
56
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.
47 57
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 36. 58
A esse respeito, Markus comenta que a “política agostiniana” é uma crítica da teologia civil romana.
(MARKUS, R., Saeculum: History and Society in the Theology of St. Augustine, London: Cambridge
University Press, 1970, p. 168-69). 59
Agostinho, citando Cícero, se refere constantemente a Varrão como homem “agudíssimo e douto”.
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 2. 60
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustine. Op. cit., p.
50. 61
Tomando como referência a reflexão de Varrão, expoente da teologia civil romana, Santo Agostinho
divide a teologia pagã em três formas básicas: mítica; natural ou filosófica; e cívica ou política. A
teologia mítica é a teologia dos poetas: ela atrai diretamente a multidão, e seus muitos deuses são
reverenciados pelos homens para obter bens temporais ou vantagens materiais nesta vida. Por outro lado,
a teologia natural ou filosófica é monoteísta e se fundamenta na autêntica noção de Deus e, deste modo, é
superior à teologia mítica e à civil. No entanto, só é acessível aos doutos e, portanto, é incapaz de exercer
uma influência benéfica sobre a sociedade no seu conjunto. Por último, a teologia civil, também associada
ao culto de vários deuses, é a teologia oficial da cidade, a qual todos os cidadãos devem conhecer para
saber quais deuses devem ser adorados e quais ritos e sacrifícios devem ser celebrados. Tal teologia busca
melhorar os homens por meio do desenvolvimento das virtudes políticas. Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A
Cidade de Deus. Op. cit. Livro VI.
28
civil confunde a criatura com seu criador e, portanto, é discutível do ponto de vista
racional, já que a mutabilidade do homem não se pode reconciliar com a perfeição do
ser supremo. Em outras palavras, o ponto central da sua argumentação, no Livro VII de
A Cidade de Deus, é que o hiponense demonstra o fracasso completo do paganismo
quanto à concepção de divindade: os deuses de Varrão, com efeito, não podem ser
considerados deuses. Agostinho conclui que tais deuses não são mais do que homens
divinizados.62
Ademais, no Livro VIII, o referido autor continua elaborando a sua crítica aos
filósofos pagãos e considera os fundamentos da divindade no neoplatonismo. Embora a
sua descoberta do neoplatonismo tenha sido fundamental para acessar a doutrina do
logos,63
no debate entre escolas filosóficas, o hiponense foi crítico dos neoplatônicos
pagãos.
Na Antiguidade tardia, Plotino defendia que, para alcançar a felicidade, a alma, de
natureza espiritual, se deve voltar para o mundo inteligível e, assim, ascender junto a
Deus. Nessa reflexão filosófica, o problema ético reside no afastamento da alma em
relação ao Uno, na medida em que a alma, por causa da soberba, se apega aos bens
materiais e transitórios e se esquece da sua origem. No entanto, como Plotino explica,
apesar do afastamento, uma parte da alma — a razão — persevera no nous e a filosofia
auxilia a alma a retornar ao mundo inteligível. A ascensão intelectual da alma tem como
precondição um processo de purificação no qual as virtudes a auxiliam na conscientização
de sua essência e de sua origem e, assim, no desprendimento em relação aos bens
transitórios. Quando a alma, como nous, contempla, além de si, o Uno, ela alcança a
posse do Sumo Bem.64
Na filosofia de Plotino, a vida feliz tem base metafísica e a vida
62
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p. 56. 63
O próprio Agostinho lembra a importância da influência dos livros dos platônicos (AGOSTINHO,
Aurelius. Confissões. Tradução e notas Arnaldo Espírito Santo; João Beato; Maria Cristina de Castro-
Maia de Sousa Pimentel. Introdução Manuel Barbosa de Costa Freitas. Notas de âmbito filosófico Manuel
Barbosa da Costa Freitas; José Maria Silva Rosa. [s.l.]: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 2000. Livro
VII, 9.13). O Santo afirma que nesses livros leu, “[...] não exatamente nestas palavras, mas com muitas e
variadas razões, que, no conjunto, se argumentava isto mesmo: no princípio era o Verbo e o Verbo estava
junto de Deus e Deus era o Verbo: este estava, no princípio, junto de Deus; todas as coisas foram feitas
por ele, e sem ele nada foi feito; o que foi feito foi vida nele, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha
nas trevas, e as trevas não a dominaram; e que a alma humana, embora dê testemunho da luz, todavia ela
própria não é a luz, mas o Verbo, Deus, é que é a luz verdadeira, que ilumina todo homem que vem a este
mundo; e que estava neste mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu.” O
hiponense acrescenta que não leu nos platônicos: “Mas que veio para o que era seu e os seus não o
receberam, e que a todos quantos o receberam deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, a eles que
crêem no seu nome, isso não o li eu aí.” 64
Nos Livros VIII a X de A Cidade de Deus, Agostinho desenvolve uma discussão contra Porfírio
(neoplatônico) sobre o princípio e o caminho de limpeza e libertação das almas.
29
virtuosa é o caminho que o homem por si só pode seguir para alcançar o Sumo Bem.65
Toda a discussão de Agostinho com os neoplatônicos propõe apontar para os
novos termos em que deve ser pensada a relação entre homem e Deus — dada a
resposta equivocada oferecida pelo paganismo.66
O hiponense entendia que esta escola
filosófica não podia alcançar a Verdade, o que requer não só a leitura das Sagradas
Escrituras, mas principalmente o auxílio divino para que o homem possa dar os passos
em direção à Verdade, ao Sumo Bem e, portanto, para que possa cumprir a lei divina.
1.4 A lei divina na sociedade justa
Ao longo dos Livros II e IV, o Bispo de Hipona frisa a dependência do homem
em relação ao único Deus verdadeiro, que auxilia o homem na história. Nas suas
palavras:
É, pois, Deus autor e dispensador da felicidade, porque é ele o único
Deus verdadeiro, quem concede os reinos da Terra tanto aos bons
como aos maus. E não o faz à toa, como que fortuitamente (pois que
Ele é que é o verdadeiro Deus e não a fortuna), mas conforme a ordem
das coisas e dos tempos, para nós oculta mas dele perfeitamente
conhecida. Ele não serve nem está submetido a esta ordem dos
tempos. Pelo contrário, é Ele que, como senhor, a rege e, como
moderador, a ordena. Mas a felicidade — essa dá-a aos bons. Podem
tê-la ou não os que servem; podem tê-la ou não os que reinam.
Todavia, só será plena naquela vida onde já ninguém terá que servir. E
por isso que os reinos da Terra são por Ele concedidos tanto aos maus
como aos bons: Ele não quer que os seus adoradores, ainda crianças
na vida moral, desejem d’Ele esse dom como qualquer coisa de
grande.67
Dessa forma, a partir do texto selecionado, apreende-se que, para o autor, a
“ordem das coisas e dos tempos” é aquela organizada e regida em torno do princípio da
justiça, cujo fundamento é a lei eterna. Emerge a noção de ordem enquanto uma
disposição das coisas criadas na vida temporal conforme a vontade divina ou lei eterna.
65
Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. 2. ed., São Paulo: Loyola, 2012, p. 32-33.
Na concepção de Plotino, a alma do ser humano, que faz parte da alma do mundo e pertence à esfera do
inteligível, emana, como terceira hipóstase, do nous, que, por sua vez, emana do Uno, o inefável,
fundamento e fonte do ser. A alma do mundo olhando para o nous apreende as Ideias e as transmite aos
seres materiais como suas formas (logoi). 66
Quanto ao neoplatonismo, o próprio Agostinho reconhece em Confissões (Livro VII) o papel central
que os “livros platônicos traduzidos do grego para o latim” desempenharam em seu desenvolvimento
filosófico e religioso, inclusive em sua conversão final ao cristianismo no ano de 387. 67
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 29.
30
Ademais, a lei eterna é entendida como o fundamento da felicidade, que é o problema
fundamental que se coloca à humanidade na história.
Diante da perspectiva do fim último do homem, o hiponense relaciona a “ordem
das coisas e dos tempos” a um novo sentido. De fato, apresenta uma nova interpretação
da história a partir de um novo entendimento do telos, do significado do sentido da vida
do homem no devir histórico.68
Considerando esses pressupostos, o filósofo aponta para
a construção da nova identidade dos cristãos quanto ao sentido da vida e quanto à fé na
doutrina da salvação em Cristo. Desse modo, ele propõe novo fundamento para a
concepção de justiça.
No contexto do providencialismo divino, Agostinho frisa que o julgamento
transcendente de Cristo sobre a história e a afirmação de uma esperança escatológica
subjaz à redefinição dos termos da discussão sobre a justiça e a questão da sociedade
justa. Com efeito, a organização da sociedade justa, segundo o Santo, pode ser pensada
em torno da concepção de justiça cujo fundamento é a lei divina. A lei eterna assinala o
que os homens justos, que vivem da fé, devem fazer se desejam ser felizes. Com efeito,
na perspectiva agostiniana, explicita-se o caráter normativo da lei divina como critério
da conduta moral do homem peregrino. O entendimento da vontade reta do homem
justo pressupõe a necessidade de um passo adiante, um aprofundamento da análise do
lugar do homem na ordem criada por Deus e da natureza humana ferida pelo pecado.
68
Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. Op. cit. p. 170.
31
2 JUSTIÇA E RETIDÃO
Do ponto de vista ontológico, a retidão de vida do homem é indissociável da
ordem criada por Deus. Segundo Agostinho, a relação correta do homem em relação a
Deus se traduz na subordinação à vontade divina. No entanto, o homem peregrino, na
sua vida temporal, hesita quanto à direção a seguir: Jerusalém ou Babilônia. Com efeito,
a cisão da vontade presente em cada homem singular fundamenta a oposição entre as
duas cidades — a Cidade de Deus e a Cidade Terrena.
É oportuno lembrar que, finalizada a primeira parte de A Cidade de Deus (Livros
I a X), o seu autor inicia uma análise sobre a origem das duas cidades, a Celeste e a
Terrestre, do seu desenvolvimento e de seus fins. No Livro XI, 2, o Santo apresenta uma
síntese que pode também ser compreendida como um texto de transição entre a primeira
e a segunda parte:
É grandioso, mas muito raro, que alguém se eleve, por um esforço da
mente, acima de todas as criaturas corporais e incorpóreas, depois de
ter observado e reconhecido a mutabilidade, para atingir a imutável
substância de Deus e aprender d’Ele mesmo que toda a criatura d’Ele
distinta só a Ele tem por autor. De fato, Deus não fala ao homem por
uma criatura corpórea — como se ferem os ouvidos do corpo fazendo
vibrar o ar entre aquele que fala e aquele que ouve; também se não
serve dessas imagens espirituais que tomam a forma e a semelhança
dos corpos — como se produz nos sonhos e tudo o que se lhes
assemelha [...]; mas fala pela própria verdade se alguém está apto a
ouvir pelo espírito e não pelo corpo. Fala deste modo à parte mais
excelente do homem, superior a todos os elementos que constituem o
home e à qual só Deus é superior. [...]
Mas como a própria parte mental, sede natural da razão e da
inteligência, está muito debilitada pelos vícios inveterados que a
obscurecem, necessitava, antes de tudo, de ser purificada pela fé para
aderir à luz imutável e dela gozar, ou mesmo para lhe suportar o
esplendor, até que renovada e curada dia a dia, se torne capaz duma
tão grande felicidade.
E para caminhar mais confiadamente nessa fé para a verdade — a
própria verdade, Deus Filho de Deus, assumindo o homem sem anular
a Deus, fundou e estabeleceu essa mesma fé para que o homem tivesse
um caminho para o Deus do homem por intermédio do homem-Deus.
Este é que é, realmente, o mediador entre Deus e os homens — o
homem Jesus Cristo: é Mediador por ser homem e como tal é
caminho. [...] Só há portanto um caminho que exclui todo erro: que é
o próprio Deus e o homem sejam o mesmo — Deus para onde se vai,
homem por onde se vai.69
69
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XI, 2.
32
Nesse trecho podemos perceber que o hiponense recapitula, embora numa
formulação nova, os argumentos que apresentara contra o paganismo e afirma as
diferenças entre a natureza divina e a natureza humana. Fiel à fé cristã, o filósofo frisa
que há um Deus único, que criou o homem e é o sentido da sua vida, e que a mediação
de Cristo é o caminho para a vida eterna.70
A reflexão de Agostinho sobre a justiça e a retidão do homem se fundamenta
numa concepção da natureza humana que suscita múltiplas questões. Nos Livros XII e
XIV de A Cidade de Deus, o filósofo indaga: Qual é o lugar do homem na criação?
Qual a relação entre o homem e a Verdade? Como pode a razão humana conhecer a
Verdade? Como pode o homem conhecer o que lhe é ontologicamente superior, o que
lhe supera em perfeição? Qual a origem do Mal? Qual o tipo de relação que prevalece
entre os homens por causa do pecado, da vontade cindida? O que é viver em
conformidade com Deus na vida temporal?71
2.1 O homem na criação
O pensamento do Bispo de Hipona a respeito da visão cristã do homem no
mundo se ergue, não sem conflitos, no interior dos quadros estáticos da cosmologia
antiga.72
O Santo ultrapassa o “homem natural” do cosmos antigo e o seu pensamento
alicerça uma nova concepção de homem, de felicidade e de liberdade.73
Apresenta
também uma nova concepção de tempo. É oportuno lembrar que, na trajetória
intelectual e espiritual de Agostinho, os sermões de Ambrósio e a leitura de Plotino e de
seu discípulo Porfirio, iniciada em Milão, suscitaram-lhe dúvidas e questionamentos
sobre a natureza divina e a natureza humana.74
Nesse momento da sua vida, ele se
70
Cf. Ibidem. Livro VIII, 32. 71
Cf. Ibidem. Livro XIV, 5. 72
Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Cristianismo e consciência histórica. In: Ontologia e história.
Op. cit. Crítico da modernidade, Lima Vaz articula ontologia, história e política na composição,
estruturação e interpretação de uma visão de homem e de sociedade na qual a religião é aspecto
constitutivo da dinâmica social no tempo. 73
O sentido da liberdade na perspectiva da vida feliz, no marco da relação ontológica entre Deus e o
homem, é trabalhado por Agostinho em O livre-arbítrio. O Santo propõe um conceito de liberdade que
remete à relação do homem com Deus: “Sem dúvida, não existe verdadeira liberdade a não ser entre
pessoas felizes, as quais seguem a lei eterna.” Cf. AGOSTINHO, Aurelius. O livre-arbítrio. Op. cit. Livro
XV, 32. 74
Cf. MATTHEWS, Gareth B. Santo Agostinho: a vida e as ideias de um filósofo adiante de seu tempo,
Rio de Janeiro: Zahar, 2007. Na trajetória de Agostinho, foi o teólogo Ambrósio quem o guiou para o
rompimento com o materialismo filosófico defendido pelo maniqueísmo. Quando ele tinha 29 anos,
chegou a Cartago o famoso bispo maniqueísta, Fausto, que Agostinho esperara durante nove anos para lhe
indagar acerca da fé maniqueísta. A decepção do hiponense é narrada nas Confissões, onde diz que
33
pergunta: “Quem me fez? Porventura não foi o meu Deus, que não é apenas bom, mas o
próprio Bem?”.75
Com essas palavras, Agostinho frisa que o Bem é o próprio Deus, que
não só criou o homem, mas também deu à vida do homem um sentido.
Nos doze livros da segunda parte de A Cidade de Deus, o filósofo explora os
cinco momentos da história religiosa da humanidade: criação, o pecado original, o
tempo da fé na promessa; Jesus Cristo e a eterna beatitude.76
No Livro XII, 1, o referido
autor reflete sobre a origem do mundo e a criação. O Santo frisa a ideia de que o único e
verdadeiro bem imutável que torna o homem verdadeiramente feliz é Deus: “Dizemos
existir apenas um bem imutável, Deus, uno, verdadeiro e feliz”.77
No contexto da
criação ex nihilo, as coisas são chamadas à existência por Deus.78
Embasado no
referencial bíblico, o Santo entende que o homem, dotado de um corpo e uma alma, não
é desde a eternidade, mas foi criado por Deus, à sua imagem e semelhança.
Na ordem criada por Deus, o hiponense sublinha que existe uma hierarquia
ontológica entre os bens superiores e os bens inferiores. No entanto, por causa do
pecado, o homem inclina a sua vontade para os bens aparentes e está sujeito ao erro dos
seus juízos. Nesse sentido, o Santo esclarece:
Assim: a avareza não é o vício do ouro, mas do homem que ama
perversamente o ouro, pondo de parte a justiça que devia ser posta
muito acima do ouro; a luxúria também não é um vício dos corpos
belos e graciosos, mas de uma alma que ama de forma pervertida as
volúpias corporais, descuidando a temperança que nos dispõe para as
realidades mais belas do espírito e para maiores graças incorruptíveis;
não é a jactância um vício do louvor humano, mas da alma que
perversamente gosta de ser louvada pelos homens com desprezo do
testemunho da consciência; nem a soberba é vício de quem outorga o
poder ou do próprio poder, mas o da alma que ama perversamente a
sua própria autoridade e despreza a autoridade justa de um mais
poderoso. É por isso que quem ama perversamente um bem, seja de
que natureza for, mesmo que o obtenha, torna-se mau nesse bem e
miserável na privação de um bem melhor.79
Como se vê, Agostinho analisa a relação do homem com os bens terrenos e
verificou “[...] em primeiro lugar, que o indivíduo não dominava as artes liberais, a não ser a gramática, e
essa mesma de uma forma vulgar” (V, 6, 11). 75
AGOSTINHO, Aurelius. Confissões. Op. cit. Livro VII, 3, 5. 76
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op.
cit., p. 86. Conforme Guy, os Livros XI a XIV constituem essencialmente um comentário ao livro do
Gênesis. 77
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XII, 1. 78
Cf. Ibidem. Livro XII, 1. 79
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XII, 8.
34
alerta que as coisas na ordem criada por Deus não são más em si mesmas. Nesse
contexto, a questão da relação do homem com os bens terrenos remete ao sentido da
vida humana na ordem divina. Segundo o Santo, o fim da criação, o sentido da vida do
homem é a glória de Deus. Somente Deus é a causa da felicidade do homem.
Assim, o Bispo de Hipona salienta a diferença metafísica entre o fundamento do
Ser e o ente fundado. Confere a Deus os predicados de um Ser Supremo: infinito,
onipotente, onisciente, imutável. O Ser Supremo é aquele que ama, é o mais justo, o
mais misericordioso.80
Deus é o fundamento da vida do homem; portanto, há uma
transcendência ontológica na vida do homem. O próprio Deus, para sua perfeição, não
necessita do homem.81
Deste modo, Agostinho apresenta uma concepção de uma hierarquia ontológica
dos seres na ordem criada por Deus. A imagem do cosmos é a de uma hierarquia de
seres da natureza que exprimem uma ordem superior — a vontade de Deus — à qual
devem submeter-se. Deus é o princípio e é o fim de todas as coisas. É o criador, causa
eficiente do universo, de onde tudo procede, e causa final em direção à qual todas as
coisas tendem e hão de retornar. É inegável que, no pensamento agostiniano, o homem
somente pode ser compreendido por referência ao Absoluto. Assim, seguindo a
interpretação de Arendt, a resposta à questão “O que sou?” somente pode ser dada por
Deus, que criou o homem.82
O autor de A Cidade de Deus aponta para um Ser absoluto que é alfa e ômega.
Esta é a raiz da possibilidade do vir a ser do homem no mundo.83
Sobre a natureza da
alma humana criada à imagem de Deus, o referido autor afirma:
Deus fez, pois, o homem à sua imagem. Efetivamente, criou nele a
alma apta pela razão e pela inteligência a elevar-se acima de todos os
animais da terra, das águas e do ar, desprovidos de um espírito deste
80
Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Op. cit., p. 45. 81
Cf. Ibidem, p. 47-48. A esse respeito, Oliveira e Silva (OLIVEIRA E SILVA, Paula. Ordem e
mediação: a ontologia relacional de Agostinho de Hipona. Porto Alegre: Letra & Vida; Suliani, 2012),
ressalta que, na visão agostiniana de Deus em relação ao mundo, o próprio Deus se torna visível não só
pelas criaturas mas no Cristo, nas teofanias, nas manifestações do Novo Testamento após a ressurreição
de Cristo. 82
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro X. Segundo Arendt, a questão da
natureza de Deus e da natureza do homem são questões teológicas e, portanto, ambas somente devem ser
resolvidas dentro de uma resposta divinamente revelada. Nesse sentido, as formas da cognição humana,
aplicáveis às coisas, de nada valem quando nos perguntamos “Quem somos nós?” (ARENDT, Hannah. A
condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013). 83
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XI, 32. A respeito do homem na criação,
Arendt esclarece que Agostinho chama de principium ao início do mundo, e de initium ao começo da
ação humana. No entender da filósofa, o uso de palavras latinas diferentes é crucial para diferenciar os
dois começos. (ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013).
35
gênero. Tendo, pois, formado o homem do pó da terra, insuflou-lhe
essa alma de que acabo de falar, quer a tenha já feita fazendo-a pelo
seu próprio sopro, querendo que o sopro que assim produzia
(realmente, insuflar que mais é senão produzir um sopro?) fosse a
própria alma do homem.84
A partir destas palavras, o Santo ressalta que a alma do homem, de natureza
espiritual, foi criada por um ser superior perfeitíssimo. Na perspectiva agostiniana, o
homem foi criado à imagem de Deus. Todavia, entre os homens, a primeira morte
constitui um castigo por causa do pecado de Adão, o primeiro homem que transgrediu a
lei divina.85
2.2 Os dois amores e as duas cidades
No Livro XIV de A Cidade de Deus, ao refletir sobre a concupiscência,
Agostinho retoma a questão do pecado original e dos hábitos que alimentam os vícios
no homem de forma a falar sobre o castigo resultante da desobediência da lei divina.86
Nesse sentido, a sua reflexão se desdobra sobre questões relativas ao modo de vida do
homem na Cidade de Deus e na Cidade Terrena.87
A esse respeito, ele indaga: “Que é
viver em conformidade com o homem e que é viver em conformidade com Deus?”.88
No Prefácio do livro A Cidade de Deus, o autor caracteriza as duas cidades. A
Cidade Celeste, que é peregrina no meio dos ímpios, vive no decurso do tempo pela fé,
espera a morada eterna e, graças à sua santidade, possuirá a paz perfeita. A Cidade
Terrena, por sua vez, no devir histórico, se torna escrava de sua própria ambição de
domínio.89
De acordo com Agostinho, em oposição à Cidade Terrena, a Cidade de Deus não
é guiada pelo amor de si mesmo e não vive de acordo com a “carne”.90
Nesse contexto
filosófico, este termo não deve ser entendido em sentido estrito, como se somente
estivesse referido ao corpo e aos prazeres corporais. Nas Sagradas Escrituras, “carne” é
sinônimo de homem natural e abrange não só os vícios do corpo mas também os da
alma, na medida em que o homem não conduz a sua vida de forma a ter Deus como
84
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XII, 24. 85
Cf. Ibidem. A primeira morte é tema do Livro XIII. 86
Cf. CURBELIÉ, Philippe. La justice dans la Cité de Dieu. Op. cit., p. 121 87
Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Op. cit., p. 399. 88
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 4. 89
Ibidem. Prefácio. 90
Cf. Ibidem. Livro XIV, 2 e 3.
36
Sumo Bem, fim supremo.
Quando o homem vive conforme a carne, a vontade inclina-se para o desejo
concupiscente que busca o prazer como fim supremo. Como resultado, decorrem
hábitos que geram vícios, impulsionados pelo amor do homem a si mesmo, e não por
amor à Verdade. Nesse contexto, a corrupção do corpo é entendida por Agostinho como
castigo para o homem, e afirma: “foi a alma pecadora que tornou o corpo corruptível”.91
Como resultado, a Cidade Terrena se caracteriza pelo modo de vida de homens
cujo amor a si mesmos se revela como a antítese da vida virtuosa, como antítese de uma
vida de obediência e de submissão à vontade de Deus. Os membros da Cidade Terrena
renovam, cada um de maneira singular, o pecado de desobediência que cometeu Adão.
Considerando este pano de fundo, o hiponense resume a problemática do pecado
e dos modos de vida do homem, quando afirma:
É por isso que dissemos que existem duas cidades diferentes e
contrárias — porque uns vivem em conformidade com a carne e
outros em conformidade com o espírito; ou ainda do mesmo modo se
pode dizer que uns vivem em conformidade com o homem, e outros
em conformidade com Deus.92
No trecho citado, o Santo distingue claramente dois modos de vida do homem
ancorados em duas formas de amor: amor a si mesmo e amor a Deus. Quando o modo
de vida do homem se centra no amor egoísta, no amor a si mesmo, os seus desejos
desordenados se antepõem ao legítimo desejo de felicidade e à retidão da vontade. Ao
pecar, os desejos do homem se revelam estranhos aos ditames da justiça divina.
A seguir, numa análise comparativa entre os modos de vida do homem, o Santo
afirma que a vida dos homens na Cidade Terrena é uma “mentira”. Nas suas palavras:
Quando o homem vive em conformidade consigo mesmo, isto é, com
o homem e não com Deus, com certeza vive em conformidade com a
mentira. Não porque ele próprio seja a mentira, pois tem a Deus por
autor e criador, e Deus não faz a mentira. Mas foi criado “recto”, para
viver em conformidade consigo mesmo, isto é, para fazer antes a
d’Ele do que a sua própria vontade. Não viver o modo de vida para
que fora feito — isso é mentira. Querer ser feliz mesmo quando não
vive de forma a poder sê-lo — que é que há de mais mentiroso do que
esta vontade? Daí que se possa dizer, não sem motivo, que todo
pecado é uma mentira.93
91
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 3. 92
Ibidem. Livro XIV, 4. 93
Ibidem. Livro XIV, 4.
37
A partir deste texto, podemos entender que o filósofo salienta a dimensão
ontológica que funda a oposição entre as duas cidades. O modo de vida em que
prevalece a vontade do homem não conduz a criatura à Verdade e, portanto, à
felicidade. Este não é o modo de vida do homem “reto”, que foi criado para amar a
Verdade e não para fazer a sua própria vontade. Assim, esta afirmação indica que o
homem foi criado para viver conforme a lei divina, a vontade de Deus. Desse modo,
Agostinho coloca o amor à Verdade e, portanto, o viver do homem conforme a lei
divina, na perspectiva da necessidade ontológica. Em outras palavras, no seu
pensamento, o significado da criação se revela na perspectiva da relação “correta” entre
o homem e Deus.
2.3 Vontade, retidão e justiça
A reflexão agostiniana se desdobra sobre a análise da causa dos vícios humanos.
Os vícios, perturbações ou doenças da alma, como os chamava Cícero, ou as paixões,
segundo traduções do grego — desejo, temor, prazer e dor — “compreendem todas as
más propensões dos costumes humanos”.94
Não é só sob a influência da carne que a
alma experimenta as paixões, tal como supunham os maniqueus, mas o Bispo de Hipona
esclarece que “é também dela própria que pode proceder a agitação desses impulsos”.95
Ao dizer que “o homem não é mau por natureza, mas por vício”,96
o hiponense
frisa a influência da vontade sobre as escolhas. Tal influência depende da relação entre a
vontade humana e os bens, tal como indica Agostinho quando afirma: “A vontade do
homem é atraída ou repelida de acordo com a diversidade de objetos que procura ou
evita e assim se muda ou transforma nestes diferentes afetos”.97
Em outras palavras, as perturbações da alma afetam os juízos relativos à vontade
que está presente nos diferentes afetos do homem em relação à diversidade de objetos
que procura ou evita. A esse respeito, o Santo questiona: “Realmente, o que é o desejo
ou a alegria senão a vontade que consente no que queremos? Que é o temor ou a tristeza
senão a vontade que nos desvia do que recusamos?”.98
94
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 5. 95
Ibidem. Livro XIV, 5. 96
Ibidem. Livro XIV, 6 97
Ibidem. Livro XIV, 6. 98
Ibidem. Livro XIV, 6.
38
Assim, na perspectiva agostiniana, a vontade do homem afeta os juízos e,
portanto, as escolhas.99
Ao embasar na cisão da vontade a análise dos vícios e dos erros
dos juízos humanos, Agostinho introduz modificações significativas no diagnóstico e na
explicação para as dores da alma em relação à filosofia antiga.100
O autor de A Cidade
de Deus salienta a relação entre amor bom e vontade reta, quando diz:
[...] a vontade recta é um amor bom e a vontade perversa um amor
mau. O amor que aspira a possuir o que ama — é desejo; quando o
possui e dele goza — é alegria; quando foge do que lhe repugna — é
temor; se o seu pesar o experimenta — é tristeza. Estes sentimentos
são, portanto, maus, quando o amor é mau; bons, quando o amor é
bom.101
Vê-se que, nestas palavras, o autor argumenta que, quando a inclinação da
vontade contraria a ordem divina e prefere bens inferiores, o homem se afasta do Sumo
Ser.102
Nesse sentido, o Santo frisa que a vontade reta é um amor bom e identifica o Mal
como privação do bem. A vontade reta é a vontade que deseja aquilo que se deve
desejar conforme a vontade divina e pressupõe uma “religação” ou retorno do homem a
Deus. Assim, a vontade reta que alimenta a virtude da justiça é indissociável do amor
bom.103
O referido autor desdobra a sua argumentação sobre o comportamento humano
numa reflexão sobre a natureza social do homem, onde privilegia a relação do homem
com o próximo. No entender do hiponense, quando a vontade do homem segue a
vontade de Deus, este homem ama de forma ordenada e segue o mandamento do amor
que Cristo resumiu, segundo os evangelhos, na essência dos mandamentos: “Amar a
Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”.104
A esse respeito, o
filósofo afirma:
Daquele que tem o propósito de amar a Deus e também de amar o
próximo como a si mesmo, não em conformidade com o homem mas
em conformidade com Deus, por causa desse amor se diz
corretamente que ele é de boa vontade. Esta, nas Sagradas Escrituras,
99
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 6. 100
Cf. MATTHEWS, Gareth B. Santo Agostinho: a vida e as ideias de um filósofo adiante de seu tempo.
Op. cit. 101
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 7. 102
Cf. Ibidem. Livro XIV, 8. 103
Cf. Ibidem. Livro XIV, 9. 104
Mateus, 22.
39
é geralmente denominada de caridade (caritas). Mas, nas mesmas
Sagradas Escrituras, também se lhe chama amor (amor).105
De acordo com o texto selecionado, o filósofo identifica o homem de boa
vontade com aquele que segue a vontade de Deus. Nesta reflexão, podemos destacar
que o amor bom se entrelaça com a virtude da justiça que orienta o modo de vida do
homem conforme a lei divina. Este é um ponto absolutamente central da moral
agostiniana, em que a vontade e a justiça se articulam na sua reflexão sobre os
fundamentos da retidão e, consequentemente, da felicidade. Nesse sentido, a relação
correta do homem com o criador direciona o seu modo de vida conforme a justiça
divina e se desdobra na relação do homem com o próximo. Assim, o amor ao próximo
— a caridade — é fruto do amor ordenado, do amor bom, e manifesta a vontade reta. Na
perspectiva agostiniana, o amor ao próximo emerge como a questão intersubjetiva
radical porque o homem de boa vontade deve amar ao seu próximo em conformidade
com Deus.
2.4 A cisão da vontade e os modos de vida
Ao longo do Livro XIV de A Cidade de Deus, a reflexão do Bispo de Hipona
sobre o pecado e o Mal objetiva aprofundar a sua análise da relação entre a vontade de
Deus e a vontade do homem, mas também da liberdade do homem. Assim, o filósofo
reflete sobre a questão do bem, tanto do ponto de vista ontológico quanto do ponto de
vista moral.
Sob a perspectiva ontológica, a escravidão, fruto do pecado original, também
encontra seu lugar na ordem.106
O Santo diz: “Mas Deus tudo previu e não pôde ignorar
que o homem viria a pecar”.107
Dessa forma, esta afirmação frisa a Onipotência divina
em relação aos desígnios do homem:
Deus, na sua presciência, previu uma coisa e outra coisa, isto é, quão
mau se viria a tornar o homem que Ele criou bom e o bem que havia
de tirar desse mal. É certo que se diz que Deus altera os seus desígnios
(em linguagem metafórica a Escritura chega mesmo a dizer que Deus
se arrependeu). Mas isso diz-se em atenção ao que o homem espera ou
em atenção ao que comporta a ordem das coisas naturais — e não em
105
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 7. 106
A respeito do pecado original e da ordem criada por Deus, ver também AGOSTINHO, Aurelius. A
Cidade de Deus. Op. cit. Livro XII, 24. 107
Ibidem. Livro XIV, 11.
40
atenção ao que o Omnipotente previu que havia de fazer.108
No trecho destacado, podemos notar que Agostinho salienta a relação entre
presciência divina e a liberdade do homem. Do ponto de vista ontológico, Deus criou o
homem reto e dotado de vontade.109
Assim, pela sua natureza, o homem não é escravo
do pecado.110
Como esclarece Guy, há uma hierarquia de causas eficientes que
permitem compreender como a liberdade humana não é suprimida pela presciência
divina, mas, ao contrário, Deus funda a liberdade do homem.111
Vale lembrar que, na trajetória espiritual e intelectual do hiponense, uma das
questões cruciais é, sem dúvida: “Qual é a origem do mal?”.112
Segundo o pensamento
do Santo, a causa do pecado está nas perturbações da alma. Nesse sentido, a soberba
está na origem de todo pecado porque a alma se compraz em si própria e se afasta do
imutável Bem a quem devia agradar mais do que a si mesma.113
Pela falsa grandeza, a
vontade do homem se afastou do bem superior e imutável. Tal ato contrário à natureza
revelou a cisão da vontade.
Na perspectiva agostiniana, o conceito de vontade revela um “querer”, que é
uma faculdade interior da alma. Na vontade cindida emerge a divisão interna do
homem, emerge a ambivalência moral que Agostinho reconhece no ser humano.114
Com o pecado original, o homem apresenta um conflito interior que manifesta
uma cisão da vontade. O homem decaiu porque agiu de acordo com a sua vontade e não
submeteu suas ações à vontade de Deus. A esse respeito, Agostinho diz:
O que no preceito se recomendou foi a obediência — virtude que é
como que a mãe e a guardiã de todas as virtudes na criatura racional.
A criatura racional foi criada de tal feição que lhe é útil estar sujeita à
obediência e é-lhe prejudicial fazer a sua própria vontade e não a
d’Aquele por quem foi criada.115
108
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 11. 109
Cf. Ibidem. Livro XIV, 11. 110
Cf. Ibidem. Livro XIV, 11. Pode-se estabelecer, a partir do pensamento de Agostinho, uma distinção
entre a natureza humana e a condição humana que se ancora na perda da unidade da vontade no ato de
desobediência de Adão. 111
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit.,
p.46 112
Esta questão está também desenvolvida em AGOSTINHO, Aurelius. A verdadeira religião. Tradução
Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1987. Livro II, 11, 21 e 22. 113
A esse respeito, vale lembrar a contundente afirmação de Agostinho em Confissões II, 2, 2, que
ressalta a relação entre a soberba e a submissão do homem à ordem mortal. O hiponense diz: “Ensurdeci
com o ruído da cadeia da minha mortalidade, em castigo da soberba de minha alma”. 114
Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.
Agostinho. Op. cit., p. 95. 115
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 12.
41
Conforme o texto citado, o autor coloca claramente que o pecado original foi
fruto da desobediência do homem, criatura racional, que não seguiu a vontade de Deus.
No comportamento de Adão, a vontade não se submeteu ao amor ordenado. Pelo
contrário, ao comer o alimento proibido, a vontade de Adão o levou à transgressão. O
primeiro pecado é um pecado de desobediência: tal pecado revela que a criatura fez a
sua vontade e não a vontade do Criador por causa da soberba.
Ademais, Agostinho de Hipona indaga: “Mas o que é a soberba senão o desejo
de uma falsa grandeza?”.116
Reafirma que o mal corresponde a um afastamento
ontológico do homem em relação a Deus.117
Após o pecado original, o afastamento
moral, em última instância, nos remete para o problema do afastamento ontológico.
Lembremos as palavras do Santo:
O homem não decaiu ao ponto de se tornar mesmo nada mas,
inclinando-se para si próprio, tornou-se menos do que era quando
estava unido ao que é plenamente. Abandonar a Deus para ficar em si
próprio, isto é, para em si próprio se comprazer, ainda não é o nada
mas é já aproximar-se do nada.118
Neste trecho selecionado, Agostinho chama a atenção para o significado
ontológico do pecado original. O pecado original significa perda de ser, perda de
harmonia em relação à ordem. Uma vez chamada à existência, a vida humana não pode
voltar ao nada: o que existe, mesmo que corrompido, é um bem e relaciona-se com o
Criador.119
Do ponto de vista ontológico, o pecado afasta o homem de Deus. No entanto,
para se libertar do pecado e restaurar a plenitude do ser, Agostinho ressalta, no Livro
XIV de A Cidade de Deus, a importância da graça: “De livre vontade, morreu no seu
espírito — contra a vontade morreu no seu corpo. Desertou da vida eterna e foi
condenado à morte eterna — a não ser que seja libertado pela graça”.120
A partir dessas
116
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 13. 117
Agostinho rejeita a concepção do mal como substância. Na trajetória intelectual de Agostinho, o
afastamento do maniqueísmo se consolida com o contato com o neoplatonismo. De acordo com o
maniqueísmo, uma seita cristã, existe um princípio cósmico de trevas, assim como um princípio da luz.
Assim, o problema do mal era consequência da guerra entre o Reino da Luz e o Reino das Trevas.
Segundo esta doutrina, a força cósmica do mal é igual em poder à força cósmica do bem. Cf.
MATTHEWS, Gareth B. Santo Agostinho: a vida e as ideias do filósofo adiante do seu tempo. Op. cit. 118
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 13. 119
Cf. Ibidem. Livro XIV, 13. 120
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 13.
42
palavras, o hiponense indica que o homem, de dimensão natural, necessita da graça,
dom sobrenatural, para poder gozar da verdadeira e perfeita liberdade.
Segundo o filósofo, os conflitos e embates internos vivenciados pelo homem se
manifestam em pecados pessoais que resultam da cisão da vontade e, portanto, se
alicerçam numa inclinação da vontade para o mal. O desejo geralmente chamado de
libido, que é manifestação da concupiscência, remete à busca de prazeres precedidos de
uma apetência sentida na carne. Quanto à nomeação de tais desejos (libidines), o autor
de A Cidade de Deus afirma:
Há um desejo de vingança a que se chama ira, um desejo de ter
dinheiro que se chama avareza, um desejo de vencer de qualquer
maneira que se chama obstinação, um desejo de glória a que se chama
jactância. São muitos os desejos (libidines), alguns deles têm nome
próprio, outros não.121
A partir do texto citado, vemos que o Santo afirma que os desejos — tais como o
desejo de vingança, de ter dinheiro e de glória — criam hábitos que, por sua vez, se não
forem combatidos, acabam por gerar vícios. Em outras palavras, os hábitos, na medida
em que são repetidos, geram vícios que criam raízes no interior no homem, perturbam a
alma, e subordinam sua vontade e suas ações ao pecado.122
Nesse sentido, na
perspectiva agostiniana, é importante a distinção entre o livre-arbítrio — capacidade de
escolher — e a liberdade — capacidade de escolher bem.123
O Santo adverte que o
homem não deve sujeitar o seu livre-arbítrio a uma inclinação da vontade que possa
suprimir a sua liberdade.124
Na sequência de sua argumentação, no final do Livro XIV, Agostinho sintetiza
uma questão central: para além da oposição entre vício e virtude, a história humana
revela uma oposição entre formas de amor que se expressam em modos opostos de
vida.125
O Bispo de Hipona afirma:
121
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 15. 122
Cf. GRACIOSO, Joel. Interioridade e filosofia do espírito nas Confissões de Santo Agostinho. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2010, p. 71. 123
Cf. Arendt ressalta que Agostinho mudou radicalmente os termos do problema sobre a liberdade na
medida em que fez da liberdade (livre-arbítrio) a essência da vontade. (ARENDT, Hannah. Love and
Saint Augustine. Chicago; Londres: University of Chicago, 1996). 124
Ver também AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro V, 10. 125
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit.,
p.88.
43
Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de
Deus — a terrestre; o amor de Deus até o desprezo de si — a celeste.
Aquela glorifica-se em si própria — esta no Senhor; aquela solicita
dos homens a glória — a maior glória desta consiste em ter Deus
como testemunha de sua consciência; aquela na sua glória levanta a
cabeça — esta diz ao seu Deus: Tu és a minha glória, tu levantas a
minha cabeça; aquela nos seus príncipes ou nações que subjuga, e
dominada pela paixão de dominar — nesta servem mutuamente na
caridade: os chefes dirigindo, os súditos obedecendo; aquela ama a
sua própria força nos seus potentados — esta diz ao seu Deus: Amar-
te-ei, Senhor, minha fortaleza; por isso, naquela os sábios vivem como
ao homem apraz ao procurarem os bens do corpo, ou da alma, ou dos
dois: e os que puderam conhecer a Deus não o glorificaram como
Deus, nem lhe prestaram graças, mas perderam-se nos seus vãos
pensamentos e obscureceram o seu coração insensato. Gabaram-se
de serem sábios (isto é, exaltando-se na sua sabedoria sob o império
do orgulho) tornaram-se loucos.126
Neste trecho de A Cidade de Deus, podemos perceber que o hiponense sublinha
a natureza do amor enquanto aspecto central da demarcação dos caminhos opostos que
movem as duas cidades. Na perspectiva agostiniana, o amor é compreendido como o
motor íntimo da vontade humana.127
Assim, a oposição entre as duas cidades remete a
uma reflexão sobre os conflitos que se manifestam no interior de cada ser humano: de
um lado, o homem é chamado por Deus a viver conforme a lei divina, a verdadeira
justiça; por outro, a vontade é dominada pelo amor de si mesmo.
Ademais, a natureza do amor elucida o tipo de sentimento comum que une os
homens de uma determinada sociedade. Com efeito, a vida social supõe a presença de
um sentimento que oriente os homens para um desejo comum. Para Agostinho, o amor é
o sentimento que cumpre essa tarefa. Assim, os membros de cada uma das duas cidades
se caracterizam pelo amor que orienta a sua vontade: o amor na Cidade Terrena é o
amor que busca os bens temporais; o amor na Cidade Celeste é o amor virtuoso, o amor
que ama o que se deve amar. Como resultado, na Cidade Celeste, a vida dos homens se
aproxima da verdadeira felicidade, que só pode ser atingida em Deus porque a
verdadeira vida “é feliz quando eterna”.128
126
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 28. 127
Cf. ZANONI RAMOS, Angelo Aparecido. O conceito de justiça na cidade de Deus de Santo
Agostinho. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1998, p. 8. 128
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 25.
44
2.5 A retidão de vida na sociedade justa
Na perspectiva do filósofo, há uma ordem no universo e é essa ordem divina que
dá sentido à história humana.129
Em outras palavras, o sentido da ordem é Deus, na
medida em que a plenitude do ser e a felicidade humana estão em função do Bem
Supremo. De acordo com Curbelié, é a justiça divina que confere ao homem a plenitude
do ser, a verdadeira vida.130
Do ponto de vista ontológico, o homem necessita chegar ao princípio da
Verdade: esta é uma questão da ordem do necessário porque a alma humana é
naturalmente unida às razões divinas.131
Assim, após o pecado original, a razão reta
(vera ratio) deve ser religada nas razões eternas de forma a transformar seu “olhar” em
relação ao próximo e aos bens terrenos conforme a justiça divina que dita como tudo
deve ser.
No pensamento de Agostinho em A Cidade de Deus, há uma ordem ontológica
que é o fundamento da ordem moral. Enquanto a ordem ontológica aplica-se a todas as
criaturas, a ordem moral é específica do homem, uma vez que só ele pode respeitar ou
transgredir a lei eterna. Conforme o hiponense, o afastamento moral do homem em
relação a Deus, por causa do pecado, diz respeito a uma perda de ser.
Com efeito, na reflexão do Santo, a ignorância da alma é identificada com a
perversão moral e isso implica o estabelecimento de uma relação entre conhecimento e
moral. A esse respeito, Oliveira e Silva esclarece que o filósofo apresenta um modelo
judicativo da razão: o ato cognitivo envolve juízos de valor e é ato moral.132
Na vida temporal, os homens de vontade reta estão misturados com os homens
de vontade perversa. Com efeito, apesar das diferenças de raças e línguas, o Bispo de
Hipona distingue essas duas categorias de homens. Nesse sentido, como afirma Lima
Vaz, submetido ao sentido da história providencial, o homem não deixa de ser um ator
na história.133
Considerando os pressupostos da reflexão do Santo, podemos afirmar que a
sociedade justa é aquela na qual a vida do homem de fé, auxiliado pela graça, tem uma
relação “correta” com Deus. A esse respeito, como salienta Curbelié, no pensamento
129
Sobre movimento e tempo em A Cidade de Deus, ver Livros XII, 21, e XI, 6. 130
Cf. CURBELIÉ, Philippe. La justice dans la Cité de Dieu. Op. cit., p. 149 131
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. O livre-arbítrio. Op. cit. Livro III. 132
Cf. OLIVEIRA E SILVA, Paula. Ordem e Mediação: a ontologia relacional de Agostinho de Hipona
Op. cit. 133
LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. Op. cit.
45
agostiniano, a compreensão da justiça divina requer a concepção integral de homem,
enquanto união substancial de corpo e alma.134
A lei eterna, princípio que embasa a
justiça, é o fundamento da retidão da vida do homem que se situa de forma concreta na
história.
A partir do exposto, discordamos das implicações da interpretação de Guy,
segundo a qual as duas cidades podem ser compreendidas no sentido “espiritual” e
como duas categorias a priori.135
Em outras palavras, as duas cidades, conforme Guy,
não se situam necessariamente na existência humana concreta, quer individual, quer
social.136
Todavia, nossa leitura se aproxima da clássica interpretação de R. Markus.
Assim, podemos ressaltar que, para além da oposição, é no espaço secular de
coexistência entre a Cidade Terrena e a Cidade Celeste que se situa a vida humana
concreta no tempo.137
Em outras palavras, a bifurcação frisada por Agostinho não exclui
a coexistência das duas cidades.138
A esse respeito, lembremos as palavras do filósofo:
Na verdade, uma parte da cidade terrestre tornou-se a imagem da
cidade celeste, sem ser sinal de si própria mas da outra — e por isso é
que ela é escrava. Pois não foi ela razão de sua fundação mas sim de
significar a outra — embora também a mesma cidade que prefigura
tenha sido prefigurada por uma imagem anterior. [...] Encontramos,
portanto, duas partes na cidade terrestre, uma parte mostra-nos o seu
serviço de escrava para significar com a sua presença a cidade
celeste.139
Podemos observar que, neste trecho destacado, o Bispo de Hipona esclarece que
a Cidade Celeste faz uso dos bens terrenos. Seus membros, enquanto peregrinos, vivem
retamente e estão conscientes do caráter efêmero e mutável desses bens ou, ainda,
sabem diferenciar a ordem ontológica dos seres.
Assim, é na vida temporal que as duas cidades — a Celeste e a Terrestre —
134
Cf. CURBELIÉ, Philippe. La justice dans la Cité de Dieu. Op. cit., p. 122. 135
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.
81. 136
Cf. Ibidem, p. 91. A partir desta concepção, Guy refuta a possibilidade de A Cidade de Deus ser um
tratado de política cristã. 137
Cf. MARKUS, R. Saeculum: History and Society in the Theology of St. Augustine. Op. cit. Neste
livro, o objetivo de Markus é estudar os aspectos do pensamento de Agostinho que contribuem para
pensar o sentido da sociedade humana e, particularmente, as suas reflexões sobre história, sociedade e a
Igreja. Na sua análise, Markus apresenta Agostinho como um pensador que rejeitou a “sacralização” da
ordem social do seu tempo. 138
Cf. ZANONI RAMOS, Angelo Aparecido. O conceito de justiça na cidade de Deus de Santo
Agostinho. Op. cit., p. 38. 139
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XV, 2.
46
estão inextricavelmente misturadas, como o trigo e a cizânia da parábola bíblica, que
podem crescer juntos e têm de aguardar a época da colheita para serem separados. Com
efeito, a linha divisória entre as duas cidades é invisível na vida temporal.140
A esse
respeito, podemos lembrar as palavras de Agostinho quando afirma, “De facto, estas
duas cidades estão mutuamente entrelaçadas e mescladas uma na outra neste século, até
que no último juízo serão separadas”.141
Somente no juízo final Deus separará os justos
dos injustos. Dessa maneira, todas as sociedades humanas contêm ambas as cidades e a
Cidade Celeste, enquanto peregrina na vida temporal, faz uso dos bens da Cidade
Terrena.
Como vimos, a realidade humana decaída, ferida pelo pecado, evidencia que o
homem, pelo amor a si mesmo, se afasta de Deus e se esquece da presença interior de
Deus nele. Na perspectiva agostiniana, tal afastamento tem implicações quanto às
condições de sociabilidade. Para aprofundar a análise do modo de vida na sociedade
justa, se faz necessário examinar o lugar da verdadeira virtude da justiça na
peregrinação do homem.
140
Cf. CHAUQUI, Tomás A. La Ciudad de Dios de Agustín de Hipona: selección de textos políticos.
Estudios Públicos, n. 99, p. 273-390, inverno 2005. Disponível em: <http://www.cepchile.cl/
dms/archivo_3650_1838/r99_chuaqui_laciudad.pdf>. Acesso em: 7 ago. 2014. 141
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro 1, 35.
47
3 JUSTIÇA E VIRTUDE
No Livro XIX de A Cidade de Deus, Santo Agostinho afirma que o homem é um
ser de natureza social e que os homens, ao agir, mostram o que são e revelam suas
identidades singulares.142
Dessa forma, as relações interpessoais assumem destaque na
sua reflexão filosófica, que coloca a questão moral na dimensão social e frisa as
implicações éticas da responsabilidade individual na ordem social justa.
De acordo com o autor de A Cidade de Deus, cada homem pertence a Adão, isto
é, à raça humana pela geração, mas não pela imitação.143
A imitação de Cristo envolve
uma escolha: o caminho da restauração do ser. Os homens na história que imitam a
Cristo, os homens justos que vivem da fé, têm esperança na vida eterna, que é a
verdadeira vida feliz.144
Nesse sentido, para o filósofo, o sábio é o homem cujo
conhecimento em virtude o leva a praticar as verdadeiras virtudes: é o homem justo.
Assim, o sábio não é aquele que acumula saberes, mas é aquele que sabe amar
ordenadamente e agir com retidão.
Para o Bispo de Hipona, somente na Cidade de Deus ou Cidade Celeste, impera
a ordem social justa. É oportuno lembrar que, nos Livros XV a VIII de A Cidade de
Deus, o autor reflete sobre o desenvolvimento da Cidade Celeste — das origens até a
encarnação de Cristo. No Livro XV, 22, o filósofo afirma, de forma lapidar, que, na
Cidade de Deus, a verdadeira virtude é a ordem do amor:
Mas o Criador, se é verdadeiramente amado, isto é se é Ele próprio
amado e nenhuma outra coisa por Ele que não seja Ele — não pode
ser mal amado. Porque o próprio amor que nos faz amar bem o que
deve ser amado, deve ser amado também ordenadamente para que
esteja em nós a virtude pela qual se vive bem. Por isso que é a
verdadeira virtude: ordo amoris — “a ordem do amor”. É por isso que
a esposa de Cristo, a Cidade de Deus, canta no santo Cântico dos
Cânticos: Ordenai em mim a caridade.145
A partir do texto citado, Agostinho identifica a relação entre a verdadeira virtude
da ordem do amor e a Verdade. Ao viver conforme a vontade do criador, o homem se
relaciona com os bens inferiores com justiça, “dando a cada um o que é seu”. Assim, o
142
Segundo Finley, Aristóteles já colocara a questão da natureza social do ser humano. A esse respeito,
ver FINLEY, Moses I. A política no mundo antigo. Op. cit. 143
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XV, 1. 144
Em A Cidade de Deus, Livro XXI, Agostinho trata da segunda morte, da eterna punição e, no Livro
XXII, trata da eterna felicidade na Cidade Celeste. 145
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XV, 22.
48
hiponense reafirma que não há felicidade para o homem fora da virtude da ordem do
amor, que deve presidir não só o uso dos bens terrenos mas também a relação entre os
homens. Ademais, ele frisa que, na vida terrena, a vivência da caridade é o sinal
distintivo dos verdadeiros filhos de Deus.
Na perspectiva agostiniana, o homem só ama ordenadamente se julgar e apreciar
com justiça todos os seres em geral ou, ainda, se ele submeter os bens exteriores ao
corpo e este, por sua vez, à alma. Assim, no entender do Santo, a ordem do amor é a
verdadeira justiça. Na própria alma, o homem deve subordinar os sentidos à razão
iluminada pela fé e, auxiliado pela graça, deve submeter sua alma a Deus. Considerando
estes pressupostos do pensamento agostiniano, pode-se afirmar que o homem justo que
vive da fé se subordina à vontade divina. Nesse sentido, a ordem interior, fruto da
conversão da vontade, é pressuposto da ordem social, fundada na felicidade, justiça e
paz.
Cabe salientar que as reflexões do Santo, no Livro XIX de A Cidade de Deus,
aprofundam a análise da relação entre a Cidade de Deus e a Cidade Terrena na
história.146
Nesse sentido, o referido autor propõe uma reflexão sobre o homem na vida
social que expressa a originalidade da consciência histórica cristã em face do mundo
antigo.147
Nesse contexto filosófico, a justiça, enquanto verdadeira virtude, é a pedra
angular da Cidade de Deus porque seu fundador é Cristo. O filósofo frisa que os
homens que se subordinam à vontade de Deus e praticam as verdadeiras virtudes
constituem os membros da Cidade Celeste.
No âmbito da história da filosofia, na medida em que Agostinho retoma que o
problema básico do homem é o de encontrar a felicidade, o seu pensamento pode ser
considerado como partícipe da tradição filosófica antiga pela sua referência ética ao
contentamento (eudaimonia). No entanto, afasta-se desta tradição por redefinir a relação
entre o Sumo Bem e as virtudes. No movimento de “religação” ao Sumo Bem, o homem
dotado de livre-arbítrio, revela o movimento de restauração do seu ser em ações que
manifestam o conhecimento em virtude. Assim, a importância das verdadeiras virtudes
é preparar o homem para seu encontro com Deus. Todavia, para ser virtuoso, o homem
precisa do auxílio divino.
146
Arendt chama a atenção para a importância do olhar de Agostinho sobre a condição humana e, na sua
interpretação, destaca que ele é o primeiro filósofo a considerar o homem como ponto de partida de uma
reflexão sobre o mundo. A esse respeito, ver ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. X. 147
Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. Op. cit., p. 189.
49
3.1 O Sumo Bem e a verdadeira virtude da justiça
As reflexões de Agostinho estão em continuidade com a ética antiga e com a
filosofia helenística. Com efeito, o Santo se move no quadro da chamada “ética da
felicidade” antiga, para a qual a pergunta acerca do Sumo Bem é, em última análise, a
pergunta acerca do desejo de felicidade do homem.148
Apesar das tradições filosóficas
das quais herdou influências, no pensamento agostiniano está contida uma mudança,
que se fundamenta na crítica aguda aos filósofos que acreditavam ser possível a vida
feliz na vida terrena.
No Livro XIX, 1, de A Cidade de Deus, o autor revê as opiniões dos filósofos
que tinham, até então, pretendido em vão encontrar a felicidade na vida terrena. O seu
objetivo é refletir sobre qual é a verdadeira felicidade e qual felicidade se pode esperar
nesta vida. No início do Livro XIX, o Santo alerta que seu método filosófico se
fundamenta na fé e na razão.149
Com efeito, para o Bispo de Hipona, toda verdadeira
filosofia é construída dentro da fé que antecede à razão.150
Entende que a fé, auxiliada
pela razão, incita a especulação filosófica de forma a alcançar o conhecimento do objeto
da fé.151
A filosofia se completa com o estudo da Revelação de forma a alcançar o
conhecimento da Verdade. Desse modo, a filosofia e a teologia, embora distintas em
seus métodos, se completam mutuamente, constituindo dois guias que conduzem a
Deus.152
Na refutação das seitas filosóficas pagãs, Santo Agostinho frisa a sua crítica à
natureza do Sumo Bem. A propósito da questão filosófica dos bens e dos males
supremos, toma como ponto de partida a exposição de Varrão, que apontou que se
podem encontrar 288 seitas filosóficas.153
Tais seitas compartilhavam a premissa de que
o homem pode alcançar o Sumo Bem e permanecer na sua posse na vida terrena desde
que definidos os critérios adequados. Dentre as diferenças que embasam a classificação
e a combinação das 288 seitas filosóficas teoricamente possíveis acerca dos bens e dos
males supremos, elaborada por Varrão, pode-se mencionar: i) os princípios que o
148
Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Op. cit., p. 19-23. 149
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 1. 150
A reflexão sobre a relação entre a fé e a razão é desenvolvida por Agostinho no diálogo Solilóquios,
Livro I. (AGOSTINHO, Aurelius. Solilóquios. Tradução, introdução e notas Adaury Fiorott. São Paulo:
Paulus, 1998). 151
Cf. BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1982, p.
424. 152
Cf. GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Op. cit., p. 545. 153
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 1.
50
homem busca naturalmente; ii) a relação entre as virtudes e esses princípios; iii) a
atitude do homem na vida social; iv) a natureza certa ou incerta das opiniões; v) os
costumes; vi) os gêneros de vida (contemplativa, ativa e mista).
Na multiplicidade característica das seitas filosóficas pagãs, o Santo ressalta o
caráter relativo do Sumo Bem. No contexto de tal multiplicidade, a concepção filosófica
dos epicuristas, por exemplo, realçava a existência de um critério de certeza para guiar
as ações do ser humano que se apoia em uma percepção sensorial. Desse modo, na
perspectiva epicurista, entende-se que a natureza ensina que o Sumo Bem é o prazer e
que o mal supremo é a dor. Sendo que ausência de dor significa a forma suprema de
prazer, os epicuristas suportavam o destino com serenidade de forma a obter o prazer da
quietude e, assim, alcançar a felicidade. Neste contexto filosófico, as virtudes são um
meio para atingir o prazer da quietude, isto é, o Sumo Bem.154
Desse modo, pode-se
falar de uma orientação moral baseada nas leis naturais que fundamenta a relação entre
o Sumo Bem e as virtudes, segundo os epicuristas.
Numa outra perspectiva, os estoicos defendiam que a virtude é o Sumo Bem.
Nesta visão cosmológica, o bem moral contribui para a felicidade e o logos (razão) é o
princípio teleológico que impele o ser humano a realizar sua própria natureza. Assim, a
vida virtuosa é considerada a vida segundo o logos e exige uma atitude interna de
conversão para possuir a ordenação correta da alma e fazer o bem. Nesse sentido, para
os filósofos estoicos, a felicidade do ser humano reside num estado de perfeição da
alma, isto é, num estado de alma ordenada onde a razão domina as paixões. Enquanto
Platão e Aristóteles souberam reconhecer que o homem é essencialmente um ser social,
os estoicos postularam como ideal de vida virtuosa a figura do sábio que vive fora do
mundo, em conformidade com a lei da natureza universal ou da razão.
Ainda no contexto das discussões sobre a vida feliz e o Sumo Bem, o hiponense
também dirigiu suas críticas ao ceticismo da Nova Academia por negar a existência de
um critério de verdade.155
Para os céticos, o sábio pratica a epoché, isto é, se abstém do
juízo apodítico afirmativo, ou seja, um juízo demonstrativo que não admite contestação
de forma a evitar o erro. Assim, o sábio não reivindica conhecimento, mas se detém em
meras opiniões que fundamentam a busca da felicidade na vida temporal.156
Nesse
154
Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Op. cit., p. 25-26. 155
Cf. MARROU, Henri-Irénée. Saint Augustin et l’augustinisme. Paris: Seuil, Colection “Maitres
spirituels”, 1955. 156
Chauqui lembra que, após Agostinho viver nove anos interessado em refletir sobre as doutrinas de
Manes (216-277), o filósofo considerou por breve período adotar uma posição cética. Os céticos
51
sentido, a crítica do Santo aos céticos reafirma uma questão central no seu pensamento
em A Cidade de Deus: há uma Verdade que é o Deus único que governa o mundo.
Ao sintetizar a reflexão de Varrão acerca do alcance filosófico das 288 seitas
referidas, no Livro XIX, 3, de A Cidade de Deus, 3, Agostinho ressalta três relações que
podem ser estabelecidas, no contexto da reflexão pagã sobre a felicidade, entre as
virtudes e os bens primários da natureza, quais sejam: os bens primários da natureza são
buscados em vista da virtude; busca-se a virtude em vista dos bens primários da
natureza; e busca-se a virtude e os bens primários da natureza por si próprios na vida
terrena enquanto fundamento da felicidade.157
O hiponense descarta os bens terrenos e os bens da natureza como fundamento
da felicidade. Para o Santo, os bens terrenos mutáveis, de caráter efêmero, corruptíveis,
não podem ser considerados enquanto fundamento da vida feliz. A esse respeito,
também questiona os bens da natureza, tais como os sentidos, dado que a percepção dos
sentidos pode perder qualidade e a razão pode ficar entorpecida.158
Com efeito, ele
critica aqueles que pretendem encontrar nesta vida o Sumo Bem e conseguir por si
mesmos a felicidade. Nas suas palavras:
[...] como somos salvos pela esperança, assim também pela esperança
somos bem-aventurados; e tal como a beatitude, assim também a
salvação não a possuímos como presente, mas aguardamo-la como
futura, e isto graças à paciência; porque estamos no meio de males que
v suportar com paciência até alcançarmos aqueles bens onde tudo
haverá de nos deleitarmos de uma forma inefável e onde já nada
haverá que sejamos obrigados a suportar. Uma tal salvação, que
existirá no século futuro, esta é que será a beatitude final. Esta
beatitude, nela não querem crer esses filósofos porque a não vêem;
procuram fabricar cá uma, absolutamente falsa, com uma virtude tanto
mas mentirosa quanto mais orgulhosa.159
Em verdade, no texto selecionado, o referido autor nos dá uma ideia da sua
intenção fundamental, qual seja, a de colocar a questão da vida feliz numa nova
perspectiva: a vida feliz é a vida eterna. Assim, o Santo não só questiona a plenitude da
felicidade na vida temporal, mas também o poder do homem de curar por si só as
recomendavam a “suspensão do juízo” diante da impossibilidade de alcançar a certeza. (CHAUQUI,
Tomás A. La Ciudad de Dios de Agustín de Hipona: selección de textos políticos .Op. cit.). 157
Destas relações, Agostinho nos lembra que Varrão escolhe a terceira, que se identifica com a escola
moral da Antiga Academia, cujo autor é Antíoco. Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit.
Livro XIX, 3 158
A relação entre os bens terrenos, os bens da natureza e a felicidade é amplamente desenvolvida por
Agostinho em A Cidade de Deus, Op. cit. Livros I a IV e Livro V, 10. 159
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 4.
52
doenças da alma. Assim, emerge uma crítica do conceito de ética filosófica antiga como
“arte de viver”.160
Nesse sentido, Brachtendorf ressalta que a ética antiga desenvolve
prioritariamente uma técnica da boa vida, um ars vivendi, que conduz o homem a
apreender o bem supremo e a orientar a sua vida por ele para a obtenção da
felicidade.161
O diagnóstico subjacente à proposta da filosofia antiga enquanto terapia
moral é que há no ser humano doenças da alma que impedem uma vida feliz.
Em outras palavras, embora Agostinho também se mostre preocupado com as
doenças da alma, critica todos aqueles filósofos — inclusive Cícero — que acreditavam
que o homem tem o poder para curar a sua alma. Em verdade, o Santo introduz uma
nova relação entre Sumo Bem e as virtudes do homem. Ademais, ele questiona a
filosofia enquanto uma terapia moral para alcançar o Sumo Bem na vida terrena. Nesse
sentido, apesar da influência do ideal ético da vida feliz, o pensamento do referido autor
se diferencia das tradições filosóficas herdadas porque, na sua perspectiva da vida feliz,
a cura das doenças da alma pertence ao terreno da religião e Cristo é o mediador na
busca da felicidade que é a vida eterna. Nesse sentido, na perspectiva agostiniana, o
fundamento de toda a ética é o desejo da vida feliz que não é senão a vida eterna.162
Contrariamente aos filósofos pagãos que dizem possuir o bem supremo na vida
terrena, o Santo frisa o que pensam os cristãos sobre o Sumo Bem que é Deus. Nesse
sentido, do ponto de vista da estrutura do Livro XIX de A Cidade de Deus, o capítulo 4
representa uma mudança na argumentação. Nesse capítulo, é oportuno destacar que o
filósofo afirma uma concepção de homem, enquanto união substancial de corpo e alma,
que tem impactos decisivos sobre a concepção cristã de Sumo Bem.
Como observa Guy, em oposição à multiplicidade da teologia pagã, Agostinho
apresenta a unidade das escrituras cristãs.163
Para o Bispo de Hipona, o homem possui
um desejo natural de felicidade que somente pode ser apaziguado no próprio Deus, o
Sumo Bem que é o Absoluto. Nas suas palavras: “A vida feliz consiste em nos
alegrarmos em Vós, de Vós e por Vós”.164
Assim, tal desejo de felicidade leva o homem
a voltar-se para Deus.165
160
Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Op. cit., p. 23. 161
Na tradição helenística se dividia a filosofia em ética, teoria do conhecimento (lógica) e filosofia
natural. Sobre este ponto, consultar BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho Op. cit. 162
Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.
Agostinho. Op. cit. 163
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.
129 164
AGOSTINHO, Aurelius. Confissões. Op. cit. Livro X, 22. 165
Outras referências à busca da felicidade e do voltar-se para Deus podem ser encontradas,
53
No Livro XIX, 4, de A Cidade de Deus, a reflexão agostiniana sobre a felicidade
realça a justiça enquanto virtude no sentido ético. O filósofo frisa que as virtudes são “o
tesouro mais precioso e útil do homem” e, no seu entender, não fazem parte dos
princípios da natureza. A respeito das virtudes, o Santo questiona:
A própria virtude, que não se encontra entre os bens primários da
natureza pois é-lhes acrescentada posteriormente por meio da
educação, embora reivindique para si o lugar mais elevado dos bens
humanos, que faz ela cá, senão uma perpétua guerra aos vícios, não
exteriores mas interiores, não alheios mas muito nossos e pessoais —
principalmente aquela virtude que se chama em grego sophrosyne, e
em latim temperantia (temperança), pela qual são refreadas as paixões
carnais para que não levem o espírito a consentir alguma torpeza?166
Nesse momento da argumentação, podemos observar que no trecho citado,
Agostinho insere, na perspectiva da fé cristã, o papel da prática das virtudes no combate
aos vícios interiores. Quanto à temperança, o Santo afirma a luta moral do homem na
vida terrena para obter a ordem interior. Adicionalmente, ele esclarece que a prudência
consiste “[...] em discernir o bem do mal [...]. De facto, ela própria nos ensina que o mal
está em consentirmos e o bem em não consentirmos no desejo de pecar.” Quanto à
fortaleza, o filósofo nos instrui: “[...] é ela o mais evidente testemunho dos males
humanos que é obrigada a suportar com paciência”. Por fim, a função da virtude da
justiça é “dar a cada um o que lhe é devido”.167
De forma a ressaltar o impacto da fé cristã no conceito de virtude, o hiponense
faz uma distinção entre a concepção de “virtude” adotada pelos romanos na sua vida
civil e a sua concepção de verdadeiras virtudes. Esclarece que as virtudes qualificadas
de verdadeiras não são praticadas pelo desejo de glória humana, mas por amor ao Sumo
Bem.168
Conforme comenta Gilson, a obtenção da virtude é de suma importância, pois
“virtude é querer o que devemos querer, ou seja, amar o que devemos amar”.169
Na
respectivamente, em A Cidade de Deus, Livro XII, 1, e Livro XIV, 11. 165
Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.
Agostinho. Op. cit. 165
Ver a esse respeito, AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 25. A relação
entre o uso dos bens temporais e a vontade humana é explorada por Agostinho em A Cidade de Deus,
Livro XIX, 1-4. 166
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 4. 167
Ibidem. Livro XIX, 4. 168
A crítica à relação entre glória humana, virtudes e justiça é trabalhada também está presente em A
Cidade de Deus, Livro IV, 2. 169
Cf. GILSON, Etienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Tradução Cristiane Negreiros Abbud
Ayoub. São Paulo: Discurso; Paulus, 2006, p. 258.
54
perspectiva agostiniana, as verdadeiras virtudes expressam o aperfeiçoamento das
potências da alma pelo auxílio divino. Assim, as verdadeiras virtudes não são uma
conquista humana obtida pela educação, por exemplo. As verdadeiras virtudes são o
resultado da ação de Deus no homem peregrino. A esse respeito, podemos afirmar que,
na perspectiva agostiniana, o conhecimento em virtude, fruto da infusão da graça,
auxilia o homem, no devir histórico, a adequar seu modo de vida à vontade de Deus.
No desenvolvimento da reflexão sobre as virtudes e a vida feliz, Santo
Agostinho esclarece que a verdadeira virtude da justiça — “cuja função consiste em dar
a cada um o que lhe é devido” — permite que se estabeleça uma certa ordem no
homem, segundo a qual ele submete a alma e a carne a Deus. O filósofo cristão
fundamenta a verdadeira justiça no poder transcendente da lei divina, no Absoluto. Por
outro lado, a justiça enquanto verdadeira virtude, na perspectiva agostiniana, se insere
no íntimo embate do ser humano contra as próprias paixões e no contexto da relação
“correta” do homem com Deus. Nesse contexto filosófico, emerge uma concepção de
justiça enquanto virtude que remete à submissão da conduta dos homens à verdadeira
justiça que funda o amor ordenado.
Seguindo a interpretação de Dodaro, podemos ressaltar que Agostinho, em A
Cidade de Deus, apresenta a verdadeira virtude da justiça como condição propriamente
ordenada da alma, que encontra a justa medida das coisas na ordem dos seres criada por
Deus.170
Na cosmovisão de Agostinho, a verdadeira justiça Assim, a verdadeira justiça,
que é Deus imperando na vida terrena, prescreve o reto ordenamento de todas as coisas
e a prática da justiça terrena torna-se uma exigência moral.
Nesse sentido, a verdadeira virtude da justiça é entendida como bonum da vida
terrena que, nos limites das realizações humanas, deve ser perseguida como modelo de
conduta insubstituível para a vida feliz.171
Todavia, na vida terrena, à espera da vida
feliz, a justiça humana será sempre imperfeita.172
170
Segundo Dodaro, a relevância da relação ordenada da alma denota a influência da noção paulina de
dikaiosyne. (DODARO, Robert. Cristo e a sociedade justa no pensamento de Agostinho. Op. cit., p. 17). 171
Cf. TERCEIRO-MUIÑOS, Carlos Rubén. San Agustin: la relación entre “Ius” y “Polis” en el De
Civitate Dei. San Luis, Argentina: Universidad Católica de Cuyo, 23 set. 2004. Disponível em:
<http://www.unicatcuyosl.edu.ar/varios/sanagustin.doc>. Acesso em 7 ago. 2014. 172
Cf. COSTA, Marcos Roberto Nunes. A dimensão metafísica da civitas na doutrina ético-política de
Santo Agostinho. Civitas Avgvstiniana, v.1, n. 2, p. 115-130, 2012.
55
3.2 A ambivalência moral do homem e os juízos humanos
Ao analisar as relações entre os homens na vida social, o hiponense reflete sobre
as imperfeições ou desvios do comportamento humano em relação ao amor ordenado —
que é fundado em Deus. O Santo diz:
[...] por toda a parte não estão as situações humanas cheias destes
desvios? Não se encontram eles, a maior parte das vezes, mesmo nas
mais honestas amizades dos amigos? Não estão, por toda a parte, deles
cheias as situações humanas onde sentimos as injúrias, os ciúmes, as
inimizades e a guerra como males certos e a paz como um bem incerto
porque desconhecemos o coração daqueles com quem queremos
mantê-la, e, se hoje podemos conhecê-los, não saberemos o que serão
amanhã?173
A partir desse trecho, percebemos que Agostinho indica as situações humanas
que exemplificam “desvios” em relação à ordem criada e regida por Deus. No plano da
história, o homem não está seguro nem no próprio lar ou cidade; enquanto as
instituições políticas também não garantem tal segurança.174
Assim, o filósofo alerta que
o homem não está livre das ameaças das calamidades e sofrimentos impostos pelo
próprio gênero humano. Embora a vida social seja altamente desejável, ela é muitas
vezes perturbada por numerosas dificuldades, tais como injúrias, ciúmes, inimizades,
guerra.
De acordo com o referido autor, os erros dos juízos humanos, que resultam em
desvios ou males — as “trevas da vida social” —, expressam o desconhecimento da
Verdade.175
Todavia, no entender do Santo, o homem não vive apenas na ignorância
sobre o Bem Supremo ou numa deliberada indolência para reorientar a vontade e mudar
seu modo de vida. Em verdade, por detrás dos erros dos juízos humanos, há uma
questão ontológica que remete à cisão da vontade ou à “debilidade humana”.176
Na reflexão sobre os traços predominantes da vida social, Agostinho usa a
metáfora da “diversidade de línguas”:
De facto, se dois homens, nenhum dos dois conhece a língua do outro,
caminharem ao encontro do outro mas, por qualquer razão, em vez de
cruzarem têm que ficar no mesmo lugar — é mais fácil que dois
173
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 5. 174
Cf. Ibidem. Livro XIX, 5. 175
Ibidem. Livro XIX, 6. 176
Ibidem. Livro XIX, 6.
56
animais mudos, mesmo de gênero diferente, convivam em sociedade,
do que aqueles dois, apesar de ambos serem homens. Efectivamente,
quando não podem comunicar um ao outro o que sentem apenas por
causa da diversidade de língua, de nada serve para levar os homens ao
convívio social a sua tão grande semelhança de natureza — e tanto é
assim que o homem tem mais prazer em estar com o seu cão do que
com um estrangeiro.177
Nesse trecho selecionado, o autor expressa a ideia de que o homem não
consegue se comunicar com os seus semelhantes sem que prevaleça a iniquidade que
promove a divisão da sociedade dos homens e impede a paz.178
O hiponense entende
que o homem é um animal social, o único dotado da fala por meio da qual pode
comunicar-se e se relacionar com outros homens. No contexto de sua visão
antropológica, o discurso e a ação revelam a distinção do homem enquanto criatura
racional com corpo e alma.
Ademais, na análise sobre a vida social, o Santo introduz a questão da paz como
um bem incerto se não for alicerçada na Verdade. Retomemos a afirmação do autor de A
Cidade de Deus:
Mas essa iniquidade, porque é dos homens, ao homem tem que ser
dolorosa, mesmo que dela nenhuma necessidade de empreender a
guerra nasça. Portanto, estes males tamanhos, tão horrendos, tão
cruéis, todo aquele que com dor neles reflecte tem que confessar que
são uma desgraça; mas todo aquele que julga que os suporta ou neles
pensar sem dor na alma e continua a julgar-se feliz, esse caiu numa
desgraça muito mais profunda, porque perdeu o próprio sentimento
humano.179
Essas palavras do hiponense ressaltam que, em face dos males do gênero
humano, muitos homens julgam que há felicidade na vida terrena e, portanto, perderam
o “próprio sentimento humano”.180
Como resultado, o homem acaba se tornando um
estranho para o próprio homem e a paz fundada na mutabilidade da vida humana será
sempre um bem incerto.181
Na análise do referido autor, a paz é expressão da
manifestação da vontade de Deus entre os homens.
Nesse sentido, o filósofo aponta para a ambivalência moral do homem que se
177
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 7. 178
Cf. Ibidem. Livro XIX, 7. Neste capítulo, Agostinho apresenta a ideia de guerra justa. 179
Ibidem. Livro XIX, 7. 180
Ibidem. Livro XIX, 7. 181
Cf. Ibidem. Livro XIX, 7.
57
manifesta em uma tensão entre individualidade e sociabilidade.182
O Bispo de Hipona
reafirma a natureza do ser humano como eminentemente social e, desse modo, a ação
humana envolve relações interpessoais.183
Todavia, na vida social, Agostinho ressalta os
conflitos da condição humana, marcada pelo pecado original: “Todos dizem viver em
paz com os seus, contanto que todos queiram viver conforme o seu arbítrio”.184
No entanto, o Santo chama a atenção que o homem, apesar da sua ambivalência
moral, deseja a paz: “É, de fato, tão grande o bem da paz que, mesmo nos negócios
terrenos e perecíveis, nada se possa ouvir com mais agrado, nada se pode procurar com
mais anseio, finalmente nada melhor se pode encontrar de melhor”.185
E acrescenta:
“Quem quer que observe um pouco as questões humanas e a nossa comum natureza
reconhecerá comigo que, assim como não há quem não procure a alegria, também não
há quem não queira possuir a paz”.186
Nos trechos acima citados, Agostinho frisa que a paz, assim como a alegria, é a
aspiração última de todos os homens, cuja natureza os impele à vida social. Mesmo a
crueldade dos homens em tempos de guerra e todas as perturbações e preocupações
humanas têm por fim chegar à paz, dado que não há ser que não deseje a paz.
É a partir desse pressuposto que, no Livro XIX, 12, Agostinho afirma: “O
homem é como que impelido pelas leis da sua natureza a entrar numa sociedade com os
homens”. Na perspectiva agostiniana, a gênese da cidade está em estrita relação com um
critério histórico evolutivo impulsionado pela dinâmica social, cujo fundamento é a
natureza humana e sua necessidade de viver em sociedade. No entanto, quando os
homens subvertem a “ordem do amor” e querem construir a paz a partir do egoísmo,
submetendo os outros homens aos interesses próprios (soberba) e ao seu arbítrio, esta
paz dos iníquos nem se pode chamar de paz, “em comparação à paz dos justos”.187
Assim, a tensão entre individualidade e sociabilidade revela a ambivalência
moral que se manifesta nos desejos contraditórios do homem: o homem deseja a
felicidade mas também deseja o poder; o homem ama a paz mas pratica a iniquidade.
Em última análise, tal ambivalência moral expressa a cisão da vontade ou, ainda, a
inadequação da vontade do homem à vontade de Deus.
182
Cf. MARKUS, R. Saeculum: History and Society in the Theology of St. Augustine. Op. cit. 183
Segundo Arendt, os seres humanos aparecem uns aos outros, certamente não como objetos físicos, mas
como qua homens. Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. 129. 184
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 12. 185
Ibidem. Livro XIX, 11 185
Ibidem. Livro XIX, 11. 186
Ibidem. Livro XIX, 12. 187
Ibidem. Livro XIX, 12.
58
Nesse contexto filosófico, a verdadeira paz na vida terrena, mesmo no meio de
perturbações, não escapa da lei divina. Para o Santo, a paz é fundada na ordem:
A paz do corpo é a composição ordenada de suas partes; a paz da alma
irracional é a tranquilidade ordenada de seus apetites; a paz da alma
racional é o consenso ordenado da cognição e da ação; a paz do corpo
e da alma é a vida e a saúde ordenadas do ser animado; a paz do
homem mortal com Deus é a obediência ordenada na fé sob a eterna
lei; a paz dos homens é a concórdia ordenada; a paz da casa é a
concórdia ordenada dos cidadãos no mando e na obediência; a paz da
Cidade Celeste é a comunidade absolutamente ordenada e
absolutamente harmoniosa no gozo de Deus, no gozo mútuo de Deus;
a paz de todas as coisas é a tranquilidade da ordem. A ordem é a
disposição dos seres iguais e desiguais que distribui a cada um os seus
lugares.188
Nesse trecho citado, podemos perceber que o Bispo de Hipona apresenta
algumas definições de paz. A primeira parte do trecho se inicia com a definição de paz
em cada homem, em sua relação consigo próprio e com Deus: a paz do corpo, a da alma
irracional e racional, a do corpo e da alma e, finalmente, a paz do homem com Deus.
Nessa primeira parte, o Santo frisa a paz do homem singular, que mantém uma ordem
no seu próprio interior e na sua relação com Deus. Nesse sentido, sob a lei divina, cada
homem consegue, com o auxílio da graça e por força da ordem do amor, o que merece
por decisão de sua vontade.189
Na segunda parte do trecho selecionado, Agostinho privilegia a paz dos homens
em conjunto, seja na casa (família) ou na cidade. Cabe observar que a sequência da
exposição do filósofo não é aleatória. Ao que parece, ele compreende a manutenção da
paz do homem singular como condição indispensável para a promoção da paz nas
relações interpessoais. Neste particular, subentende-se a classificação progressiva, em
termos da amplitude dessas relações das esferas da casa, da cidade e do mundo. Deus,
Ordenador de todas as naturezas criadas, deu aos homens determinados bens temporais.
O homem mortal que fizer uso correto de tais bens, vivendo na obediência da fé em
concórdia ordenada, receberá bens mais abundantes e melhores, a saber: a própria paz
na vida eterna.190
Dessa forma, o hiponense propõe o tema da responsabilidade moral do homem
na sua peregrinação terrestre para a promoção da paz. Na sua perspectiva, quando a
188
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 13. 189
Cf. Ibidem. Livro XIX, 13. 190
Cf. Ibidem. Livro XIX, 13.
59
alma subordina a sua vontade à vontade de Deus, ela informa e vivifica as verdadeiras
virtudes. Assim, a vontade do homem gera a concórdia ordenada, isto é, a pacífica
convivência entre os homens na vida social.191
3.3 Conversão da vontade, justiça e paz: da ordem interior à ordem social
Após realçar a importância da responsabilidade individual do homem na
promoção da paz na vida social, Santo Agostinho afirma, no Livro XIX, 14, de A
Cidade de Deus, os limites da autonomia da razão e dos sentidos para adequar a vontade
do homem à vontade de Deus, o Sumo Bem. Quanto ao homem, o referido autor afirma:
Mas ele tem necessidade do ensino divino a que obedece para ficar
com certeza — e do auxílio divino para se lhe submeter como homem
livre — não aconteça que pelo próprio desejo de conhecer incorra na
peste de algum erro devido à debilidade do gênero humano. Mas,
porque caminha em peregrinação longe do Senhor enquanto se
mantiver neste corpo mortal, quem o guia é a fé e não a visão — e por
isso ele refere toda a paz do corpo, ou da alma, ou ao mesmo tempo
do corpo e da alma, a essa paz que une o homem mortal a Deus
imortal, para assim ter obediência bem ordenada na fé sob a lei
eterna.192
Esse texto selecionado aponta para uma distinção entre os “olhos” da fé e os
“olhos” do corpo. Na perspectiva agostiniana, a questão do “ensino e do auxílio divinos”
está presente na reflexão sobre os limites e o alcance do conhecimento humano.193 Com
efeito, o filósofo frisa os limites da razão natural para o conhecimento da Verdade e
concebe a sabedoria como fruto da fé e da razão. Assim, pela iluminação divina, a alma
participa do conhecimento da perfeição imutável da Verdade, que é superior ao homem
191
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 13. Vale lembrar que no
Comentário aos Salmos, 85, Agostinho também ressalta a relação entre justiça e paz na promoção da
ordem social. (AGOSTINHO, Aurelius. Comentário aos Salmos. Tradução Monjas Beneditinas. Revisão
Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1997). 192
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 14. 193 A doutrina da iluminação é trabalhada por Agostinho em De Magistro. Segundo o filósofo, a razão
humana é iluminada pela Luz que provém do Mestre Interior, Cristo, que a guiará no processo do
conhecimento da Verdade. É Cristo, que é o Caminho, a Verdade e a Vida, quem ensina interiormente.
Em De Magistro, XI, o hiponense afirma: “No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos,
não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à
propriamente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado ensina verdadeiramente, e
este é Cristo, que habita, como foi dito, no homem interior, isto é: a virtude incomutável de Deus e a
sempiterna Sabedoria, que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada um quanto é permitido
pela sua própria boa ou má vontade”.(AGOSTINHO, Aurelius. De Magistro. Tradução Ângelo Ricci. São
Paulo: Abril Cultural, 1980. Coleção “Os Pensadores”).
60
porque Deus o fez e o sustenta. Segundo o filósofo, o homem compreende a verdade
revelada pelo ensinamento interior da Verdade e tal compreensão requer um movimento
espiritual. A alma só se pode conhecer e constituir um juízo sobre si própria se
iluminada pela verdadeira Luz que lhe conduz para uma transformação judicativa e
valorativa. Afastada das coisas efêmeras e sensíveis, a alma pode considerar, em si
mesma, a unidade de sua essência, e o intelecto iluminado por Cristo pode discernir
quanto à hierarquia, quanto à ordem dos seres. Como resultado, o homem se submete à
vontade do Bem Supremo para alcançar a plenitude da felicidade.
Conforme o Santo, o homem constata em seu íntimo a Verdade — que é o ser
divino absoluto e transcendente que habita nele. No processo de interiorização, ocorre a
experiência de autoconhecimento. Esse processo envolve um movimento de elevação
espiritual em face da materialidade, da mutabilidade e da imperfeição, e da busca da
perfeição espiritual. O autoconhecimento da alma remete a julgamentos morais no
sentido da verdadeira liberdade conforme a lei divina que é o fundamento da justiça.
Deus concede ao homem o livre-arbítrio e há de ser Ele, por intermédio da graça, quem
auxilia o homem para realizar a conversão da vontade.194
Ora, após o pecado original, a criatura não tem poder para restaurar seu ser de
forma a adequar sua vontade à lei divina. Nesse sentido, o querer do homem
fundamentado na razão não é suficiente para a conversão da vontade. No pensamento de
Agostinho, subjaz a distinção entre querer e poder, que é decisiva para a compreensão
do auxílio divino na peregrinação do homem na vida terrena. De fato, a ordem interior
194
O movimento da alma é trabalhado por Agostinho em Sobre a potencialidade da alma. O Santo expõe
os sete graus da grandeza da alma que se manifestam no poder da alma sobre o corpo, nela mesma e
diante de Deus. Os três primeiros graus da grandeza da alma apontam para a alma enquanto princípio de
vida, de sensibilidade e de racionalidade. O primeiro grau é aquele que remete ao princípio de
conservação do corpo; no segundo grau, o hiponense fala da alma enquanto força que move o corpo
fisicamente e pela qual os sentidos são afetados. O terceiro grau envolve faculdades criadoras pelas quais
o homem pode constituir um ethos. Nos graus superiores, o Santo destaca a capacidade da alma de
autoconhecimento e de julgamento moral. Assim, a passagem ao quarto grau de grandeza da alma
envolve a consciência de si e é decisiva para o entendimento das verdadeiras virtudes. A consciência de si
permite o reconhecimento de uma hierarquia, de uma ordem moral por meio da qual pode fazer
julgamentos segundo critérios de amor ordenado. Nesse processo, a alma intui a realidade de uma
transcendência que governa toda a criação e sustenta a sua condição singular. Após ter adquirido
consciência de si enquanto dimensão espiritual, a alma passa a desejar a purificação que envolve
crescimento em virtude e piedade, em justiça e humildade. No quinto grau, a alma busca conservar a
pureza adquirida pela virtude e pela piedade de forma a avançar no caminho para contemplar o Deus-
Verdade. No sexto grau, a alma se empenha em sua própria purificação, preferindo conhecer e desejar
aquilo que é mais nobre. O sexto e sétimo graus remetem, respectivamente, à introdução à vida
contemplativa e à contemplação do Deus-Verdade que é Deus-Amor. Assim, a caminho da Verdade, a
alma procura abster-se do desejo pelas coisas sensíveis e afasta-se da inclinação pelas coisas materiais.
Neste caminho, a alma do homem virtuoso enquanto imago Dei se reconhece a si mesma como análoga
ao modelo perfeito. (AGOSTINHO, Aurelius. Sobre a potencialidade da alma. 2. ed., Tradução Aloysio
Jansen de Faria. Rio de Janeiro: Vozes, 2013).
61
não é fruto apenas da razão.
Nesse sentido, o Bispo de Hipona frisa que a vida histórica do homem, concreta,
real, não é uma fuga para o “mundo interior”. Com efeito, a sua reflexão sobre o papel
da fé e da razão na vida do homem se completa com a questão do amor, que envolve
uma relação transformadora. Assim, no pensamento do Santo, a dimensão intersubjetiva
das relações pessoais e a ética do amor tornam-se temas centrais de sua abordagem
filosófica.195
Na sua reflexão sobre a vida social, o Santo frisa a importância de viver
socialmente à luz do duplo e único mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas e
ao próximo como a si mesmo”.196
No Livro XIX, 14, o filósofo afirma:
Deus, nosso mestre, ensinou-nos dois mandamentos principais: o amor
de Deus e o amor do próximo. Neles encontrou o homem três objetos
para amar — Deus, ele próprio e o próximo. Não se engana ao amar-
se a si próprio aquele que ama a Deus. Por conseguinte, deve ajudar o
seu próximo a amar a Deus, esse próximo a quem, segundo o
mandamento, deve amar como a si próprio (a esposa, os filhos, os
familiares, todos os homens que puder). E também deve desejar que o
próximo o ajude se tiver necessidade. Assim, tanto quanto está na sua
mão, ele estará como todo o homem na paz, que é a concórdia bem
ordenada dos homens. E a ordem nesta paz consiste: primeiro, em a
ninguém prejudicar, e depois em tornar-se útil a quem se puder.197
Neste momento da argumentação de A Cidade de Deus, o autor salienta a função
do amor à Verdade no encontro com o próximo. O amor à Verdade auxilia o homem a
exercer a liberdade e comprometer-se com o amor ao próximo e a promoção da
concórdia na vida social. Ademais, Santo Agostinho diz:
Nesta sua peregrinação, a Cidade Celeste também se serve, portanto,
da paz terrena, protege e deseja a composição das vontades humana
em tudo o que respeita à natureza mortal dos homens — até onde lho
permita a piedade e a religião — refere essa paz terrena à paz celeste,
que, essa sim, é a verdadeira paz que, pelo menos para o ser racional,
deve ser reconhecida e chamada com o nome de paz, ou seja: a
comunidade em perfeita ordem e harmonia goza de Deus e da mútua
companhia de Deus. Quando lá chegar, a vida não será mortal, mas
plena e certamente vital; nem o seu corpo será mais um corpo animal,
mas um corpo espiritual, sem qualquer necessidade e todo submetido
à verdade.198
195
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 13. 196
Mateus, 22. 197
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 14. 198
Ibidem. Livro XIX, 17.
62
A partir do texto destacado, podemos notar que o filósofo frisa as razões para a
defesa da paz na vida terrena como um bem que deve ser promovido na perspectiva da
vida eterna. Assim, o hiponense evidencia a importância da consciência humana em
relação à própria salvação. No entanto, o Santo alerta que a “paz de Babilônia” é frágil,
não permanente, é uma utopia na vida terrena. Com efeito, ele reforça o caráter mutável
dos juízos e das ações humanas e, assim, critica a crença sobre a estabilidade da
dinâmica da vida social na história porque os conflitos e as tensões são inerentes à
condição humana, ferida pelo pecado. Não há panaceia terrena que possa eliminar tais
realidades do gênero humano — tais como a barbárie, crueldade, injustiça, para
mencionar algumas.
De fato, para o autor de A Cidade de Deus, as razões para a promoção da paz
devem ser compreendidas na perspectiva da vida eterna. Nesse sentido, o homem justo
conforma uma sociedade que: “Enquanto peregrina a fé, tem já essa paz e, mercê dessa
fé, vive a justiça, referindo à aquisição desta paz todas as boas ações que ela cumpre
para com Deus e para com o próximo, pois a vida de uma cidade é realmente social”.199
Estas palavras indicam que, na vida terrena, uma sociedade realmente social é fundada
na justiça. Nessa perspectiva, a justiça e a paz, embora limitadas na vida terrena, serão
tanto mais autênticas quanto mais participarem da ordem do amor. Nesse sentido, a
concepção agostiniana de concórdia na vida social ou paz entre os homens é
indissociável da conversão da vontade e da prática da verdadeira justiça na esperança na
vida feliz. O filósofo aponta para a ordem interior como pressuposto da ordem social.
Nesse sentido, a conexão entre ordem interior e ordem social, ou, ainda, entre
virtude da justiça e felicidade, deve ser apreendida dentro do arranjo providencial divino
que conferiu à criação uma ordem dotada de sentido.200
Com efeito, no Livro XIX, 18, o
Santo afirma “nada pode subtrair-se às leis do Supremo Criador e Ordenador”.201
Fiel à
fé cristã, o filósofo afirma o sentido da vida do homem: o ser humano deve orientar a
sua vontade de acordo com a vontade de Deus. É assim que Agostinho condiciona a
ordem social à prévia ordem interior dos homens peregrinos na esperança da paz eterna.
199
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 17. 200
Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Op. cit. 201
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 18.
63
3.4 A vida virtuosa na sociedade justa
Na reflexão do autor de A Cidade de Deus, a relação de dependência ontológica
do homem em relação a Deus permanece em seu devir e indica o sentido da
peregrinação do homem na história até a consumação do final dos tempos. Assim, o
Santo abre a perspectiva de uma concepção nova de tempo e do mundo na qual se
afirma o caráter dinâmico da relação do homem com Deus, conforme salienta Oliveira e
Silva.202
Nesse contexto filosófico, o futuro é uma dimensão da esperança para o
homem justo.
Segundo o Bispo de Hipona, embora o homem possa conhecer (pela razão) qual
a forma de vida virtuosa que conduz à vida feliz, isto não significa que ele possa
alcançá-la por simples decisão de vontade. Para o filósofo cristão, a vida virtuosa não é
resultado exclusivo da ação do homem, mas envolve o auxílio divino. Desta forma,
quanto à cura dos vícios das almas, Agostinho claramente difere das escolas helenísticas
e da Antiguidade tardia e afirma os limites da autonomia do homem para a plena
restauração do ser. Tal restauração envolve não só o amor a Deus, mas também o amor
ao próximo em Deus.
De acordo com a perspectiva agostiniana, a alma pode apreender as implicações
do vínculo ontológico existente entre o criador e as criaturas. Qualquer afastamento da
vontade do homem em relação ao Sumo Bem acaba por limitar a própria liberdade do
homem. Só quem concedeu ao homem o livre arbítrio pode restituí-lo, ou, ainda,
somente a graça pode restabelecer a liberdade da vontade. A graça cura a vontade da
concupiscência e restaura a unidade da vontade para querer e realizar a vontade de
Deus.203
Como resultado, o homem pode se conformar à ordem estabelecida por Deus.
Com efeito, a alma se encontra numa relação íntima com Deus, mas, para
participar da glória divina, ela precisa ser renovada e purificada de forma a tornar-se
apta a agir de acordo com os parâmetros do amor ordenado, isto é, em conformidade
com as verdadeiras virtudes que reconhecem a hierarquia ontológica no cosmos. Nesse
movimento da alma, o auxílio divino informa e vivifica a verdadeira virtude da justiça
porque Deus sustenta a plenitude do ser do homem cuja vontade se submete à lei divina.
Na dinâmica relacional entre Deus e o homem, o Santo frisa que a ordem divina
202
Cf. OLIVEIRA E SILVA, Paula. Ordem e Mediação: a ontologia relacional de Agostinho de Hipona.
Op. cit. 203
Cf. GRACIOSO, Joel. Interioridade e filosofia do espírito nas Confissões de Santo Agostinho. Op.
cit., p. 80.
64
configura uma ordem do amor: o amor é a essência de Deus e é a relação essencial do
homem com Deus. No entanto, o que significa o amor? Amor é doação de ser e esta
doação faz que o outro (homem) seja. Portanto, Deus auxilia o homem a ser com as
propriedades mais plenas que o ser pode ter.204
Todavia, o homem deve viver em
conformidade com a vontade de Deus. Na perspectiva agostiniana, o modo de vida do
homem tem implicações morais e éticas relevantes.
De fato, dentre os aspectos-chave da reflexão de Agostinho sobre a vida social, o
referido autor ressalta que a comunidade humana é atravessada por desafios morais que
ameaçam a coesão dos laços sociais no devir histórico. Considerando estes
pressupostos, podemos dizer que, na perspectiva agostiniana, a promoção da sociedade
justa tem como premissa a ordem interior dos homens.
Na perspectiva agostiniana, o conhecimento em virtude do homem peregrino a
caminho da vida feliz, pilar da conversão da vontade e da ordem interior, leva a amar de
forma ordenada dentro da hierarquia criada por Deus. Com o auxílio divino, o homem
pode transformar suas escolhas e seu modo de vida e, assim, produzir transformações na
ordem social conforme a vontade de Deus — fundamento da justiça. Assim, emerge da
leitura de A Cidade de Deus o problema do ethos cristão na promoção da sociedade
justa. Do ponto de vista da ordem social, a justiça e a paz imperam quando os homens
compartilham a verdadeira fé, a fé cristã, e seguem a lei divina que é o fundamento da
retidão e da justiça.
De fato, no pensamento do hiponense, a ordem interior é condição para a
existência da justiça na ordem social, como destaca M. T. Clark na sua interpretação
sobre a justiça em Agostinho.205
Segundo o Santo, a objetividade da lei de Deus, tal
como revelada, a consciência subjetiva do homem e as relações interpessoais se
articulam no devir histórico. Na compreensão da plena realização do ser, o filósofo
estabelece um vínculo indissociável entre o verdadeiro ser e as verdadeiras virtudes. A
esse respeito, ele aponta para uma aparente contradição: o orgulho (vício) rebaixa e a
humildade (virtude) eleva o homem. Com efeito, a humildade é a virtude que torna o
homem submisso ao Criador, e as verdadeiras virtudes vivificam a conversão da
vontade de acordo com a ordem do amor para promover a justiça e a paz.
Desse modo, em A Cidade de Deus, a verdadeira virtude da justiça emerge como
204
Cf. OLIVEIRA E SILVA, Paula. Ordem e Mediação: a ontologia relacional de Agostinho de Hipona.
Op. cit. 205
Cf. CLARK, Mary T. Augustine on Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John; PAFFENROTH,
Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Nova York: Lexington Books, 2015, p. 3-10.
65
a virtude fundante da ordem social justa. Todavia, na perspectiva agostiniana, a virtude
da justiça e a virtude da caridade não se podem separar porque a caridade vivifica a
virtude da justiça. Assim, a análise da virtude da justiça como pilar da Cidade Celeste
não é suficiente. O percurso para caracterizar os pilares da concepção agostiniana de
“justiça social” pressupõe a necessidade de um passo adiante, de um aprofundamento da
reflexão sobre a relação entre a Verdade e a caridade.
66
4 UMA FILOSOFIA DA “JUSTIÇA SOCIAL” FUNDADA NA CARIDADE
É no próprio desenvolvimento interno de A Cidade de Deus, que Santo
Agostinho atribui ao termo “iustitia” alguns significados206
, tais como:
1. A justiça é a lei divina, sendo que o fundamento da justiça é Deus.
2. A justiça é a relação reta entre o homem e Deus
3. A justiça é o hábito da alma mediante o qual é “dado a cada indivíduo o que lhe
é devido”.
4. A verdadeira justiça é a virtude da ordem do amor.
5. A justiça é o caminho para a paz.
6. A justiça é a virtude fundante de todo processo político-cultural do povo cristão.
Ademais, no Livro XIX de A Cidade de Deus, a reflexão agostiniana sobre a
justiça se desdobra no amor ao próximo. No âmbito da análise sobre a vida social no
devir histórico, Agostinho frisa a importância da configuração das relações sociais
segundo os princípios da justiça divina. Nas palavras do Santo, se o homem não possui
a ordem interior, então “não haverá justiça na assembleia [...] haverá falta de
reconhecimento de direitos [...] para pensar uma comunidade”.207
Nesse contexto filosófico, estabelece-se uma clara distinção entre Estado e
religião quanto ao seu papel nas perspectivas da promoção da justiça social. Para o
Santo, o Estado deve resistir à tentação, sempre latente, de ser o promotor e provedor da
“vida feliz”. 208
O hiponense afirma que a primordial função do Estado é a de garantir a
tranquilidade doméstica no seu território e de combater os inimigos externos de forma
que os homens, na vida temporal, possam organizar as suas condições da vida material
em paz. 209
Com efeito, podemos dizer que a filosofia social de Santo Agostinho propõe
uma ética com fundamentos metafísicos que alicerça uma filosofia da “justiça social” à
qual subjaz o amor à Verdade e a urgência da caridade. Assim, a relação entre a
206
Cf. DODARO, Robert. Cristo e a sociedade justano pensamento de Agostinho. Op. cit., p. 17. 207
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit., Livro XIX, 21. 208
No mundo contemporâneo, Eric Voegelin chama atenção para as utopias terrenas que se fundamentam
na imanentização do eschaton. A esse respeito, ver VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. 2. ed.,
Tradução José Viegas Filho. Brasília: Universidade de Brasília, 1982. 209
A aguda distinção que Santo Agostinho estabelece entre a autoridade eclesiástica e a autoridade civil
sugere a possibilidade de conflito entre elas e coloca a questão sobre a relação entre Igreja e Estado. A
esse respeito, no Livro V, 24, de A Cidade de Deus, Agostinho apresenta o retrato de príncipes cristãos
que, ao restaurar a unidade da cidade, poderiam promover o bem-estar espiritual e temporal dos homens
cristãos.
67
transcendência e a imanência do homem é traço constitutivo da filosofia agostiniana da
“justiça social” que procurar responder às seguintes indagações: Diante do fim último
do homem, como deve comportar-se o povo cristão? Quais são os fundamentos do agir
do povo cristão? O que é a caridade? Quais as dimensões sociais e políticas da
caridade? Que sentido tem a “justiça social”? Qual “justiça social” pode ser alcançada
na vida terrena?
4.1 Fundamentos do agir do povo cristão
No Livro XIX, 19, de A Cidade de Deus, Agostinho está preocupado com o
problema concreto e existencial quanto ao destino eterno do homem, peregrino na vida
temporal. Assim, nesse Livro está presente o confronto do tempo e da eternidade, ou,
ainda, o apelo ao ordenamento dos bens temporais em face da vida eterna. Nesse
sentido, a reflexão sobre os modos de ser e de agir do povo cristão no devir histórico
ressalta que os costumes não podem ser contrários aos preceitos divinos. O Santo não se
mostra preocupado em discutir as singularidades dos usos e costumes, que Varrão
atribui aos cínicos, e afirma:
Dos três gêneros de vida — contemplativo, activo e misto —,
salvaguardada que seja a fé, cada um pode escolher para a vida
qualquer deles, para assim chegar as recompensas eternas; mas
convém que não perca de vista o que o amor da verdade nos obriga a
manter e o que a urgência da caridade nos obriga a sacrificar. Mas
ninguém deve estar tão desocupado que não pense, na sua
despreocupação, em ser útil ao próximo, nem tão ocupado que não
procure a contemplação de Deus. Na vida contemplativa, não é a vazia
inação que se deve amar, mas sim a busca ou a descoberta da verdade,
para que nela cada um progrida e não recuse partilhar com outros o
que tiver encontrado. Mas, na acção, não é às honras desta vida nem
ao poderio que se deve amar, porque tudo é vaidade debaixo do Sol,
mas é ao próprio trabalho, cumprido no exercício dessas honras e
desse poderio, se realizado com rectidão e utilidade, isto é, capaz de
contribuir, segundo os planos de Deus, para a salvação dos que nos
estão submetidos.210
Conforme as palavras acima citadas, notamos que o filósofo claramente se
posiciona diante da questão dos gêneros de vida herdado da tradição filosófica greco-
romana.
Aristóteles distinguia três modos de vida (bioi) que os homens podiam escolher
210
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 19.
68
livremente: a vida de deleite dos prazeres do corpo; a vida dedicada aos assuntos da
pólis e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação.211
No contexto
grego, com o surgimento da cidade-Estado e do domínio público que destruíra as
unidades organizadas à base do parentesco, os homens enquanto bios politikos — cuja
constituição era marcada pela ação (práxis) e pelo discurso (lexis) — passam a sua vida
na esfera política. Na experiência da pólis, a ênfase passou da ação para o discurso. Ser
político, viver em uma pólis, significava que tudo era decidido mediante palavras e
persuasão. Nesse cenário histórico, as esferas privada e pública da vida permaneciam
separadas.212
Enquanto a vida do lar atendia às necessidades e carências dos seus
membros, que se preocupavam basicamente em defender a vida e a sobrevivência
próprias, a vida na pólis enquanto domínio político era a esfera da liberdade.213
Havia
um abismo entre a vida protegida do lar e a impiedosa exposição na pólis, espaço em
que a virtude da coragem era considerada como umas das atitudes políticas
elementares.214
Assim, na pólis havia um telos que transcende a vida: a busca da boa
vida, como Aristóteles nomeava a vida do cidadão que não se limitava aos processos
biológicos da vida.215
No mundo antigo, a excelência (arete), como a chamavam os
gregos, ou a virtus, no dizer dos romanos, sempre foi reservada ao domínio do público.
No entender de Arendt, tal excelência, por definição, exigia a formalização do público
constituído pelos pares do indivíduo e não pela presença familiar de seus iguais ou
inferiores.216
Enquanto Platão e Aristóteles afirmaram que o homem é essencialmente um ser
social, os seus seguidores helenísticos postularam a figura do sábio descolado da vida
social como ideal superior.217
Em outras palavras, o sábio vive fora do mundo em
conformidade com a lei da natureza universal ou da razão. Assim, a filosofia helenística
apresenta uma dicotomia entre sabedoria e mundo ou, ainda, entre os gêneros de vida
211
Arendt afirma que, na filosofia medieval, a expressão vida activa perdeu o significado especificamente
político e passou a denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo. O próprio termo vida
activa é, na filosofia medieval, a tradução consagrada do bios politikos de Aristóteles. Cf. ARENDT,
Hannah. A condição humana. Op. cit. 212
No esquema aristotélico, estabelece-se uma distinção qualitativa entre o espaço público e o espaço
privado, incluindo-se a família neste último. No contexto romano, Finley salienta que cabe destacar a
importância da figura do pai de família como arquétipo político-social, conjuntamente com o caráter
institucional que esta noção assumirá como legado de Agostinho para o Ocidente. Sobre a importância do
patriarcado, ver FINLEY, Moses I. A política no mundo antigo. Op. cit. 213
Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit., p. 37. 214
Cf. MACINTYRE, Alasdair. After virtue. Notre Dame: University of Notre Dame, 2012, capítulos 10
a 12. 215
Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit., p. 44-45. 216
Cf. Ibidem, p. 59. 217
Cf. Ibidem, p. 41-45.
69
contemplativo e ativo.
No trecho do Livro XIX, 19, citado acima, Agostinho mostra as influências da
tradição filosófica grega quanto à dimensão social da vida humana. No entanto, o Bispo
de Hipona, no século V, propõe uma nova referência para pensar a ação do homem e a
coesão dos laços sociais no devir histórico. A esse respeito, concordamos com Lima
Vaz quando ressalta que a valorização da existência histórica confere à visão cristã de
homem, no pensamento de Agostinho, sua originalidade em face do mundo antigo.218
No século V, o Santo situa a relação entre a contemplação e a ação numa
perspectiva filosófica nova na qual apresenta uma concepção integral de homem,
enquanto união substancial de corpo e alma. Na vida contemplativa, o homem deve
amar a busca da Verdade de forma a aperfeiçoar as potências da alma e a partilhar a
descoberta da Verdade com o próximo. Na vida ativa, o hiponense alerta que o homem
não deve buscar a glória e o poder terrenos, mas deve ser capaz de contribuir, segundo
os planos de Deus, para a salvação de todos. Assim, o autor de A Cidade de Deus, no
Livro XIX, explicita a responsabilidade do homem, ser social, em relação a si mesmo e
ao próximo, ao longo de sua peregrinação na esperança da vida eterna.
Ora, podemos afirmar que o termo “vida ativa” — embora aparentemente
resgate o significado original vinculado a uma vida dedicada aos assuntos público-
políticos — é qualificado por Agostinho porque emerge em A Cidade de Deus uma
redefinição do sentido da política.219
O Santo afirma que a vida do homem do povo
cristão consiste na contemplação e na ação subordinadas à justiça divina. Nesse sentido,
a inter-relação entre a vida ativa e a contemplativa proposta pelo referido autor é crucial
para redefinir os fundamentos da sua concepção de política.
Na sua reflexão sobre o homem do povo cristão na história, o hiponense ressalta
os fundamentos do agir humano — por palavras e atos.220
Para o filósofo, ao agir, os
homens mostram o que são, revelam as suas identidades únicas no mundo humano.221
Nesse sentido, no pensamento do referido autor, o agir do homem em sociedade ao
longo do tempo se articula ao caráter dinâmico da concepção ontológica de ser. Na sua
peregrinação terrestre, o homem, como imagem de Deus, se deve religar ao Sumo Bem
218
Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. Op. cit., p. 189. 219
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 2. 220
A esse respeito, Arendt nos esclarece que “Agir, no seu sentido mais geral, significa tomar iniciativa,
iniciar (como indica a palavra grega archein, “começar”, “conduzir” e, finalmente, “governar”), imprimir
movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino agere).” Cf. ARENDT, Hannah.
A condição humana. Op. cit., p. 221. 221
Cabe destacar que, para Arendt, a revelação de quem é em contraposição ao que alguém é está
implícita em tudo o que esse alguém diz ou faz. (Ibidem).
70
de modo a exercer a liberdade e a plenitude do seu ser.
Do exposto, é possível afirmar que, na perspectiva agostiniana, a revelação do
ser do homem se explicita em tudo o que o homem diz ou faz, dado que a qualidade
reveladora do discurso e da ação passa a um primeiro plano nas relações intersubjetivas.
Com efeito, no pensamento do Bispo de Hipona, o ser do homem se desvela no seu agir.
Desse modo, Agostinho realça que “o agir revela o ser” como uma tendência intrínseca
de desvelar o agente juntamente com o ato. Estabelece-se, dessa forma, uma relação
entre os aspectos ontológicos, antropológicos e históricos no pensamento do filósofo.
É oportuno lembrar que o Santo estabelece uma íntima associação entre o agir
do povo cristão, a ética e a política. Segundo o filósofo, a fé e a razão se combinam com
o amor. Com efeito, a doutrina cristã do amor elaborada por Agostinho, sob a influência
paulina, traz a novidade da revelação do próximo. O problema do outro se manifesta na
ação do homem no mundo, no acontecer histórico da vida social. Assim, a reflexão do
hiponense aponta para a importância dos laços sociais fundados no amor para viver de
maneira justa — conforme a lei divina.222
Dessa forma, ele apreende a dimensão
transcendente e imanente do homem. Com efeito, Santo Agostinho apresenta o homem
na sua universalidade e, ao mesmo tempo, na sua singularidade marcada por uma
subjetividade particular. Assim, cada homem caracteriza-se pela unicidade, sendo capaz
de exprimir de forma consciente esta distinção e distinguir-se. Nesse contexto, a
alteridade é, sem dúvida nenhuma, um aspecto importante da pluralidade humana do
tecido social.223
De acordo com o referido autor, o agir do povo cristão revela o ser no devir
histórico. Assim, do ponto de vista ético, a plenitude do ser remete a um chamamento à
exterioridade que se revela no próximo e se fundamenta na caridade. No trecho
selecionado do Livro XIX, 19, o Santo coloca questões relevantes quanto aos
fundamentos do agir do povo cristão: O que é a caridade? Qual a relação entre amor à
Verdade e a urgência da caridade? O que o amor à Verdade obriga a manter enquanto
conduta nas ações do povo cristão? O que a urgência da caridade obriga a sacrificar nas
ações do povo cristão? Reflitamos, a seguir, sobre essas questões.
222
Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. X. Arendt chama a atenção para a
importância do olhar de Agostinho sobre a condição humana e, na sua interpretação, destaca que ele é o
primeiro filósofo a considerar o homem como ponto de partida de uma reflexão sobre o mundo. 223
Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit., p. 220.
71
4.2 Verdade e Caridade
Retomando o trecho selecionado do Livro XIX, 19, detenhamo-nos em algumas
palavras, em particular nestas: “mas convém que não perca de vista o que o amor da
verdade nos obriga a manter e o que a urgência da caridade nos obriga a sacrificar”.
Desdobramos, a seguir, a nossa reflexão nas respostas a três questões que emergem das
palavras de Agostinho.
4.2.1 Qual a relação entre o amor à Verdade e a urgência da caridade?
Podemos notar que Agostinho frisa que, além do amor à Verdade, fundado na fé,
o povo cristão também necessita fundar o seu agir na caridade. Nesse sentido, o
hiponense destaca não só a subjetividade do homem, mas também a intersubjetividade
no contexto da reflexão do agir do homem cristão. Desse modo, além das relações entre
fé e razão, surge um terceiro termo, que é o amor. O amor é indispensável para chegar à
Verdade. Como observa Silva Rosa, o amor é inegavelmente um poder de evidenciação
e de dar a conhecer.224
Ademais, o Santo estabelece uma associação entre Verdade e ética e, assim, o
amor à Verdade tem implicação moral. Crítico do traço dominante do egoísmo na
condição humana, Agostinho aponta que o antídoto a esta orientação egoísta,
autocentrada, é a graça divina que produz efeitos no sentido da reorientação do amor sui
para o amor Dei.225
Do ponto de vista axiológico, não há uma autonomia de valores
éticos no tratamento do problema do próximo, dado que o filósofo identifica as regras
do amor ordenado como as regras que devem reger a vida dos homens numa sociedade
justa, na qual os homens submetem a sua vontade à vontade divina.
Na perspectiva agostiniana, na Cidade Celeste, a caridade em Deus emerge
como uma regra de socialização do homem que se fundamenta no amor à Verdade. Em
A Cidade de Deus, Livro XIX, Agostinho frisa que a fé é conciliável com a razão e
224
Cf. SILVA ROSA, José Maria da. Santo Agostinho: Trindade de Trinitate. Fátima: Paulinas, 2007,
introdução, p. XV. Silva Rosa destaca que no texto Contra os Maniqueus, XXXII, 18, Agostinho afirma:
“Não se chega à verdade senão pela caridade”. 225
Cf. DOODLEY, Mark. The Pursuit of Social Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John;
PAFFENROTH, Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Nova York: Lexington Books, 2015, p. 13.
72
desenvolve uma doutrina social fundada na filosofia do amor.226
O hiponense ressalta
que o amor ao próximo revela o amor a Deus que, enquanto expressão da liberdade e da
vontade “reta”, se revela exteriormente na relação do homem com o próximo. Para o
homem cristão, a relação amorosa com o próximo requer a conversão da vontade e a
submissão das escolhas humanas em conformidade com a vontade divina. 227
Diante do fim último do homem, o Santo frisa o amor ao próximo na perspectiva
da vida feliz. Assim, a ética agostiniana tem como referência permanente o fenômeno
do Absoluto e, por consequência, o lugar a partir do qual se coloca o amor a Deus, que
criou o homem e o transcende: Deus é “interior ao homem” e “superior ao homem”.
Conforme a referência bíblica, amar é a essência de Deus, Deus é amor (João,
3:16). A filosofia cristã de Agostinho aponta para a pertinência da pergunta sobre Deus
sob um novo ângulo: a relação de amor do homem com o próximo.228
Assim, do ponto
de vista da filosofia social, a questão central é: como o referido autor apresenta o
problema do outro, do encontro humano com o próximo? Como lida o homem com o
próximo e as instituições?
Na história da filosofia, o tema do próximo é introduzido por Agostinho no bojo
do movimento de aceitação da fé cristã e da caridade que dela nasce.229
Do ponto de
vista da ética social, o Santo elucida o problema do outro, de sua existência e de seu
reconhecimento e, de forma radical, frisa o amor como pilar da sociedade justa. No
contexto de sua análise das relações sociais, a caridade é expressão de uma relação de
amor transformadora que embasa o amor ao próximo no amor a Deus.230
O próximo é
aquele com quem o homem se encontra, que, em uma situação concreta, precisa da sua
ajuda e da sua misericórdia. É sobre o próximo que o homem se deve inclinar. Com
efeito, Agostinho vincula caridade e serviço.231
É o próximo que se torna, para o
homem, o critério para interpretar a vontade concreta de Deus. No Comentário aos
Salmos, 25, o Bispo de Hipona diz quem é o próximo:
226
Cf. JASPERS, Karl. Los fundadores del filosofar: Platón, Agustín, Kant. Madrid: Tecnos, Série “Los
Grandes Filósofos”, 1995, p. 162. 227
Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. 111. 228
O apóstolo Paulo, na Carta aos Coríntios (1,13), afirma uma nova conceituação sobre o amor, o amor
caritas. Este conceito cristão de amor caracteriza-se como dom, por apresentar Deus como quem ama a
humanidade a ponto do sacrifício. 229
Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Nota histórica sobre o problema filosófico do “outro”. In:
Ontologia e história. Op. cit. 230
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 19. 231
Cf. Ibidem. Livro XIX, 19.
73
Nenhum de vós pense, irmãos, que deve falar a verdade aos cristãos, e
a mentira aos pagãos. É com teu próximo que falas. Teu próximo é
aquele que, como tu, nasceu de Adão e Eva. Todos somos próximos
uns dos outros pela condição do nascimento terreno; mas somos
irmãos diversamente pela esperança da herança celeste. Considera a
todo homem como teu próximo, mesmo antes de ser cristão. Não
sabes o que ele é diante de Deus, ignoras como Deus, em sua
presciência, viu que ele seria.232
De acordo com o trecho referido, podemos perceber que Santo Agostinho
expressa que o Absoluto se revela fenomenologicamente no próximo. Com efeito, no
próximo, a transcendência se revela. Nesse contexto filosófico, o conceito de caridade
manifesta a interiorização da ideia de Absoluto, que é explorada por Agostinho tanto no
plano moral como da ética social. Tal como nos esclarece Holte, na estrutura da caritas
há duas forças: uma divina e outra humana.233
Assim, no devir histórico da vida
concreta do homem, a caridade é expressão da dinâmica do amor fundamentada na
Tríade formada por Deus, homem e o próximo.234
Na perspectiva agostiniana, onde prevalece o imperativo da virtude da caridade
não há lugar para a concupiscência ou egoísmo. Na filosofia do hiponense, o amor é a
questão intersubjetiva radical porque no movimento da caridade o homem não procura
seu próprio interesse. A vivência da caridade leva a um descentramento do homem em
relação a si mesmo. Quem está autocentrado procura inevitavelmente o seu próprio
interesse. A virtude da caridade é, por um lado, uma virtude moral e, por outro, o
princípio fundante das relações intersubjetivas conforme o amor ordenado ou a
verdadeira justiça.
Conforme o pensamento agostiniano em A Cidade de Deus, precisamente a
virtude da caridade é o contrário do desejo concupiscente. A virtude da caridade, que é
dom, é amor colocado a serviço do próximo, doação. A virtude da caridade é o próprio
Deus amando, em nós e através de nós, ao próximo. Nesse sentido, o amor de caridade é
um fim em si mesmo, sai ao encontro do próximo sem esperar nada em troca. Na
perspectiva agostiniana, o imperativo da caridade é um imperativo existencial de amor
ao próximo a partir da revelação do amor-dom de Deus.235
232
AGOSTINHO, Aurelius. Comentário aos Salmos. Op. cit, 25, II, 1-3. 233
Cf. HOLTE, Ragnar. Beatitude et sagesse: Saint Augustin et le probleme de la fin de l’homme dans la
philosophie ancienne. Paris: Etudes Augustiniennes, 1962. 234
Cf. Ibidem. 235
Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. 235.
74
4.2.2 O que o amor à Verdade nos obriga a manter enquanto conduta do povo
cristão?236
De acordo com o hiponense, o Sumo Bem é a vida feliz que é vida eterna. Fiel à
fé cristã, o Santo afirma todas as coisas do universo existem a partir de Deus, por Deus
e em Deus. Do ponto de vista ontológico, o fim último do homem é a Sabedoria, o
conhecimento de Deus Uno e Trino, que é “tudo em todas as coisas”. Nesse contexto, a
finalidade do homem é o conhecimento do Deus-Verdade, que é também Deus-Amor.
Esse é o conceito metafísico superior, é o limite do cognoscível.
A esse respeito, é oportuno lembrar que, quanto ao amor a Deus, Agostinho
pergunta em Confissões:
Que eu amo, quando Vos amo? Não amo a formosura corporal, nem a
glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos,
nem as doces melodias das canções de todo o gênero, nem o suave
cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou mel,
nem os membros tão flexíveis aos braços da carne. Nada disto amo,
quando amo ao meu Deus. E contudo, amo uma luz, uma voz, um
perfume, um alimento e um abraço, quando amo meu Deus, luz, voz,
perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha uma
luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não
arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se
saboreie uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um
contato que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo o meu
Deus.237
Nesse trecho das Confissões, Agostinho expressa que o homem só pode amar a
Verdade se passar por um processo radical de transformação interior de forma a inclinar
a sua vontade ao Sumo Bem. Desta forma, coloca o amor a Deus numa perspectiva que
ressalta a interioridade.
Segundo o Santo, a razão reconhece a sua própria limitação e o amor à Verdade
move a alma a desejar a plenitude de sua natureza, tanto ontológica quanto moralmente.
Enquanto a alma humana é naturalmente unida às razões divinas, a vera ratio deve ser
religada às razões eternas pelo caminho da interioridade de forma a conhecer a essência
do Ser e o fundamento da Verdade. Nesse processo, não há mérito nenhum do homem.
O Deus misericordioso, o Cristo — por meio da Revelação — se apresenta ao homem:
236
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 19. 237
AGOSTINHO, Aurelius. Confissões. Op. cit. Livro X, 6, 8.
75
Deus vem ao encontro do homem.238
Segundo o filósofo, a reconciliação do homem
com o criador se fundamenta na verdadeira vida — verdadeiro ser —, que é uma vida
verdadeiramente virtuosa.239
Assim, o amor à Verdade se manifesta no conhecimento
em virtude.
Na ordem providencial divina, a misericórdia de Deus provê o homem dos bens
e dos males de que necessita para a realização plena do seu ser.240
Em outras palavras, o
homem, por ser dotado de livre-arbítrio e com o auxílio da graça, pode se conformar à
ordem do amor estabelecida por Deus. Tal adesão é de natureza voluntária e representa
uma submissão da alma ao Sumo Bem.
No processo de “religação” do homem a Deus, o homem deseja a vida feliz; em
outras palavras, o homem deseja Deus. Para ocorrer tal religação, a alma deve percorrer
um caminho espiritual. Em outras palavras, para ser uma pessoa virtuosa, ou ainda justa,
o homem que vive da fé deve submeter a alma racional à lei Divina. No entanto, para
que isso aconteça, é necessário o auxílio divino da graça na peregrinação do homem
mortal a caminho da eternidade.
Mas, por que o amor a Deus fundamenta o agir do povo cristão? Retomando o
trecho selecionado do Livro XIX, podemos afirmar que, na perspectiva de Agostinho,
sem o amor à Verdade o homem não pode alcançar a ordem interior que é condição para
a ordem social. Ao orientar a alma para o amor à Verdade, o homem se afasta das
demandas do amor egoísta, concretizadas no amor aos bens terrenos, glória, poder e
prazeres que motivam suas ações. Orientando a alma conforme o amor ordenado, as
demandas de tais bens terrenos encontrarão o lugar correto na vida do povo cristão.241
Embasada no referencial bíblico, a perspectiva agostiniana lembra que o povo cristão
não pode obedecer a dois senhores.242
Santo Agostinho nos alerta que autenticidade do amor a Deus se revela não só na
conversão da vontade, mas também no agir que revela o ser dos homens do povo cristão
na história. Nesse sentido, é necessário que as ações do homem em relação ao próximo
revelem a caridade em Deus que revela o amor Dei. O amor da Verdade implica viver
em conformidade com a lei divina e reconhecer a ordem e a medida de todas as coisas
— este é o caminho para a liberdade e para a justiça. Amar em conformidade com Deus
238
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XV, 1. 239
Cf. Ibidem. Livro XIX, 25. 240
Cf. Ibidem. Livro XIX, 15. 241
Cf. DOODLEY, Mark. The Pursuit of Social Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John;
PAFFENROTH, Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Op. cit., p. 14. 242
Mateus, 6.
76
remete ao amor divino enquanto fundante do amor humano. Assim, Agostinho
estabelece um vínculo estreito entre o amor à Verdade e a restauração do ser. A
iluminação do intelecto e a conversão da vontade estão envolvidas na submissão da
alma ao amor ordenado.243
Mesmo com todo esforço de ordenar sua vontade, o homem,
por suas próprias forças, não conseguirá; precisará do auxílio divino para amar de forma
ordenada.
4.2.3 O que a urgência da caridade nos obriga a sacrificar nas ações do povo
cristão?244
No trecho selecionado do Livro XIX, Agostinho frisa a urgência da caridade.
Com efeito, o filósofo cristão reafirma que a caridade é um imperativo moral porque
Cristo compele o homem à caridade. A esse respeito, é oportuno lembrar que o
hiponense afirmara, no Livro XV de A Cidade de Deus, “[...] que a esposa de Cristo, a
Cidade de Deus, canta no santo Cântico dos Cânticos: Ordenai em mim a caridade”.245
Desse modo, podemos dizer que o Santo ressalta, de acordo com as referências bíblicas,
que o amor é a mais profunda, universal e significativa experiência humana. Na
caridade, há uma celebração do amor divino e humano, pois a criatura humana é
imagem e semelhança do Criador. Ademais, Deus é amor e o amor humano é
manifestação do próprio Deus, que se torna presente na pessoa dos seres humanos que
se amam conforme a sua vontade. Em outras palavras, na caridade se resume a perfeição
da lei divina.
Nos fundamentos do agir humano, Agostinho estabelece um vínculo estreito
entre a caridade, a justiça e a restauração do ser em Cristo. A reflexão agostiniana sobre
a virtude da caridade chama a atenção para a imagem do próximo, que é um outro
Cristo na vida terrena.246
Assim, na manifestação do amor de Deus, Agostinho alerta
que não podemos esquecer que Cristo se entregou à morte e à ressurreição para a
salvação do homem. Ao frisar a urgência da caridade, o Santo situa Cristo como única e
verdadeira referência da vida do homem. De fato, o filósofo cristão alerta que não
podemos esquecer o papel do Homem-Deus na mediação da virtude da justiça para a
243
Referências ao amor ordenado e à relação entre as virtudes e a ordem do amor, encontram-se em A
Cidade de Deus, Livro XV, 22. 244
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 19. 245
Ibidem. Livro XV, 22. Agostinho refere-se a Cânticos, II, 4. 246
Cf. DODARO, Robert. Cristo e a sociedade justa no pensamento de Agostinho. Op. cit., capítulo 3.
77
alma. Seguindo a interpretação de Dodaro, podemos afirmar que o hiponense considera
que viver justamente em sociedade significa amar a si mesmo e a seu próximo, da forma
prescrita pela lei divina e pelo exemplo de Cristo.247
Ao situar a verdadeira justiça e a caridade no horizonte da vida social, como
ressalta Clark, não há confusão entre as virtudes.248
Se a justiça é “dar a cada um o que é
seu”, o “seu” deve ser interpretado com base nas exigências da ordem do amor, ou seja,
com base na realização plena da caridade cristã. Assim, a vivência da caridade em Deus
subordina todas as outras virtudes.249
Se a construção de uma ordem social justa envolve a submissão à lei de Deus, os
“cristãos que são justos” são autênticos sinais de caridade em Cristo que ordena a
caridade na Cidade de Deus.250
Com efeito, a justiça enquanto virtude será mais
verdadeira e melhor quanto mais alicerçada estiver na caridade — dom de Deus.251
Nessa perspectiva, a conversão da vontade é uma construção ontológica e moral na qual
o homem interior abre espaço para a consciência de si e do mundo e conformidade com
o amor ordenado e pode agir, alicerçado na justiça e na caridade, no sentido da
promoção da ordem social.
Na sua argumentação sobre o dever da caridade, Santo Agostinho indica uma
tensão entre a cupidez e a caridade, ou, ainda, uma tensão entre frui e uti, que manifesta
a cisão da vontade do homem. Com efeito, o critério para o amor ordenado estabelecido
por Agostinho, distingue entre o uti e o frui — distinção que é fundamental na ética
agostiniana.252
Os bens finitos devem ser usados como meios e não serem
transformados em objeto de fruição e deleite, como se fossem fins. Deus é o Sumo
Bem. Tal distinção é crucial para compreender o amor à Verdade. A fruição (frui) está
relacionada ao amor de algo que é amado por si mesmo, que não é um meio para atingir
um fim. Por outro lado, o uso (uti) significa amar algo como meio, como bem relativo,
247
Dodaro fundamenta a sua observação a partir de Romanos, 13, 8: “Não devias nada a ninguém a não
ser o amor mútuo”. (DODARO, Robert. Cristo e a sociedade justa no pensamento de Agostinho. Op. cit.) 248
Cf. CLARK, Mary T. Augustine on Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John; PAFFENROTH,
Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Op. cit., p. 8 249
Cf. Ibidem, p. 8. Conforme Clark, o pensamento de Santo Agostinho amplia e desenvolve o
pensamento de Paulo, que, na Carta aos Romanos (13, 8-10), afirma que a caridade é a perfeição da
justiça. 250
Na sua vida pastoral, ao chamar a atenção para os necessitados que são um outro Cristo na terra,
Agostinho exortava a “olhar” o Cristo no próximo. Sobre a vida pastoral do Bispo de Hipona e as
expectativas de justiça do seu tempo, consultar a análise de UHALDE, Kevin. Expectations of Justice in
the Age of Augustine. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2007. 251
Cf. COSTA, Marcos Roberto Nunes. A dimensão metafísica da civitas na doutrina ético-política de
Santo Agostinho Op. cit. 252
Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.
Agostinho. Op. cit., p. 89.
78
para atingir um fim.
Assim, tal distinção entre uti e frui torna-se relevante quando o hiponense
aprofunda a reflexão sobre o homem na vida social, na medida em que, sendo o homem
peregrino na busca da vida feliz, as suas ações devem ajudá-lo a atingir este fim. Dessa
forma, a riqueza da reflexão do filósofo coloca em perspectiva a luta moral do homem
para atingir o Sumo Bem, ou seja, os conflitos entre a cupidez e a caridade.
Vale dizer, a cisão da vontade impele o homem para dois amores: a cupidez e a
caridade.253
Por sua vez, tais amores condicionam as relações interpessoais na vida
social: os dois amores condicionam modos de vida opostos nas duas cidades.
Na perspectiva agostiniana, a cupidez leva a buscar a felicidade nas sensações
corporais e, portanto, molda as relações intersubjetivas no amor de si mesmo, no
egoísmo. A caridade, fundamentada no amor a Deus e no amor ao próximo em Deus,
leva o homem a buscar a felicidade conforme a vontade do criador. Enquanto a cupidez
está na origem do pecado original, o retorno a Deus será um movimento da caridade.254
Dessa forma, o conhecimento em virtude leva o homem a direcionar a sua
existência de acordo com a ordem do amor, isto é, com a justiça. Assim, não se pode
compreender a ética agostiniana fora da perspectiva do amor. Os homens tendem para
seu objeto de amor e revelam seu ser por aquilo que amam.255
Em outras palavras, o
homem tem um telos e, para alcançar o fim desejado, tem duas formas de se relacionar
com os seres em geral: há seres que são objeto de frui (fruição, gozo) e há seres que são
objeto de uti (uso). Como salienta Gracioso, entender tal diferença é “viver de acordo
com essa hierarquia é colocar-se na ordenada dilectio (ordem do amor), percebendo que
a caritas (caridade) é o princípio fundamental”.256
Do ponto de vista da ética agostiniana, a caridade é o conceito que articula, no
homem, a transcendência à consciência de si e do outro. Nesse sentido, a imanência e a
transcendência são indissociáveis no entendimento da vida social, isto é, o contingente e
o imutável se entrelaçam na apreensão do sentido da vida e dos modos de vida do
homem. O Santo nos apresenta uma concepção totalizante do homem, união substancial
de corpo e alma, que se desdobra na sua reflexão sobre a transcendência e a alteridade.
253
Na interpretação de Arendt, o desejo (appetitus) está na raiz de cupiditas e caritas. No entanto, em
cupiditas o homem busca o Bem fora de si. Assim, quando governado pela cupidez, o homem se torna
escravo das coisas terrenas. (ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit.). 254
Cf. GRACIOSO, Joel. Interioridade e filosofia do espírito nas Confissões de Santo Agostinho. Op.
cit., p. 67. 255
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 25 e 28. 256
Cf. GRACIOSO, Joel. Interioridade e filosofia do espírito nas Confissões de Santo Agostinho. Op.
cit., p. 64.
79
Enquanto peregrino, a “religação” do homem a Deus se constitui numa experiência
fundada no amor a Deus, na justiça e na caridade.
4.3 A caridade e a política na sociedade justa: poder e serviço
Levando às últimas consequências a ideia do papel determinante da justiça na
existência da república romana, Agostinho indaga, no Livro XIX, 21, de A Cidade de
Deus, se alguma vez existiu uma república romana, dado que esta nunca se identificou
com a “empresa do povo” e nela não vigorou o direito fundado sobre regras justas.
Desse modo, o filósofo desmascara o que se escondia por debaixo das aparências
da conduta dos nobres ancestrais romanos e transforma a visão que os próprios romanos
tinham do seu passado.257
Sendo a justiça a virtude que dá a cada um o que lhe pertence,
Agostinho questiona:
Qual é então a justiça do homem que tira o próprio homem ao
verdadeiro Deus e o submete aos demônios imundos? Será isto dar a
cada um o que lhe pertence? Será injusto o que tira uma propriedade a
quem a comprou e a entrega a quem a ela nenhum direito tem; e será
justo o que se subtrai ele próprio à autoridade de Deus, por quem foi
criado, e se submete a espíritos malignos?258
No texto referido, podemos notar que o Santo se afasta da definição de “justiça”
que se identifica com as normas que regem a vida civil, com a lei ou o jus. Nesse
sentido, a concepção agostiniana de “justiça” envolve um questionamento ético que é
anterior a qualquer ordenamento jurídico. Em verdade, a ética agostiniana é
questionadora dos ordenamentos sociais.
Ao mudar os termos da discussão sobre o fundamento da justiça, o referido autor
também modifica a definição de “povo”. Contrapondo-se à posição defendida por
Cipião em Da República, de Cícero,259
Agostinho argumenta que não é suficiente a
existência de um sistema de regras ou leis para que possa de falar em povo ou em
república. Nas palavras do Santo: “Povo é união duma multidão de seres racionais
257
Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Op. cit., p. 383. 258
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 21. 259
Segundo Barros, em Da República, Cícero frisa a sua convicção jusnaturalista no direito civil e critica
a tese convencionalista segundo a qual não há direito fundado na lei natural e homens justos por natureza.
Segundo os convencionalistas, o direito e a justiça se apoiam em opiniões mutáveis que variam ao longo
da história. (BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves de. Direito Natural em Cícero e Tomás de Aquino. In:
PISSARA, Maria Constança Peres; FABRINI, Ricardo Nascimento. (Coords.). Direito natural: a noção
de justiça na história da filosofia. Op. cit., p. 46).
80
associados pela participação concorde nos bens que amam”.260
Dessa forma, Agostinho
relaciona cada povo com o objeto de seu amor e dá à definição de povo uma conotação
moral.
Essa mudança na definição de “povo” é relevante para entender por que o Bispo
de Hipona apresenta uma reflexão política, isto é, uma reflexão sobre os fundamentos da
convivência entre os homens, na qual o amor a Deus se converte em princípio que
fundamenta as relações interpessoais na vida social. Assim, para a consecução da justiça
na história, há que se considerar o Absoluto que rege a criação e sustenta a peregrinação
do homem. Desse modo, sua reflexão afirma o poder de Deus e a lei divina como o
princípio fundante da justiça na vida temporal.261
Considerando a oposição entre as duas cidades na história, aprofundemos, a
seguir, a reflexão sobre o sentido que adquire a relação entre a concepção agostiniana de
justiça e a ética social em A Cidade de Deus. Lembremos as palavras de Agostinho:
[...] tal como o justo sozinho vive da fé, assim também uma
comunidade inteira e um povo de justos vivam da fé que se pratica por
amor — por um amor pelo qual o homem ama a Deus como deve ser
amado e ao próximo como a si mesmo,
— quando falta essa justiça, com certeza não há uma comunidade de
homens unidos pela adoção de comum acordo de um direito e de uma
comunhão de interesses,
— quando isto falta, se é verdadeira essa definição de povo, o que é
certo é que não há povo, nem portanto Estado (res publica), pois não
há empresa do povo (res populi) onde nem sequer povo há.262
Na sua argumentação, o hiponense apresenta algumas ideias relevantes que se
entrelaçam entre si com uma sucessão de implicações. Em primeiro lugar, o povo é “a
união duma multidão de seres racionais associados pela participação concorde nos bens
que amam”.263
Realçando a relevância do espaço público, o Santo afirma que o povo:
Seja o que for o que ame, se é uma união de uma multidão, não de
animais mas de criaturas racionais, pela participação concorde nos
bens que amam, não é desrazoável que se lhe chame povo — povo
tanto melhor quanto mais está de acordo nas coisas melhores e tanto
pior quanto mais o seu acordo está nas coisas piores. De acordo com
esta definição, que é nossa, o povo romano é povo e a sua empresa é,
sem dúvida, uma empresa pública, uma república (res publica). Mas o
260
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 24. 261
Cf. CURBELIÉ, Philippe. La justice dans la Cité de Dieu. Op. cit. 262
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 23. 263
Ibidem. Livro XIX, 24.
81
que foi que, nos primeiros tempos ou nos que lhes seguiram, esse
povo terá amado e devido a que costumes terá ele chegado às mais
cruentas sedições e daí às guerras civis e sociais e a romper assim e
corromper essa concórdia que, de certo modo, é a saúde de um povo
— e a história no-lo conta. Dela já citámos muitos acontecimentos nos
livros precedentes. Por isso não direi nem que este não é povo nem
que a sua empresa não é povo nem que sua empresa não é pública,
uma república (estado) enquanto perdurar a união duma multidão de
seres racionais associados pela participação concorde dos bens que
amam.264
Conforme as palavras citadas, o autor define o povo como uma multidão de
seres racionais unidos pelo mesmo objeto de amor. Adicionalmente, afirma que a
existência do povo é condição de possibilidade de existência da política. Com efeito,
Agostinho rejeitara a tese de Cícero de que as instituições políticas romanas se
fundamentavam nas leis criadas pelos homens. Nesse contexto, o povo cristão é aquele
que está unido pela comunhão de fé e de objeto de amor. O amor a Deus é a referência
do povo cristão.
Por outro lado, na perspectiva agostiniana, a justa ordem da sociedade torna-se
dever central da política. É possível afirmar que o conceito de “justiça” é, por um lado,
uma virtude moral. Assim, a justiça é o princípio que rege a interioridade do homem na
busca da perfeição conforme a lei de Deus Criador. Por outro, a justiça é o princípio
que define as regras de conduta dos seres humanos “que vivem da fé que se pratica por
amor” nas relações sociais.
Agostinho não só estabelece uma relação entre a virtude da justiça e a vida feliz,
mas também defende uma concepção de justiça enquanto verdadeira virtude que
expressa o amor “pelo qual o homem ama a Deus como deve ser amado e ao próximo
como a si mesmo”. Ao definir a verdadeira justiça como o império da vontade de Deus
sobre as escolhas dos homens e, paralelamente, como o império da alma sobre o corpo
de cada homem, o fundamento para a ordem social justa se assenta na interioridade, no
processo de conversão do homem que envolve a busca de uma justa medida das coisas
na vida terrena. A justiça concebida em conjunção com o conceito de “ordem do amor”
transmite a hierarquia dos bens estabelecida por Deus como objeto de amor e de desejo.
Assim, concilia-se, nessa concepção, o aspecto volitivo do amor com a ordem criada da
natureza. O dom gratuito da graça auxilia na conversão da vontade e na restauração da
264
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 24.
82
alma que reconhece sua condição pecadora e sua inferioridade diante do Sumo Bem.265
Na relação com o próximo, a virtude da caridade é indissociável da verdadeira virtude
da justiça. Está colocada aqui a importância do amor-caritas na promoção da sociedade
justa, de acordo com o pensamento de Agostinho em A Cidade de Deus.
O filósofo conclui que somente há política onde há verdadeira justiça. Ao
ressaltar a verdadeira justiça como fundamento do povo e de todas as instituições
políticas, a moralidade emerge como princípio constitutivo da vida política no
pensamento de Agostinho. Seguindo a interpretação clássica de Fortin, podemos
concordar que o eixo central da doutrina política do Santo é seu ensinamento com
respeito à virtude.266
Nesse sentido, a reflexão do hiponense sobre a justiça estabelece uma distinção
clara entre moral e direito e alerta para a dificuldade de os homens, na vida terrena,
serem justos e construírem instituições políticas fundadas na justiça que é a lei divina. O
Santo afirma:
[...] geralmente a cidade dos ímpios carece da verdadeira justiça,
porque não obedece a Deus que lhe ordena que não ofereça sacrifícios
senão a Ele, que, consequentemente, nela, a alma se imponha recta e
fielmente ao corpo, e a razão recta e fielmente se imponha aos
vícios.267
No trecho citado, ao ressaltar o caráter dinâmico da relação ontológica entre
Deus e o homem no devir histórico, Agostinho enfatiza que o homem deve enfrentar um
desafio moral para viver em conformidade com a justiça divina.268
Em outras palavras, a
questão central que o filósofo coloca é: o homem cristão deve submeter a razão e a força
dos apetites da alma à ordem do amor de forma a desejar os bens terrenos de maneira
adequada e poder viver na paz temporal com piedade e caridade.269
Ademais, o Santo frisa que, na vida temporal, enquanto dominam os vícios não
há paz plena:
[...] pois os vícios que resistem têm que ser combatidos em perigosos
265
Para uma reflexão sobre a relação entre a graça e a humildade em Agostinho, consultar ARENDT,
Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. 89-91. 266
Cf. FORTIN, Ernest. San Agustín (354-430). Op. cit. 267
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 24. 268
A esse respeito, Arendt esclarece que o homem nasce primeiro para o mundo. No entanto, o homem
posteriormente deve nascer para Deus para atingir a plena realização do seu ser. Cf. ARENDT, Hannah.
Love and Saint Augustine. Op. cit. 269
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 26.
83
combates, e os que vencidos, deles se não triunfa numa segura
tranquilidade, mas é preciso mantê-los sob vigilante domínio. No
meio de todas estas tentações, de que se fala concisamente na Palavra
Divina: Não será uma tentação a vida humana sobre a Terra? quem
terá a presunção de viver sem ter a necessidade de dizer a Deus:
Perdoai-nos às nossas dívidas, senão o homem enfatuado? — Na
verdade, ele não é grande, mas é inchado, o intumescido, ao qual, na
sua justiça, resiste Aquele que dispensa a sua graça aos humildes. Por
isso está escrito: Deus resiste aos soberbos, mas aos humildes
concede a sua graça. Aqui na Terra, portanto, a justiça para cada um é
o império de Deus sobre o homem que obedece, da alma sobre o
corpo, da razão sobre os vícios mesmo que estes se rebelem, quer
submetendo-os, quer resistindo-lhes; é ainda pedir a Deus a graça de
ter méritos, o perdão dos pecados e dar graças pelos benefícios
recebidos.270
A partir do trecho citado, podemos perceber que o referido autor percebe que, na
vida terrena, se levanta a cada passo do homem cristão na história um conflito moral,
uma hesitação diante das encruzilhadas da vida terrena que o atraem pela solicitação de
caminhos opostos.271
Do ponto de vista ontológico, a resposta do homem em face do
apelo de Deus exige uma tomada de consciência em relação a si mesmo, ao próximo e
ao uso dos bens temporais que o conduza, com o auxílio da graça, à conversão da
vontade e à conformação do modo de vida de acordo com a verdadeira justiça. Assim, a
responsabilidade moral do homem cristão funda-se na relação “correta” do homem com
Deus: o homem reto subordina a sua vontade à vontade de Deus. Pela infusão da graça,
ao longo da vida temporal, o homem de coração humilde que ora e “cuja fé se põe em
prática pelo amor”,272
condiciona suas atitudes em relação ao próximo na direção da
promoção da ordem social justa.
Ora, qual a relação que o Bispo de Hipona estabelece entre a política e a Cidade
Celeste?273
Para além da compreensão dos conflitos do homem e das dificuldades
morais para a promoção da paz temporal, a oposição e as tensões na coexistência entre
as duas cidades requer uma leitura escatológica: a Cidade Celeste dirige-se para o bem e
alcançará a salvação eterna; a Cidade Terrena subordina a vida feliz aos bens terrenos e
está condenada ao inferno.274
No entanto, o homem somente pode ser curado de tais
270
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 27. 271
Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Cristianismo e consciência histórica. In: Ontologia e história.
Op. cit., p. 211. 272
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 27. 273
Cf. PIRET, Pierre. La destinée de l’homme: la Cité de Dieu. Bruxelles: Institut d’Études Théologiques,
1991, p. 319. 274
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 28. Agostinho frisa que para os
maus será reservada a segunda morte.
84
vícios se, auxiliado pela graça, agir em conformidade com a vontade de Deus. Enquanto
peregrinos, os homens cristãos devem preparar-se na vida terrena para o juízo final.275
Na esperança, tal como assinalara São Paulo, os homens são “bem-aventurados” na vida
terrena onde ainda não há nem paz nem felicidade em plenitude.276
Do exposto, pode-se afirmar que a justiça, a moral, a ética e a política são
indissociáveis no pensamento de Agostinho. O hiponense condena a dissociação entre a
moralidade e a política na vida temporal porque tal separação torna ineficazes as ações
humanas, que procuram promover a justiça. Nesse sentido, o Papa Bento XVI, na
perspectiva agostiniana, afirma que a política é mais do que simples técnica para a
definição dos ordenamentos públicos: “a sua origem e seu objetivo estão precisamente
na justiça e esta é de natureza ética”.277
4.4 Verdade, “justiça social” e felicidade
Considerado esse pano de fundo, a análise dos fundamentos da concepção
agostiniana de “justiça social” procurou salientar a relevância dos fundamentos
ontológicos, antropológicos, éticos e morais no contexto da filosofia cristã. Delineadas
as fronteiras da filosofia cristã, na qual os problemas metafísicos por excelência são
Deus e a alma, Agostinho adota como ponto de partida o homem inserido na vida social
e política. O filósofo não entende a vida social como mera imanência e sugere um
conceito de “justiça social” que tem raízes no Absoluto. Na perspectiva da vida feliz, a
“justiça social” é um bem relativo, na esperança da vida feliz.
Com efeito, o Santo funda a relação entre sociedade e justiça de maneira nova e
fundamenta a identidade de um novo homem, do povo cristão, que deve seguir a lei
eterna como a regra moral e universal à qual se deve converter a vontade do homem. O
problema filosófico colocado pelo referido autor é a relação entre o contingente e o
transcendente, entre o homem e Deus.278
Por um lado, a verdadeira justiça é
transcendente, imutável. Por outro, a verdadeira justiça é também peregrina e habita a
alma do homem que busca e ama a Verdade. Nesse sentido, no devir histórico, a
apreensão da verdadeira justiça se insere nas tensões entre a imanência e a
275
Brown comenta que os homens cristãos, cônscios de serem diferentes, pertenciam à categoria dos
peregrinos — residentes estrangeiros. Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Op cit., p. 400 276
Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 27. 277
BENTO XVI, Papa. Deus caritas est. Carta Encíclica, 2005. 278
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.
65
85
transcendência.
Ao falar da justiça como uma virtude que habita a alma do homem, e que,
quando se pratica, constitui um bem que produz alegria e paz, ou concórdia na vida
social, é possível afirmar que, no pensamento do Santo, a verdadeira justiça é
transcendente, imutável. Contudo, a verdadeira justiça é também uma virtude peregrina,
que habita a alma do homem que busca, por amor a Deus, níveis mais altos de
perfeição. Com efeito, para Agostinho, o homem justo ama a Deus. Todavia, na vida
terrena, mesmo vivendo conforme a ordem do amor e experimentando alegria e paz, o
homem ainda não é plenamente feliz. Nas suas palavras:
[...] aquele que possui esta vida de modo a referir seu uso Àquele que
ele ama com um amor maior e pela qual ele espera com uma
esperança mais firme — não é sem razão que desde já pode chamar
feliz, mais por aquela esperança do que por esta realidade. É que esta
realidade sem aquela esperança é uma falsa beatitude e uma grande
miséria: não oferece à alma verdadeiros bens, pois não é a verdadeira
sabedoria aquela que nos bens de cá — que ela escolhe com
prudência, realiza com fortaleza, emprega com temperança e distribui
com justiça- não dirige a sua intenção para o bem supremo em que
Deus será tudo para todos numa eternidade certa e numa paz
perfeita.279
A partir deste trecho, na perspectiva agostiniana, podemos afirmar que, na vida
terrena, a felicidade se assenta na esperança. Desse modo, a esperança vivifica as
verdadeiras virtudes. Assim, as verdadeiras virtudes — prudência, justiça, fortaleza,
temperança — são indissociáveis da esperança. Desse modo, a verdadeira fortaleza é a
virtude que suporta tudo facilmente por amor a Deus; a verdadeira justiça é a virtude
que subordina a vontade do homem a Deus; a verdadeira temperança é a virtude pela
qual o homem espera com tranquilidade por amor a Deus; a verdadeira prudência é a
virtude do discernimento em conformidade com o amor ordenado.
Como resultado do amor ordenado, prevalece a ordem social, fundada na
caridade. Ao privilegiar a urgência da caridade, Agostinho frisa o primado da ética do
amor. Em outras palavras, a alma informa e vivifica a caritas que gera a justiça e a paz
— a pacífica convivência entre os homens e a harmonia social. A relação com o
próximo pode ser entendida como uma passagem para a relação com Deus —
fundamento da justiça.280
279
AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 20. 280
Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit, p. 111.
86
O amor a Deus se afirma numa relação do homem com o seu próximo, na qual
se manifesta a liberdade, enquanto expressão da vontade reta. Santo aponta para a
responsabilidade individual na construção da sociedade justa. Assim, o seu pensamento
aponta para um humanismo em que as escolhas humanas orientadas para a construção
da sociedade justa expressam a ordem do amor. Desse modo, a concepção de sociedade
justa pode ser interpretada na abrangência da convivência humana, no sentido de
privilegiar os fundamentos do agir do povo cristão: o amor à Verdade e a urgência da
caridade.
O Bispo de Hipona frisa uma íntima conexão entre a concepção integral da
pessoa humana e a concepção de “justiça social”. O filósofo coloca dois problemas
centrais — o do sentido da existência do homem e o da orientação ética das ações — e
reconhece a complexidade da experiência da vida social na história. Afirma a natureza
social do homem e, no vir a ser da história, alerta para os seus conflitos morais e para a
mutabilidade das instituições que caracterizam a condição humana. Na medida em que
reflete sobre o problema moral nas relações intersubjetivas, considera a metafísica cristã
como fundamento da ética social. De fato, a metafísica agostiniana tem implicações
éticas e políticas.
Em última análise, o amor à Verdade funda uma concepção de “justiça social”
que privilegia, no entendimento da pessoa humana, uma singularidade universal contra
as abstrações estabelecidas — jurídica ou econômica. Nesse sentido, a atualidade de
Agostinho remete ao debate sobre a necessidade de princípios universais para as
escolhas éticas que tornem possível a permanência e coesão dos laços sociais.
O Santo se afasta da ideia de que devemos entender a ordem social enquanto
uma conquista exclusivamente humana. Tal concepção agostiniana é indissociável do
mistério do Homem-Deus, da mediação e da graça de Cristo, que nos ensina a seguir a
nossa natureza de imago Dei. Nesse sentido, apresenta um caráter teleológico e
escatológico, que afirma um novo fundamento do poder e da justiça na vida social.
Como vimos, o filósofo se mostra crítico da sabedoria do homem e frisa que o
homem não chega à ordem do amor somente pela razão. Com efeito, a razão, por si só, é
insuficiente para alcançar o Sumo Bem, a Verdade, que é a vida feliz. No entanto, a
Verdade é acessível a todos e não reservada apenas para os sábios.281
Nesse contexto filosófico, a caridade é a virtude que habita a alma do homem, e
281
Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.
47.
87
que, quando se pratica, emerge como princípio ético e político cristão ao guiar os
homens na vida social de acordo com o amor ordenado, ou seja, a verdadeira virtude da
justiça.282
Quanto à relação entre a caridade e a vida social, podemos lembrar as
palavras de Arendt que chama a atenção para a articulação entre a ética e a política
subjacente à concepção agostiniana de caritas:
Encontrar um vínculo entre as pessoas suficientemente forte para
substituir o mundo foi a principal tarefa política da primeira filosofia
cristã; e foi Agostinho quem popôs edificar sobre a caridade não
apenas a fraternidade cristã, mas todas as relações humanas.283
Dessa forma, o sentido do dever da caridade vincula-se à necessidade de
desenvolver o espírito de pertencimento social, o espírito de comunidade cristã baseado
na concórdia ou paz temporal. O dever da caridade é imprescindível para a conservação
da comunidade, dos laços sociais. No domínio público, a caridade é a perfeição do amor
(ordenado) que possibilita o convívio dos homens na paz dos justos.
Na perspectiva agostiniana, o processo de conversão do homem cristão é
condição para a “justiça social”. O amor ao próximo e a verdadeira justiça não podem
separar-se porque o amor ao próximo implica o reconhecimento da dignidade do
homem enquanto imago Dei. Desse modo, podemos dizer que, nas relações sociais, a
verdadeira virtude da justiça se fundamenta na reciprocidade do reconhecimento da
dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, na perspectiva agostiniana, a
concepção de “justiça social” é crítica de qualquer orientação individualista na
abordagem e na solução dos problemas vida social, porque tal orientação é incompatível
com o modo de vida do povo cristão.
Assim, a concepção agostiniana de “justiça social” aponta para uma específica
relação do homem frente ao poder e ao próximo na esperança da vida feliz. Da leitura
de A Cidade de Deus emerge uma visão de sociedade como organismo vivo, como um
tecido de relações intersubjetivas no devir histórico. Agudamente crítico do mal moral,
fruto da vontade cindida, Santo Agostinho chama a atenção para a importância do
reconhecimento da alteridade e da vivência da caridade que vai ao encontro do próximo.
Assim, na vida do povo cristão, o amor à Verdade se articula com a vivência do amor
enquanto uma relação transformadora no contexto da promoção da “justiça social”.
282
Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. 129. 283
ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit., p. 65.
88
CONCLUSÃO
A reflexão sobre as dimensões da justiça marca o pensamento de Agostinho —
no qual a filosofia e a teologia se entrelaçam. O Santo lança os fundamentos filosóficos
para pensar a justiça, a liberdade e a paz do homem peregrino, inserido no devir
histórico. É a partir de Cristo que Agostinho reflete filosoficamente sobre a ordem das
coisas no universo e sobre a história dos homens. A sua filosofia cristã apresenta uma
dimensão ética que alimenta não só o sentido espiritual e religioso do homem como
também orienta suas ações na vida terrena a caminho da eternidade. Com efeito, a
especulação filosófica do referido autor tem como ponto de partida o homem inserido
na vida social e política. Considerando este pano de fundo, a presente dissertação trata
da concepção de “justiça social” em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, entendida
como a dimensão social da concepção de justiça.
No primeiro capítulo mostramos como o Bispo de Hipona, fiel à fé cristã,
redefine os termos da discussão sobre o fundamento da justiça e da questão da
sociedade justa no século V. Em conformidade com as nossas hipóteses, mostramos
como, no pensamento do referido autor, a “justiça social” é a dimensão social da justiça
fundada na lei divina. Os pilares da justiça expressam a visão cosmológica de uma
ordem regida pela lei divina. A lei eterna assinala o que os homens justos, que vivem da
fé, devem fazer se desejam ser felizes.
No segundo capítulo, aprofundamos a reflexão de Agostinho sobre o lugar do
homem na criação, o sentido da vida humana e a ambivalência moral do homem, que se
expressa na oposição e nas tensões entre as “duas cidades”. Na análise da relação entre
justiça e retidão, demonstramos a hipótese inicial a respeito da relevância da concepção
integral de homem para a concepção de “justiça social”.
Com efeito, a relação entre a imanência e a transcendência presentes no homem
é crucial para fundamentar uma filosofia da “justiça social” na perspectiva agostiniana.
A filosofia agostiniana, ao privilegiar a reflexão sobre o homem — sua dimensão
material, sua dependência ontológica, seus sentidos e desejos, seus limites, sua busca
pela Verdade, sua temporalidade finita —, tem implicações éticas de grande alcance. O
Bispo de Hipona combina no seu discurso filosófico as questões do ser, do conhecer em
virtude e do amar de forma ordenada. De acordo com o Santo, o conhecimento da
essência do ser do homem se fundamenta no vínculo ontológico. O conhecimento da
89
alma de si mesma, enquanto imago Dei, permite contemplar nela o Verbo Divino. Por
meio do intelecto iluminado pela Luz, a alma pode discernir e reconhecer a sua
efemeridade, as suas limitações, inclusive no âmbito intelectivo.
Com efeito, sendo Deus infinito e a inteligência do homem finita, o ser humano
não pode conhecer a Deus somente pelo desejo da sua alma e pelo esforço da razão
natural. Inclinada sobre as coisas efêmeras, mutáveis e exteriores, a alma cede ao
encantamento dos bens terrenos e esquece que é imago Dei. Como vimos, Agostinho
concede ao auxílio divino um papel fundamental na busca e no conhecimento da
Verdade e, portanto, na restauração da alma. Assim, o Santo não entende a vida social
como mera imanência e defende um conceito de “justiça” e de “justiça social”, que tem
raízes no Absoluto. Nesse sentido, no seu pensamento, há uma íntima conexão entre a
concepção de pessoa humana no contexto de uma antropologia não reducionista e a
concepção de “justiça social”.
No terceiro capítulo, refletimos sobre a justiça e as verdadeiras virtudes,
realçando a ordem interior como condição para a ordem social. Mostramos que, em
conformidade com as nossas hipóteses, no pensamento de Agostinho em A Cidade de
Deus, a conversão da vontade é condição para a construção da sociedade justa onde
impera a “justiça social”. Nesse contexto, a justiça é virtude humanizante de todo
processo político-cultural. O caminho para a justiça se assenta na interioridade, num
processo de conversão que envolve a busca de uma justa medida das coisas e, como
resultado, a “justiça social”, fundada na caridade, pode prevalecer na relação entre os
homens.
Ademais, evidenciamos como o Bispo de Hipona combina, no seu pensamento
filosófico sobre a justiça, as questões do ser, do conhecer e do amar. No seu
pensamento, o ser do homem se fundamenta no vínculo ontológico. Deus vai ao
encontro do homem e, pela infusão da graça, a alma, enquanto imago Dei, pode
contemplar nela a Verdade. Deus, na plenitude de sua bondade, criou o homem e vai a
seu encontro de forma que o homem peregrino não se incline sobre as coisas efêmeras,
mutáveis e exteriores ou, ainda, de forma que a alma não ceda ao encantamento dos
bens terrenos e esqueça que é imago Dei. Assim, a interioridade agostiniana se traduz
numa constante prática reflexiva de autoconhecimento, iluminada por Cristo, de forma a
orientar a existência humana para uma vida virtuosa conforme o amor ordenado.
No quarto capítulo, identificamos os fundamentos do agir do povo cristão, que
subjazem à ética da caridade, e salientamos a relação entre o Absoluto e a alteridade na
90
concepção agostiniana de “justiça social”. Demonstramos, de acordo com as nossas
hipóteses, que a “justiça social” no pensamento de Agostinho em A Cidade de Deus, é
construída sob a responsabilidade ética dos homens no devir histórico e tem como
fundamento o amor à Verdade e a urgência da caridade. No âmbito da doutrina social do
Santo, a caridade e a justiça são duas expressões fundantes do ethos cristão quando
enfatizada a perspectiva da promoção da justiça e da paz.
Assim, a partir da análise dos Livros II, IV, XII, XIV e XIX de A Cidade de
Deus, concluímos que a concepção de “justiça social” pode ser pensada na abrangência
da dimensão contingente e transcendente da vida humana no devir histórico. Ainda que
Agostinho não formule de forma explícita a concepção de “justiça social”, é possível
dizer que a “justiça social” é a dimensão social da justiça que expressa o amor à
Verdade e a urgência da caridade. É possível afirmar que, para o Bispo de Hipona, a
verdadeira justiça é um valor transcendente, imutável. Contudo, a verdadeira justiça é
também peregrina e habita o homem que busca níveis mais altos de perfeição espiritual.
Nesse sentido, os fundamentos filosóficos da concepção agostiniana de “justiça
social” destacam a abrangência da compreensão da subjetividade e da intersubjetividade
da vida humana no devir histórico. Desse modo, o viver justamente, do ponto de vista
social e cristão, é um viver que promove a configuração das relações sociais segundo os
princípios da justiça divina. Crítico do mal moral na condição humana, na qual a
tendência do homem ao egoísmo caracteriza a vida social, o hiponense aponta que o
antídoto a essa orientação egoísta, autocentrada, é o auxílio divino que produz efeitos no
sentido da reorientação do amor sui para o amor Dei.284
Alerta que os bens terrenos não
são portadores de sentido, mas eles encontram seu verdadeiro significado no “olhar” do
homem em relação a eles. No entanto, o afastamento do homem em relação à Verdade
faz com que os próprios homens se mantenham na ignorância e não consigam
reconhecer os aspectos ontológicos do ser.
De acordo com o Santo, se o homem amar de forma ordenada haverá justiça,
haverá promoção e reconhecimento de direitos e, portanto, a própria vida social não
estará ameaçada. Assim, no seu pensamento em A Cidade de Deus, a “justiça social”
está subordinada ao amor Dei. Assim, não é possível pensar a “justiça social” sem o
critério de Verdade, ou seja, sem transcendência. Por que o amor a Deus leva à “justiça
social”? Sem o amor à Verdade, o homem não pode alcançar a ordem interior que é
284
Cf. DOODLEY, Mark. The Pursuit of Social Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John;
PAFFENROTH, Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Op. cit., p. 13.
91
condição para a “justiça social”. Ao orientar a alma para o amor à Verdade, o homem se
afasta das demandas do amor egoísta, concretizadas no amor aos bens terrenos, glória,
poder e prazer que motivam suas ações. Inclinando a alma conforme o amor ordenado,
as demandas de tais bens terrenos encontrarão o lugar correto na vida do homem.
Embasada nas referências bíblicas, a perspectiva agostiniana de “justiça social” lembra
que o homem cristão não pode obedecer a dois senhores. Em suma, Agostinho nos
esclarece sobre a importância, para o ethos cristão, do estabelecimento de um vínculo
social fundado na ética do amor. Nessa perspectiva, o amor ordenado transforma a
injustiça em justiça. Assim, a justiça na ordem social pressupõe a ordem interior como
fundamento da moral, da ética e da política.
Do ponto de vista da permanência e coesão dos laços sociais, as implicações
morais, éticas e políticas da perspectiva agostiniana são decisivas porque somente com
“justiça social” é possível configurar uma vida realmente social. Desse modo, a questão
do próximo, as relações intersubjetivas e a ética do amor ou da caridade são pilares da
filosofia social agostiniana.
Nesse sentido, a questão da “justiça social” em A Cidade de Deus, de Santo
Agostinho, requer uma visão integral do ser humano e o resgate da dimensão
contingente e transcendente da vida do homem na história. A justiça enquanto
verdadeira virtude é a pedra angular da Cidade de Deus: dela depende a sua unidade
porque o povo cristão ama a verdadeira justiça. Somente na Cidade Celeste reina a
verdadeira justiça porque seu fundador é Cristo. Em verdade, Santo Agostinho aponta
para um humanismo em que os juízos e as escolhas humanas, fundamentadas na
Verdade e na caridade, promovem a sociedade justa.
Há uma íntima conexão entre a concepção de sociedade justa e a concepção de
pessoa humana no contexto de uma antropologia que concebe o ser humano enquanto
um todo — corpo e alma — criado à imagem e semelhança de Deus e que possui um
sentido em sua existência. Assim, há a pressuposição do lugar do homem na criação e
na história. No contexto do pensamento do hiponense, somente pode dar sentido à vida
do homem o que transcende. Agostinho reconhece não só a complexidade da
experiência da vida humana na história, mas aponta para a responsabilidade ética na
promoção da justiça na ordem social. No entanto, na perspectiva agostiniana, prover o
próximo das necessidades materiais, obtendo sistemas econômicos e sociais
92
sustentáveis, não é condição suficiente para alcançar a “justiça social”.285
Da leitura de A Cidade de Deus emerge um apelo para o tratamento da questão
da “justiça social”, de modo a fazer valer uma singularidade universal contra as
abstrações estabelecidas — jurídicas ou econômicas — e, ao mesmo tempo, contra toda
reivindicação particularista. Na filosofia agostiniana, não é possível pensar a ética social
sem o Absoluto. Como resultado da ordem da graça, os homens do povo cristão estarão
realmente envolvidos na promoção do bem comum que realiza a “justiça social”.
Considerando o modo de vida do povo cristão, a sociedade justa se constrói sob a
responsabilidade de todos os homens, que direcionam a sua vida de acordo com a ética
da caridade. Nesse sentido, podemos afirmar que Agostinho propõe uma ética com
fundamentos metafísicos que alicerça uma filosofia da justiça social.
Na promoção da “justiça social”, o Santo certamente questionaria de forma
crítica o fundamento dos valores do ordenamento jurídico moderno, que exige que os
direitos dos cidadãos, ou de um grupo de cidadãos, não dependam do compartilhamento
de uma base comum de valores, mas da obediência às leis do Estado. Por último, vale
lembrar que o hiponense condenou a dissociação entre ética e política ou, ainda, entre
moralidade e justiça, porque tal separação torna ineficazes as ações humanas voltadas
para a promoção da sociedade justa.
Ao traçar as condições de legibilidade de um escrito filosófico nascido no século
V, entendemos que Agostinho refletiu sobre as grandes questões do homem, movendo-
se no confronto das posições e na pluralidade de debates do seu tempo. As condições de
legibilidade dos seus textos certamente nos expõem aos paradigmas da filosofia Antiga
e a suas variações, mas também trazem um potencial para pensar o novo.
Ao final desta dissertação, pode-se concluir sobre a radicalidade dos
fundamentos da concepção agostiniana de “justiça social” — ou, ainda, sobre a
dimensão social da justiça fundada na ética da caridade. Na perspectiva agostiniana de
“justiça social”, não existem alternativas para o povo cristão, para os que dizem que
querem viver segundo o amor Dei e não no caminho da hipocrisia que corrompe a vida
social e promove a injustiça. Com efeito, a caridade é pilar da ética social cristã e deve
ser fundada na Verdade. Sem a Verdade, como enfatizou Bento XVI, “a atividade social
acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na
285
Cf. DOODLEY, Mark. The Pursuit of Social Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John;
PAFFENROTH, Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Op. cit., p. 17.
93
sociedade”.286
Em face da crise ética na atualidade, a leitura de A Cidade de Deus reforça
aspectos centrais do debate sobre a “justiça social” que certamente fundamentam
sugestões de estudos futuros para pesquisar sobre novas hipóteses suscitadas pela nossa
investigação. Hoje nós vivemos uma situação de crise profunda da ética na cultura
ocidental, entendida como feixe de instituições e valores. A mercantilização da vida, ao
negar a natureza do homem, coisifica as relações humanas. Assim, nesse contexto,
importantes questões éticas e políticas se impõem com urgência em face da primazia do
poder econômico global. Na atualidade, o ethos do lucro a curto prazo e da eficiência
subordina as relações sociais e legitima as mais diversas desigualdades. A ideia de que o
valor da pessoa depende dos critérios ditados pelos princípios do lucro e da eficiência
implica uma recusa à centralidade da pessoa humana.
A dinâmica econômica do capital globalizado privilegia a lógica financeira, isto,
é o dinheiro torna-se um fim em si mesmo e o homem um mero instrumento para atingir
esse fim. Em outras palavras, a suposta neutralidade da racionalidade individual
econômica, mercantil, se transforma em desemprego, precarização do trabalho, exclusão
social, pauperização. O esgotamento de recursos, as ameaças contra o ambiente também
revelam aspectos deletérios das atuais formas de poder econômico.
Em verdade, a reorganização dos mercados com dominância do poder financeiro
é acompanhada de uma redefinição política fundada numa concepção reducionista do
homem. A respeito desse ponto, podemos citar a discussão travada pelo economista
francês André Orléan, para quem “O indivíduo é aí [no contexto da mercantilização das
relações humanas] definido como uma carteira de débitos-créditos cujo valor é
necessário defender”.287
Nesse quadro de relações sociais, a figura do financista se nos
apresenta como o profeta que anuncia o futuro, embora não seja mais do que um
carneiro de Panurgo.288
Tal lógica financeira se impõe na reorganização empresarial e dos mercados e,
como resultado, o sentido da finalidade humana é atravessado pela “promessa” de
ganhos de produtividade. Ao criticar a natureza desse processo, Passet afirma que “A
procura de produtividade — fenômeno positivo — transforma-se em produtivismo
negativo a partir do momento em que o fenômeno, deixando de servir as finalidades
286
BENTO XVI, Papa. Deus caritas est. Op. cit. 287
ORLEAN, André. La monnaie privatisée. Alternatives Economiques, n. 37, jun. 1998. Ver também,
do mesmo autor: Le pouvoir de la finance, Paris: Odile Jacob, 1999. 288
Cf. PASSET, René. A ilusão neoliberal. Lisboa: Terramar, 2002, p. 82.
94
humanas, se fecha sobre si mesmo para se tornar o seu próprio fim”.289
Nesse cenário, o culto aos bens terrenos — promovidos à categoria dos fins —
provocou um esvaziamento dos valores mobilizadores da justiça social com
consequências profundas na dinâmica social. Estas consequências se expressam nos
custos humanos das novas formas de organização da vida econômica e científica. Com
efeito, a mercantilização do homem se estende à mercantilização das ciências da vida.
No limite da mercantilização da vida, o homem se torna um “material” para o homem.
Nesse contexto, tal como alerta Passet, “é o próprio olhar sobre o ser humano que é
posto em causa”.290
No bojo das profundas transformações políticas e econômicas, a própria natureza
do vínculo entre os homens também se modificou num contexto de fragmentação
latente das esferas do saber científico. Nesse sentido, a situação de profunda crise no
mundo contemporâneo pode ser evidenciada pela crise da metafísica, ou, ainda, pela
incapacidade de expressar uma verdade. Assim, na pós-modernidade, a crise da
totalidade da razão moderna vai apresentar-se como uma crise da filosofia metafísica.
A esse respeito, Lyotard é um nome incontornável em qualquer referência à pós-
modernidade.291
Ao analisar a condição do saber na atual situação da cultura ocidental
nas sociedades avançadas denominadas de pós-industriais, Lyotard aponta para a
reformulação da natureza do saber no bojo de profundas mudanças históricas e culturais
no final do século XX. Ao afirmar que o saber pós-moderno revela uma incredulidade
em relação às metanarrativas, o filósofo francês destaca a crise na filosofia
metafísica.292
É oportuno lembrar que a crítica pós-moderna trouxe à tona discussões
relevantes em torno de alguns pressupostos da tradição iluminista, segundo a qual a
razão científica orienta a ação do homem sem a necessidade de referência a um
transcendente que confira inteligibilidade e normatividade ao existir e às ações
humanas. Nesse sentido, segundo tal tradição, o próprio ser humano levanta a pretensão
de justificar racionalmente o seu pensar e o seu agir.
No entanto, na atualidade não há certezas quanto à razão, aos fundamentos da
verdade e aos valores. Na cultura pós-moderna, a ciência é apresentada como conflitante
com as metanarrativas e, nesse contexto, o discurso moderno não oferece mais um
289
Cf. PASSET, René. A ilusão neoliberal. Op. cit., p. 120 290
Ibidem, p. 128. 291
Cf. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989. 292
Ibidem, p. 12.
95
discurso satisfatório. Tal mudança de estatuto do saber, à qual se refere Lyotard,
consiste em uma nova maneira de aplicação do saber nas sociedades pós-modernas que
reforça a própria mercantilização do saber, ou seja, o saber é e será produzido para ser
vendido.
O reflexo dessa prática pode ser claramente percebido nas sociedades pós-
modernas, sob a forma de poder para o domínio das informações. Dessa maneira,
Lyotard alerta para o fato de que o conhecimento, hoje, nada mais é senão um poderoso
instrumento de dominação dos Estados-nações. Assim, estabelece uma relação
indissolúvel entre saber e poder na cultura pós-moderna, na qual o saber assume uma
dimensão pragmática. No entanto, no âmbito do discurso científico só vale o discurso
denotativo, ou seja, aquele que apresenta possibilidade de ser verificado. Assim, o sábio
é aquele que é capaz de produzir enunciados que possam ser reconhecidos pelas
autoridades (os outros cientistas). Desse modo, o saber científico se isola da sociedade.
Como resultado da crise do saber ocorre a “imanentização dos termos da relação
com a transcendência”, tal como salienta Lima Vaz.293
Assim, a metafisica foi
substituída por mitos que orientam a ação humana. Tais mitos, como o das leis do livre
mercado, revelam a relação entre a fragmentação do saber e a fragmentação social.
Nesse cenário, a fragilização da verdade e o relativismo prevalecem e surgem novos
processos de subjetivação, novos modos de ser e de estar no mundo.
Desse modo, na pós-modernidade surge o desafio do relativismo, a afirmação da
relatividade do conhecimento humano e a incognocibilidade do Absoluto e da Verdade
em razão dos fatores contingentes e/ou subjetivos. Do ponto de vista antropológico,
muda a compreensão do tempo, da vida e do futuro. A subjetividade passa a ditar os
rumos da vida, e a “ética do instante” dita as normas de convivência. Assim, as relações
tornam-se “líquidas”, assim como defende Bauman.294
As práticas difusas reforçam o
hedonismo e o imediatismo e o modo de vida do homem é marcado pelas escolhas que
consideram os desejos, as volições. Por outro lado, a redefinição da temporalidade
provoca, também, a morte das utopias. Onde acaba a esperança, denuncia-se a ausência
das utopias, tal como apontou Marcuse.295
No lugar das utopias, a autorrealização pessoal fundada no utilitarismo subjaz à
293
LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Escritos de filosofia VII: raízes da modernidade. São Paulo:
Loyola, Coleção “Filosofia”, 2002, p. 16. 294
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar,
2003. 295
Cf. MARCUSE, Herbert. O fim da utopia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
96
sociedade pós-moralista, tal como alerta Lipovetsky.296
O modo de vida do homem
desta sociedade pós-moderna busca o bem-estar consumista e, assim, a lógica do
consumo de massa exprime-se na estética do gozo. Esse conjunto de fatores favorece
uma nova articulação entre ética e estética que favorece uma cultura narcísica na qual
prevalecem o culto ao corpo e a valorização da aparência. Nesse contexto em que
prevalece o individualismo, dá-se, portanto, o enfraquecimento e a fragmentação dos
laços sociais.
Nesse cenário, a promoção da justiça social vem se desenvolvendo em paralelo a
uma tendência de substituir gradualmente, e cada vez de maneira mais generalizada, o
discurso sobre os valores fundamentais pelo discurso sobre os direitos fundamentais. No
entender de Speamann,297
os direitos humanos fundamentais não dependem do
compartilhamento de uma base comum de valores entre os membros da sociedade, mas
da sua obediência às leis. Como resultado, há uma ameaça latente à dignidade da pessoa
humana. Tal ameaça reside, em especial, no poder de arbítrio dos governos, como
expressão daqueles que, pensando ter encontrado a verdade, configuram as vidas dos
homens de acordo com a sua vontade.
Considerando esse pano de fundo, é inegável a atualidade do debate sobre os
fundamentos da “justiça social” na perspectiva de Agostinho de maneira a embasar
novos estudos que destaquem as questões relativas ao poder e à justiça na dinâmica
social contemporânea. Diante das ameaças à vida social no século XXI, novos estudos
tornam-se prementes para desdobrar a reflexão agostiniana sobre as escolhas éticas que
possibilitam a permanência e a coesão dos laços humanos num contexto de “justiça
social”.
296
Cf. LYPOVETSKY, Gilles. La era del vacío: ensayos sobre el individualismo contemporaneo. 13. ed.,
Barcelona: Anagrama, 2000. 297
Cf. SPEAMANN, Robert. Europa: comunidad de valores y ordenamento jurídico. Madri: Fundación
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