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FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO Maria Alejandra Caporale Madi A questão da justiça social: uma leitura de A Cidade de Deus de Santo Agostinho São Paulo 2015

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

Maria Alejandra Caporale Madi

A questão da justiça social: uma leitura de A Cidade de Deus de Santo Agostinho

São Paulo

2015

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

A questão da justiça social: uma leitura de A Cidade de Deus de Santo Agostinho

Maria Alejandra Caporale Madi

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação Stricto Sensu em Filosofia da

Faculdade de São Bento do Mosteiro de São

Bento de São Paulo como requisito parcial

para a obtenção do título de Mestre em

Filosofia.

Área de Concentração: História da Filosofia

Orientador: Prof. Dr. Joel Gracioso

São Paulo

2015

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Nome: Maria Alejandra Caporale Madi

Título: A questão da justiça social: uma leitura de A Cidade de Deus de Santo

Agostinho

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação Stricto Sensu em Filosofia da

Faculdade de São Bento do Mosteiro de São

Bento de São Paulo como requisito parcial

para a obtenção do título de Mestre em

Filosofia.

Aprovada em _____ de ____________ de _____.

Banca Examinadora

__________________________________________

Orientador: Professor Doutor Joel Gracioso

__________________________________________

Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva

__________________________________________

Professor Doutor Floriano Jonas Cesar

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À minha mãe, Maria Luzdivina (in memoriam),

pelo exemplo do sentido da fé cristã.

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AGRADECIMENTOS

Sou grata a Deus, porque me fortalece.

Às minhas filhas e aos meus amigos, desde sempre.

Ao Prof. Dr. Joel Gracioso, orientador da dissertação, pelo incentivo e recomendações.

Ao Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva, pelas sugestões no Seminário Discente.

Aos professores Padre Fernando Rocha Sapaterro e Floriano Jonas Cesar, que aceitaram

compor minha banca de qualificação, pela leitura crítica e atenta.

Aos professores da Faculdade de São Bento de São Paulo, em especial ao Prof. Dr.

Pedro Monticelli, pelos ensinamentos nas aulas de Filosofia Social e nos grupos de

estudo.

Aos funcionários da Faculdade de São Bento de São Paulo, pela gentileza e solicitude.

Com todos vocês divido a alegria deste momento.

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RESUMO

MADI, Maria Alejandra Caporale. A questão da justiça social: uma leitura de A

Cidade de Deus de Santo Agostinho. 2015. 102 fls. Dissertação (Mestrado em Filosofia)

– Faculdade de São Bento, São Paulo, 2015.

A atualidade do pensamento de Santo Agostinho remete à necessidade de questionar a

natureza do homem e das escolhas éticas que tornam possível a permanência e a coesão

dos laços sociais no século XXI. A presente dissertação trata da concepção de “justiça

social” em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, entendida como a dimensão social

da concepção de justiça. Ainda que Agostinho não formule explicitamente uma

concepção de “justiça social”, entendemos que é possível refletir sobre seu significado e

seus fundamentos. Para tanto, realiza-se uma leitura em torno das possibilidades de

apreensão da concepção agostiniana de justiça na ordem social. No primeiro capítulo é

apresentada uma análise sobre a relação entre a justiça e a lei divina, baseada nos Livros

II e IV. Mostra-se como Agostinho, fiel à fé cristã, redefine os termos da discussão

sobre o fundamento da justiça e da questão da sociedade justa no século V. No segundo,

explora-se, a partir dos Livros XII e XIV, a relação entre a justiça e a retidão.

Apresenta-se a reflexão de Agostinho sobre o lugar do homem na criação, o sentido da

vida humana e a ambivalência moral do homem, que se expressa na oposição entre as

“duas cidades”. No terceiro, a análise centra-se no Livro XIX, de forma a refletir sobre a

justiça e as verdadeiras virtudes. No quarto capítulo, a análise frisa os fundamentos do

agir do povo cristão e salienta a relação entre o Absoluto e a alteridade na ética da

caridade. Ao final, conclui-se que a concepção de “justiça social” em Agostinho pode

ser pensada na abrangência da dimensão contingente e transcendente da vida social no

devir histórico e destaca a compreensão da subjetividade e da intersubjetividade da vida

humana. É possível dizer que a “justiça social” é a dimensão social da justiça e que ela

se fundamenta no amor à Verdade e na urgência da caridade. Desse modo, o viver

justamente, do ponto de vista social e cristão, é um viver que promove a configuração

das relações humanas segundo os princípios da justiça divina. Do ponto de vista da

permanência e coesão dos laços sociais, as implicações morais, éticas e políticas da

perspectiva agostiniana são decisivas porque somente com justiça social é possível

configurar uma vida realmente social. No âmbito da doutrina de Agostinho, caridade e

justiça são duas expressões fundantes do ethos cristão quando enfatizada a “justiça

social”.

Palavras-chave: Santo Agostinho. Justiça. Justiça social. Ética. Moral. Política.

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ABSTRACT

MADI, Maria Alejandra Caporale. The question of social justice: a reading of Saint

Augustine’s The City of God. 2015. 102 pp. Dissertation (Master in Philosophy),

Faculdade de São Bento, São Paulo, 2015.

The current relevance of Saint Augustine’s thinking is related to the need to question

the nature of man and of the ethical choices that allow the permanence and cohesion of

social ties in the twenty-first century. This dissertation discusses the concept of “social

justice” in Saint Augustine’s The City of God, which is understood to be the social

dimension of the conception of justice. Although Saint Augustine does not explicitly

formulate a conception of “social justice”, we understand that is possible to reflect on its

meaning and foundations. This was achieved by conducting a reading around the

possibilities of apprehension in the Augustinian concept of justice in the social order.

The first chapter presents an analysis of the relationship between justice and divine law,

based on Books II and IV. This is seen in how Saint Augustine, faithful to the Christian

faith, redefines the terms of the discussion on the foundation of justice and the question

of a just society in the fifth century. In the second chapter, the relationship between

justice and righteousness is explored through Books XII and XIV. Augustine’s

reflection on the place of man in creation, the meaning of human life, and man’s moral

ambivalence, which is expressed in the opposition between the “two cities”, is

presented. In the third chapter, the analysis centers on Book XIX in order to reflect on

justice and the true virtues. In the fourth chapter, the analysis emphasizes the

foundations of the Christian people’s actions, and highlights the relation between the

Absolute and otherness in the ethics of the charity. Finally, it is concluded that Saint

Augustine’s conception of “social justice” can be considered in the comprehensiveness

of the significant and contingent dimension of social life in the history of becoming, and

highlights the comprehension of subjectivity and the intersubjectivity of human life. It is

possible to say that “social justice” is the social dimension of justice, and that it is based

in love of Truth and in the urgency of charity. In this manner, living justly, from a

Christian and social viewpoint, is a way of living that promotes the configuration of

human relations according to the principles of divine justice. From a viewpoint of

permanence and cohesion of social ties, the moral, ethical, and political implications of

the Augustinian perspective are decisive because only with social justice is it possible to

configure a truly social life. Within the scope of Augustine’s doctrine, charity and

justice are two founding expressions of the Christian ethos when the “social justice” is

emphasized.

Keywords: Saint Augustine. Justice. Social justice. Ethics. Morals. Politics.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 9

1 A JUSTIÇA E A LEI DIVINA.................................................................................... 16 1.1 Verdade, justiça e felicidade ................................................................................. 16

1.2 A verdadeira justiça e a política ............................................................................ 21 1.3 Poder, fé e justiça .................................................................................................. 24 1.4 A lei divina na sociedade justa ............................................................................. 29

2 JUSTIÇA E RETIDÃO ............................................................................................... 31 2.1 O homem na criação ............................................................................................. 32 2.2 Os dois amores e as duas cidades ......................................................................... 35 2.3 Vontade, retidão e justiça ...................................................................................... 37

2.4 A cisão da vontade e os modos de vida ................................................................ 39 2.5 A retidão de vida na sociedade justa ..................................................................... 44

3 JUSTIÇA E VIRTUDE ............................................................................................... 47 3.1 O Sumo Bem e a verdadeira virtude da justiça ..................................................... 49

3.2 A ambivalência moral do homem e os juízos humanos ........................................ 55 3.3 Conversão da vontade, justiça e paz: da ordem interior à ordem social ............... 59

3.4 A vida virtuosa na sociedade justa ........................................................................ 63

4 UMA FILOSOFIA DA “JUSTIÇA SOCIAL” FUNDADA NA CARIDADE ........... 66

4.1 Fundamentos do agir do povo cristão ................................................................... 67 4.2 Verdade e Caridade ............................................................................................... 71

4.2.1 Qual a relação entre o amor à Verdade e a urgência da caridade? ................. 71 4.2.2 O que o amor à Verdade nos obriga a manter enquanto conduta do povo

cristão? .................................................................................................................... 74

4.2.3 O que a urgência da caridade nos obriga a sacrificar nas ações do povo

cristão? .................................................................................................................... 76 4.3 A caridade e a política na sociedade justa: poder e serviço .................................. 79

4.4 Verdade, “justiça social” e felicidade ................................................................... 84

CONCLUSÃO ................................................................................................................ 88

REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 97 Obras de Santo Agostinho .......................................................................................... 97

Textos clássicos e comentadores ................................................................................ 97 Outras referências ..................................................................................................... 100

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9

INTRODUÇÃO

O estudo da natureza humana e dos problemas sociais do homem, a sua

atividade cognoscitiva e afetiva, o seu destino e as condições para atingir a felicidade

marcam a obra de Santo Agostinho, na qual a filosofia e a teologia se entrelaçam. O seu

pensamento suscita uma reflexão sobre os fundamentos filosóficos da justiça social,

assim como também das suas implicações éticas e políticas.

O Bispo de Hipona foi defensor da justiça, amante da paz, atento ao clamor dos

pobres, além de adversário da iniquidade e do arbítrio. Como exemplo da profundidade

da crítica política presente em A Cidade de Deus, o referido autor destacou questões

relativas ao sofrimento moral dos seres humanos, de forma a combater o abuso de poder

na vida terrena. Tal dimensão do seu pensamento e da ação se manifesta nas palavras do

seu biógrafo Posídio, que frisam a preocupação de Agostinho com o socorro aos

pobres.1 Mostrou-se um pensador preocupado em transformar o modo de vida do

homem e participou intensamente das controvérsias religiosas, sociais e políticas da sua

época. Nesse sentido, o Santo procurou denunciar as raízes das doenças sociais e

políticas.

O autor de A Cidade de Deus teve a audácia de pensar o “homem novo”,

inserido num modo de vida cristão que transgredia o modo de vida prevalecente à

época. Na sua perspectiva, todas as coisas do universo existem a partir de Deus, por

Deus e em Deus. A sua filosofia centra-se na relação de Deus com o homem, tendo este

como fim último a Sabedoria, o conhecimento de Deus Uno e Trino, que é “tudo em

todas as coisas”. Assim, ele apresenta uma visão cosmológica na qual a finalidade do

homem é o conhecimento do Deus-Verdade, que é também Deus-Amor. Este é o

conceito metafísico superior, é o limite do cognoscível. O referido autor entende que a

fé é conciliável com a razão e desenvolve uma filosofia a serviço do amor.

A análise sobre as dimensões da justiça marca o pensamento do hiponense — no

qual a filosofia e a teologia se entrelaçam. Ele estabelece novos fundamentos filosóficos

para pensar a justiça, a liberdade e a paz do homem peregrino, inserido no devir

histórico. Considerando este pano de fundo, a presente dissertação trata da concepção de

“justiça social” em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, entendida enquanto a

dimensão social da justiça.

1 POSÍDIO. Vida de San Agustín, Tradução Victorino Capánaga. Disponível em:

<http://www.augustinus.it/spagnolo/vita/possidio.htm>. Acesso em: 7 ago. 2014.

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Em A Cidade de Deus, o Santo desenvolve reflexões sobre os laços sociais do

povo cristão num período histórico em que se podem identificar duas questões

históricas relevantes: por um lado, o Império Romano fragilizado pelas invasões

germânicas e pela crise interna; por outro, a evolução do cristianismo, que se vai

impondo progressivamente como um novo modo de vida. Nesta realidade histórica, a

vida feliz é uma questão central do debate filosófico.

No contexto do baixo Império Romano, o pensamento de Agostinho revela um

ponto de mutação e propõe um novo fundamento para o sentido da história humana. A

sua crítica à tradição clássica greco-romana coloca a necessidade de fundar a justiça

humana numa forma superior de justiça. Deste modo, ao refletir sobre a sociedade justa,

o referido autor funda a relação entre sociedade e justiça de maneira nova e destaca a

identidade de um novo homem e do povo cristão. Como resultado, o Santo cristianiza o

conceito de “justiça” e ressalta que a verdadeira justiça é Deus imperando na sociedade.

Fundamentado no providencialismo, o filósofo apresenta uma interpretação dos

males na vida social — arbítrio, iniquidade, injustiça. Nesta análise, a afirmação de uma

esperança escatológica e o julgamento transcendente sobre a história embasam a

redefinição dos termos da discussão sobre a política, a justiça e a questão da sociedade

justa.2

Dentro de nossas limitações, a resposta à indagação de quais são os fundamentos

filosóficos da questão da “justiça social” em A Cidade de Deus se desdobra num

conjunto de perguntas. Como nos adverte Ramos,3 é o próprio Agostinho quem afirma,

em uma das primeiras cartas, ao amigo Nebrídio, que de todo “existente” se deve

perguntar pela natureza e pelo valor.4 O que significa, pois, a “justiça social”? Qual é a

sua natureza e seu valor? Para um filósofo cristão, que procura a Verdade que torna o

homem bem-aventurado, de que modo é concebida a “justiça social”? A “justiça social”

é constitutiva da ação humana? Como pode ser atingida senão através da justiça? Qual a

possibilidade de promoção de uma sociedade justa? Mas de que maneira definir, então,

a própria justiça? Quais as dimensões sociais e políticas da caridade? Quais os

fundamentos filosóficos do poder e da ética que promovem uma vida realmente social e

justa?

É na linha dessas preocupações que se coloca a presente dissertação, cujo

2 Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. São Paulo: Loyola, 2001, p. 170.

3 Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.

Agostinho. Loyola: São Paulo, 1984, p. 36. Refere-se à carta do Epistolário (11,4). 4 Ibidem. Introdução.

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desenvolvimento foi norteado por algumas hipóteses:

A “justiça social” é a dimensão social da justiça fundada na lei divina;

A relação entre a imanência e a transcendência presentes no homem, enquanto

imago Dei, é crucial para fundamentar uma filosofia da “justiça social”;

A conversão da vontade, conforme o amor ordenado, é condição para a

construção da “justiça social”;

A “justiça social”, construída sob a responsabilidade dos homens no devir

histórico, tem como fundamento o amor à Verdade e a urgência da caridade;

A “justiça social” expressa a justiça na ordem social;

Na sociedade justa impera a “justiça social”.

Considerando este pano de fundo, o objetivo deste trabalho é realizar uma leitura

em torno das possibilidades de apreensão da concepção de justiça na ordem social em A

Cidade de Deus sob a ótica da filosofia cristã de Agostinho.5 Seguindo a interpretação

de Ramos,6 entendemos que tal filosofia cristã tem por base uma metafísica da Verdade

e do Bem e é nesta metafísica que se fundamentam não só a antropologia, a ética e a

política mas também a moral, que é uma “moral da felicidade e do dever, do amor e da

liberdade”.7

Assim, nosso objetivo é realizar uma leitura sobre os fundamentos filosóficos da

“justiça social”, entendida enquanto a dimensão social da concepção agostiniana de

justiça. Tal concepção privilegia as relações entre a lei divina, a retidão de vida, a

conversão da vontade e a caridade na conformação da sociedade justa — entendida

enquanto a sociedade organizada em torno do princípio da justiça.

Sobre tais questões centramos a nossa atenção em A Cidade de Deus,8 em

especial nos Livros II, IV, XII, XIV e XIX. Ainda que o hiponense não tenha formulado

5 Sobre o debate a respeito da possibilidade de uma filosofia cristã, ver GILSON, Etienne. A Filosofia na

Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 6 Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.

Agostinho. Op. cit. 7 Cf. Ibidem, p. 74.

8 Santo Agostinho redigiu A Cidade de Deus entre 413-414 e 426-427. Os três primeiros livros iniciam-se

em setembro de 413; os livros IV e V, em 415. Em 417, Agostinho redige o livro XI. Mas é só depois de

ter escrito as Quaestiones in Heptateuchum e as Locutiones que termina e escreve os livros XV e XVI,

isto é, por volta de 420. Em 425, redige o livro XVIII, e somete em 427 termina os outros livros. A esse

respeito, ver AURELL, Jaume. La Ciudad de Dios de San Agustín: el texto en su contexto. In: AMORES

DUO, CIVITATES DUAS: reler De Civitate Dei de Sto. Agostinho (413... – 2013). Colóquio

Internacional. Portugal: Instituto de Filosofia Prática, 14-15 nov. 2013.

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de forma explícita uma concepção de “justiça social”, entendemos que é possível refletir

sobre seu significado e seus fundamentos sob a ótica da filosofia social do referido

autor.

Nossa investigação contribui para a análise das dimensões da justiça no

pensamento de Santo Agostinho. Em particular, ela contribui para explicitar o conceito

de “justiça social” em A Cidade de Deus na medida em que reflete sobre a dimensão

social da justiça fundada na ética da caridade. O filósofo sempre teve em mente o

homem concreto, criatura ferida pelo pecado e salva pelo auxílio divino. Desta forma,

este trabalho apresenta uma visão integral de homem e aponta para a abrangência da

compreensão da subjetividade e da intersubjetividade da vida humana no devir histórico

na compreensão da filosofia agostiniana de “justiça social”.

Com efeito, o seu pensamento suscita uma reflexão sobre os fundamentos

cristãos da ordem social, assim como também sobre as implicações éticas e políticas da

justiça. Esta tarefa é, por si só, desafiadora no cenário da cultura pós-moderna. Na

atualidade, o sentido social da justiça remete à tensão entre os objetivos da acumulação

de capital e as condições materiais de vida do homem. Neste contexto, de acordo com

Kelsen,9 o relativismo de valores introduz uma incerteza no mundo contemporâneo:

incerteza quanto ao sentido da existência humana.

Em verdade, hoje vivemos uma crise profunda na cultura ocidental por causa da

mercantilização da vida, que coisifica as relações humanas. Importantes questões éticas

e políticas se impõem em face da primazia do poder econômico global e do ethos do

lucro a curto prazo, que não só subordina a dinâmica social mas também legitima as

mais diversas desigualdades. A dinâmica econômica global privilegia a lógica

financeira do capital, que torna o dinheiro um fim em si mesmo, de modo que o homem

torna-se um mero instrumento para atingir esse fim. Tal lógica se impõe na

reorganização empresarial e dos mercados e, como resultado, o sentido da finalidade

humana é atravessado pela “promessa” de ganhos de produtividade no bojo da adoção

de novas tecnologias. A suposta neutralidade da racionalidade econômica se transforma

em desemprego, precarização do trabalho, exclusão social e pauperização. Nesse

quadro, o culto aos bens terrenos — promovidos à categoria dos fins — provocou um

esvaziamento dos valores mobilizadores da justiça social. Ademais, no bojo da

expansão do poder do capital global, prevalecem novos processos de subjetivação.

9 Cf. KELSEN, Hans. Quést-ce la Justice? Genève: Marcus Haller, 2012.

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Novos modos de ser e de estar no mundo ditam os rumos da vida social, na qual a “ética

do instante” dita normas de convivência. Nesse contexto em que prevalece o

individualismo, dá-se o enfraquecimento e a fragmentação dos laços sociais.

Sem dúvida, a atualidade de Agostinho remete ao debate contemporâneo sobre a

necessidade de princípios universais para as escolhas éticas que tornem possível a

permanência e a coesão dos laços sociais no século XXI. O Santo insere dois problemas

centrais: o do sentido da existência do homem e o da orientação ética das suas ações. Na

medida em que reflete sobre essas questões, considera que a metafísica cristã é o

fundamento da ética, da moral e da política. Na promoção da sociedade justa, o referido

autor condenou a dissociação entre a ética e a política, ou ainda, entre a moralidade e a

justiça. Ao traçar as condições de legibilidade de um escrito filosófico nascido no século

V, entendemos que o Santo refletiu sobre a natureza do poder na vida social, movendo-

se no confronto da pluralidade de debates do seu tempo. Assim, as suas ideias sobre o

poder e sobre a justiça social certamente trazem um potencial para pensar o novo.

Nossa leitura foi inicialmente influenciada pelas reflexões de Robert Dodaro a

respeito da sociedade justa no pensamento de Agostinho. Nos seus comentários, ele

destaca que a apreensão da concepção de sociedade justa deve ter em mente o uso que o

Bispo de Hipona faz do termo “iustitia”. Segundo Dodaro, tal uso envolve a

combinação de três significados.10

O primeiro significado expressa o sentido clássico,

geralmente de tradição grega e também da filosofia romana, e considera a justiça

enquanto virtude, mediante a qual é dado a cada indivíduo o que lhe é devido. O

segundo revela a influência do Novo Testamento e da patrística latina e iguala a justiça,

enquanto virtude, ao amor a Deus e ao próximo. Nesse sentido, as verdadeiras virtudes

— e, em especial, a justiça — são uma forma de amor a Deus, que é a fonte de justiça.

Por último, o terceiro significado, traduzido como “retidão”, denota a influência da

noção paulina de “dikaiosyne” que é a condição da alma mediante a qual ela se encontra

em uma relação “correta” com Deus, o Criador, desde que propriamente ordenada. A

justiça, assim, é concebida em conjunção com o conceito de “ordem do amor” (ordo

amoris), que transmite a hierarquia dos bens estabelecida por Deus. Estas diversas

interpretações abrem perspectivas para pensar as dimensões da justiça em A Cidade de

Deus.

Ademais, entre outras referências importantes para a construção da nossa

10

Cf. DODARO, Robert. Cristo e a sociedade justa no pensamento de Agostinho. Curitiba: Scripta, 2014, p.

17.

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argumentação, a leitura das interpretações de Markus, Arendt, Curbelié, Ramos e Lima

Vaz nos alertou para a necessidade de uma visão interdisciplinar que considere, entre

outras frentes de pesquisa, as relações entre a filosofia, a antropologia e a história para

dirimir as múltiplas questões que emergem dos escritos de Agostinho.

Cientes das dificuldades de realizar uma síntese da reflexão agostiniana em A

Cidade de Deus, vamos apresentar o percurso de nossa leitura em quatro capítulos. No

primeiro, fundamentamos, a partir dos Livros II e IV, a análise da relação entre a justiça

e a lei divina. O objetivo é evidenciar como o Santo se afasta da referência ao “justo” da

lei romana e propõe um novo fundamento para a justiça. Nesse capítulo, mostramos

como Agostinho apresenta o princípio fundante da justiça, que é a lei divina, e como se

articulam Verdade, justiça, felicidade e fé no seu pensamento. Do exposto, refletimos

sobre a lei divina na sociedade justa.

No segundo capítulo, privilegiamos, a partir dos Livros XII e XIV, uma análise

da relação entre a justiça e a retidão na perspectiva do autor de A Cidade de Deus.

Ressaltamos a concepção agostiniana de justiça enquanto retidão, que denota a condição

da alma mediante a qual o homem se encontra em uma relação “correta” com Deus, o

Criador. Mostramos como o Bispo de Hipona desdobra a reflexão filosófica sobre a

cisão da vontade na oposição e tensões entre as duas cidades: a Cidade de Deus e a

Cidade Terrena. Do exposto, refletimos sobre a retidão do homem na sociedade justa.

No terceiro capítulo, centramos a leitura no Livro XIX, de forma a explorar a

relação que o Santo estabelece entre a justiça e as verdadeiras virtudes. Para o filósofo,

o homem é um ser de natureza social que quer ser feliz. Evidenciamos como

Agostinho, ao refletir sobre a ordem social, redefine a relação entre o Bem Supremo e

as virtudes e funda a concepção de sociedade justa de maneira nova. Resgatamos a

análise agostiniana sobre a conversão da vontade e salientamos a ética social como

aspecto central do pensamento do autor de A Cidade de Deus.

No quarto capítulo, continuamos a leitura do Livro XIX de A Cidade de Deus e

explicitamos as indagações de Santo Agostinho sobre o ser e o agir do povo cristão.

Apresentamos a reflexão agostiniana sobre os fundamentos do agir do povo cristão,

quais sejam, o amor à Verdade e a urgência da caridade. Considerando os pilares da

filosofia social do hiponense, refletimos sobre a ética da caridade e sua relação com a

justiça e a política na conformação da sociedade justa.

Por fim, a conclusão sintetiza, a partir da nossa leitura de A Cidade de Deus, os

pilares da filosofia agostiniana da “justiça social”— que considera a metafísica cristã

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como fundamento da ética social fundada na caridade. Esta leitura aponta para a

concepção de “justiça social”, enquanto um bem terreno na esperança da vida feliz, que

é expressão do amor Dei e da urgência da caridade.

Na filosofia agostiniana, a promoção da “justiça social” exige como condição a

conversão da vontade do homem. Assim, o povo cristão peregrino, que age por amor à

Verdade e por dever de caridade, vive de acordo com a ordem estabelecida por Deus e

tem consciência da sua responsabilidade na promoção da justiça realmente social. Tal

“justiça social” não deve ser confundida nem com filantropia nem com uma

espiritualidade que desconsidera as estruturas sociais na vida histórica.

De acordo com o pensamento agostiniano em A Cidade de Deus, a verdadeira

justiça é o objetivo e, também, a medida intrínseca de toda política. Ao considerar a

complexidade da experiência da vida humana no devir histórico, Agostinho chama a

atenção para as implicações da responsabilidade ética no processo de construção da

“justiça social”.

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16

1 A JUSTIÇA E A LEI DIVINA

No contexto do baixo Império Romano, o pensamento de Agostinho revela um

ponto de mutação e propõe um novo fundamento para o sentido da história humana.

Desse modo, de acordo com Eslin, Agostinho, enquanto primeiro filósofo romano a sair

da Antiguidade, introduz uma desestabilização dentro da história da filosofia

ocidental.11

Assim, a compreensão do pensamento de Santo Agostinho em A Cidade de

Deus não pode ser dissociada da evolução da doutrina cristã que se vai impondo

progressivamente como um novo sistema de pensamento.12

Fundamentado na fé cristã, o Bispo de Hipona apresenta uma nova interpretação

da vida humana na história,13

que se assenta na Metafísica da Verdade e do Bem. Tal

interpretação subjaz à redefinição dos termos da discussão sobre a justiça e a questão da

sociedade justa. Na perspectiva agostiniana, o princípio fundante da justiça é

indissociável da Verdade.

1.1 Verdade, justiça e felicidade

É oportuno lembrar que, no Livro I, Agostinho desenvolve reflexões sobre o

ataque a Roma, por Alarico, em 410, e sobre o papel dos cristãos nesse episódio. O

hiponense analisa a realidade histórica da crise romana, que se caracteriza por um

quadro de corrupção, de injustiça social e de decadência das instituições políticas. Ao

descrever o modo de vida dos homens do seu tempo, o Santo aponta que o maior

problema é o mal moral — reflexo do “coração perverso”.14

Refletindo sobre os males

da vida social, ele chama a atenção para as consequências do comportamento humano

por causa dos “grilhões de certas paixões”15

que induzem a juízos errados, ilícitos, que

estimulam torturas, violências, iniquidades. No seu entender, o homem revela uma

ambivalência que se traduz em conflitos morais: o homem ama a paz e deseja o poder; o

11

Cf. ESLIN, Jean-Claude. La Cité De Dieu: spirituel et politique. Lumière&Vie, n. 280, p. 53-61, 2008. 12

Segundo Peter Brown, no século IV, o Império Romano enfrentava tensões políticas, econômicas e

sociais. Além das invasões dos bandos de bárbaros ao norte, o Império era contestado pelo reino bem

organizado e militarista da Pérsia, no Leste. Do ponto de vista econômico: os impostos haviam duplicado

ou até triplicado; os pobres eram vitimados pela inflação enquanto os ricos acumulavam propriedades.

Qualquer ofensa ao imperador ou a seus servidores podia acarretar a destruição de toda uma comunidade

de aldeãos por meio da mutilação pela tortura ou reduzindo-os à condição de mendigos. (BROWN, Peter.

Santo Agostinho: uma biografia. 4. ed., Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2006). 13

Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. Op. cit., p. 170. 14

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. 4. ed., Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011. Livro I, 1. 15

Ibidem. Livro I, 9.

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homem ama a paz e pratica a iniquidade porque se desvia da contemplação da

Verdade.16

Ora, na sequência de sua exposição, o autor de A Cidade de Deus apresenta, no

Livro II, a seguinte questão: os deuses pagãos são eficazes para assegurar a

prosperidade da cidade?17

O referido autor desenvolve uma reflexão sobre o papel dos

deuses pagãos na prosperidade de Roma e situa inicialmente a sua resposta no plano da

história.18

Nesse sentido, diante dessa questão, o Santo oferece uma resposta negativa

para demonstrar que os males aconteceram aos romanos quando, antes da propagação

da religião cristã, prestavam culto aos deuses pagãos.19

Assim, demonstra que os

romanos não foram preservados do infortúnio pelos seus deuses. Nas suas palavras:

Mas dos males da alma, dos males da vida, dos males dos costumes

(tão grandes que é deles que a República ruirá, mesmo que se

mantenham de pé as cidades, como testemunham os seus mais doutos

varões) nada os deuses fizeram para que tais males não atingissem os

seus adoradores. Bem ao contrário — procuraram por todos os modos

que eles aumentassem [...].20

No trecho citado, podemos notar que, para o autor de A Cidade de Deus, os

romanos, em verdade, foram oprimidos pelos deuses pagãos com a única, ou pelo

menos a maior, de todas as calamidades — a corrupção dos costumes e os vícios da

alma.

Na sua argumentação, o referido autor retoma a evolução histórica das

instituições e dos costumes na tradição cultural do Império Romano, com destaque para

a importância do direito. Em verdade, o objetivo de Agostinho é resgatar tal aspecto

relevante da vida social entre os romanos para alicerçar a sua crítica aos fundamentos da

justiça. Nesse sentido, o Santo afirma: “Serei comedido e, como testemunha,

apresentarei antes o próprio Salústio que, quando falava em louvor dos Romanos, dizia

isto com que iniciámos esta exposição: Entre eles o direito, tal como o bem, tirava o seu

valor mais da natureza do que das leis”.21

Podemos notar que, no entender do Bispo de Hipona, Salústio indica a existência

16

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro I, 27. 17

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin, Paris: Études

Augustiniennes, 1961, p. 37. 18

Ibidem, p. 38-39. 19

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro I, 36. 20

Ibidem. Livro II, 16. 21

Ibidem. Livro II, 17.

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de um direito que tem sua origem e seu fundamento na natureza humana. De acordo

com esta concepção de direito natural, as normas estabelecidas pelos homens para viver

em sociedade podem ser julgadas a partir da lei natural, isto é, a lei que reflete a justa

razão, imanente à natureza, e que governa o universo racionalmente ordenado.22

Assim,

o direito natural toma como referência a lei natural identificada com a razão e inscrita

no interior do ser humano. Nesse contexto, o conceito de justiça é fundado na lei natural

que está inscrita na alma do homem. Sendo um ser racional, o homem tem que conhecer

a lei natural e aplicá-la na sua conduta. Ademais, do ponto de vista moral, o bem (o

justo) é o resultado da observância da lei natural. Desse modo, o sentimento natural de

justiça, produto da razão natural, condiciona o comportamento moral de todos os

homens. Nesse sentido, a razão natural é fundamento do direito, da justiça e da moral.

No âmbito da vida social, a identificação da ordem da natureza com a ordem moral cria

vínculos entre homens cuja alma tem uma inclinação natural para identificar o que é

justo, sempre bom.23

Apesar de Agostinho ser um cidadão romano, a sua concepção de justiça se

afasta daquela que afirma que o fundamento do direito e do bem (justo) está na

natureza. De fato, o hiponense não autorizará que as categorias do direito natural

identifiquem o fundamento da justiça ou, ainda, a identidade do homem justo.24

Para

desenvolver este argumento, o Santo apresenta uma segunda questão que é decisiva para

a continuidade de sua reflexão: o que preside o desenvolvimento da cidade no curso da

história? Em outras palavras, o que preside o destino temporal dos homens?25

Para elaborar a resposta à indagação acima referida, o autor conduz a sua análise

para o terreno da moral e frisa que os males morais devem ser considerados os maiores

e verdadeiros males.26

Na sua argumentação, não só refuta o paganismo que busca o

Sumo Bem na vida temporal mas também introduz a dimensão salvadora da doutrina

cristã.27

Lembremos as suas palavras:

22

Cf. BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves de. Direito natural em Cícero e Tomás de Aquino. In:

PISSARA, Maria Constança Peres; FABRINI, Ricardo Nascimento. (Coords.). Direito natural: a noção

de justiça na história da filosofia. São Paulo: Atlas, 2007, p. 43-58, p. 44. 23

Cf. Ibidem, p. 43-45. 24

Cf. BADIOU, Alain. São Paulo: a fundação do universalismo. Tradução Wanda Caldeira Brant. São

Paulo: Boitempo, 2009, p. 21. 25

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin.Op. cit., p.

40. 26

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 2. No Livro III, Agostinho trata dos

males ligados ao corpo e às coisas exteriores que são sujeitas a mutações. 27

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.

38-39.

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Então, porque é que imputam os males presentes a Cristo, que com a

sua doutrina salvadora proíbe o culto dos deuses falsos e falazes,

detesta e condena, com divina autoridade, estas nocivas e

escandalosas paixões dos homens, subtrai pouco a pouco em toda a

parte, deste mundo que cambaleia e cai nesses males, a família com

que fundará uma cidade eterna, a mais gloriosa, não pelos aplausos de

vãs superficialidades, mas pelo autêntico valor da verdade?28

A partir deste trecho, podemos dizer que Agostinho estabelece um novo

fundamento para a justiça. Cristo é o autêntico juiz e, portanto, a justiça funda-se na lei

divina. Assim, o Santo frisa que Deus é justo e fonte de justiça.29

Ressalta, deste modo,

o julgamento transcendente das ações humanas e afirma a esperança escatológica na

vida feliz, que é eterna. Em particular, o Santo propõe uma relação entre a justiça

divina e a justiça na alma dos homens: a justiça humana deve se subordinar à justiça

divina. Desse modo, o hiponense estabelece uma relação entre Verdade e justiça. A esse

respeito, a interpretação de Curbelié ressalta que esse binômio estará presente de

maneira decisiva em A Cidade de Deus.

Na sequência da sua argumentação, ao refletir sobre o alcance do impacto dos

deuses pagãos na vida dos homens, surge um novo questionamento no pensamento de

Agostinho: qual a relação entre a justiça e a felicidade? A esse respeito, lembremos as

palavras do hiponense quando diz:

E todavia continuam a não imputar aos seus deuses que o Estado se

tornou antes da vinda de Cristo no pior e mais depravado devido ao

fausto, à avareza, aos costumes cruéis e torpes. Mas de tudo por que

estão nestes tempos passando devido à sua soberba e aos seus prazeres

acusam a religião cristã. Se os reis da Terra e todos os povos, os

governantes e todos os juízes da Terra, os jovens e as donzelas, os

velhos com os novos, toda a idade adulta de ambos os sexos, os

cobradores de impostos e os soldados de que fala o Baptista João,

ouvissem e praticassem estes preceitos sobre os justos e bons

costumes — a república teria ornado as terras já cá com a felicidade

da vida presente e teria subido até ao cume da vida eterna para

conseguir um reinado de completa felicidade!30

Esse texto citado indica que o autor de A Cidade de Deus distingue entre a

felicidade da vida presente e a completa felicidade. Assim, o Santo salienta sua

28

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 18. 29

Cf. CURBELIÉ, Philippe. La justice dans La Cité de Dieu, Paris: Institute de D’Études Augustinennes,

2004, p. 94. 30

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 19.

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20

preocupação com o tema da felicidade, presente também na filosofia greco-romana;

contudo, ele apresenta mudanças na concepção de vida feliz. Na perspectiva filosófica

agostiniana, a felicidade somente é plena na vida eterna.31

Para ser verdadeiramente

feliz, o homem não pode nortear a sua vida pela posse dos bens terrenos, que são

mutáveis e que ele pode perder. Nesse sentido, os bens terrenos não permitem saciar o

desejo natural do homem à felicidade. O homem somente é feliz se possuir um bem

imutável, que é Deus. Agostinho explicita, dessa forma, uma relação entre Verdade e

felicidade, qual seja, a felicidade encontra-se na posse da Verdade-Deus.

A seguir, no Livro II de A Cidade de Deus, o Bispo de Hipona retoma a questão

do fundamento da justiça e sublinha a relação entre a justiça e a vontade de Deus. O

Santo diferencia seu pensamento filosófico sobre a justiça da tradição greco-romana por

apresentar como fundamento último da justiça é o Deus-Verdade. Com efeito, o referido

autor afirma que a vontade de Deus é a lei eterna. Nas suas palavras:

Mas porque este ouve, aquele despreza e a maioria é mais amiga das

blandícias dos vícios do que da útil aspereza das virtudes, ordena-se

aos servidores de Cristo, sejam eles reis ou governantes, juízes ou

militares, soldados das províncias, ricos ou pobres, livres ou servos de

ambos os sexos, que tolerem o Estado se for necessário, mesmo sendo

o pior e mais depravado e que adquiram para si, pelo preço de uma tal

tolerância, uma morada esplendorosa na santíssima e augustíssima

cúria dos anjos, na república celeste onde a vontade de Deus é lei.32

Nessa afirmação, Agostinho estabelece uma relação entre a justiça divina e a lei

no marco da ordem criada por Deus. Para o filósofo, Deus é o princípio fundante da lei

que governa a ordem por ele criada.33

A esse respeito, Chroust observa que a lei divina e

o conceito de ordem são indissociáveis no pensamento do Santo. A ordem é uma norma

fundamental de acordo com a qual toda a criação existe. A ordem manifesta também a

harmonia da coexistência entre as partes, cada uma no seu devido lugar conforme a lei

divina que é a vontade de Deus.34

31

O tema da felicidade é trabalhado por Agostinho no diálogo A vida feliz. O filósofo faz um itinerário

argumentativo, juntamente com seus discípulos, e indaga: Qual é o bem que a alma deve possuir para ser

feliz? E quais são as maneiras de a alma obter a felicidade? (AGOSTINHO, Aurelius. A vida feliz.

Tradução e notas Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1998). 32

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 19. 33

A reflexão sobre a lei divina é desenvolvida por Agostinho no Livro I de O livre-arbítrio

(AGOSTINHO, Aurelius. O livre-arbítrio. Tradução e notas Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus,

1995). 34

Cf. CHROUST, Anton-Hermann. The Fundamental Ideas in St. Augustine’s Philosophy of Law. In:

BROOKS, Richard. O.; MURPHY, James Bernard. Augustine and Modern Law. Farnham: Ashgate,

2011, p. 60.

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21

Na perspectiva agostiniana, a lei eterna é a norma suprema de justiça, é de

natureza imutável e implica a existência de um Deus justo, providente e onisciente,

eterno e perfeito. É a lei eterna que constitui a fonte universal de justiça e identifica-se

com a vontade ou sabedoria de Deus, isto é, com o plano segundo o qual Deus ordena e

dirige todas as coisas criadas em direção ao seu próprio fim que é a vida feliz do

homem. Ademais, a lei divina é transcendente e tem anterioridade ontológica em

relação ao homem. Dado que a lei eterna é a vontade de Deus, o homem deve se

subordinar a ela por completo.

Seguindo a interpretação de Flórez Pérez, podemos afirmar que, para Agostinho,

a lei divina não coincide com a lei natural.35

Todavia, à lei divina lhe corresponde uma

lei natural que está inscrita na alma do homem. Assim, para o hiponense, a lei natural é

expressão da lei eterna.

1.2 A verdadeira justiça e a política

Após fundamentar a sua concepção de justiça no Deus-Verdade, o objetivo de

Agostinho é refletir sobre os fundamentos da política na vida terrena. Assim, no Livro II

de A Cidade de Deus, o Santo apresenta uma discussão a respeito da relação entre a

justiça e a política no contexto das instituições romanas.

É oportuno lembrar que a res publica romana foi uma forma de governo

vinculada ao período da antiga civilização romana, entre os séculos V a.C. e meados do

I a.C. Começou com a queda da monarquia e sua substituição pelo Senado, pelos

magistrados e pelas assembleias populares. O termo “res publica” significa literalmente

“a coisa pública” e é a expressão política do povo em seu conjunto — daí ser chamada

também empresa do povo. Com efeito, o interesse particular de cada homem deve estar

subordinado ao interesse superior do conjunto, à res publica. Embora a República

Romana nunca tenha sido restaurada, o termo “res publica” continuou a ser usado para

referir-se ao Estado. Durante o período da República, a atuação do homem romano na

vida pública, enquanto cidadão, levou ao estabelecimento de valores cívicos, os quais

35

FLÓREZ PÉREZ, Edgar. Elementos de ética, filosofía, política y derecho: los vinculos entre la

filosofía, el derecho, la ética y la política examinados a la luz del pensamiento de los grandes filósofos.

Caracas: El Nacional, 2005, p. 27.

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22

perduraram enquanto ideal de comportamento ao longo de toda a história romana. Nesse

contexto, a vida cívica é entendida como o conjunto dos direitos e deveres comuns aos

cidadãos fundado numa comunhão de interesses. Ademais, a cidade (civitas romana)

engloba os espaços comuns aos seus homens: o fórum, os tribunais e também os

templos, porque a religião integra a vida cívica.36

No Livro II, 21, o Santo considera a fala de Cipião em Da República, de Cícero,

sobre os temas relativos à organização do Estado (res publica) e às relações dos homens

na sociedade civil (civitas). No fim do segundo livro de Da República, Cipião teria dito:

“O que os músicos chamam de harmonia no canto, chama-se concórdia na cidade — o

mais seguro e o melhor veículo para a segurança de todo o Estado. E esta concórdia sem

justiça é que não se pode admitir”.37

Na sua argumentação, Cipião define a “república”

como “empresa do povo”, e “povo” como a associação de pessoas baseadas na aceitação

do direito e na comunhão de interesses. E conclui de forma lapidar: “Sem a mais

rigorosa justiça, não é possível governar uma república”.38

Assim, num governo tirano,

a república não só seria corrupta, mas também não existiria a república, porque não se

identificaria com a “empresa do povo”. Mesmo o povo, se fosse injusto, não seria mais

um povo, porque não consistiria em uma pluralidade de pessoas associadas pelo

consentimento sobre o reconhecimento recíproco dos direitos e da comunhão de

interesses. Neste sentido, no entender de Cipião, não há concórdia sem justiça; não há

res publica sem justiça. No seu argumento, subjaz a convicção de um direito civil

fundado na natureza no qual se assenta a concórdia na vida social.39

No entanto, o Bispo de Hipona critica de forma radical a ideia de que o homem

justo é quem obedece às leis do Estado. Com efeito, em A Cidade de Deus, Agostinho

se afasta da referência ao “justo” presente na tradição jusnaturalista clássica, que

considerava a razão natural como fundamento da justiça, do direito e da política.

Lembremos as suas palavras:

Esforçar-me-ei noutro lugar por mostrar que nunca Roma foi um

Estado (República) porque nunca nela existiu uma verdadeira justiça

— isto conforme as definições do próprio Cícero, segundo as quais,

36

Cf. CORASSIN, Maria Luiza. O cidadão romano na República. Projeto História. São Paulo, n. 33, p.

271-287, dez. 2006. 37

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 21. 38

Ibidem. Livro II, 21. 39

Cf. BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves de. Direito natural em Cícero e Tomás de Aquino. In:

PISSARA, Maria Constança Peres; FABRINI, Ricardo Nascimento. (Coords.). Direito natural: a noção

de justiça na história da filosofia. Op. cit.

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23

com brevidade, e pela boca de Cipião, ficou assente o que é o Estado e

o que é o povo (apoiando-me também em muitas outras afirmações

suas e dos demais interlocutores do diálogo). Porém, conforme as

mais autorizadas definições, de certo modo houve uma república, e

melhor governada pelos antigos romanos do que pelos mais recentes.

É que a verdadeira justiça só existe naquela república, cujo fundador e

governador é Cristo — se é que convém chamar-lhe república, porque

não podemos negar que ela é “empresa do povo”. Mas se este nome,

que noutros lugares se divulgou com outro sentido, se afastou talvez

do uso da nossa conversação — o certo é que existe uma verdadeira

justiça naquela cidade da qual diz a Santa Escritura. Coisas gloriosas

foram ditas de ti, Cidade de Deus.40

Vê-se, no trecho citado, que o autor evidencia a importância da justiça no âmbito

da política e da constituição das estruturas do Estado enquanto expressão da tradição

cultural no mundo romano. No entanto, o hiponense frisa que a verdadeira justiça

somente existe “naquela República, cujo fundador e governador é Cristo”; em outras

palavras, existe na Cidade de Deus que é uma “empresa do povo” por expressar a

comunhão de interesses dos homens que se fundamenta no amor a Deus.41

Assim, de acordo com Agostinho, a construção da identidade do homem cristão

se afasta da identidade do homem romano — fundamentada em um sentimento de

continuidade atrelado à res publica romana, mesmo após a sua crise e posterior queda.

Na tradição cívica romana havia o sentimento de que a estrutura básica da existência

social, das instituições e do sistema de valores herdado do passado era,

fundamentalmente, o único legítimo para os homens romanos.42

Desse modo, o pensamento do Santo sobre a justiça, em A Cidade de Deus,

revela o seu afastamento em relação à concepção jurídica e às condições de vida cívica

romana que definiam o homem justo. Embora as noções do jusnaturalismo clássico

tenham influenciado o seu pensamento, a reflexão agostiniana redefine, nos termos da fé

cristã, o fundamento da justiça. Segundo o referido autor, a vontade de Deus é lei e o

princípio fundante da justiça, e a política, enquanto expressão da empresa do povo, não

pode estar dissociada da verdadeira justiça. Em outras palavras, a política não pode estar

dissociada do amor a Deus e, deste modo, a concepção de política está atrelada à

Verdade. Nesse sentido, o Bispo de Hipona redefine os termos da identidade do povo

cristão no devir histórico.

40

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro II, 21. 41

Cf. Ibidem. Livro II, 21. 42

Cf. FINLEY, Moses I. A política no mundo antigo. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 36.

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24

1.3 Poder, fé e justiça

De forma a refletir sobre a relação entre o poder e a justiça na vida temporal,

Agostinho continua explorando, no Livro IV de A Cidade de Deus, questões relativas ao

destino dos homens. No início de sua argumentação, apresenta a parábola do homem

rico e do homem pobre ou de condição média:

O rico é atormentado de temores, consumido de desgostos, arde em

cobiça, nunca seguro, sempre inquieto, ofegante em perpétuos

conflitos de inimizades, aumentando sem dúvida o seu património sem

limite à custa destas misérias, mas àqueles aumentos juntando também

amaríssimos cuidados. O de condição média, porém, está satisfeito

com o seu pequeno e apertado património familiar, é dos seus muito

querido, goza da mais doce paz com os parentes, vizinhos e amigos, é

piedosamente religioso e dotado de grande afabilidade, tem o corpo

sadio, na vida parco, casto nos costumes, sereno de consciência. Não

sei se haverá alguém tão louco que duvide qual deverá preferir.43

O texto agostiniano não só questiona os fundamentos da justiça e da felicidade

do homem, mas também indica que existe um plano de Deus cujo sentido o homem

deve procurar. Estabelece, assim, uma relação entre justiça e felicidade e acrescenta que

a piedade e a justiça, que são grandes dons de Deus, bastam para a verdadeira

felicidade: “a de viverem bem nesta vida e obterem depois a vida eterna”.44

O hiponense observa que o verdadeiro princípio fundante da felicidade e da

justiça não se encontra na vida terrena. Todos os homens mortais sofrem tribulações,

angústias e aflições. Todavia, nesta vida temporal os sofrimentos dos homens bons não

devem ser entendidos como o “castigo de uma falta, mas a provação da virtude”.45

Em

verdade, a mistura dos bens e dos males que Deus concede ao homem na vida terrena

ensina quais bens convém a ele desejar. Em outras palavras, para apreender a justa

relação com os bens temporais, o homem precisa compreender o sentido da vida terrena

em face da vida eterna.

Quanto ao homem na vida temporal, Agostinho diz: “Por conseguinte, o bom,

mesmo que reduzido à escravidão, é livre; ao passo que o mau, mesmo que seja rei, é

escravo — não de um homem mas, o que é mais grave, de tantos senhores quantos os

43

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 3. 44

Ibidem. Livro IV, 3. 45

Ibidem. Livro IV, 3.

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25

vícios”.46

Nestas palavras, ao utilizar a oposição entre escravidão e liberdade, o Santo

indica uma nova perspectiva para o entendimento da condição humana e um apelo para

o questionamento das aparências como base para os juízos dos homens na vida

temporal.

No Livro IV de A Cidade de Deus, o Bispo de Hipona procura desmascarar o

que há por debaixo das aparências da conduta dos homens e dos nobres ancestrais

romanos de forma a questionar a visão que os próprios romanos tinham do seu passado

de glória e poder.47

A respeito das aparências na conduta dos homens — reis ou piratas

—, o Santo indaga: “Afastada a justiça, que são, na verdade, os reinos senão grandes

quadrilhas de ladrões?”.48

Ao narrar o encontro entre Alexandre Magno e um pirata que

tinha sido aprisionado, o hiponense compara e confronta o reino do primeiro com a

quadrilha de ladrões liderada pelo segundo. O filósofo cristão julga “verdadeira” a

resposta do pirata a Alexandre:

[...] quando o rei perguntou ao homem que lhe parecia isso de infestar

os mares, respondeu ele com franca audácia; “O mesmo que a ti

parece isso de infestar o mundo; mas a mim, porque o faço com um

pequeno navio, chamam-me ladrão; e a ti porque o fazes com uma

grande armada, chamam-te imperador”.49

Neste trecho, Agostinho apresenta a metáfora do banditismo bem-sucedido

como modelo básico de qualquer império terreno.50

Assim, ele rejeita a ideia de justiça

vinculada à ambição, à glória e ao poder que permeiam os reinos terrestres. Com efeito,

como esclarece Ramos, o Santo se afasta da noção de justiça aplicada ao campo das

relações entre autoridade que governa e comunidade de governados.51

De maneira a explorar a relação entre o poder e a justiça, o hiponense também

reflete sobre as acusações que os pagãos faziam aos cristãos, responsabilizando-os pelo

relaxamento das tradicionais virtudes cívicas. Reinterpreta a história universal e destaca

o desígnio divino que marca, no seu entender, o curso inelutável da evolução histórica.

O filósofo mostra que a longa duração do Império Romano deve ser atribuída não aos

deuses dos pagãos, dado que seu culto é ineficaz para alcançar as verdadeiras virtudes.

46

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 3. 47

Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Op. cit., p. 383. 48

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 4. 49

Ibidem. Livro IV, 4. 50

Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Op. cit., p. 382. 51

Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.

Agostinho. Op. cit.

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Ao refletir sobre as contradições na concepção de divindade dos pagãos, o Bispo de

Hipona diz:

Mesmo eles entenderam que na verdade a Virtude se deve distribuir

por quatro espécies — prudência, justiça, força, temperança. E como

cada uma destas tem as suas espécies, a Fé liga-se à Justiça e mantém

o primeiro lugar entre nós, que sabemos o que quer dizer o justo vive

da fé.52

Vemos, assim, que Agostinho estabelece uma relação indissociável entre a fé e a

justiça e caracteriza o homem justo como aquele que vive da fé. Redefine, deste modo, a

concepção do homem justo ao atribuir à relação entre a justiça e a lei divina a chave

para o entendimento da identidade e do sentido da vida do homem cristão.

Com efeito, a sua reflexão tem por objetivo pontuar as diferenças entre a

identidade do homem romano e a identidade do homem cristão. Quanto às

características da identidade dos romanos e seu culto aos deuses pagãos, no Livro IV de

A Cidade de Deus, o hiponense indaga: “como é que se não compreendeu que a Virtude

e a Felicidade são dons de Deus e não deusas?”.53

Em verdade, o filósofo questiona o

poder, a glória e os falsos auspícios dos deuses venerados pelos romanos com cultos

religiosos, tais como Júpiter, Marte, Felicidade, Fé, Virtude, e acrescenta:

Consequentemente, de maneira nenhuma poderiam ter um império se

contra eles tivessem o verdadeiro Deus. Mas, em compensação, se

tivessem ignorado e desprezado essa multidão de falsos deuses e

conhecessem e adorassem com fé sincera e costumes puros o Deus

único, teriam tido cá, qualquer que fosse a sua grandeza, um império

melhor; receberiam depois um sempiterno.54

Nesse trecho do Livro IV, Agostinho critica as falsas concepções de divindade

do politeísmo pagão e conclui que o sucesso de Roma se deve ao único e verdadeiro

Deus, por cujo poder e julgamento os reinos terrestres são fundados e mantidos.55

Assim, contrário aos fundamentos pagãos da glória e do poder na vida terrena, o Santo

critica o fato de que os deuses pagãos são adorados pela vantagem temporal de glória e

poder que os homens podem obter. Em suma, o referido autor expressa que o poder dos

52

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 20. 53

Ibidem. Livro IV, 21. 54

Ibidem. Livro IV, 28. 55

Cf. FORTIN, Ernest. San Augustin (354-430). In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (Orgs.).

Historia de la filosofía política. México: Fondo de Cultura, 2004.

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deuses pagãos de nada serviu para evitar os males da humanidade.56

Pelo contrário,

estes deuses prejudicaram os homens com os seus enganos e mentiras.57

No confronto com o paganismo, o Bispo de Hipona frisa que somente aqueles

filósofos que distinguem com clareza a diferença entre o criador e as criaturas

conseguem chegar à Verdade — fundamento da verdadeira justiça, glória e poder. É

oportuno lembrar que, em outros livros da Primeira Parte de A Cidade de Deus, o autor

escolhe dois tipos extremos de paganismo para desenvolver a sua crítica às falsas

divindades: Varrão e os neoplatônicos.

No Livro VII, o método de Agostinho consiste em apresentar o pensamento do

filósofo pagão Varrão, como testemunha contra si mesmo, para provar a inadequação da

teologia civil.58

Segundo o hiponense, Varrão não considerava seriamente seus deuses

na medida em que, na sua reflexão, o tratamento das coisas humanas precedia o

tratamento das coisas divinas.59

Assim, este filósofo pagão se preocupava com a

maneira de os homens viverem a religiosidade, que se apresentava numa multiplicidade

de atitudes e de cultos religiosos, cada qual presidido por um deus particular.60

Desse

modo, Varrão dava a entender que os deuses das cidades não existiam

independentemente do homem, mas que os deuses eram produto do espírito humano.61

Neste ponto, diz Agostinho, reside o erro do filósofo pagão: não trata a natureza divina

enquanto superior à natureza humana, mas inverte esta ordem. A alma humana ou sua

parte racional assume natureza divina, convertendo o homem em um deus ao invés de

convertê-lo em servidor de Deus. Assim, o Santo considera que tal doutrina da teologia

56

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.

47 57

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 36. 58

A esse respeito, Markus comenta que a “política agostiniana” é uma crítica da teologia civil romana.

(MARKUS, R., Saeculum: History and Society in the Theology of St. Augustine, London: Cambridge

University Press, 1970, p. 168-69). 59

Agostinho, citando Cícero, se refere constantemente a Varrão como homem “agudíssimo e douto”.

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 2. 60

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustine. Op. cit., p.

50. 61

Tomando como referência a reflexão de Varrão, expoente da teologia civil romana, Santo Agostinho

divide a teologia pagã em três formas básicas: mítica; natural ou filosófica; e cívica ou política. A

teologia mítica é a teologia dos poetas: ela atrai diretamente a multidão, e seus muitos deuses são

reverenciados pelos homens para obter bens temporais ou vantagens materiais nesta vida. Por outro lado,

a teologia natural ou filosófica é monoteísta e se fundamenta na autêntica noção de Deus e, deste modo, é

superior à teologia mítica e à civil. No entanto, só é acessível aos doutos e, portanto, é incapaz de exercer

uma influência benéfica sobre a sociedade no seu conjunto. Por último, a teologia civil, também associada

ao culto de vários deuses, é a teologia oficial da cidade, a qual todos os cidadãos devem conhecer para

saber quais deuses devem ser adorados e quais ritos e sacrifícios devem ser celebrados. Tal teologia busca

melhorar os homens por meio do desenvolvimento das virtudes políticas. Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A

Cidade de Deus. Op. cit. Livro VI.

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civil confunde a criatura com seu criador e, portanto, é discutível do ponto de vista

racional, já que a mutabilidade do homem não se pode reconciliar com a perfeição do

ser supremo. Em outras palavras, o ponto central da sua argumentação, no Livro VII de

A Cidade de Deus, é que o hiponense demonstra o fracasso completo do paganismo

quanto à concepção de divindade: os deuses de Varrão, com efeito, não podem ser

considerados deuses. Agostinho conclui que tais deuses não são mais do que homens

divinizados.62

Ademais, no Livro VIII, o referido autor continua elaborando a sua crítica aos

filósofos pagãos e considera os fundamentos da divindade no neoplatonismo. Embora a

sua descoberta do neoplatonismo tenha sido fundamental para acessar a doutrina do

logos,63

no debate entre escolas filosóficas, o hiponense foi crítico dos neoplatônicos

pagãos.

Na Antiguidade tardia, Plotino defendia que, para alcançar a felicidade, a alma, de

natureza espiritual, se deve voltar para o mundo inteligível e, assim, ascender junto a

Deus. Nessa reflexão filosófica, o problema ético reside no afastamento da alma em

relação ao Uno, na medida em que a alma, por causa da soberba, se apega aos bens

materiais e transitórios e se esquece da sua origem. No entanto, como Plotino explica,

apesar do afastamento, uma parte da alma — a razão — persevera no nous e a filosofia

auxilia a alma a retornar ao mundo inteligível. A ascensão intelectual da alma tem como

precondição um processo de purificação no qual as virtudes a auxiliam na conscientização

de sua essência e de sua origem e, assim, no desprendimento em relação aos bens

transitórios. Quando a alma, como nous, contempla, além de si, o Uno, ela alcança a

posse do Sumo Bem.64

Na filosofia de Plotino, a vida feliz tem base metafísica e a vida

62

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p. 56. 63

O próprio Agostinho lembra a importância da influência dos livros dos platônicos (AGOSTINHO,

Aurelius. Confissões. Tradução e notas Arnaldo Espírito Santo; João Beato; Maria Cristina de Castro-

Maia de Sousa Pimentel. Introdução Manuel Barbosa de Costa Freitas. Notas de âmbito filosófico Manuel

Barbosa da Costa Freitas; José Maria Silva Rosa. [s.l.]: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 2000. Livro

VII, 9.13). O Santo afirma que nesses livros leu, “[...] não exatamente nestas palavras, mas com muitas e

variadas razões, que, no conjunto, se argumentava isto mesmo: no princípio era o Verbo e o Verbo estava

junto de Deus e Deus era o Verbo: este estava, no princípio, junto de Deus; todas as coisas foram feitas

por ele, e sem ele nada foi feito; o que foi feito foi vida nele, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha

nas trevas, e as trevas não a dominaram; e que a alma humana, embora dê testemunho da luz, todavia ela

própria não é a luz, mas o Verbo, Deus, é que é a luz verdadeira, que ilumina todo homem que vem a este

mundo; e que estava neste mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu.” O

hiponense acrescenta que não leu nos platônicos: “Mas que veio para o que era seu e os seus não o

receberam, e que a todos quantos o receberam deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, a eles que

crêem no seu nome, isso não o li eu aí.” 64

Nos Livros VIII a X de A Cidade de Deus, Agostinho desenvolve uma discussão contra Porfírio

(neoplatônico) sobre o princípio e o caminho de limpeza e libertação das almas.

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virtuosa é o caminho que o homem por si só pode seguir para alcançar o Sumo Bem.65

Toda a discussão de Agostinho com os neoplatônicos propõe apontar para os

novos termos em que deve ser pensada a relação entre homem e Deus — dada a

resposta equivocada oferecida pelo paganismo.66

O hiponense entendia que esta escola

filosófica não podia alcançar a Verdade, o que requer não só a leitura das Sagradas

Escrituras, mas principalmente o auxílio divino para que o homem possa dar os passos

em direção à Verdade, ao Sumo Bem e, portanto, para que possa cumprir a lei divina.

1.4 A lei divina na sociedade justa

Ao longo dos Livros II e IV, o Bispo de Hipona frisa a dependência do homem

em relação ao único Deus verdadeiro, que auxilia o homem na história. Nas suas

palavras:

É, pois, Deus autor e dispensador da felicidade, porque é ele o único

Deus verdadeiro, quem concede os reinos da Terra tanto aos bons

como aos maus. E não o faz à toa, como que fortuitamente (pois que

Ele é que é o verdadeiro Deus e não a fortuna), mas conforme a ordem

das coisas e dos tempos, para nós oculta mas dele perfeitamente

conhecida. Ele não serve nem está submetido a esta ordem dos

tempos. Pelo contrário, é Ele que, como senhor, a rege e, como

moderador, a ordena. Mas a felicidade — essa dá-a aos bons. Podem

tê-la ou não os que servem; podem tê-la ou não os que reinam.

Todavia, só será plena naquela vida onde já ninguém terá que servir. E

por isso que os reinos da Terra são por Ele concedidos tanto aos maus

como aos bons: Ele não quer que os seus adoradores, ainda crianças

na vida moral, desejem d’Ele esse dom como qualquer coisa de

grande.67

Dessa forma, a partir do texto selecionado, apreende-se que, para o autor, a

“ordem das coisas e dos tempos” é aquela organizada e regida em torno do princípio da

justiça, cujo fundamento é a lei eterna. Emerge a noção de ordem enquanto uma

disposição das coisas criadas na vida temporal conforme a vontade divina ou lei eterna.

65

Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. 2. ed., São Paulo: Loyola, 2012, p. 32-33.

Na concepção de Plotino, a alma do ser humano, que faz parte da alma do mundo e pertence à esfera do

inteligível, emana, como terceira hipóstase, do nous, que, por sua vez, emana do Uno, o inefável,

fundamento e fonte do ser. A alma do mundo olhando para o nous apreende as Ideias e as transmite aos

seres materiais como suas formas (logoi). 66

Quanto ao neoplatonismo, o próprio Agostinho reconhece em Confissões (Livro VII) o papel central

que os “livros platônicos traduzidos do grego para o latim” desempenharam em seu desenvolvimento

filosófico e religioso, inclusive em sua conversão final ao cristianismo no ano de 387. 67

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro IV, 29.

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Ademais, a lei eterna é entendida como o fundamento da felicidade, que é o problema

fundamental que se coloca à humanidade na história.

Diante da perspectiva do fim último do homem, o hiponense relaciona a “ordem

das coisas e dos tempos” a um novo sentido. De fato, apresenta uma nova interpretação

da história a partir de um novo entendimento do telos, do significado do sentido da vida

do homem no devir histórico.68

Considerando esses pressupostos, o filósofo aponta para

a construção da nova identidade dos cristãos quanto ao sentido da vida e quanto à fé na

doutrina da salvação em Cristo. Desse modo, ele propõe novo fundamento para a

concepção de justiça.

No contexto do providencialismo divino, Agostinho frisa que o julgamento

transcendente de Cristo sobre a história e a afirmação de uma esperança escatológica

subjaz à redefinição dos termos da discussão sobre a justiça e a questão da sociedade

justa. Com efeito, a organização da sociedade justa, segundo o Santo, pode ser pensada

em torno da concepção de justiça cujo fundamento é a lei divina. A lei eterna assinala o

que os homens justos, que vivem da fé, devem fazer se desejam ser felizes. Com efeito,

na perspectiva agostiniana, explicita-se o caráter normativo da lei divina como critério

da conduta moral do homem peregrino. O entendimento da vontade reta do homem

justo pressupõe a necessidade de um passo adiante, um aprofundamento da análise do

lugar do homem na ordem criada por Deus e da natureza humana ferida pelo pecado.

68

Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. Op. cit. p. 170.

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2 JUSTIÇA E RETIDÃO

Do ponto de vista ontológico, a retidão de vida do homem é indissociável da

ordem criada por Deus. Segundo Agostinho, a relação correta do homem em relação a

Deus se traduz na subordinação à vontade divina. No entanto, o homem peregrino, na

sua vida temporal, hesita quanto à direção a seguir: Jerusalém ou Babilônia. Com efeito,

a cisão da vontade presente em cada homem singular fundamenta a oposição entre as

duas cidades — a Cidade de Deus e a Cidade Terrena.

É oportuno lembrar que, finalizada a primeira parte de A Cidade de Deus (Livros

I a X), o seu autor inicia uma análise sobre a origem das duas cidades, a Celeste e a

Terrestre, do seu desenvolvimento e de seus fins. No Livro XI, 2, o Santo apresenta uma

síntese que pode também ser compreendida como um texto de transição entre a primeira

e a segunda parte:

É grandioso, mas muito raro, que alguém se eleve, por um esforço da

mente, acima de todas as criaturas corporais e incorpóreas, depois de

ter observado e reconhecido a mutabilidade, para atingir a imutável

substância de Deus e aprender d’Ele mesmo que toda a criatura d’Ele

distinta só a Ele tem por autor. De fato, Deus não fala ao homem por

uma criatura corpórea — como se ferem os ouvidos do corpo fazendo

vibrar o ar entre aquele que fala e aquele que ouve; também se não

serve dessas imagens espirituais que tomam a forma e a semelhança

dos corpos — como se produz nos sonhos e tudo o que se lhes

assemelha [...]; mas fala pela própria verdade se alguém está apto a

ouvir pelo espírito e não pelo corpo. Fala deste modo à parte mais

excelente do homem, superior a todos os elementos que constituem o

home e à qual só Deus é superior. [...]

Mas como a própria parte mental, sede natural da razão e da

inteligência, está muito debilitada pelos vícios inveterados que a

obscurecem, necessitava, antes de tudo, de ser purificada pela fé para

aderir à luz imutável e dela gozar, ou mesmo para lhe suportar o

esplendor, até que renovada e curada dia a dia, se torne capaz duma

tão grande felicidade.

E para caminhar mais confiadamente nessa fé para a verdade — a

própria verdade, Deus Filho de Deus, assumindo o homem sem anular

a Deus, fundou e estabeleceu essa mesma fé para que o homem tivesse

um caminho para o Deus do homem por intermédio do homem-Deus.

Este é que é, realmente, o mediador entre Deus e os homens — o

homem Jesus Cristo: é Mediador por ser homem e como tal é

caminho. [...] Só há portanto um caminho que exclui todo erro: que é

o próprio Deus e o homem sejam o mesmo — Deus para onde se vai,

homem por onde se vai.69

69

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XI, 2.

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Nesse trecho podemos perceber que o hiponense recapitula, embora numa

formulação nova, os argumentos que apresentara contra o paganismo e afirma as

diferenças entre a natureza divina e a natureza humana. Fiel à fé cristã, o filósofo frisa

que há um Deus único, que criou o homem e é o sentido da sua vida, e que a mediação

de Cristo é o caminho para a vida eterna.70

A reflexão de Agostinho sobre a justiça e a retidão do homem se fundamenta

numa concepção da natureza humana que suscita múltiplas questões. Nos Livros XII e

XIV de A Cidade de Deus, o filósofo indaga: Qual é o lugar do homem na criação?

Qual a relação entre o homem e a Verdade? Como pode a razão humana conhecer a

Verdade? Como pode o homem conhecer o que lhe é ontologicamente superior, o que

lhe supera em perfeição? Qual a origem do Mal? Qual o tipo de relação que prevalece

entre os homens por causa do pecado, da vontade cindida? O que é viver em

conformidade com Deus na vida temporal?71

2.1 O homem na criação

O pensamento do Bispo de Hipona a respeito da visão cristã do homem no

mundo se ergue, não sem conflitos, no interior dos quadros estáticos da cosmologia

antiga.72

O Santo ultrapassa o “homem natural” do cosmos antigo e o seu pensamento

alicerça uma nova concepção de homem, de felicidade e de liberdade.73

Apresenta

também uma nova concepção de tempo. É oportuno lembrar que, na trajetória

intelectual e espiritual de Agostinho, os sermões de Ambrósio e a leitura de Plotino e de

seu discípulo Porfirio, iniciada em Milão, suscitaram-lhe dúvidas e questionamentos

sobre a natureza divina e a natureza humana.74

Nesse momento da sua vida, ele se

70

Cf. Ibidem. Livro VIII, 32. 71

Cf. Ibidem. Livro XIV, 5. 72

Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Cristianismo e consciência histórica. In: Ontologia e história.

Op. cit. Crítico da modernidade, Lima Vaz articula ontologia, história e política na composição,

estruturação e interpretação de uma visão de homem e de sociedade na qual a religião é aspecto

constitutivo da dinâmica social no tempo. 73

O sentido da liberdade na perspectiva da vida feliz, no marco da relação ontológica entre Deus e o

homem, é trabalhado por Agostinho em O livre-arbítrio. O Santo propõe um conceito de liberdade que

remete à relação do homem com Deus: “Sem dúvida, não existe verdadeira liberdade a não ser entre

pessoas felizes, as quais seguem a lei eterna.” Cf. AGOSTINHO, Aurelius. O livre-arbítrio. Op. cit. Livro

XV, 32. 74

Cf. MATTHEWS, Gareth B. Santo Agostinho: a vida e as ideias de um filósofo adiante de seu tempo,

Rio de Janeiro: Zahar, 2007. Na trajetória de Agostinho, foi o teólogo Ambrósio quem o guiou para o

rompimento com o materialismo filosófico defendido pelo maniqueísmo. Quando ele tinha 29 anos,

chegou a Cartago o famoso bispo maniqueísta, Fausto, que Agostinho esperara durante nove anos para lhe

indagar acerca da fé maniqueísta. A decepção do hiponense é narrada nas Confissões, onde diz que

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pergunta: “Quem me fez? Porventura não foi o meu Deus, que não é apenas bom, mas o

próprio Bem?”.75

Com essas palavras, Agostinho frisa que o Bem é o próprio Deus, que

não só criou o homem, mas também deu à vida do homem um sentido.

Nos doze livros da segunda parte de A Cidade de Deus, o filósofo explora os

cinco momentos da história religiosa da humanidade: criação, o pecado original, o

tempo da fé na promessa; Jesus Cristo e a eterna beatitude.76

No Livro XII, 1, o referido

autor reflete sobre a origem do mundo e a criação. O Santo frisa a ideia de que o único e

verdadeiro bem imutável que torna o homem verdadeiramente feliz é Deus: “Dizemos

existir apenas um bem imutável, Deus, uno, verdadeiro e feliz”.77

No contexto da

criação ex nihilo, as coisas são chamadas à existência por Deus.78

Embasado no

referencial bíblico, o Santo entende que o homem, dotado de um corpo e uma alma, não

é desde a eternidade, mas foi criado por Deus, à sua imagem e semelhança.

Na ordem criada por Deus, o hiponense sublinha que existe uma hierarquia

ontológica entre os bens superiores e os bens inferiores. No entanto, por causa do

pecado, o homem inclina a sua vontade para os bens aparentes e está sujeito ao erro dos

seus juízos. Nesse sentido, o Santo esclarece:

Assim: a avareza não é o vício do ouro, mas do homem que ama

perversamente o ouro, pondo de parte a justiça que devia ser posta

muito acima do ouro; a luxúria também não é um vício dos corpos

belos e graciosos, mas de uma alma que ama de forma pervertida as

volúpias corporais, descuidando a temperança que nos dispõe para as

realidades mais belas do espírito e para maiores graças incorruptíveis;

não é a jactância um vício do louvor humano, mas da alma que

perversamente gosta de ser louvada pelos homens com desprezo do

testemunho da consciência; nem a soberba é vício de quem outorga o

poder ou do próprio poder, mas o da alma que ama perversamente a

sua própria autoridade e despreza a autoridade justa de um mais

poderoso. É por isso que quem ama perversamente um bem, seja de

que natureza for, mesmo que o obtenha, torna-se mau nesse bem e

miserável na privação de um bem melhor.79

Como se vê, Agostinho analisa a relação do homem com os bens terrenos e

verificou “[...] em primeiro lugar, que o indivíduo não dominava as artes liberais, a não ser a gramática, e

essa mesma de uma forma vulgar” (V, 6, 11). 75

AGOSTINHO, Aurelius. Confissões. Op. cit. Livro VII, 3, 5. 76

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op.

cit., p. 86. Conforme Guy, os Livros XI a XIV constituem essencialmente um comentário ao livro do

Gênesis. 77

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XII, 1. 78

Cf. Ibidem. Livro XII, 1. 79

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XII, 8.

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alerta que as coisas na ordem criada por Deus não são más em si mesmas. Nesse

contexto, a questão da relação do homem com os bens terrenos remete ao sentido da

vida humana na ordem divina. Segundo o Santo, o fim da criação, o sentido da vida do

homem é a glória de Deus. Somente Deus é a causa da felicidade do homem.

Assim, o Bispo de Hipona salienta a diferença metafísica entre o fundamento do

Ser e o ente fundado. Confere a Deus os predicados de um Ser Supremo: infinito,

onipotente, onisciente, imutável. O Ser Supremo é aquele que ama, é o mais justo, o

mais misericordioso.80

Deus é o fundamento da vida do homem; portanto, há uma

transcendência ontológica na vida do homem. O próprio Deus, para sua perfeição, não

necessita do homem.81

Deste modo, Agostinho apresenta uma concepção de uma hierarquia ontológica

dos seres na ordem criada por Deus. A imagem do cosmos é a de uma hierarquia de

seres da natureza que exprimem uma ordem superior — a vontade de Deus — à qual

devem submeter-se. Deus é o princípio e é o fim de todas as coisas. É o criador, causa

eficiente do universo, de onde tudo procede, e causa final em direção à qual todas as

coisas tendem e hão de retornar. É inegável que, no pensamento agostiniano, o homem

somente pode ser compreendido por referência ao Absoluto. Assim, seguindo a

interpretação de Arendt, a resposta à questão “O que sou?” somente pode ser dada por

Deus, que criou o homem.82

O autor de A Cidade de Deus aponta para um Ser absoluto que é alfa e ômega.

Esta é a raiz da possibilidade do vir a ser do homem no mundo.83

Sobre a natureza da

alma humana criada à imagem de Deus, o referido autor afirma:

Deus fez, pois, o homem à sua imagem. Efetivamente, criou nele a

alma apta pela razão e pela inteligência a elevar-se acima de todos os

animais da terra, das águas e do ar, desprovidos de um espírito deste

80

Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Op. cit., p. 45. 81

Cf. Ibidem, p. 47-48. A esse respeito, Oliveira e Silva (OLIVEIRA E SILVA, Paula. Ordem e

mediação: a ontologia relacional de Agostinho de Hipona. Porto Alegre: Letra & Vida; Suliani, 2012),

ressalta que, na visão agostiniana de Deus em relação ao mundo, o próprio Deus se torna visível não só

pelas criaturas mas no Cristo, nas teofanias, nas manifestações do Novo Testamento após a ressurreição

de Cristo. 82

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro X. Segundo Arendt, a questão da

natureza de Deus e da natureza do homem são questões teológicas e, portanto, ambas somente devem ser

resolvidas dentro de uma resposta divinamente revelada. Nesse sentido, as formas da cognição humana,

aplicáveis às coisas, de nada valem quando nos perguntamos “Quem somos nós?” (ARENDT, Hannah. A

condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013). 83

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XI, 32. A respeito do homem na criação,

Arendt esclarece que Agostinho chama de principium ao início do mundo, e de initium ao começo da

ação humana. No entender da filósofa, o uso de palavras latinas diferentes é crucial para diferenciar os

dois começos. (ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013).

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gênero. Tendo, pois, formado o homem do pó da terra, insuflou-lhe

essa alma de que acabo de falar, quer a tenha já feita fazendo-a pelo

seu próprio sopro, querendo que o sopro que assim produzia

(realmente, insuflar que mais é senão produzir um sopro?) fosse a

própria alma do homem.84

A partir destas palavras, o Santo ressalta que a alma do homem, de natureza

espiritual, foi criada por um ser superior perfeitíssimo. Na perspectiva agostiniana, o

homem foi criado à imagem de Deus. Todavia, entre os homens, a primeira morte

constitui um castigo por causa do pecado de Adão, o primeiro homem que transgrediu a

lei divina.85

2.2 Os dois amores e as duas cidades

No Livro XIV de A Cidade de Deus, ao refletir sobre a concupiscência,

Agostinho retoma a questão do pecado original e dos hábitos que alimentam os vícios

no homem de forma a falar sobre o castigo resultante da desobediência da lei divina.86

Nesse sentido, a sua reflexão se desdobra sobre questões relativas ao modo de vida do

homem na Cidade de Deus e na Cidade Terrena.87

A esse respeito, ele indaga: “Que é

viver em conformidade com o homem e que é viver em conformidade com Deus?”.88

No Prefácio do livro A Cidade de Deus, o autor caracteriza as duas cidades. A

Cidade Celeste, que é peregrina no meio dos ímpios, vive no decurso do tempo pela fé,

espera a morada eterna e, graças à sua santidade, possuirá a paz perfeita. A Cidade

Terrena, por sua vez, no devir histórico, se torna escrava de sua própria ambição de

domínio.89

De acordo com Agostinho, em oposição à Cidade Terrena, a Cidade de Deus não

é guiada pelo amor de si mesmo e não vive de acordo com a “carne”.90

Nesse contexto

filosófico, este termo não deve ser entendido em sentido estrito, como se somente

estivesse referido ao corpo e aos prazeres corporais. Nas Sagradas Escrituras, “carne” é

sinônimo de homem natural e abrange não só os vícios do corpo mas também os da

alma, na medida em que o homem não conduz a sua vida de forma a ter Deus como

84

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XII, 24. 85

Cf. Ibidem. A primeira morte é tema do Livro XIII. 86

Cf. CURBELIÉ, Philippe. La justice dans la Cité de Dieu. Op. cit., p. 121 87

Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Op. cit., p. 399. 88

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 4. 89

Ibidem. Prefácio. 90

Cf. Ibidem. Livro XIV, 2 e 3.

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Sumo Bem, fim supremo.

Quando o homem vive conforme a carne, a vontade inclina-se para o desejo

concupiscente que busca o prazer como fim supremo. Como resultado, decorrem

hábitos que geram vícios, impulsionados pelo amor do homem a si mesmo, e não por

amor à Verdade. Nesse contexto, a corrupção do corpo é entendida por Agostinho como

castigo para o homem, e afirma: “foi a alma pecadora que tornou o corpo corruptível”.91

Como resultado, a Cidade Terrena se caracteriza pelo modo de vida de homens

cujo amor a si mesmos se revela como a antítese da vida virtuosa, como antítese de uma

vida de obediência e de submissão à vontade de Deus. Os membros da Cidade Terrena

renovam, cada um de maneira singular, o pecado de desobediência que cometeu Adão.

Considerando este pano de fundo, o hiponense resume a problemática do pecado

e dos modos de vida do homem, quando afirma:

É por isso que dissemos que existem duas cidades diferentes e

contrárias — porque uns vivem em conformidade com a carne e

outros em conformidade com o espírito; ou ainda do mesmo modo se

pode dizer que uns vivem em conformidade com o homem, e outros

em conformidade com Deus.92

No trecho citado, o Santo distingue claramente dois modos de vida do homem

ancorados em duas formas de amor: amor a si mesmo e amor a Deus. Quando o modo

de vida do homem se centra no amor egoísta, no amor a si mesmo, os seus desejos

desordenados se antepõem ao legítimo desejo de felicidade e à retidão da vontade. Ao

pecar, os desejos do homem se revelam estranhos aos ditames da justiça divina.

A seguir, numa análise comparativa entre os modos de vida do homem, o Santo

afirma que a vida dos homens na Cidade Terrena é uma “mentira”. Nas suas palavras:

Quando o homem vive em conformidade consigo mesmo, isto é, com

o homem e não com Deus, com certeza vive em conformidade com a

mentira. Não porque ele próprio seja a mentira, pois tem a Deus por

autor e criador, e Deus não faz a mentira. Mas foi criado “recto”, para

viver em conformidade consigo mesmo, isto é, para fazer antes a

d’Ele do que a sua própria vontade. Não viver o modo de vida para

que fora feito — isso é mentira. Querer ser feliz mesmo quando não

vive de forma a poder sê-lo — que é que há de mais mentiroso do que

esta vontade? Daí que se possa dizer, não sem motivo, que todo

pecado é uma mentira.93

91

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 3. 92

Ibidem. Livro XIV, 4. 93

Ibidem. Livro XIV, 4.

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A partir deste texto, podemos entender que o filósofo salienta a dimensão

ontológica que funda a oposição entre as duas cidades. O modo de vida em que

prevalece a vontade do homem não conduz a criatura à Verdade e, portanto, à

felicidade. Este não é o modo de vida do homem “reto”, que foi criado para amar a

Verdade e não para fazer a sua própria vontade. Assim, esta afirmação indica que o

homem foi criado para viver conforme a lei divina, a vontade de Deus. Desse modo,

Agostinho coloca o amor à Verdade e, portanto, o viver do homem conforme a lei

divina, na perspectiva da necessidade ontológica. Em outras palavras, no seu

pensamento, o significado da criação se revela na perspectiva da relação “correta” entre

o homem e Deus.

2.3 Vontade, retidão e justiça

A reflexão agostiniana se desdobra sobre a análise da causa dos vícios humanos.

Os vícios, perturbações ou doenças da alma, como os chamava Cícero, ou as paixões,

segundo traduções do grego — desejo, temor, prazer e dor — “compreendem todas as

más propensões dos costumes humanos”.94

Não é só sob a influência da carne que a

alma experimenta as paixões, tal como supunham os maniqueus, mas o Bispo de Hipona

esclarece que “é também dela própria que pode proceder a agitação desses impulsos”.95

Ao dizer que “o homem não é mau por natureza, mas por vício”,96

o hiponense

frisa a influência da vontade sobre as escolhas. Tal influência depende da relação entre a

vontade humana e os bens, tal como indica Agostinho quando afirma: “A vontade do

homem é atraída ou repelida de acordo com a diversidade de objetos que procura ou

evita e assim se muda ou transforma nestes diferentes afetos”.97

Em outras palavras, as perturbações da alma afetam os juízos relativos à vontade

que está presente nos diferentes afetos do homem em relação à diversidade de objetos

que procura ou evita. A esse respeito, o Santo questiona: “Realmente, o que é o desejo

ou a alegria senão a vontade que consente no que queremos? Que é o temor ou a tristeza

senão a vontade que nos desvia do que recusamos?”.98

94

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 5. 95

Ibidem. Livro XIV, 5. 96

Ibidem. Livro XIV, 6 97

Ibidem. Livro XIV, 6. 98

Ibidem. Livro XIV, 6.

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Assim, na perspectiva agostiniana, a vontade do homem afeta os juízos e,

portanto, as escolhas.99

Ao embasar na cisão da vontade a análise dos vícios e dos erros

dos juízos humanos, Agostinho introduz modificações significativas no diagnóstico e na

explicação para as dores da alma em relação à filosofia antiga.100

O autor de A Cidade

de Deus salienta a relação entre amor bom e vontade reta, quando diz:

[...] a vontade recta é um amor bom e a vontade perversa um amor

mau. O amor que aspira a possuir o que ama — é desejo; quando o

possui e dele goza — é alegria; quando foge do que lhe repugna — é

temor; se o seu pesar o experimenta — é tristeza. Estes sentimentos

são, portanto, maus, quando o amor é mau; bons, quando o amor é

bom.101

Vê-se que, nestas palavras, o autor argumenta que, quando a inclinação da

vontade contraria a ordem divina e prefere bens inferiores, o homem se afasta do Sumo

Ser.102

Nesse sentido, o Santo frisa que a vontade reta é um amor bom e identifica o Mal

como privação do bem. A vontade reta é a vontade que deseja aquilo que se deve

desejar conforme a vontade divina e pressupõe uma “religação” ou retorno do homem a

Deus. Assim, a vontade reta que alimenta a virtude da justiça é indissociável do amor

bom.103

O referido autor desdobra a sua argumentação sobre o comportamento humano

numa reflexão sobre a natureza social do homem, onde privilegia a relação do homem

com o próximo. No entender do hiponense, quando a vontade do homem segue a

vontade de Deus, este homem ama de forma ordenada e segue o mandamento do amor

que Cristo resumiu, segundo os evangelhos, na essência dos mandamentos: “Amar a

Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”.104

A esse respeito, o

filósofo afirma:

Daquele que tem o propósito de amar a Deus e também de amar o

próximo como a si mesmo, não em conformidade com o homem mas

em conformidade com Deus, por causa desse amor se diz

corretamente que ele é de boa vontade. Esta, nas Sagradas Escrituras,

99

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 6. 100

Cf. MATTHEWS, Gareth B. Santo Agostinho: a vida e as ideias de um filósofo adiante de seu tempo.

Op. cit. 101

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 7. 102

Cf. Ibidem. Livro XIV, 8. 103

Cf. Ibidem. Livro XIV, 9. 104

Mateus, 22.

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é geralmente denominada de caridade (caritas). Mas, nas mesmas

Sagradas Escrituras, também se lhe chama amor (amor).105

De acordo com o texto selecionado, o filósofo identifica o homem de boa

vontade com aquele que segue a vontade de Deus. Nesta reflexão, podemos destacar

que o amor bom se entrelaça com a virtude da justiça que orienta o modo de vida do

homem conforme a lei divina. Este é um ponto absolutamente central da moral

agostiniana, em que a vontade e a justiça se articulam na sua reflexão sobre os

fundamentos da retidão e, consequentemente, da felicidade. Nesse sentido, a relação

correta do homem com o criador direciona o seu modo de vida conforme a justiça

divina e se desdobra na relação do homem com o próximo. Assim, o amor ao próximo

— a caridade — é fruto do amor ordenado, do amor bom, e manifesta a vontade reta. Na

perspectiva agostiniana, o amor ao próximo emerge como a questão intersubjetiva

radical porque o homem de boa vontade deve amar ao seu próximo em conformidade

com Deus.

2.4 A cisão da vontade e os modos de vida

Ao longo do Livro XIV de A Cidade de Deus, a reflexão do Bispo de Hipona

sobre o pecado e o Mal objetiva aprofundar a sua análise da relação entre a vontade de

Deus e a vontade do homem, mas também da liberdade do homem. Assim, o filósofo

reflete sobre a questão do bem, tanto do ponto de vista ontológico quanto do ponto de

vista moral.

Sob a perspectiva ontológica, a escravidão, fruto do pecado original, também

encontra seu lugar na ordem.106

O Santo diz: “Mas Deus tudo previu e não pôde ignorar

que o homem viria a pecar”.107

Dessa forma, esta afirmação frisa a Onipotência divina

em relação aos desígnios do homem:

Deus, na sua presciência, previu uma coisa e outra coisa, isto é, quão

mau se viria a tornar o homem que Ele criou bom e o bem que havia

de tirar desse mal. É certo que se diz que Deus altera os seus desígnios

(em linguagem metafórica a Escritura chega mesmo a dizer que Deus

se arrependeu). Mas isso diz-se em atenção ao que o homem espera ou

em atenção ao que comporta a ordem das coisas naturais — e não em

105

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 7. 106

A respeito do pecado original e da ordem criada por Deus, ver também AGOSTINHO, Aurelius. A

Cidade de Deus. Op. cit. Livro XII, 24. 107

Ibidem. Livro XIV, 11.

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atenção ao que o Omnipotente previu que havia de fazer.108

No trecho destacado, podemos notar que Agostinho salienta a relação entre

presciência divina e a liberdade do homem. Do ponto de vista ontológico, Deus criou o

homem reto e dotado de vontade.109

Assim, pela sua natureza, o homem não é escravo

do pecado.110

Como esclarece Guy, há uma hierarquia de causas eficientes que

permitem compreender como a liberdade humana não é suprimida pela presciência

divina, mas, ao contrário, Deus funda a liberdade do homem.111

Vale lembrar que, na trajetória espiritual e intelectual do hiponense, uma das

questões cruciais é, sem dúvida: “Qual é a origem do mal?”.112

Segundo o pensamento

do Santo, a causa do pecado está nas perturbações da alma. Nesse sentido, a soberba

está na origem de todo pecado porque a alma se compraz em si própria e se afasta do

imutável Bem a quem devia agradar mais do que a si mesma.113

Pela falsa grandeza, a

vontade do homem se afastou do bem superior e imutável. Tal ato contrário à natureza

revelou a cisão da vontade.

Na perspectiva agostiniana, o conceito de vontade revela um “querer”, que é

uma faculdade interior da alma. Na vontade cindida emerge a divisão interna do

homem, emerge a ambivalência moral que Agostinho reconhece no ser humano.114

Com o pecado original, o homem apresenta um conflito interior que manifesta

uma cisão da vontade. O homem decaiu porque agiu de acordo com a sua vontade e não

submeteu suas ações à vontade de Deus. A esse respeito, Agostinho diz:

O que no preceito se recomendou foi a obediência — virtude que é

como que a mãe e a guardiã de todas as virtudes na criatura racional.

A criatura racional foi criada de tal feição que lhe é útil estar sujeita à

obediência e é-lhe prejudicial fazer a sua própria vontade e não a

d’Aquele por quem foi criada.115

108

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 11. 109

Cf. Ibidem. Livro XIV, 11. 110

Cf. Ibidem. Livro XIV, 11. Pode-se estabelecer, a partir do pensamento de Agostinho, uma distinção

entre a natureza humana e a condição humana que se ancora na perda da unidade da vontade no ato de

desobediência de Adão. 111

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit.,

p.46 112

Esta questão está também desenvolvida em AGOSTINHO, Aurelius. A verdadeira religião. Tradução

Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1987. Livro II, 11, 21 e 22. 113

A esse respeito, vale lembrar a contundente afirmação de Agostinho em Confissões II, 2, 2, que

ressalta a relação entre a soberba e a submissão do homem à ordem mortal. O hiponense diz: “Ensurdeci

com o ruído da cadeia da minha mortalidade, em castigo da soberba de minha alma”. 114

Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.

Agostinho. Op. cit., p. 95. 115

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 12.

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Conforme o texto citado, o autor coloca claramente que o pecado original foi

fruto da desobediência do homem, criatura racional, que não seguiu a vontade de Deus.

No comportamento de Adão, a vontade não se submeteu ao amor ordenado. Pelo

contrário, ao comer o alimento proibido, a vontade de Adão o levou à transgressão. O

primeiro pecado é um pecado de desobediência: tal pecado revela que a criatura fez a

sua vontade e não a vontade do Criador por causa da soberba.

Ademais, Agostinho de Hipona indaga: “Mas o que é a soberba senão o desejo

de uma falsa grandeza?”.116

Reafirma que o mal corresponde a um afastamento

ontológico do homem em relação a Deus.117

Após o pecado original, o afastamento

moral, em última instância, nos remete para o problema do afastamento ontológico.

Lembremos as palavras do Santo:

O homem não decaiu ao ponto de se tornar mesmo nada mas,

inclinando-se para si próprio, tornou-se menos do que era quando

estava unido ao que é plenamente. Abandonar a Deus para ficar em si

próprio, isto é, para em si próprio se comprazer, ainda não é o nada

mas é já aproximar-se do nada.118

Neste trecho selecionado, Agostinho chama a atenção para o significado

ontológico do pecado original. O pecado original significa perda de ser, perda de

harmonia em relação à ordem. Uma vez chamada à existência, a vida humana não pode

voltar ao nada: o que existe, mesmo que corrompido, é um bem e relaciona-se com o

Criador.119

Do ponto de vista ontológico, o pecado afasta o homem de Deus. No entanto,

para se libertar do pecado e restaurar a plenitude do ser, Agostinho ressalta, no Livro

XIV de A Cidade de Deus, a importância da graça: “De livre vontade, morreu no seu

espírito — contra a vontade morreu no seu corpo. Desertou da vida eterna e foi

condenado à morte eterna — a não ser que seja libertado pela graça”.120

A partir dessas

116

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 13. 117

Agostinho rejeita a concepção do mal como substância. Na trajetória intelectual de Agostinho, o

afastamento do maniqueísmo se consolida com o contato com o neoplatonismo. De acordo com o

maniqueísmo, uma seita cristã, existe um princípio cósmico de trevas, assim como um princípio da luz.

Assim, o problema do mal era consequência da guerra entre o Reino da Luz e o Reino das Trevas.

Segundo esta doutrina, a força cósmica do mal é igual em poder à força cósmica do bem. Cf.

MATTHEWS, Gareth B. Santo Agostinho: a vida e as ideias do filósofo adiante do seu tempo. Op. cit. 118

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 13. 119

Cf. Ibidem. Livro XIV, 13. 120

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 13.

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palavras, o hiponense indica que o homem, de dimensão natural, necessita da graça,

dom sobrenatural, para poder gozar da verdadeira e perfeita liberdade.

Segundo o filósofo, os conflitos e embates internos vivenciados pelo homem se

manifestam em pecados pessoais que resultam da cisão da vontade e, portanto, se

alicerçam numa inclinação da vontade para o mal. O desejo geralmente chamado de

libido, que é manifestação da concupiscência, remete à busca de prazeres precedidos de

uma apetência sentida na carne. Quanto à nomeação de tais desejos (libidines), o autor

de A Cidade de Deus afirma:

Há um desejo de vingança a que se chama ira, um desejo de ter

dinheiro que se chama avareza, um desejo de vencer de qualquer

maneira que se chama obstinação, um desejo de glória a que se chama

jactância. São muitos os desejos (libidines), alguns deles têm nome

próprio, outros não.121

A partir do texto citado, vemos que o Santo afirma que os desejos — tais como o

desejo de vingança, de ter dinheiro e de glória — criam hábitos que, por sua vez, se não

forem combatidos, acabam por gerar vícios. Em outras palavras, os hábitos, na medida

em que são repetidos, geram vícios que criam raízes no interior no homem, perturbam a

alma, e subordinam sua vontade e suas ações ao pecado.122

Nesse sentido, na

perspectiva agostiniana, é importante a distinção entre o livre-arbítrio — capacidade de

escolher — e a liberdade — capacidade de escolher bem.123

O Santo adverte que o

homem não deve sujeitar o seu livre-arbítrio a uma inclinação da vontade que possa

suprimir a sua liberdade.124

Na sequência de sua argumentação, no final do Livro XIV, Agostinho sintetiza

uma questão central: para além da oposição entre vício e virtude, a história humana

revela uma oposição entre formas de amor que se expressam em modos opostos de

vida.125

O Bispo de Hipona afirma:

121

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 15. 122

Cf. GRACIOSO, Joel. Interioridade e filosofia do espírito nas Confissões de Santo Agostinho. Tese

(Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São

Paulo, 2010, p. 71. 123

Cf. Arendt ressalta que Agostinho mudou radicalmente os termos do problema sobre a liberdade na

medida em que fez da liberdade (livre-arbítrio) a essência da vontade. (ARENDT, Hannah. Love and

Saint Augustine. Chicago; Londres: University of Chicago, 1996). 124

Ver também AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro V, 10. 125

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit.,

p.88.

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Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de

Deus — a terrestre; o amor de Deus até o desprezo de si — a celeste.

Aquela glorifica-se em si própria — esta no Senhor; aquela solicita

dos homens a glória — a maior glória desta consiste em ter Deus

como testemunha de sua consciência; aquela na sua glória levanta a

cabeça — esta diz ao seu Deus: Tu és a minha glória, tu levantas a

minha cabeça; aquela nos seus príncipes ou nações que subjuga, e

dominada pela paixão de dominar — nesta servem mutuamente na

caridade: os chefes dirigindo, os súditos obedecendo; aquela ama a

sua própria força nos seus potentados — esta diz ao seu Deus: Amar-

te-ei, Senhor, minha fortaleza; por isso, naquela os sábios vivem como

ao homem apraz ao procurarem os bens do corpo, ou da alma, ou dos

dois: e os que puderam conhecer a Deus não o glorificaram como

Deus, nem lhe prestaram graças, mas perderam-se nos seus vãos

pensamentos e obscureceram o seu coração insensato. Gabaram-se

de serem sábios (isto é, exaltando-se na sua sabedoria sob o império

do orgulho) tornaram-se loucos.126

Neste trecho de A Cidade de Deus, podemos perceber que o hiponense sublinha

a natureza do amor enquanto aspecto central da demarcação dos caminhos opostos que

movem as duas cidades. Na perspectiva agostiniana, o amor é compreendido como o

motor íntimo da vontade humana.127

Assim, a oposição entre as duas cidades remete a

uma reflexão sobre os conflitos que se manifestam no interior de cada ser humano: de

um lado, o homem é chamado por Deus a viver conforme a lei divina, a verdadeira

justiça; por outro, a vontade é dominada pelo amor de si mesmo.

Ademais, a natureza do amor elucida o tipo de sentimento comum que une os

homens de uma determinada sociedade. Com efeito, a vida social supõe a presença de

um sentimento que oriente os homens para um desejo comum. Para Agostinho, o amor é

o sentimento que cumpre essa tarefa. Assim, os membros de cada uma das duas cidades

se caracterizam pelo amor que orienta a sua vontade: o amor na Cidade Terrena é o

amor que busca os bens temporais; o amor na Cidade Celeste é o amor virtuoso, o amor

que ama o que se deve amar. Como resultado, na Cidade Celeste, a vida dos homens se

aproxima da verdadeira felicidade, que só pode ser atingida em Deus porque a

verdadeira vida “é feliz quando eterna”.128

126

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 28. 127

Cf. ZANONI RAMOS, Angelo Aparecido. O conceito de justiça na cidade de Deus de Santo

Agostinho. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de

São Paulo, São Paulo, 1998, p. 8. 128

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 25.

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2.5 A retidão de vida na sociedade justa

Na perspectiva do filósofo, há uma ordem no universo e é essa ordem divina que

dá sentido à história humana.129

Em outras palavras, o sentido da ordem é Deus, na

medida em que a plenitude do ser e a felicidade humana estão em função do Bem

Supremo. De acordo com Curbelié, é a justiça divina que confere ao homem a plenitude

do ser, a verdadeira vida.130

Do ponto de vista ontológico, o homem necessita chegar ao princípio da

Verdade: esta é uma questão da ordem do necessário porque a alma humana é

naturalmente unida às razões divinas.131

Assim, após o pecado original, a razão reta

(vera ratio) deve ser religada nas razões eternas de forma a transformar seu “olhar” em

relação ao próximo e aos bens terrenos conforme a justiça divina que dita como tudo

deve ser.

No pensamento de Agostinho em A Cidade de Deus, há uma ordem ontológica

que é o fundamento da ordem moral. Enquanto a ordem ontológica aplica-se a todas as

criaturas, a ordem moral é específica do homem, uma vez que só ele pode respeitar ou

transgredir a lei eterna. Conforme o hiponense, o afastamento moral do homem em

relação a Deus, por causa do pecado, diz respeito a uma perda de ser.

Com efeito, na reflexão do Santo, a ignorância da alma é identificada com a

perversão moral e isso implica o estabelecimento de uma relação entre conhecimento e

moral. A esse respeito, Oliveira e Silva esclarece que o filósofo apresenta um modelo

judicativo da razão: o ato cognitivo envolve juízos de valor e é ato moral.132

Na vida temporal, os homens de vontade reta estão misturados com os homens

de vontade perversa. Com efeito, apesar das diferenças de raças e línguas, o Bispo de

Hipona distingue essas duas categorias de homens. Nesse sentido, como afirma Lima

Vaz, submetido ao sentido da história providencial, o homem não deixa de ser um ator

na história.133

Considerando os pressupostos da reflexão do Santo, podemos afirmar que a

sociedade justa é aquela na qual a vida do homem de fé, auxiliado pela graça, tem uma

relação “correta” com Deus. A esse respeito, como salienta Curbelié, no pensamento

129

Sobre movimento e tempo em A Cidade de Deus, ver Livros XII, 21, e XI, 6. 130

Cf. CURBELIÉ, Philippe. La justice dans la Cité de Dieu. Op. cit., p. 149 131

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. O livre-arbítrio. Op. cit. Livro III. 132

Cf. OLIVEIRA E SILVA, Paula. Ordem e Mediação: a ontologia relacional de Agostinho de Hipona

Op. cit. 133

LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. Op. cit.

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agostiniano, a compreensão da justiça divina requer a concepção integral de homem,

enquanto união substancial de corpo e alma.134

A lei eterna, princípio que embasa a

justiça, é o fundamento da retidão da vida do homem que se situa de forma concreta na

história.

A partir do exposto, discordamos das implicações da interpretação de Guy,

segundo a qual as duas cidades podem ser compreendidas no sentido “espiritual” e

como duas categorias a priori.135

Em outras palavras, as duas cidades, conforme Guy,

não se situam necessariamente na existência humana concreta, quer individual, quer

social.136

Todavia, nossa leitura se aproxima da clássica interpretação de R. Markus.

Assim, podemos ressaltar que, para além da oposição, é no espaço secular de

coexistência entre a Cidade Terrena e a Cidade Celeste que se situa a vida humana

concreta no tempo.137

Em outras palavras, a bifurcação frisada por Agostinho não exclui

a coexistência das duas cidades.138

A esse respeito, lembremos as palavras do filósofo:

Na verdade, uma parte da cidade terrestre tornou-se a imagem da

cidade celeste, sem ser sinal de si própria mas da outra — e por isso é

que ela é escrava. Pois não foi ela razão de sua fundação mas sim de

significar a outra — embora também a mesma cidade que prefigura

tenha sido prefigurada por uma imagem anterior. [...] Encontramos,

portanto, duas partes na cidade terrestre, uma parte mostra-nos o seu

serviço de escrava para significar com a sua presença a cidade

celeste.139

Podemos observar que, neste trecho destacado, o Bispo de Hipona esclarece que

a Cidade Celeste faz uso dos bens terrenos. Seus membros, enquanto peregrinos, vivem

retamente e estão conscientes do caráter efêmero e mutável desses bens ou, ainda,

sabem diferenciar a ordem ontológica dos seres.

Assim, é na vida temporal que as duas cidades — a Celeste e a Terrestre —

134

Cf. CURBELIÉ, Philippe. La justice dans la Cité de Dieu. Op. cit., p. 122. 135

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.

81. 136

Cf. Ibidem, p. 91. A partir desta concepção, Guy refuta a possibilidade de A Cidade de Deus ser um

tratado de política cristã. 137

Cf. MARKUS, R. Saeculum: History and Society in the Theology of St. Augustine. Op. cit. Neste

livro, o objetivo de Markus é estudar os aspectos do pensamento de Agostinho que contribuem para

pensar o sentido da sociedade humana e, particularmente, as suas reflexões sobre história, sociedade e a

Igreja. Na sua análise, Markus apresenta Agostinho como um pensador que rejeitou a “sacralização” da

ordem social do seu tempo. 138

Cf. ZANONI RAMOS, Angelo Aparecido. O conceito de justiça na cidade de Deus de Santo

Agostinho. Op. cit., p. 38. 139

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XV, 2.

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estão inextricavelmente misturadas, como o trigo e a cizânia da parábola bíblica, que

podem crescer juntos e têm de aguardar a época da colheita para serem separados. Com

efeito, a linha divisória entre as duas cidades é invisível na vida temporal.140

A esse

respeito, podemos lembrar as palavras de Agostinho quando afirma, “De facto, estas

duas cidades estão mutuamente entrelaçadas e mescladas uma na outra neste século, até

que no último juízo serão separadas”.141

Somente no juízo final Deus separará os justos

dos injustos. Dessa maneira, todas as sociedades humanas contêm ambas as cidades e a

Cidade Celeste, enquanto peregrina na vida temporal, faz uso dos bens da Cidade

Terrena.

Como vimos, a realidade humana decaída, ferida pelo pecado, evidencia que o

homem, pelo amor a si mesmo, se afasta de Deus e se esquece da presença interior de

Deus nele. Na perspectiva agostiniana, tal afastamento tem implicações quanto às

condições de sociabilidade. Para aprofundar a análise do modo de vida na sociedade

justa, se faz necessário examinar o lugar da verdadeira virtude da justiça na

peregrinação do homem.

140

Cf. CHAUQUI, Tomás A. La Ciudad de Dios de Agustín de Hipona: selección de textos políticos.

Estudios Públicos, n. 99, p. 273-390, inverno 2005. Disponível em: <http://www.cepchile.cl/

dms/archivo_3650_1838/r99_chuaqui_laciudad.pdf>. Acesso em: 7 ago. 2014. 141

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro 1, 35.

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3 JUSTIÇA E VIRTUDE

No Livro XIX de A Cidade de Deus, Santo Agostinho afirma que o homem é um

ser de natureza social e que os homens, ao agir, mostram o que são e revelam suas

identidades singulares.142

Dessa forma, as relações interpessoais assumem destaque na

sua reflexão filosófica, que coloca a questão moral na dimensão social e frisa as

implicações éticas da responsabilidade individual na ordem social justa.

De acordo com o autor de A Cidade de Deus, cada homem pertence a Adão, isto

é, à raça humana pela geração, mas não pela imitação.143

A imitação de Cristo envolve

uma escolha: o caminho da restauração do ser. Os homens na história que imitam a

Cristo, os homens justos que vivem da fé, têm esperança na vida eterna, que é a

verdadeira vida feliz.144

Nesse sentido, para o filósofo, o sábio é o homem cujo

conhecimento em virtude o leva a praticar as verdadeiras virtudes: é o homem justo.

Assim, o sábio não é aquele que acumula saberes, mas é aquele que sabe amar

ordenadamente e agir com retidão.

Para o Bispo de Hipona, somente na Cidade de Deus ou Cidade Celeste, impera

a ordem social justa. É oportuno lembrar que, nos Livros XV a VIII de A Cidade de

Deus, o autor reflete sobre o desenvolvimento da Cidade Celeste — das origens até a

encarnação de Cristo. No Livro XV, 22, o filósofo afirma, de forma lapidar, que, na

Cidade de Deus, a verdadeira virtude é a ordem do amor:

Mas o Criador, se é verdadeiramente amado, isto é se é Ele próprio

amado e nenhuma outra coisa por Ele que não seja Ele — não pode

ser mal amado. Porque o próprio amor que nos faz amar bem o que

deve ser amado, deve ser amado também ordenadamente para que

esteja em nós a virtude pela qual se vive bem. Por isso que é a

verdadeira virtude: ordo amoris — “a ordem do amor”. É por isso que

a esposa de Cristo, a Cidade de Deus, canta no santo Cântico dos

Cânticos: Ordenai em mim a caridade.145

A partir do texto citado, Agostinho identifica a relação entre a verdadeira virtude

da ordem do amor e a Verdade. Ao viver conforme a vontade do criador, o homem se

relaciona com os bens inferiores com justiça, “dando a cada um o que é seu”. Assim, o

142

Segundo Finley, Aristóteles já colocara a questão da natureza social do ser humano. A esse respeito,

ver FINLEY, Moses I. A política no mundo antigo. Op. cit. 143

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XV, 1. 144

Em A Cidade de Deus, Livro XXI, Agostinho trata da segunda morte, da eterna punição e, no Livro

XXII, trata da eterna felicidade na Cidade Celeste. 145

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XV, 22.

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hiponense reafirma que não há felicidade para o homem fora da virtude da ordem do

amor, que deve presidir não só o uso dos bens terrenos mas também a relação entre os

homens. Ademais, ele frisa que, na vida terrena, a vivência da caridade é o sinal

distintivo dos verdadeiros filhos de Deus.

Na perspectiva agostiniana, o homem só ama ordenadamente se julgar e apreciar

com justiça todos os seres em geral ou, ainda, se ele submeter os bens exteriores ao

corpo e este, por sua vez, à alma. Assim, no entender do Santo, a ordem do amor é a

verdadeira justiça. Na própria alma, o homem deve subordinar os sentidos à razão

iluminada pela fé e, auxiliado pela graça, deve submeter sua alma a Deus. Considerando

estes pressupostos do pensamento agostiniano, pode-se afirmar que o homem justo que

vive da fé se subordina à vontade divina. Nesse sentido, a ordem interior, fruto da

conversão da vontade, é pressuposto da ordem social, fundada na felicidade, justiça e

paz.

Cabe salientar que as reflexões do Santo, no Livro XIX de A Cidade de Deus,

aprofundam a análise da relação entre a Cidade de Deus e a Cidade Terrena na

história.146

Nesse sentido, o referido autor propõe uma reflexão sobre o homem na vida

social que expressa a originalidade da consciência histórica cristã em face do mundo

antigo.147

Nesse contexto filosófico, a justiça, enquanto verdadeira virtude, é a pedra

angular da Cidade de Deus porque seu fundador é Cristo. O filósofo frisa que os

homens que se subordinam à vontade de Deus e praticam as verdadeiras virtudes

constituem os membros da Cidade Celeste.

No âmbito da história da filosofia, na medida em que Agostinho retoma que o

problema básico do homem é o de encontrar a felicidade, o seu pensamento pode ser

considerado como partícipe da tradição filosófica antiga pela sua referência ética ao

contentamento (eudaimonia). No entanto, afasta-se desta tradição por redefinir a relação

entre o Sumo Bem e as virtudes. No movimento de “religação” ao Sumo Bem, o homem

dotado de livre-arbítrio, revela o movimento de restauração do seu ser em ações que

manifestam o conhecimento em virtude. Assim, a importância das verdadeiras virtudes

é preparar o homem para seu encontro com Deus. Todavia, para ser virtuoso, o homem

precisa do auxílio divino.

146

Arendt chama a atenção para a importância do olhar de Agostinho sobre a condição humana e, na sua

interpretação, destaca que ele é o primeiro filósofo a considerar o homem como ponto de partida de uma

reflexão sobre o mundo. A esse respeito, ver ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. X. 147

Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. Op. cit., p. 189.

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3.1 O Sumo Bem e a verdadeira virtude da justiça

As reflexões de Agostinho estão em continuidade com a ética antiga e com a

filosofia helenística. Com efeito, o Santo se move no quadro da chamada “ética da

felicidade” antiga, para a qual a pergunta acerca do Sumo Bem é, em última análise, a

pergunta acerca do desejo de felicidade do homem.148

Apesar das tradições filosóficas

das quais herdou influências, no pensamento agostiniano está contida uma mudança,

que se fundamenta na crítica aguda aos filósofos que acreditavam ser possível a vida

feliz na vida terrena.

No Livro XIX, 1, de A Cidade de Deus, o autor revê as opiniões dos filósofos

que tinham, até então, pretendido em vão encontrar a felicidade na vida terrena. O seu

objetivo é refletir sobre qual é a verdadeira felicidade e qual felicidade se pode esperar

nesta vida. No início do Livro XIX, o Santo alerta que seu método filosófico se

fundamenta na fé e na razão.149

Com efeito, para o Bispo de Hipona, toda verdadeira

filosofia é construída dentro da fé que antecede à razão.150

Entende que a fé, auxiliada

pela razão, incita a especulação filosófica de forma a alcançar o conhecimento do objeto

da fé.151

A filosofia se completa com o estudo da Revelação de forma a alcançar o

conhecimento da Verdade. Desse modo, a filosofia e a teologia, embora distintas em

seus métodos, se completam mutuamente, constituindo dois guias que conduzem a

Deus.152

Na refutação das seitas filosóficas pagãs, Santo Agostinho frisa a sua crítica à

natureza do Sumo Bem. A propósito da questão filosófica dos bens e dos males

supremos, toma como ponto de partida a exposição de Varrão, que apontou que se

podem encontrar 288 seitas filosóficas.153

Tais seitas compartilhavam a premissa de que

o homem pode alcançar o Sumo Bem e permanecer na sua posse na vida terrena desde

que definidos os critérios adequados. Dentre as diferenças que embasam a classificação

e a combinação das 288 seitas filosóficas teoricamente possíveis acerca dos bens e dos

males supremos, elaborada por Varrão, pode-se mencionar: i) os princípios que o

148

Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Op. cit., p. 19-23. 149

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 1. 150

A reflexão sobre a relação entre a fé e a razão é desenvolvida por Agostinho no diálogo Solilóquios,

Livro I. (AGOSTINHO, Aurelius. Solilóquios. Tradução, introdução e notas Adaury Fiorott. São Paulo:

Paulus, 1998). 151

Cf. BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1982, p.

424. 152

Cf. GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Op. cit., p. 545. 153

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 1.

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homem busca naturalmente; ii) a relação entre as virtudes e esses princípios; iii) a

atitude do homem na vida social; iv) a natureza certa ou incerta das opiniões; v) os

costumes; vi) os gêneros de vida (contemplativa, ativa e mista).

Na multiplicidade característica das seitas filosóficas pagãs, o Santo ressalta o

caráter relativo do Sumo Bem. No contexto de tal multiplicidade, a concepção filosófica

dos epicuristas, por exemplo, realçava a existência de um critério de certeza para guiar

as ações do ser humano que se apoia em uma percepção sensorial. Desse modo, na

perspectiva epicurista, entende-se que a natureza ensina que o Sumo Bem é o prazer e

que o mal supremo é a dor. Sendo que ausência de dor significa a forma suprema de

prazer, os epicuristas suportavam o destino com serenidade de forma a obter o prazer da

quietude e, assim, alcançar a felicidade. Neste contexto filosófico, as virtudes são um

meio para atingir o prazer da quietude, isto é, o Sumo Bem.154

Desse modo, pode-se

falar de uma orientação moral baseada nas leis naturais que fundamenta a relação entre

o Sumo Bem e as virtudes, segundo os epicuristas.

Numa outra perspectiva, os estoicos defendiam que a virtude é o Sumo Bem.

Nesta visão cosmológica, o bem moral contribui para a felicidade e o logos (razão) é o

princípio teleológico que impele o ser humano a realizar sua própria natureza. Assim, a

vida virtuosa é considerada a vida segundo o logos e exige uma atitude interna de

conversão para possuir a ordenação correta da alma e fazer o bem. Nesse sentido, para

os filósofos estoicos, a felicidade do ser humano reside num estado de perfeição da

alma, isto é, num estado de alma ordenada onde a razão domina as paixões. Enquanto

Platão e Aristóteles souberam reconhecer que o homem é essencialmente um ser social,

os estoicos postularam como ideal de vida virtuosa a figura do sábio que vive fora do

mundo, em conformidade com a lei da natureza universal ou da razão.

Ainda no contexto das discussões sobre a vida feliz e o Sumo Bem, o hiponense

também dirigiu suas críticas ao ceticismo da Nova Academia por negar a existência de

um critério de verdade.155

Para os céticos, o sábio pratica a epoché, isto é, se abstém do

juízo apodítico afirmativo, ou seja, um juízo demonstrativo que não admite contestação

de forma a evitar o erro. Assim, o sábio não reivindica conhecimento, mas se detém em

meras opiniões que fundamentam a busca da felicidade na vida temporal.156

Nesse

154

Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Op. cit., p. 25-26. 155

Cf. MARROU, Henri-Irénée. Saint Augustin et l’augustinisme. Paris: Seuil, Colection “Maitres

spirituels”, 1955. 156

Chauqui lembra que, após Agostinho viver nove anos interessado em refletir sobre as doutrinas de

Manes (216-277), o filósofo considerou por breve período adotar uma posição cética. Os céticos

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sentido, a crítica do Santo aos céticos reafirma uma questão central no seu pensamento

em A Cidade de Deus: há uma Verdade que é o Deus único que governa o mundo.

Ao sintetizar a reflexão de Varrão acerca do alcance filosófico das 288 seitas

referidas, no Livro XIX, 3, de A Cidade de Deus, 3, Agostinho ressalta três relações que

podem ser estabelecidas, no contexto da reflexão pagã sobre a felicidade, entre as

virtudes e os bens primários da natureza, quais sejam: os bens primários da natureza são

buscados em vista da virtude; busca-se a virtude em vista dos bens primários da

natureza; e busca-se a virtude e os bens primários da natureza por si próprios na vida

terrena enquanto fundamento da felicidade.157

O hiponense descarta os bens terrenos e os bens da natureza como fundamento

da felicidade. Para o Santo, os bens terrenos mutáveis, de caráter efêmero, corruptíveis,

não podem ser considerados enquanto fundamento da vida feliz. A esse respeito,

também questiona os bens da natureza, tais como os sentidos, dado que a percepção dos

sentidos pode perder qualidade e a razão pode ficar entorpecida.158

Com efeito, ele

critica aqueles que pretendem encontrar nesta vida o Sumo Bem e conseguir por si

mesmos a felicidade. Nas suas palavras:

[...] como somos salvos pela esperança, assim também pela esperança

somos bem-aventurados; e tal como a beatitude, assim também a

salvação não a possuímos como presente, mas aguardamo-la como

futura, e isto graças à paciência; porque estamos no meio de males que

v suportar com paciência até alcançarmos aqueles bens onde tudo

haverá de nos deleitarmos de uma forma inefável e onde já nada

haverá que sejamos obrigados a suportar. Uma tal salvação, que

existirá no século futuro, esta é que será a beatitude final. Esta

beatitude, nela não querem crer esses filósofos porque a não vêem;

procuram fabricar cá uma, absolutamente falsa, com uma virtude tanto

mas mentirosa quanto mais orgulhosa.159

Em verdade, no texto selecionado, o referido autor nos dá uma ideia da sua

intenção fundamental, qual seja, a de colocar a questão da vida feliz numa nova

perspectiva: a vida feliz é a vida eterna. Assim, o Santo não só questiona a plenitude da

felicidade na vida temporal, mas também o poder do homem de curar por si só as

recomendavam a “suspensão do juízo” diante da impossibilidade de alcançar a certeza. (CHAUQUI,

Tomás A. La Ciudad de Dios de Agustín de Hipona: selección de textos políticos .Op. cit.). 157

Destas relações, Agostinho nos lembra que Varrão escolhe a terceira, que se identifica com a escola

moral da Antiga Academia, cujo autor é Antíoco. Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit.

Livro XIX, 3 158

A relação entre os bens terrenos, os bens da natureza e a felicidade é amplamente desenvolvida por

Agostinho em A Cidade de Deus, Op. cit. Livros I a IV e Livro V, 10. 159

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 4.

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doenças da alma. Assim, emerge uma crítica do conceito de ética filosófica antiga como

“arte de viver”.160

Nesse sentido, Brachtendorf ressalta que a ética antiga desenvolve

prioritariamente uma técnica da boa vida, um ars vivendi, que conduz o homem a

apreender o bem supremo e a orientar a sua vida por ele para a obtenção da

felicidade.161

O diagnóstico subjacente à proposta da filosofia antiga enquanto terapia

moral é que há no ser humano doenças da alma que impedem uma vida feliz.

Em outras palavras, embora Agostinho também se mostre preocupado com as

doenças da alma, critica todos aqueles filósofos — inclusive Cícero — que acreditavam

que o homem tem o poder para curar a sua alma. Em verdade, o Santo introduz uma

nova relação entre Sumo Bem e as virtudes do homem. Ademais, ele questiona a

filosofia enquanto uma terapia moral para alcançar o Sumo Bem na vida terrena. Nesse

sentido, apesar da influência do ideal ético da vida feliz, o pensamento do referido autor

se diferencia das tradições filosóficas herdadas porque, na sua perspectiva da vida feliz,

a cura das doenças da alma pertence ao terreno da religião e Cristo é o mediador na

busca da felicidade que é a vida eterna. Nesse sentido, na perspectiva agostiniana, o

fundamento de toda a ética é o desejo da vida feliz que não é senão a vida eterna.162

Contrariamente aos filósofos pagãos que dizem possuir o bem supremo na vida

terrena, o Santo frisa o que pensam os cristãos sobre o Sumo Bem que é Deus. Nesse

sentido, do ponto de vista da estrutura do Livro XIX de A Cidade de Deus, o capítulo 4

representa uma mudança na argumentação. Nesse capítulo, é oportuno destacar que o

filósofo afirma uma concepção de homem, enquanto união substancial de corpo e alma,

que tem impactos decisivos sobre a concepção cristã de Sumo Bem.

Como observa Guy, em oposição à multiplicidade da teologia pagã, Agostinho

apresenta a unidade das escrituras cristãs.163

Para o Bispo de Hipona, o homem possui

um desejo natural de felicidade que somente pode ser apaziguado no próprio Deus, o

Sumo Bem que é o Absoluto. Nas suas palavras: “A vida feliz consiste em nos

alegrarmos em Vós, de Vós e por Vós”.164

Assim, tal desejo de felicidade leva o homem

a voltar-se para Deus.165

160

Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Op. cit., p. 23. 161

Na tradição helenística se dividia a filosofia em ética, teoria do conhecimento (lógica) e filosofia

natural. Sobre este ponto, consultar BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho Op. cit. 162

Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.

Agostinho. Op. cit. 163

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.

129 164

AGOSTINHO, Aurelius. Confissões. Op. cit. Livro X, 22. 165

Outras referências à busca da felicidade e do voltar-se para Deus podem ser encontradas,

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No Livro XIX, 4, de A Cidade de Deus, a reflexão agostiniana sobre a felicidade

realça a justiça enquanto virtude no sentido ético. O filósofo frisa que as virtudes são “o

tesouro mais precioso e útil do homem” e, no seu entender, não fazem parte dos

princípios da natureza. A respeito das virtudes, o Santo questiona:

A própria virtude, que não se encontra entre os bens primários da

natureza pois é-lhes acrescentada posteriormente por meio da

educação, embora reivindique para si o lugar mais elevado dos bens

humanos, que faz ela cá, senão uma perpétua guerra aos vícios, não

exteriores mas interiores, não alheios mas muito nossos e pessoais —

principalmente aquela virtude que se chama em grego sophrosyne, e

em latim temperantia (temperança), pela qual são refreadas as paixões

carnais para que não levem o espírito a consentir alguma torpeza?166

Nesse momento da argumentação, podemos observar que no trecho citado,

Agostinho insere, na perspectiva da fé cristã, o papel da prática das virtudes no combate

aos vícios interiores. Quanto à temperança, o Santo afirma a luta moral do homem na

vida terrena para obter a ordem interior. Adicionalmente, ele esclarece que a prudência

consiste “[...] em discernir o bem do mal [...]. De facto, ela própria nos ensina que o mal

está em consentirmos e o bem em não consentirmos no desejo de pecar.” Quanto à

fortaleza, o filósofo nos instrui: “[...] é ela o mais evidente testemunho dos males

humanos que é obrigada a suportar com paciência”. Por fim, a função da virtude da

justiça é “dar a cada um o que lhe é devido”.167

De forma a ressaltar o impacto da fé cristã no conceito de virtude, o hiponense

faz uma distinção entre a concepção de “virtude” adotada pelos romanos na sua vida

civil e a sua concepção de verdadeiras virtudes. Esclarece que as virtudes qualificadas

de verdadeiras não são praticadas pelo desejo de glória humana, mas por amor ao Sumo

Bem.168

Conforme comenta Gilson, a obtenção da virtude é de suma importância, pois

“virtude é querer o que devemos querer, ou seja, amar o que devemos amar”.169

Na

respectivamente, em A Cidade de Deus, Livro XII, 1, e Livro XIV, 11. 165

Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.

Agostinho. Op. cit. 165

Ver a esse respeito, AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIV, 25. A relação

entre o uso dos bens temporais e a vontade humana é explorada por Agostinho em A Cidade de Deus,

Livro XIX, 1-4. 166

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 4. 167

Ibidem. Livro XIX, 4. 168

A crítica à relação entre glória humana, virtudes e justiça é trabalhada também está presente em A

Cidade de Deus, Livro IV, 2. 169

Cf. GILSON, Etienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Tradução Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub. São Paulo: Discurso; Paulus, 2006, p. 258.

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perspectiva agostiniana, as verdadeiras virtudes expressam o aperfeiçoamento das

potências da alma pelo auxílio divino. Assim, as verdadeiras virtudes não são uma

conquista humana obtida pela educação, por exemplo. As verdadeiras virtudes são o

resultado da ação de Deus no homem peregrino. A esse respeito, podemos afirmar que,

na perspectiva agostiniana, o conhecimento em virtude, fruto da infusão da graça,

auxilia o homem, no devir histórico, a adequar seu modo de vida à vontade de Deus.

No desenvolvimento da reflexão sobre as virtudes e a vida feliz, Santo

Agostinho esclarece que a verdadeira virtude da justiça — “cuja função consiste em dar

a cada um o que lhe é devido” — permite que se estabeleça uma certa ordem no

homem, segundo a qual ele submete a alma e a carne a Deus. O filósofo cristão

fundamenta a verdadeira justiça no poder transcendente da lei divina, no Absoluto. Por

outro lado, a justiça enquanto verdadeira virtude, na perspectiva agostiniana, se insere

no íntimo embate do ser humano contra as próprias paixões e no contexto da relação

“correta” do homem com Deus. Nesse contexto filosófico, emerge uma concepção de

justiça enquanto virtude que remete à submissão da conduta dos homens à verdadeira

justiça que funda o amor ordenado.

Seguindo a interpretação de Dodaro, podemos ressaltar que Agostinho, em A

Cidade de Deus, apresenta a verdadeira virtude da justiça como condição propriamente

ordenada da alma, que encontra a justa medida das coisas na ordem dos seres criada por

Deus.170

Na cosmovisão de Agostinho, a verdadeira justiça Assim, a verdadeira justiça,

que é Deus imperando na vida terrena, prescreve o reto ordenamento de todas as coisas

e a prática da justiça terrena torna-se uma exigência moral.

Nesse sentido, a verdadeira virtude da justiça é entendida como bonum da vida

terrena que, nos limites das realizações humanas, deve ser perseguida como modelo de

conduta insubstituível para a vida feliz.171

Todavia, na vida terrena, à espera da vida

feliz, a justiça humana será sempre imperfeita.172

170

Segundo Dodaro, a relevância da relação ordenada da alma denota a influência da noção paulina de

dikaiosyne. (DODARO, Robert. Cristo e a sociedade justa no pensamento de Agostinho. Op. cit., p. 17). 171

Cf. TERCEIRO-MUIÑOS, Carlos Rubén. San Agustin: la relación entre “Ius” y “Polis” en el De

Civitate Dei. San Luis, Argentina: Universidad Católica de Cuyo, 23 set. 2004. Disponível em:

<http://www.unicatcuyosl.edu.ar/varios/sanagustin.doc>. Acesso em 7 ago. 2014. 172

Cf. COSTA, Marcos Roberto Nunes. A dimensão metafísica da civitas na doutrina ético-política de

Santo Agostinho. Civitas Avgvstiniana, v.1, n. 2, p. 115-130, 2012.

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3.2 A ambivalência moral do homem e os juízos humanos

Ao analisar as relações entre os homens na vida social, o hiponense reflete sobre

as imperfeições ou desvios do comportamento humano em relação ao amor ordenado —

que é fundado em Deus. O Santo diz:

[...] por toda a parte não estão as situações humanas cheias destes

desvios? Não se encontram eles, a maior parte das vezes, mesmo nas

mais honestas amizades dos amigos? Não estão, por toda a parte, deles

cheias as situações humanas onde sentimos as injúrias, os ciúmes, as

inimizades e a guerra como males certos e a paz como um bem incerto

porque desconhecemos o coração daqueles com quem queremos

mantê-la, e, se hoje podemos conhecê-los, não saberemos o que serão

amanhã?173

A partir desse trecho, percebemos que Agostinho indica as situações humanas

que exemplificam “desvios” em relação à ordem criada e regida por Deus. No plano da

história, o homem não está seguro nem no próprio lar ou cidade; enquanto as

instituições políticas também não garantem tal segurança.174

Assim, o filósofo alerta que

o homem não está livre das ameaças das calamidades e sofrimentos impostos pelo

próprio gênero humano. Embora a vida social seja altamente desejável, ela é muitas

vezes perturbada por numerosas dificuldades, tais como injúrias, ciúmes, inimizades,

guerra.

De acordo com o referido autor, os erros dos juízos humanos, que resultam em

desvios ou males — as “trevas da vida social” —, expressam o desconhecimento da

Verdade.175

Todavia, no entender do Santo, o homem não vive apenas na ignorância

sobre o Bem Supremo ou numa deliberada indolência para reorientar a vontade e mudar

seu modo de vida. Em verdade, por detrás dos erros dos juízos humanos, há uma

questão ontológica que remete à cisão da vontade ou à “debilidade humana”.176

Na reflexão sobre os traços predominantes da vida social, Agostinho usa a

metáfora da “diversidade de línguas”:

De facto, se dois homens, nenhum dos dois conhece a língua do outro,

caminharem ao encontro do outro mas, por qualquer razão, em vez de

cruzarem têm que ficar no mesmo lugar — é mais fácil que dois

173

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 5. 174

Cf. Ibidem. Livro XIX, 5. 175

Ibidem. Livro XIX, 6. 176

Ibidem. Livro XIX, 6.

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animais mudos, mesmo de gênero diferente, convivam em sociedade,

do que aqueles dois, apesar de ambos serem homens. Efectivamente,

quando não podem comunicar um ao outro o que sentem apenas por

causa da diversidade de língua, de nada serve para levar os homens ao

convívio social a sua tão grande semelhança de natureza — e tanto é

assim que o homem tem mais prazer em estar com o seu cão do que

com um estrangeiro.177

Nesse trecho selecionado, o autor expressa a ideia de que o homem não

consegue se comunicar com os seus semelhantes sem que prevaleça a iniquidade que

promove a divisão da sociedade dos homens e impede a paz.178

O hiponense entende

que o homem é um animal social, o único dotado da fala por meio da qual pode

comunicar-se e se relacionar com outros homens. No contexto de sua visão

antropológica, o discurso e a ação revelam a distinção do homem enquanto criatura

racional com corpo e alma.

Ademais, na análise sobre a vida social, o Santo introduz a questão da paz como

um bem incerto se não for alicerçada na Verdade. Retomemos a afirmação do autor de A

Cidade de Deus:

Mas essa iniquidade, porque é dos homens, ao homem tem que ser

dolorosa, mesmo que dela nenhuma necessidade de empreender a

guerra nasça. Portanto, estes males tamanhos, tão horrendos, tão

cruéis, todo aquele que com dor neles reflecte tem que confessar que

são uma desgraça; mas todo aquele que julga que os suporta ou neles

pensar sem dor na alma e continua a julgar-se feliz, esse caiu numa

desgraça muito mais profunda, porque perdeu o próprio sentimento

humano.179

Essas palavras do hiponense ressaltam que, em face dos males do gênero

humano, muitos homens julgam que há felicidade na vida terrena e, portanto, perderam

o “próprio sentimento humano”.180

Como resultado, o homem acaba se tornando um

estranho para o próprio homem e a paz fundada na mutabilidade da vida humana será

sempre um bem incerto.181

Na análise do referido autor, a paz é expressão da

manifestação da vontade de Deus entre os homens.

Nesse sentido, o filósofo aponta para a ambivalência moral do homem que se

177

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 7. 178

Cf. Ibidem. Livro XIX, 7. Neste capítulo, Agostinho apresenta a ideia de guerra justa. 179

Ibidem. Livro XIX, 7. 180

Ibidem. Livro XIX, 7. 181

Cf. Ibidem. Livro XIX, 7.

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manifesta em uma tensão entre individualidade e sociabilidade.182

O Bispo de Hipona

reafirma a natureza do ser humano como eminentemente social e, desse modo, a ação

humana envolve relações interpessoais.183

Todavia, na vida social, Agostinho ressalta os

conflitos da condição humana, marcada pelo pecado original: “Todos dizem viver em

paz com os seus, contanto que todos queiram viver conforme o seu arbítrio”.184

No entanto, o Santo chama a atenção que o homem, apesar da sua ambivalência

moral, deseja a paz: “É, de fato, tão grande o bem da paz que, mesmo nos negócios

terrenos e perecíveis, nada se possa ouvir com mais agrado, nada se pode procurar com

mais anseio, finalmente nada melhor se pode encontrar de melhor”.185

E acrescenta:

“Quem quer que observe um pouco as questões humanas e a nossa comum natureza

reconhecerá comigo que, assim como não há quem não procure a alegria, também não

há quem não queira possuir a paz”.186

Nos trechos acima citados, Agostinho frisa que a paz, assim como a alegria, é a

aspiração última de todos os homens, cuja natureza os impele à vida social. Mesmo a

crueldade dos homens em tempos de guerra e todas as perturbações e preocupações

humanas têm por fim chegar à paz, dado que não há ser que não deseje a paz.

É a partir desse pressuposto que, no Livro XIX, 12, Agostinho afirma: “O

homem é como que impelido pelas leis da sua natureza a entrar numa sociedade com os

homens”. Na perspectiva agostiniana, a gênese da cidade está em estrita relação com um

critério histórico evolutivo impulsionado pela dinâmica social, cujo fundamento é a

natureza humana e sua necessidade de viver em sociedade. No entanto, quando os

homens subvertem a “ordem do amor” e querem construir a paz a partir do egoísmo,

submetendo os outros homens aos interesses próprios (soberba) e ao seu arbítrio, esta

paz dos iníquos nem se pode chamar de paz, “em comparação à paz dos justos”.187

Assim, a tensão entre individualidade e sociabilidade revela a ambivalência

moral que se manifesta nos desejos contraditórios do homem: o homem deseja a

felicidade mas também deseja o poder; o homem ama a paz mas pratica a iniquidade.

Em última análise, tal ambivalência moral expressa a cisão da vontade ou, ainda, a

inadequação da vontade do homem à vontade de Deus.

182

Cf. MARKUS, R. Saeculum: History and Society in the Theology of St. Augustine. Op. cit. 183

Segundo Arendt, os seres humanos aparecem uns aos outros, certamente não como objetos físicos, mas

como qua homens. Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. 129. 184

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 12. 185

Ibidem. Livro XIX, 11 185

Ibidem. Livro XIX, 11. 186

Ibidem. Livro XIX, 12. 187

Ibidem. Livro XIX, 12.

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Nesse contexto filosófico, a verdadeira paz na vida terrena, mesmo no meio de

perturbações, não escapa da lei divina. Para o Santo, a paz é fundada na ordem:

A paz do corpo é a composição ordenada de suas partes; a paz da alma

irracional é a tranquilidade ordenada de seus apetites; a paz da alma

racional é o consenso ordenado da cognição e da ação; a paz do corpo

e da alma é a vida e a saúde ordenadas do ser animado; a paz do

homem mortal com Deus é a obediência ordenada na fé sob a eterna

lei; a paz dos homens é a concórdia ordenada; a paz da casa é a

concórdia ordenada dos cidadãos no mando e na obediência; a paz da

Cidade Celeste é a comunidade absolutamente ordenada e

absolutamente harmoniosa no gozo de Deus, no gozo mútuo de Deus;

a paz de todas as coisas é a tranquilidade da ordem. A ordem é a

disposição dos seres iguais e desiguais que distribui a cada um os seus

lugares.188

Nesse trecho citado, podemos perceber que o Bispo de Hipona apresenta

algumas definições de paz. A primeira parte do trecho se inicia com a definição de paz

em cada homem, em sua relação consigo próprio e com Deus: a paz do corpo, a da alma

irracional e racional, a do corpo e da alma e, finalmente, a paz do homem com Deus.

Nessa primeira parte, o Santo frisa a paz do homem singular, que mantém uma ordem

no seu próprio interior e na sua relação com Deus. Nesse sentido, sob a lei divina, cada

homem consegue, com o auxílio da graça e por força da ordem do amor, o que merece

por decisão de sua vontade.189

Na segunda parte do trecho selecionado, Agostinho privilegia a paz dos homens

em conjunto, seja na casa (família) ou na cidade. Cabe observar que a sequência da

exposição do filósofo não é aleatória. Ao que parece, ele compreende a manutenção da

paz do homem singular como condição indispensável para a promoção da paz nas

relações interpessoais. Neste particular, subentende-se a classificação progressiva, em

termos da amplitude dessas relações das esferas da casa, da cidade e do mundo. Deus,

Ordenador de todas as naturezas criadas, deu aos homens determinados bens temporais.

O homem mortal que fizer uso correto de tais bens, vivendo na obediência da fé em

concórdia ordenada, receberá bens mais abundantes e melhores, a saber: a própria paz

na vida eterna.190

Dessa forma, o hiponense propõe o tema da responsabilidade moral do homem

na sua peregrinação terrestre para a promoção da paz. Na sua perspectiva, quando a

188

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 13. 189

Cf. Ibidem. Livro XIX, 13. 190

Cf. Ibidem. Livro XIX, 13.

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alma subordina a sua vontade à vontade de Deus, ela informa e vivifica as verdadeiras

virtudes. Assim, a vontade do homem gera a concórdia ordenada, isto é, a pacífica

convivência entre os homens na vida social.191

3.3 Conversão da vontade, justiça e paz: da ordem interior à ordem social

Após realçar a importância da responsabilidade individual do homem na

promoção da paz na vida social, Santo Agostinho afirma, no Livro XIX, 14, de A

Cidade de Deus, os limites da autonomia da razão e dos sentidos para adequar a vontade

do homem à vontade de Deus, o Sumo Bem. Quanto ao homem, o referido autor afirma:

Mas ele tem necessidade do ensino divino a que obedece para ficar

com certeza — e do auxílio divino para se lhe submeter como homem

livre — não aconteça que pelo próprio desejo de conhecer incorra na

peste de algum erro devido à debilidade do gênero humano. Mas,

porque caminha em peregrinação longe do Senhor enquanto se

mantiver neste corpo mortal, quem o guia é a fé e não a visão — e por

isso ele refere toda a paz do corpo, ou da alma, ou ao mesmo tempo

do corpo e da alma, a essa paz que une o homem mortal a Deus

imortal, para assim ter obediência bem ordenada na fé sob a lei

eterna.192

Esse texto selecionado aponta para uma distinção entre os “olhos” da fé e os

“olhos” do corpo. Na perspectiva agostiniana, a questão do “ensino e do auxílio divinos”

está presente na reflexão sobre os limites e o alcance do conhecimento humano.193 Com

efeito, o filósofo frisa os limites da razão natural para o conhecimento da Verdade e

concebe a sabedoria como fruto da fé e da razão. Assim, pela iluminação divina, a alma

participa do conhecimento da perfeição imutável da Verdade, que é superior ao homem

191

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 13. Vale lembrar que no

Comentário aos Salmos, 85, Agostinho também ressalta a relação entre justiça e paz na promoção da

ordem social. (AGOSTINHO, Aurelius. Comentário aos Salmos. Tradução Monjas Beneditinas. Revisão

Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1997). 192

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 14. 193 A doutrina da iluminação é trabalhada por Agostinho em De Magistro. Segundo o filósofo, a razão

humana é iluminada pela Luz que provém do Mestre Interior, Cristo, que a guiará no processo do

conhecimento da Verdade. É Cristo, que é o Caminho, a Verdade e a Vida, quem ensina interiormente.

Em De Magistro, XI, o hiponense afirma: “No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos,

não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à

propriamente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado ensina verdadeiramente, e

este é Cristo, que habita, como foi dito, no homem interior, isto é: a virtude incomutável de Deus e a

sempiterna Sabedoria, que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada um quanto é permitido

pela sua própria boa ou má vontade”.(AGOSTINHO, Aurelius. De Magistro. Tradução Ângelo Ricci. São

Paulo: Abril Cultural, 1980. Coleção “Os Pensadores”).

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porque Deus o fez e o sustenta. Segundo o filósofo, o homem compreende a verdade

revelada pelo ensinamento interior da Verdade e tal compreensão requer um movimento

espiritual. A alma só se pode conhecer e constituir um juízo sobre si própria se

iluminada pela verdadeira Luz que lhe conduz para uma transformação judicativa e

valorativa. Afastada das coisas efêmeras e sensíveis, a alma pode considerar, em si

mesma, a unidade de sua essência, e o intelecto iluminado por Cristo pode discernir

quanto à hierarquia, quanto à ordem dos seres. Como resultado, o homem se submete à

vontade do Bem Supremo para alcançar a plenitude da felicidade.

Conforme o Santo, o homem constata em seu íntimo a Verdade — que é o ser

divino absoluto e transcendente que habita nele. No processo de interiorização, ocorre a

experiência de autoconhecimento. Esse processo envolve um movimento de elevação

espiritual em face da materialidade, da mutabilidade e da imperfeição, e da busca da

perfeição espiritual. O autoconhecimento da alma remete a julgamentos morais no

sentido da verdadeira liberdade conforme a lei divina que é o fundamento da justiça.

Deus concede ao homem o livre-arbítrio e há de ser Ele, por intermédio da graça, quem

auxilia o homem para realizar a conversão da vontade.194

Ora, após o pecado original, a criatura não tem poder para restaurar seu ser de

forma a adequar sua vontade à lei divina. Nesse sentido, o querer do homem

fundamentado na razão não é suficiente para a conversão da vontade. No pensamento de

Agostinho, subjaz a distinção entre querer e poder, que é decisiva para a compreensão

do auxílio divino na peregrinação do homem na vida terrena. De fato, a ordem interior

194

O movimento da alma é trabalhado por Agostinho em Sobre a potencialidade da alma. O Santo expõe

os sete graus da grandeza da alma que se manifestam no poder da alma sobre o corpo, nela mesma e

diante de Deus. Os três primeiros graus da grandeza da alma apontam para a alma enquanto princípio de

vida, de sensibilidade e de racionalidade. O primeiro grau é aquele que remete ao princípio de

conservação do corpo; no segundo grau, o hiponense fala da alma enquanto força que move o corpo

fisicamente e pela qual os sentidos são afetados. O terceiro grau envolve faculdades criadoras pelas quais

o homem pode constituir um ethos. Nos graus superiores, o Santo destaca a capacidade da alma de

autoconhecimento e de julgamento moral. Assim, a passagem ao quarto grau de grandeza da alma

envolve a consciência de si e é decisiva para o entendimento das verdadeiras virtudes. A consciência de si

permite o reconhecimento de uma hierarquia, de uma ordem moral por meio da qual pode fazer

julgamentos segundo critérios de amor ordenado. Nesse processo, a alma intui a realidade de uma

transcendência que governa toda a criação e sustenta a sua condição singular. Após ter adquirido

consciência de si enquanto dimensão espiritual, a alma passa a desejar a purificação que envolve

crescimento em virtude e piedade, em justiça e humildade. No quinto grau, a alma busca conservar a

pureza adquirida pela virtude e pela piedade de forma a avançar no caminho para contemplar o Deus-

Verdade. No sexto grau, a alma se empenha em sua própria purificação, preferindo conhecer e desejar

aquilo que é mais nobre. O sexto e sétimo graus remetem, respectivamente, à introdução à vida

contemplativa e à contemplação do Deus-Verdade que é Deus-Amor. Assim, a caminho da Verdade, a

alma procura abster-se do desejo pelas coisas sensíveis e afasta-se da inclinação pelas coisas materiais.

Neste caminho, a alma do homem virtuoso enquanto imago Dei se reconhece a si mesma como análoga

ao modelo perfeito. (AGOSTINHO, Aurelius. Sobre a potencialidade da alma. 2. ed., Tradução Aloysio

Jansen de Faria. Rio de Janeiro: Vozes, 2013).

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não é fruto apenas da razão.

Nesse sentido, o Bispo de Hipona frisa que a vida histórica do homem, concreta,

real, não é uma fuga para o “mundo interior”. Com efeito, a sua reflexão sobre o papel

da fé e da razão na vida do homem se completa com a questão do amor, que envolve

uma relação transformadora. Assim, no pensamento do Santo, a dimensão intersubjetiva

das relações pessoais e a ética do amor tornam-se temas centrais de sua abordagem

filosófica.195

Na sua reflexão sobre a vida social, o Santo frisa a importância de viver

socialmente à luz do duplo e único mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas e

ao próximo como a si mesmo”.196

No Livro XIX, 14, o filósofo afirma:

Deus, nosso mestre, ensinou-nos dois mandamentos principais: o amor

de Deus e o amor do próximo. Neles encontrou o homem três objetos

para amar — Deus, ele próprio e o próximo. Não se engana ao amar-

se a si próprio aquele que ama a Deus. Por conseguinte, deve ajudar o

seu próximo a amar a Deus, esse próximo a quem, segundo o

mandamento, deve amar como a si próprio (a esposa, os filhos, os

familiares, todos os homens que puder). E também deve desejar que o

próximo o ajude se tiver necessidade. Assim, tanto quanto está na sua

mão, ele estará como todo o homem na paz, que é a concórdia bem

ordenada dos homens. E a ordem nesta paz consiste: primeiro, em a

ninguém prejudicar, e depois em tornar-se útil a quem se puder.197

Neste momento da argumentação de A Cidade de Deus, o autor salienta a função

do amor à Verdade no encontro com o próximo. O amor à Verdade auxilia o homem a

exercer a liberdade e comprometer-se com o amor ao próximo e a promoção da

concórdia na vida social. Ademais, Santo Agostinho diz:

Nesta sua peregrinação, a Cidade Celeste também se serve, portanto,

da paz terrena, protege e deseja a composição das vontades humana

em tudo o que respeita à natureza mortal dos homens — até onde lho

permita a piedade e a religião — refere essa paz terrena à paz celeste,

que, essa sim, é a verdadeira paz que, pelo menos para o ser racional,

deve ser reconhecida e chamada com o nome de paz, ou seja: a

comunidade em perfeita ordem e harmonia goza de Deus e da mútua

companhia de Deus. Quando lá chegar, a vida não será mortal, mas

plena e certamente vital; nem o seu corpo será mais um corpo animal,

mas um corpo espiritual, sem qualquer necessidade e todo submetido

à verdade.198

195

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 13. 196

Mateus, 22. 197

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 14. 198

Ibidem. Livro XIX, 17.

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A partir do texto destacado, podemos notar que o filósofo frisa as razões para a

defesa da paz na vida terrena como um bem que deve ser promovido na perspectiva da

vida eterna. Assim, o hiponense evidencia a importância da consciência humana em

relação à própria salvação. No entanto, o Santo alerta que a “paz de Babilônia” é frágil,

não permanente, é uma utopia na vida terrena. Com efeito, ele reforça o caráter mutável

dos juízos e das ações humanas e, assim, critica a crença sobre a estabilidade da

dinâmica da vida social na história porque os conflitos e as tensões são inerentes à

condição humana, ferida pelo pecado. Não há panaceia terrena que possa eliminar tais

realidades do gênero humano — tais como a barbárie, crueldade, injustiça, para

mencionar algumas.

De fato, para o autor de A Cidade de Deus, as razões para a promoção da paz

devem ser compreendidas na perspectiva da vida eterna. Nesse sentido, o homem justo

conforma uma sociedade que: “Enquanto peregrina a fé, tem já essa paz e, mercê dessa

fé, vive a justiça, referindo à aquisição desta paz todas as boas ações que ela cumpre

para com Deus e para com o próximo, pois a vida de uma cidade é realmente social”.199

Estas palavras indicam que, na vida terrena, uma sociedade realmente social é fundada

na justiça. Nessa perspectiva, a justiça e a paz, embora limitadas na vida terrena, serão

tanto mais autênticas quanto mais participarem da ordem do amor. Nesse sentido, a

concepção agostiniana de concórdia na vida social ou paz entre os homens é

indissociável da conversão da vontade e da prática da verdadeira justiça na esperança na

vida feliz. O filósofo aponta para a ordem interior como pressuposto da ordem social.

Nesse sentido, a conexão entre ordem interior e ordem social, ou, ainda, entre

virtude da justiça e felicidade, deve ser apreendida dentro do arranjo providencial divino

que conferiu à criação uma ordem dotada de sentido.200

Com efeito, no Livro XIX, 18, o

Santo afirma “nada pode subtrair-se às leis do Supremo Criador e Ordenador”.201

Fiel à

fé cristã, o filósofo afirma o sentido da vida do homem: o ser humano deve orientar a

sua vontade de acordo com a vontade de Deus. É assim que Agostinho condiciona a

ordem social à prévia ordem interior dos homens peregrinos na esperança da paz eterna.

199

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 17. 200

Cf. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Op. cit. 201

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 18.

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3.4 A vida virtuosa na sociedade justa

Na reflexão do autor de A Cidade de Deus, a relação de dependência ontológica

do homem em relação a Deus permanece em seu devir e indica o sentido da

peregrinação do homem na história até a consumação do final dos tempos. Assim, o

Santo abre a perspectiva de uma concepção nova de tempo e do mundo na qual se

afirma o caráter dinâmico da relação do homem com Deus, conforme salienta Oliveira e

Silva.202

Nesse contexto filosófico, o futuro é uma dimensão da esperança para o

homem justo.

Segundo o Bispo de Hipona, embora o homem possa conhecer (pela razão) qual

a forma de vida virtuosa que conduz à vida feliz, isto não significa que ele possa

alcançá-la por simples decisão de vontade. Para o filósofo cristão, a vida virtuosa não é

resultado exclusivo da ação do homem, mas envolve o auxílio divino. Desta forma,

quanto à cura dos vícios das almas, Agostinho claramente difere das escolas helenísticas

e da Antiguidade tardia e afirma os limites da autonomia do homem para a plena

restauração do ser. Tal restauração envolve não só o amor a Deus, mas também o amor

ao próximo em Deus.

De acordo com a perspectiva agostiniana, a alma pode apreender as implicações

do vínculo ontológico existente entre o criador e as criaturas. Qualquer afastamento da

vontade do homem em relação ao Sumo Bem acaba por limitar a própria liberdade do

homem. Só quem concedeu ao homem o livre arbítrio pode restituí-lo, ou, ainda,

somente a graça pode restabelecer a liberdade da vontade. A graça cura a vontade da

concupiscência e restaura a unidade da vontade para querer e realizar a vontade de

Deus.203

Como resultado, o homem pode se conformar à ordem estabelecida por Deus.

Com efeito, a alma se encontra numa relação íntima com Deus, mas, para

participar da glória divina, ela precisa ser renovada e purificada de forma a tornar-se

apta a agir de acordo com os parâmetros do amor ordenado, isto é, em conformidade

com as verdadeiras virtudes que reconhecem a hierarquia ontológica no cosmos. Nesse

movimento da alma, o auxílio divino informa e vivifica a verdadeira virtude da justiça

porque Deus sustenta a plenitude do ser do homem cuja vontade se submete à lei divina.

Na dinâmica relacional entre Deus e o homem, o Santo frisa que a ordem divina

202

Cf. OLIVEIRA E SILVA, Paula. Ordem e Mediação: a ontologia relacional de Agostinho de Hipona.

Op. cit. 203

Cf. GRACIOSO, Joel. Interioridade e filosofia do espírito nas Confissões de Santo Agostinho. Op.

cit., p. 80.

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configura uma ordem do amor: o amor é a essência de Deus e é a relação essencial do

homem com Deus. No entanto, o que significa o amor? Amor é doação de ser e esta

doação faz que o outro (homem) seja. Portanto, Deus auxilia o homem a ser com as

propriedades mais plenas que o ser pode ter.204

Todavia, o homem deve viver em

conformidade com a vontade de Deus. Na perspectiva agostiniana, o modo de vida do

homem tem implicações morais e éticas relevantes.

De fato, dentre os aspectos-chave da reflexão de Agostinho sobre a vida social, o

referido autor ressalta que a comunidade humana é atravessada por desafios morais que

ameaçam a coesão dos laços sociais no devir histórico. Considerando estes

pressupostos, podemos dizer que, na perspectiva agostiniana, a promoção da sociedade

justa tem como premissa a ordem interior dos homens.

Na perspectiva agostiniana, o conhecimento em virtude do homem peregrino a

caminho da vida feliz, pilar da conversão da vontade e da ordem interior, leva a amar de

forma ordenada dentro da hierarquia criada por Deus. Com o auxílio divino, o homem

pode transformar suas escolhas e seu modo de vida e, assim, produzir transformações na

ordem social conforme a vontade de Deus — fundamento da justiça. Assim, emerge da

leitura de A Cidade de Deus o problema do ethos cristão na promoção da sociedade

justa. Do ponto de vista da ordem social, a justiça e a paz imperam quando os homens

compartilham a verdadeira fé, a fé cristã, e seguem a lei divina que é o fundamento da

retidão e da justiça.

De fato, no pensamento do hiponense, a ordem interior é condição para a

existência da justiça na ordem social, como destaca M. T. Clark na sua interpretação

sobre a justiça em Agostinho.205

Segundo o Santo, a objetividade da lei de Deus, tal

como revelada, a consciência subjetiva do homem e as relações interpessoais se

articulam no devir histórico. Na compreensão da plena realização do ser, o filósofo

estabelece um vínculo indissociável entre o verdadeiro ser e as verdadeiras virtudes. A

esse respeito, ele aponta para uma aparente contradição: o orgulho (vício) rebaixa e a

humildade (virtude) eleva o homem. Com efeito, a humildade é a virtude que torna o

homem submisso ao Criador, e as verdadeiras virtudes vivificam a conversão da

vontade de acordo com a ordem do amor para promover a justiça e a paz.

Desse modo, em A Cidade de Deus, a verdadeira virtude da justiça emerge como

204

Cf. OLIVEIRA E SILVA, Paula. Ordem e Mediação: a ontologia relacional de Agostinho de Hipona.

Op. cit. 205

Cf. CLARK, Mary T. Augustine on Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John; PAFFENROTH,

Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Nova York: Lexington Books, 2015, p. 3-10.

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a virtude fundante da ordem social justa. Todavia, na perspectiva agostiniana, a virtude

da justiça e a virtude da caridade não se podem separar porque a caridade vivifica a

virtude da justiça. Assim, a análise da virtude da justiça como pilar da Cidade Celeste

não é suficiente. O percurso para caracterizar os pilares da concepção agostiniana de

“justiça social” pressupõe a necessidade de um passo adiante, de um aprofundamento da

reflexão sobre a relação entre a Verdade e a caridade.

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66

4 UMA FILOSOFIA DA “JUSTIÇA SOCIAL” FUNDADA NA CARIDADE

É no próprio desenvolvimento interno de A Cidade de Deus, que Santo

Agostinho atribui ao termo “iustitia” alguns significados206

, tais como:

1. A justiça é a lei divina, sendo que o fundamento da justiça é Deus.

2. A justiça é a relação reta entre o homem e Deus

3. A justiça é o hábito da alma mediante o qual é “dado a cada indivíduo o que lhe

é devido”.

4. A verdadeira justiça é a virtude da ordem do amor.

5. A justiça é o caminho para a paz.

6. A justiça é a virtude fundante de todo processo político-cultural do povo cristão.

Ademais, no Livro XIX de A Cidade de Deus, a reflexão agostiniana sobre a

justiça se desdobra no amor ao próximo. No âmbito da análise sobre a vida social no

devir histórico, Agostinho frisa a importância da configuração das relações sociais

segundo os princípios da justiça divina. Nas palavras do Santo, se o homem não possui

a ordem interior, então “não haverá justiça na assembleia [...] haverá falta de

reconhecimento de direitos [...] para pensar uma comunidade”.207

Nesse contexto filosófico, estabelece-se uma clara distinção entre Estado e

religião quanto ao seu papel nas perspectivas da promoção da justiça social. Para o

Santo, o Estado deve resistir à tentação, sempre latente, de ser o promotor e provedor da

“vida feliz”. 208

O hiponense afirma que a primordial função do Estado é a de garantir a

tranquilidade doméstica no seu território e de combater os inimigos externos de forma

que os homens, na vida temporal, possam organizar as suas condições da vida material

em paz. 209

Com efeito, podemos dizer que a filosofia social de Santo Agostinho propõe

uma ética com fundamentos metafísicos que alicerça uma filosofia da “justiça social” à

qual subjaz o amor à Verdade e a urgência da caridade. Assim, a relação entre a

206

Cf. DODARO, Robert. Cristo e a sociedade justano pensamento de Agostinho. Op. cit., p. 17. 207

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit., Livro XIX, 21. 208

No mundo contemporâneo, Eric Voegelin chama atenção para as utopias terrenas que se fundamentam

na imanentização do eschaton. A esse respeito, ver VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. 2. ed.,

Tradução José Viegas Filho. Brasília: Universidade de Brasília, 1982. 209

A aguda distinção que Santo Agostinho estabelece entre a autoridade eclesiástica e a autoridade civil

sugere a possibilidade de conflito entre elas e coloca a questão sobre a relação entre Igreja e Estado. A

esse respeito, no Livro V, 24, de A Cidade de Deus, Agostinho apresenta o retrato de príncipes cristãos

que, ao restaurar a unidade da cidade, poderiam promover o bem-estar espiritual e temporal dos homens

cristãos.

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transcendência e a imanência do homem é traço constitutivo da filosofia agostiniana da

“justiça social” que procurar responder às seguintes indagações: Diante do fim último

do homem, como deve comportar-se o povo cristão? Quais são os fundamentos do agir

do povo cristão? O que é a caridade? Quais as dimensões sociais e políticas da

caridade? Que sentido tem a “justiça social”? Qual “justiça social” pode ser alcançada

na vida terrena?

4.1 Fundamentos do agir do povo cristão

No Livro XIX, 19, de A Cidade de Deus, Agostinho está preocupado com o

problema concreto e existencial quanto ao destino eterno do homem, peregrino na vida

temporal. Assim, nesse Livro está presente o confronto do tempo e da eternidade, ou,

ainda, o apelo ao ordenamento dos bens temporais em face da vida eterna. Nesse

sentido, a reflexão sobre os modos de ser e de agir do povo cristão no devir histórico

ressalta que os costumes não podem ser contrários aos preceitos divinos. O Santo não se

mostra preocupado em discutir as singularidades dos usos e costumes, que Varrão

atribui aos cínicos, e afirma:

Dos três gêneros de vida — contemplativo, activo e misto —,

salvaguardada que seja a fé, cada um pode escolher para a vida

qualquer deles, para assim chegar as recompensas eternas; mas

convém que não perca de vista o que o amor da verdade nos obriga a

manter e o que a urgência da caridade nos obriga a sacrificar. Mas

ninguém deve estar tão desocupado que não pense, na sua

despreocupação, em ser útil ao próximo, nem tão ocupado que não

procure a contemplação de Deus. Na vida contemplativa, não é a vazia

inação que se deve amar, mas sim a busca ou a descoberta da verdade,

para que nela cada um progrida e não recuse partilhar com outros o

que tiver encontrado. Mas, na acção, não é às honras desta vida nem

ao poderio que se deve amar, porque tudo é vaidade debaixo do Sol,

mas é ao próprio trabalho, cumprido no exercício dessas honras e

desse poderio, se realizado com rectidão e utilidade, isto é, capaz de

contribuir, segundo os planos de Deus, para a salvação dos que nos

estão submetidos.210

Conforme as palavras acima citadas, notamos que o filósofo claramente se

posiciona diante da questão dos gêneros de vida herdado da tradição filosófica greco-

romana.

Aristóteles distinguia três modos de vida (bioi) que os homens podiam escolher

210

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 19.

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livremente: a vida de deleite dos prazeres do corpo; a vida dedicada aos assuntos da

pólis e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação.211

No contexto

grego, com o surgimento da cidade-Estado e do domínio público que destruíra as

unidades organizadas à base do parentesco, os homens enquanto bios politikos — cuja

constituição era marcada pela ação (práxis) e pelo discurso (lexis) — passam a sua vida

na esfera política. Na experiência da pólis, a ênfase passou da ação para o discurso. Ser

político, viver em uma pólis, significava que tudo era decidido mediante palavras e

persuasão. Nesse cenário histórico, as esferas privada e pública da vida permaneciam

separadas.212

Enquanto a vida do lar atendia às necessidades e carências dos seus

membros, que se preocupavam basicamente em defender a vida e a sobrevivência

próprias, a vida na pólis enquanto domínio político era a esfera da liberdade.213

Havia

um abismo entre a vida protegida do lar e a impiedosa exposição na pólis, espaço em

que a virtude da coragem era considerada como umas das atitudes políticas

elementares.214

Assim, na pólis havia um telos que transcende a vida: a busca da boa

vida, como Aristóteles nomeava a vida do cidadão que não se limitava aos processos

biológicos da vida.215

No mundo antigo, a excelência (arete), como a chamavam os

gregos, ou a virtus, no dizer dos romanos, sempre foi reservada ao domínio do público.

No entender de Arendt, tal excelência, por definição, exigia a formalização do público

constituído pelos pares do indivíduo e não pela presença familiar de seus iguais ou

inferiores.216

Enquanto Platão e Aristóteles afirmaram que o homem é essencialmente um ser

social, os seus seguidores helenísticos postularam a figura do sábio descolado da vida

social como ideal superior.217

Em outras palavras, o sábio vive fora do mundo em

conformidade com a lei da natureza universal ou da razão. Assim, a filosofia helenística

apresenta uma dicotomia entre sabedoria e mundo ou, ainda, entre os gêneros de vida

211

Arendt afirma que, na filosofia medieval, a expressão vida activa perdeu o significado especificamente

político e passou a denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo. O próprio termo vida

activa é, na filosofia medieval, a tradução consagrada do bios politikos de Aristóteles. Cf. ARENDT,

Hannah. A condição humana. Op. cit. 212

No esquema aristotélico, estabelece-se uma distinção qualitativa entre o espaço público e o espaço

privado, incluindo-se a família neste último. No contexto romano, Finley salienta que cabe destacar a

importância da figura do pai de família como arquétipo político-social, conjuntamente com o caráter

institucional que esta noção assumirá como legado de Agostinho para o Ocidente. Sobre a importância do

patriarcado, ver FINLEY, Moses I. A política no mundo antigo. Op. cit. 213

Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit., p. 37. 214

Cf. MACINTYRE, Alasdair. After virtue. Notre Dame: University of Notre Dame, 2012, capítulos 10

a 12. 215

Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit., p. 44-45. 216

Cf. Ibidem, p. 59. 217

Cf. Ibidem, p. 41-45.

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contemplativo e ativo.

No trecho do Livro XIX, 19, citado acima, Agostinho mostra as influências da

tradição filosófica grega quanto à dimensão social da vida humana. No entanto, o Bispo

de Hipona, no século V, propõe uma nova referência para pensar a ação do homem e a

coesão dos laços sociais no devir histórico. A esse respeito, concordamos com Lima

Vaz quando ressalta que a valorização da existência histórica confere à visão cristã de

homem, no pensamento de Agostinho, sua originalidade em face do mundo antigo.218

No século V, o Santo situa a relação entre a contemplação e a ação numa

perspectiva filosófica nova na qual apresenta uma concepção integral de homem,

enquanto união substancial de corpo e alma. Na vida contemplativa, o homem deve

amar a busca da Verdade de forma a aperfeiçoar as potências da alma e a partilhar a

descoberta da Verdade com o próximo. Na vida ativa, o hiponense alerta que o homem

não deve buscar a glória e o poder terrenos, mas deve ser capaz de contribuir, segundo

os planos de Deus, para a salvação de todos. Assim, o autor de A Cidade de Deus, no

Livro XIX, explicita a responsabilidade do homem, ser social, em relação a si mesmo e

ao próximo, ao longo de sua peregrinação na esperança da vida eterna.

Ora, podemos afirmar que o termo “vida ativa” — embora aparentemente

resgate o significado original vinculado a uma vida dedicada aos assuntos público-

políticos — é qualificado por Agostinho porque emerge em A Cidade de Deus uma

redefinição do sentido da política.219

O Santo afirma que a vida do homem do povo

cristão consiste na contemplação e na ação subordinadas à justiça divina. Nesse sentido,

a inter-relação entre a vida ativa e a contemplativa proposta pelo referido autor é crucial

para redefinir os fundamentos da sua concepção de política.

Na sua reflexão sobre o homem do povo cristão na história, o hiponense ressalta

os fundamentos do agir humano — por palavras e atos.220

Para o filósofo, ao agir, os

homens mostram o que são, revelam as suas identidades únicas no mundo humano.221

Nesse sentido, no pensamento do referido autor, o agir do homem em sociedade ao

longo do tempo se articula ao caráter dinâmico da concepção ontológica de ser. Na sua

peregrinação terrestre, o homem, como imagem de Deus, se deve religar ao Sumo Bem

218

Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ontologia e história. Op. cit., p. 189. 219

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 2. 220

A esse respeito, Arendt nos esclarece que “Agir, no seu sentido mais geral, significa tomar iniciativa,

iniciar (como indica a palavra grega archein, “começar”, “conduzir” e, finalmente, “governar”), imprimir

movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino agere).” Cf. ARENDT, Hannah.

A condição humana. Op. cit., p. 221. 221

Cabe destacar que, para Arendt, a revelação de quem é em contraposição ao que alguém é está

implícita em tudo o que esse alguém diz ou faz. (Ibidem).

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de modo a exercer a liberdade e a plenitude do seu ser.

Do exposto, é possível afirmar que, na perspectiva agostiniana, a revelação do

ser do homem se explicita em tudo o que o homem diz ou faz, dado que a qualidade

reveladora do discurso e da ação passa a um primeiro plano nas relações intersubjetivas.

Com efeito, no pensamento do Bispo de Hipona, o ser do homem se desvela no seu agir.

Desse modo, Agostinho realça que “o agir revela o ser” como uma tendência intrínseca

de desvelar o agente juntamente com o ato. Estabelece-se, dessa forma, uma relação

entre os aspectos ontológicos, antropológicos e históricos no pensamento do filósofo.

É oportuno lembrar que o Santo estabelece uma íntima associação entre o agir

do povo cristão, a ética e a política. Segundo o filósofo, a fé e a razão se combinam com

o amor. Com efeito, a doutrina cristã do amor elaborada por Agostinho, sob a influência

paulina, traz a novidade da revelação do próximo. O problema do outro se manifesta na

ação do homem no mundo, no acontecer histórico da vida social. Assim, a reflexão do

hiponense aponta para a importância dos laços sociais fundados no amor para viver de

maneira justa — conforme a lei divina.222

Dessa forma, ele apreende a dimensão

transcendente e imanente do homem. Com efeito, Santo Agostinho apresenta o homem

na sua universalidade e, ao mesmo tempo, na sua singularidade marcada por uma

subjetividade particular. Assim, cada homem caracteriza-se pela unicidade, sendo capaz

de exprimir de forma consciente esta distinção e distinguir-se. Nesse contexto, a

alteridade é, sem dúvida nenhuma, um aspecto importante da pluralidade humana do

tecido social.223

De acordo com o referido autor, o agir do povo cristão revela o ser no devir

histórico. Assim, do ponto de vista ético, a plenitude do ser remete a um chamamento à

exterioridade que se revela no próximo e se fundamenta na caridade. No trecho

selecionado do Livro XIX, 19, o Santo coloca questões relevantes quanto aos

fundamentos do agir do povo cristão: O que é a caridade? Qual a relação entre amor à

Verdade e a urgência da caridade? O que o amor à Verdade obriga a manter enquanto

conduta nas ações do povo cristão? O que a urgência da caridade obriga a sacrificar nas

ações do povo cristão? Reflitamos, a seguir, sobre essas questões.

222

Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. X. Arendt chama a atenção para a

importância do olhar de Agostinho sobre a condição humana e, na sua interpretação, destaca que ele é o

primeiro filósofo a considerar o homem como ponto de partida de uma reflexão sobre o mundo. 223

Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit., p. 220.

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4.2 Verdade e Caridade

Retomando o trecho selecionado do Livro XIX, 19, detenhamo-nos em algumas

palavras, em particular nestas: “mas convém que não perca de vista o que o amor da

verdade nos obriga a manter e o que a urgência da caridade nos obriga a sacrificar”.

Desdobramos, a seguir, a nossa reflexão nas respostas a três questões que emergem das

palavras de Agostinho.

4.2.1 Qual a relação entre o amor à Verdade e a urgência da caridade?

Podemos notar que Agostinho frisa que, além do amor à Verdade, fundado na fé,

o povo cristão também necessita fundar o seu agir na caridade. Nesse sentido, o

hiponense destaca não só a subjetividade do homem, mas também a intersubjetividade

no contexto da reflexão do agir do homem cristão. Desse modo, além das relações entre

fé e razão, surge um terceiro termo, que é o amor. O amor é indispensável para chegar à

Verdade. Como observa Silva Rosa, o amor é inegavelmente um poder de evidenciação

e de dar a conhecer.224

Ademais, o Santo estabelece uma associação entre Verdade e ética e, assim, o

amor à Verdade tem implicação moral. Crítico do traço dominante do egoísmo na

condição humana, Agostinho aponta que o antídoto a esta orientação egoísta,

autocentrada, é a graça divina que produz efeitos no sentido da reorientação do amor sui

para o amor Dei.225

Do ponto de vista axiológico, não há uma autonomia de valores

éticos no tratamento do problema do próximo, dado que o filósofo identifica as regras

do amor ordenado como as regras que devem reger a vida dos homens numa sociedade

justa, na qual os homens submetem a sua vontade à vontade divina.

Na perspectiva agostiniana, na Cidade Celeste, a caridade em Deus emerge

como uma regra de socialização do homem que se fundamenta no amor à Verdade. Em

A Cidade de Deus, Livro XIX, Agostinho frisa que a fé é conciliável com a razão e

224

Cf. SILVA ROSA, José Maria da. Santo Agostinho: Trindade de Trinitate. Fátima: Paulinas, 2007,

introdução, p. XV. Silva Rosa destaca que no texto Contra os Maniqueus, XXXII, 18, Agostinho afirma:

“Não se chega à verdade senão pela caridade”. 225

Cf. DOODLEY, Mark. The Pursuit of Social Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John;

PAFFENROTH, Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Nova York: Lexington Books, 2015, p. 13.

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desenvolve uma doutrina social fundada na filosofia do amor.226

O hiponense ressalta

que o amor ao próximo revela o amor a Deus que, enquanto expressão da liberdade e da

vontade “reta”, se revela exteriormente na relação do homem com o próximo. Para o

homem cristão, a relação amorosa com o próximo requer a conversão da vontade e a

submissão das escolhas humanas em conformidade com a vontade divina. 227

Diante do fim último do homem, o Santo frisa o amor ao próximo na perspectiva

da vida feliz. Assim, a ética agostiniana tem como referência permanente o fenômeno

do Absoluto e, por consequência, o lugar a partir do qual se coloca o amor a Deus, que

criou o homem e o transcende: Deus é “interior ao homem” e “superior ao homem”.

Conforme a referência bíblica, amar é a essência de Deus, Deus é amor (João,

3:16). A filosofia cristã de Agostinho aponta para a pertinência da pergunta sobre Deus

sob um novo ângulo: a relação de amor do homem com o próximo.228

Assim, do ponto

de vista da filosofia social, a questão central é: como o referido autor apresenta o

problema do outro, do encontro humano com o próximo? Como lida o homem com o

próximo e as instituições?

Na história da filosofia, o tema do próximo é introduzido por Agostinho no bojo

do movimento de aceitação da fé cristã e da caridade que dela nasce.229

Do ponto de

vista da ética social, o Santo elucida o problema do outro, de sua existência e de seu

reconhecimento e, de forma radical, frisa o amor como pilar da sociedade justa. No

contexto de sua análise das relações sociais, a caridade é expressão de uma relação de

amor transformadora que embasa o amor ao próximo no amor a Deus.230

O próximo é

aquele com quem o homem se encontra, que, em uma situação concreta, precisa da sua

ajuda e da sua misericórdia. É sobre o próximo que o homem se deve inclinar. Com

efeito, Agostinho vincula caridade e serviço.231

É o próximo que se torna, para o

homem, o critério para interpretar a vontade concreta de Deus. No Comentário aos

Salmos, 25, o Bispo de Hipona diz quem é o próximo:

226

Cf. JASPERS, Karl. Los fundadores del filosofar: Platón, Agustín, Kant. Madrid: Tecnos, Série “Los

Grandes Filósofos”, 1995, p. 162. 227

Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. 111. 228

O apóstolo Paulo, na Carta aos Coríntios (1,13), afirma uma nova conceituação sobre o amor, o amor

caritas. Este conceito cristão de amor caracteriza-se como dom, por apresentar Deus como quem ama a

humanidade a ponto do sacrifício. 229

Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Nota histórica sobre o problema filosófico do “outro”. In:

Ontologia e história. Op. cit. 230

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 19. 231

Cf. Ibidem. Livro XIX, 19.

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Nenhum de vós pense, irmãos, que deve falar a verdade aos cristãos, e

a mentira aos pagãos. É com teu próximo que falas. Teu próximo é

aquele que, como tu, nasceu de Adão e Eva. Todos somos próximos

uns dos outros pela condição do nascimento terreno; mas somos

irmãos diversamente pela esperança da herança celeste. Considera a

todo homem como teu próximo, mesmo antes de ser cristão. Não

sabes o que ele é diante de Deus, ignoras como Deus, em sua

presciência, viu que ele seria.232

De acordo com o trecho referido, podemos perceber que Santo Agostinho

expressa que o Absoluto se revela fenomenologicamente no próximo. Com efeito, no

próximo, a transcendência se revela. Nesse contexto filosófico, o conceito de caridade

manifesta a interiorização da ideia de Absoluto, que é explorada por Agostinho tanto no

plano moral como da ética social. Tal como nos esclarece Holte, na estrutura da caritas

há duas forças: uma divina e outra humana.233

Assim, no devir histórico da vida

concreta do homem, a caridade é expressão da dinâmica do amor fundamentada na

Tríade formada por Deus, homem e o próximo.234

Na perspectiva agostiniana, onde prevalece o imperativo da virtude da caridade

não há lugar para a concupiscência ou egoísmo. Na filosofia do hiponense, o amor é a

questão intersubjetiva radical porque no movimento da caridade o homem não procura

seu próprio interesse. A vivência da caridade leva a um descentramento do homem em

relação a si mesmo. Quem está autocentrado procura inevitavelmente o seu próprio

interesse. A virtude da caridade é, por um lado, uma virtude moral e, por outro, o

princípio fundante das relações intersubjetivas conforme o amor ordenado ou a

verdadeira justiça.

Conforme o pensamento agostiniano em A Cidade de Deus, precisamente a

virtude da caridade é o contrário do desejo concupiscente. A virtude da caridade, que é

dom, é amor colocado a serviço do próximo, doação. A virtude da caridade é o próprio

Deus amando, em nós e através de nós, ao próximo. Nesse sentido, o amor de caridade é

um fim em si mesmo, sai ao encontro do próximo sem esperar nada em troca. Na

perspectiva agostiniana, o imperativo da caridade é um imperativo existencial de amor

ao próximo a partir da revelação do amor-dom de Deus.235

232

AGOSTINHO, Aurelius. Comentário aos Salmos. Op. cit, 25, II, 1-3. 233

Cf. HOLTE, Ragnar. Beatitude et sagesse: Saint Augustin et le probleme de la fin de l’homme dans la

philosophie ancienne. Paris: Etudes Augustiniennes, 1962. 234

Cf. Ibidem. 235

Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. 235.

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4.2.2 O que o amor à Verdade nos obriga a manter enquanto conduta do povo

cristão?236

De acordo com o hiponense, o Sumo Bem é a vida feliz que é vida eterna. Fiel à

fé cristã, o Santo afirma todas as coisas do universo existem a partir de Deus, por Deus

e em Deus. Do ponto de vista ontológico, o fim último do homem é a Sabedoria, o

conhecimento de Deus Uno e Trino, que é “tudo em todas as coisas”. Nesse contexto, a

finalidade do homem é o conhecimento do Deus-Verdade, que é também Deus-Amor.

Esse é o conceito metafísico superior, é o limite do cognoscível.

A esse respeito, é oportuno lembrar que, quanto ao amor a Deus, Agostinho

pergunta em Confissões:

Que eu amo, quando Vos amo? Não amo a formosura corporal, nem a

glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos,

nem as doces melodias das canções de todo o gênero, nem o suave

cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou mel,

nem os membros tão flexíveis aos braços da carne. Nada disto amo,

quando amo ao meu Deus. E contudo, amo uma luz, uma voz, um

perfume, um alimento e um abraço, quando amo meu Deus, luz, voz,

perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha uma

luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não

arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se

saboreie uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um

contato que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo o meu

Deus.237

Nesse trecho das Confissões, Agostinho expressa que o homem só pode amar a

Verdade se passar por um processo radical de transformação interior de forma a inclinar

a sua vontade ao Sumo Bem. Desta forma, coloca o amor a Deus numa perspectiva que

ressalta a interioridade.

Segundo o Santo, a razão reconhece a sua própria limitação e o amor à Verdade

move a alma a desejar a plenitude de sua natureza, tanto ontológica quanto moralmente.

Enquanto a alma humana é naturalmente unida às razões divinas, a vera ratio deve ser

religada às razões eternas pelo caminho da interioridade de forma a conhecer a essência

do Ser e o fundamento da Verdade. Nesse processo, não há mérito nenhum do homem.

O Deus misericordioso, o Cristo — por meio da Revelação — se apresenta ao homem:

236

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 19. 237

AGOSTINHO, Aurelius. Confissões. Op. cit. Livro X, 6, 8.

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Deus vem ao encontro do homem.238

Segundo o filósofo, a reconciliação do homem

com o criador se fundamenta na verdadeira vida — verdadeiro ser —, que é uma vida

verdadeiramente virtuosa.239

Assim, o amor à Verdade se manifesta no conhecimento

em virtude.

Na ordem providencial divina, a misericórdia de Deus provê o homem dos bens

e dos males de que necessita para a realização plena do seu ser.240

Em outras palavras, o

homem, por ser dotado de livre-arbítrio e com o auxílio da graça, pode se conformar à

ordem do amor estabelecida por Deus. Tal adesão é de natureza voluntária e representa

uma submissão da alma ao Sumo Bem.

No processo de “religação” do homem a Deus, o homem deseja a vida feliz; em

outras palavras, o homem deseja Deus. Para ocorrer tal religação, a alma deve percorrer

um caminho espiritual. Em outras palavras, para ser uma pessoa virtuosa, ou ainda justa,

o homem que vive da fé deve submeter a alma racional à lei Divina. No entanto, para

que isso aconteça, é necessário o auxílio divino da graça na peregrinação do homem

mortal a caminho da eternidade.

Mas, por que o amor a Deus fundamenta o agir do povo cristão? Retomando o

trecho selecionado do Livro XIX, podemos afirmar que, na perspectiva de Agostinho,

sem o amor à Verdade o homem não pode alcançar a ordem interior que é condição para

a ordem social. Ao orientar a alma para o amor à Verdade, o homem se afasta das

demandas do amor egoísta, concretizadas no amor aos bens terrenos, glória, poder e

prazeres que motivam suas ações. Orientando a alma conforme o amor ordenado, as

demandas de tais bens terrenos encontrarão o lugar correto na vida do povo cristão.241

Embasada no referencial bíblico, a perspectiva agostiniana lembra que o povo cristão

não pode obedecer a dois senhores.242

Santo Agostinho nos alerta que autenticidade do amor a Deus se revela não só na

conversão da vontade, mas também no agir que revela o ser dos homens do povo cristão

na história. Nesse sentido, é necessário que as ações do homem em relação ao próximo

revelem a caridade em Deus que revela o amor Dei. O amor da Verdade implica viver

em conformidade com a lei divina e reconhecer a ordem e a medida de todas as coisas

— este é o caminho para a liberdade e para a justiça. Amar em conformidade com Deus

238

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XV, 1. 239

Cf. Ibidem. Livro XIX, 25. 240

Cf. Ibidem. Livro XIX, 15. 241

Cf. DOODLEY, Mark. The Pursuit of Social Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John;

PAFFENROTH, Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Op. cit., p. 14. 242

Mateus, 6.

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remete ao amor divino enquanto fundante do amor humano. Assim, Agostinho

estabelece um vínculo estreito entre o amor à Verdade e a restauração do ser. A

iluminação do intelecto e a conversão da vontade estão envolvidas na submissão da

alma ao amor ordenado.243

Mesmo com todo esforço de ordenar sua vontade, o homem,

por suas próprias forças, não conseguirá; precisará do auxílio divino para amar de forma

ordenada.

4.2.3 O que a urgência da caridade nos obriga a sacrificar nas ações do povo

cristão?244

No trecho selecionado do Livro XIX, Agostinho frisa a urgência da caridade.

Com efeito, o filósofo cristão reafirma que a caridade é um imperativo moral porque

Cristo compele o homem à caridade. A esse respeito, é oportuno lembrar que o

hiponense afirmara, no Livro XV de A Cidade de Deus, “[...] que a esposa de Cristo, a

Cidade de Deus, canta no santo Cântico dos Cânticos: Ordenai em mim a caridade”.245

Desse modo, podemos dizer que o Santo ressalta, de acordo com as referências bíblicas,

que o amor é a mais profunda, universal e significativa experiência humana. Na

caridade, há uma celebração do amor divino e humano, pois a criatura humana é

imagem e semelhança do Criador. Ademais, Deus é amor e o amor humano é

manifestação do próprio Deus, que se torna presente na pessoa dos seres humanos que

se amam conforme a sua vontade. Em outras palavras, na caridade se resume a perfeição

da lei divina.

Nos fundamentos do agir humano, Agostinho estabelece um vínculo estreito

entre a caridade, a justiça e a restauração do ser em Cristo. A reflexão agostiniana sobre

a virtude da caridade chama a atenção para a imagem do próximo, que é um outro

Cristo na vida terrena.246

Assim, na manifestação do amor de Deus, Agostinho alerta

que não podemos esquecer que Cristo se entregou à morte e à ressurreição para a

salvação do homem. Ao frisar a urgência da caridade, o Santo situa Cristo como única e

verdadeira referência da vida do homem. De fato, o filósofo cristão alerta que não

podemos esquecer o papel do Homem-Deus na mediação da virtude da justiça para a

243

Referências ao amor ordenado e à relação entre as virtudes e a ordem do amor, encontram-se em A

Cidade de Deus, Livro XV, 22. 244

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 19. 245

Ibidem. Livro XV, 22. Agostinho refere-se a Cânticos, II, 4. 246

Cf. DODARO, Robert. Cristo e a sociedade justa no pensamento de Agostinho. Op. cit., capítulo 3.

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alma. Seguindo a interpretação de Dodaro, podemos afirmar que o hiponense considera

que viver justamente em sociedade significa amar a si mesmo e a seu próximo, da forma

prescrita pela lei divina e pelo exemplo de Cristo.247

Ao situar a verdadeira justiça e a caridade no horizonte da vida social, como

ressalta Clark, não há confusão entre as virtudes.248

Se a justiça é “dar a cada um o que é

seu”, o “seu” deve ser interpretado com base nas exigências da ordem do amor, ou seja,

com base na realização plena da caridade cristã. Assim, a vivência da caridade em Deus

subordina todas as outras virtudes.249

Se a construção de uma ordem social justa envolve a submissão à lei de Deus, os

“cristãos que são justos” são autênticos sinais de caridade em Cristo que ordena a

caridade na Cidade de Deus.250

Com efeito, a justiça enquanto virtude será mais

verdadeira e melhor quanto mais alicerçada estiver na caridade — dom de Deus.251

Nessa perspectiva, a conversão da vontade é uma construção ontológica e moral na qual

o homem interior abre espaço para a consciência de si e do mundo e conformidade com

o amor ordenado e pode agir, alicerçado na justiça e na caridade, no sentido da

promoção da ordem social.

Na sua argumentação sobre o dever da caridade, Santo Agostinho indica uma

tensão entre a cupidez e a caridade, ou, ainda, uma tensão entre frui e uti, que manifesta

a cisão da vontade do homem. Com efeito, o critério para o amor ordenado estabelecido

por Agostinho, distingue entre o uti e o frui — distinção que é fundamental na ética

agostiniana.252

Os bens finitos devem ser usados como meios e não serem

transformados em objeto de fruição e deleite, como se fossem fins. Deus é o Sumo

Bem. Tal distinção é crucial para compreender o amor à Verdade. A fruição (frui) está

relacionada ao amor de algo que é amado por si mesmo, que não é um meio para atingir

um fim. Por outro lado, o uso (uti) significa amar algo como meio, como bem relativo,

247

Dodaro fundamenta a sua observação a partir de Romanos, 13, 8: “Não devias nada a ninguém a não

ser o amor mútuo”. (DODARO, Robert. Cristo e a sociedade justa no pensamento de Agostinho. Op. cit.) 248

Cf. CLARK, Mary T. Augustine on Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John; PAFFENROTH,

Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Op. cit., p. 8 249

Cf. Ibidem, p. 8. Conforme Clark, o pensamento de Santo Agostinho amplia e desenvolve o

pensamento de Paulo, que, na Carta aos Romanos (13, 8-10), afirma que a caridade é a perfeição da

justiça. 250

Na sua vida pastoral, ao chamar a atenção para os necessitados que são um outro Cristo na terra,

Agostinho exortava a “olhar” o Cristo no próximo. Sobre a vida pastoral do Bispo de Hipona e as

expectativas de justiça do seu tempo, consultar a análise de UHALDE, Kevin. Expectations of Justice in

the Age of Augustine. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2007. 251

Cf. COSTA, Marcos Roberto Nunes. A dimensão metafísica da civitas na doutrina ético-política de

Santo Agostinho Op. cit. 252

Cf. RAMOS, Francisco Manfredo Thomaz. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S.

Agostinho. Op. cit., p. 89.

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para atingir um fim.

Assim, tal distinção entre uti e frui torna-se relevante quando o hiponense

aprofunda a reflexão sobre o homem na vida social, na medida em que, sendo o homem

peregrino na busca da vida feliz, as suas ações devem ajudá-lo a atingir este fim. Dessa

forma, a riqueza da reflexão do filósofo coloca em perspectiva a luta moral do homem

para atingir o Sumo Bem, ou seja, os conflitos entre a cupidez e a caridade.

Vale dizer, a cisão da vontade impele o homem para dois amores: a cupidez e a

caridade.253

Por sua vez, tais amores condicionam as relações interpessoais na vida

social: os dois amores condicionam modos de vida opostos nas duas cidades.

Na perspectiva agostiniana, a cupidez leva a buscar a felicidade nas sensações

corporais e, portanto, molda as relações intersubjetivas no amor de si mesmo, no

egoísmo. A caridade, fundamentada no amor a Deus e no amor ao próximo em Deus,

leva o homem a buscar a felicidade conforme a vontade do criador. Enquanto a cupidez

está na origem do pecado original, o retorno a Deus será um movimento da caridade.254

Dessa forma, o conhecimento em virtude leva o homem a direcionar a sua

existência de acordo com a ordem do amor, isto é, com a justiça. Assim, não se pode

compreender a ética agostiniana fora da perspectiva do amor. Os homens tendem para

seu objeto de amor e revelam seu ser por aquilo que amam.255

Em outras palavras, o

homem tem um telos e, para alcançar o fim desejado, tem duas formas de se relacionar

com os seres em geral: há seres que são objeto de frui (fruição, gozo) e há seres que são

objeto de uti (uso). Como salienta Gracioso, entender tal diferença é “viver de acordo

com essa hierarquia é colocar-se na ordenada dilectio (ordem do amor), percebendo que

a caritas (caridade) é o princípio fundamental”.256

Do ponto de vista da ética agostiniana, a caridade é o conceito que articula, no

homem, a transcendência à consciência de si e do outro. Nesse sentido, a imanência e a

transcendência são indissociáveis no entendimento da vida social, isto é, o contingente e

o imutável se entrelaçam na apreensão do sentido da vida e dos modos de vida do

homem. O Santo nos apresenta uma concepção totalizante do homem, união substancial

de corpo e alma, que se desdobra na sua reflexão sobre a transcendência e a alteridade.

253

Na interpretação de Arendt, o desejo (appetitus) está na raiz de cupiditas e caritas. No entanto, em

cupiditas o homem busca o Bem fora de si. Assim, quando governado pela cupidez, o homem se torna

escravo das coisas terrenas. (ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit.). 254

Cf. GRACIOSO, Joel. Interioridade e filosofia do espírito nas Confissões de Santo Agostinho. Op.

cit., p. 67. 255

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 25 e 28. 256

Cf. GRACIOSO, Joel. Interioridade e filosofia do espírito nas Confissões de Santo Agostinho. Op.

cit., p. 64.

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Enquanto peregrino, a “religação” do homem a Deus se constitui numa experiência

fundada no amor a Deus, na justiça e na caridade.

4.3 A caridade e a política na sociedade justa: poder e serviço

Levando às últimas consequências a ideia do papel determinante da justiça na

existência da república romana, Agostinho indaga, no Livro XIX, 21, de A Cidade de

Deus, se alguma vez existiu uma república romana, dado que esta nunca se identificou

com a “empresa do povo” e nela não vigorou o direito fundado sobre regras justas.

Desse modo, o filósofo desmascara o que se escondia por debaixo das aparências

da conduta dos nobres ancestrais romanos e transforma a visão que os próprios romanos

tinham do seu passado.257

Sendo a justiça a virtude que dá a cada um o que lhe pertence,

Agostinho questiona:

Qual é então a justiça do homem que tira o próprio homem ao

verdadeiro Deus e o submete aos demônios imundos? Será isto dar a

cada um o que lhe pertence? Será injusto o que tira uma propriedade a

quem a comprou e a entrega a quem a ela nenhum direito tem; e será

justo o que se subtrai ele próprio à autoridade de Deus, por quem foi

criado, e se submete a espíritos malignos?258

No texto referido, podemos notar que o Santo se afasta da definição de “justiça”

que se identifica com as normas que regem a vida civil, com a lei ou o jus. Nesse

sentido, a concepção agostiniana de “justiça” envolve um questionamento ético que é

anterior a qualquer ordenamento jurídico. Em verdade, a ética agostiniana é

questionadora dos ordenamentos sociais.

Ao mudar os termos da discussão sobre o fundamento da justiça, o referido autor

também modifica a definição de “povo”. Contrapondo-se à posição defendida por

Cipião em Da República, de Cícero,259

Agostinho argumenta que não é suficiente a

existência de um sistema de regras ou leis para que possa de falar em povo ou em

república. Nas palavras do Santo: “Povo é união duma multidão de seres racionais

257

Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Op. cit., p. 383. 258

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 21. 259

Segundo Barros, em Da República, Cícero frisa a sua convicção jusnaturalista no direito civil e critica

a tese convencionalista segundo a qual não há direito fundado na lei natural e homens justos por natureza.

Segundo os convencionalistas, o direito e a justiça se apoiam em opiniões mutáveis que variam ao longo

da história. (BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves de. Direito Natural em Cícero e Tomás de Aquino. In:

PISSARA, Maria Constança Peres; FABRINI, Ricardo Nascimento. (Coords.). Direito natural: a noção

de justiça na história da filosofia. Op. cit., p. 46).

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associados pela participação concorde nos bens que amam”.260

Dessa forma, Agostinho

relaciona cada povo com o objeto de seu amor e dá à definição de povo uma conotação

moral.

Essa mudança na definição de “povo” é relevante para entender por que o Bispo

de Hipona apresenta uma reflexão política, isto é, uma reflexão sobre os fundamentos da

convivência entre os homens, na qual o amor a Deus se converte em princípio que

fundamenta as relações interpessoais na vida social. Assim, para a consecução da justiça

na história, há que se considerar o Absoluto que rege a criação e sustenta a peregrinação

do homem. Desse modo, sua reflexão afirma o poder de Deus e a lei divina como o

princípio fundante da justiça na vida temporal.261

Considerando a oposição entre as duas cidades na história, aprofundemos, a

seguir, a reflexão sobre o sentido que adquire a relação entre a concepção agostiniana de

justiça e a ética social em A Cidade de Deus. Lembremos as palavras de Agostinho:

[...] tal como o justo sozinho vive da fé, assim também uma

comunidade inteira e um povo de justos vivam da fé que se pratica por

amor — por um amor pelo qual o homem ama a Deus como deve ser

amado e ao próximo como a si mesmo,

— quando falta essa justiça, com certeza não há uma comunidade de

homens unidos pela adoção de comum acordo de um direito e de uma

comunhão de interesses,

— quando isto falta, se é verdadeira essa definição de povo, o que é

certo é que não há povo, nem portanto Estado (res publica), pois não

há empresa do povo (res populi) onde nem sequer povo há.262

Na sua argumentação, o hiponense apresenta algumas ideias relevantes que se

entrelaçam entre si com uma sucessão de implicações. Em primeiro lugar, o povo é “a

união duma multidão de seres racionais associados pela participação concorde nos bens

que amam”.263

Realçando a relevância do espaço público, o Santo afirma que o povo:

Seja o que for o que ame, se é uma união de uma multidão, não de

animais mas de criaturas racionais, pela participação concorde nos

bens que amam, não é desrazoável que se lhe chame povo — povo

tanto melhor quanto mais está de acordo nas coisas melhores e tanto

pior quanto mais o seu acordo está nas coisas piores. De acordo com

esta definição, que é nossa, o povo romano é povo e a sua empresa é,

sem dúvida, uma empresa pública, uma república (res publica). Mas o

260

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 24. 261

Cf. CURBELIÉ, Philippe. La justice dans la Cité de Dieu. Op. cit. 262

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 23. 263

Ibidem. Livro XIX, 24.

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que foi que, nos primeiros tempos ou nos que lhes seguiram, esse

povo terá amado e devido a que costumes terá ele chegado às mais

cruentas sedições e daí às guerras civis e sociais e a romper assim e

corromper essa concórdia que, de certo modo, é a saúde de um povo

— e a história no-lo conta. Dela já citámos muitos acontecimentos nos

livros precedentes. Por isso não direi nem que este não é povo nem

que a sua empresa não é povo nem que sua empresa não é pública,

uma república (estado) enquanto perdurar a união duma multidão de

seres racionais associados pela participação concorde dos bens que

amam.264

Conforme as palavras citadas, o autor define o povo como uma multidão de

seres racionais unidos pelo mesmo objeto de amor. Adicionalmente, afirma que a

existência do povo é condição de possibilidade de existência da política. Com efeito,

Agostinho rejeitara a tese de Cícero de que as instituições políticas romanas se

fundamentavam nas leis criadas pelos homens. Nesse contexto, o povo cristão é aquele

que está unido pela comunhão de fé e de objeto de amor. O amor a Deus é a referência

do povo cristão.

Por outro lado, na perspectiva agostiniana, a justa ordem da sociedade torna-se

dever central da política. É possível afirmar que o conceito de “justiça” é, por um lado,

uma virtude moral. Assim, a justiça é o princípio que rege a interioridade do homem na

busca da perfeição conforme a lei de Deus Criador. Por outro, a justiça é o princípio

que define as regras de conduta dos seres humanos “que vivem da fé que se pratica por

amor” nas relações sociais.

Agostinho não só estabelece uma relação entre a virtude da justiça e a vida feliz,

mas também defende uma concepção de justiça enquanto verdadeira virtude que

expressa o amor “pelo qual o homem ama a Deus como deve ser amado e ao próximo

como a si mesmo”. Ao definir a verdadeira justiça como o império da vontade de Deus

sobre as escolhas dos homens e, paralelamente, como o império da alma sobre o corpo

de cada homem, o fundamento para a ordem social justa se assenta na interioridade, no

processo de conversão do homem que envolve a busca de uma justa medida das coisas

na vida terrena. A justiça concebida em conjunção com o conceito de “ordem do amor”

transmite a hierarquia dos bens estabelecida por Deus como objeto de amor e de desejo.

Assim, concilia-se, nessa concepção, o aspecto volitivo do amor com a ordem criada da

natureza. O dom gratuito da graça auxilia na conversão da vontade e na restauração da

264

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 24.

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alma que reconhece sua condição pecadora e sua inferioridade diante do Sumo Bem.265

Na relação com o próximo, a virtude da caridade é indissociável da verdadeira virtude

da justiça. Está colocada aqui a importância do amor-caritas na promoção da sociedade

justa, de acordo com o pensamento de Agostinho em A Cidade de Deus.

O filósofo conclui que somente há política onde há verdadeira justiça. Ao

ressaltar a verdadeira justiça como fundamento do povo e de todas as instituições

políticas, a moralidade emerge como princípio constitutivo da vida política no

pensamento de Agostinho. Seguindo a interpretação clássica de Fortin, podemos

concordar que o eixo central da doutrina política do Santo é seu ensinamento com

respeito à virtude.266

Nesse sentido, a reflexão do hiponense sobre a justiça estabelece uma distinção

clara entre moral e direito e alerta para a dificuldade de os homens, na vida terrena,

serem justos e construírem instituições políticas fundadas na justiça que é a lei divina. O

Santo afirma:

[...] geralmente a cidade dos ímpios carece da verdadeira justiça,

porque não obedece a Deus que lhe ordena que não ofereça sacrifícios

senão a Ele, que, consequentemente, nela, a alma se imponha recta e

fielmente ao corpo, e a razão recta e fielmente se imponha aos

vícios.267

No trecho citado, ao ressaltar o caráter dinâmico da relação ontológica entre

Deus e o homem no devir histórico, Agostinho enfatiza que o homem deve enfrentar um

desafio moral para viver em conformidade com a justiça divina.268

Em outras palavras, a

questão central que o filósofo coloca é: o homem cristão deve submeter a razão e a força

dos apetites da alma à ordem do amor de forma a desejar os bens terrenos de maneira

adequada e poder viver na paz temporal com piedade e caridade.269

Ademais, o Santo frisa que, na vida temporal, enquanto dominam os vícios não

há paz plena:

[...] pois os vícios que resistem têm que ser combatidos em perigosos

265

Para uma reflexão sobre a relação entre a graça e a humildade em Agostinho, consultar ARENDT,

Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. 89-91. 266

Cf. FORTIN, Ernest. San Agustín (354-430). Op. cit. 267

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 24. 268

A esse respeito, Arendt esclarece que o homem nasce primeiro para o mundo. No entanto, o homem

posteriormente deve nascer para Deus para atingir a plena realização do seu ser. Cf. ARENDT, Hannah.

Love and Saint Augustine. Op. cit. 269

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 26.

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combates, e os que vencidos, deles se não triunfa numa segura

tranquilidade, mas é preciso mantê-los sob vigilante domínio. No

meio de todas estas tentações, de que se fala concisamente na Palavra

Divina: Não será uma tentação a vida humana sobre a Terra? quem

terá a presunção de viver sem ter a necessidade de dizer a Deus:

Perdoai-nos às nossas dívidas, senão o homem enfatuado? — Na

verdade, ele não é grande, mas é inchado, o intumescido, ao qual, na

sua justiça, resiste Aquele que dispensa a sua graça aos humildes. Por

isso está escrito: Deus resiste aos soberbos, mas aos humildes

concede a sua graça. Aqui na Terra, portanto, a justiça para cada um é

o império de Deus sobre o homem que obedece, da alma sobre o

corpo, da razão sobre os vícios mesmo que estes se rebelem, quer

submetendo-os, quer resistindo-lhes; é ainda pedir a Deus a graça de

ter méritos, o perdão dos pecados e dar graças pelos benefícios

recebidos.270

A partir do trecho citado, podemos perceber que o referido autor percebe que, na

vida terrena, se levanta a cada passo do homem cristão na história um conflito moral,

uma hesitação diante das encruzilhadas da vida terrena que o atraem pela solicitação de

caminhos opostos.271

Do ponto de vista ontológico, a resposta do homem em face do

apelo de Deus exige uma tomada de consciência em relação a si mesmo, ao próximo e

ao uso dos bens temporais que o conduza, com o auxílio da graça, à conversão da

vontade e à conformação do modo de vida de acordo com a verdadeira justiça. Assim, a

responsabilidade moral do homem cristão funda-se na relação “correta” do homem com

Deus: o homem reto subordina a sua vontade à vontade de Deus. Pela infusão da graça,

ao longo da vida temporal, o homem de coração humilde que ora e “cuja fé se põe em

prática pelo amor”,272

condiciona suas atitudes em relação ao próximo na direção da

promoção da ordem social justa.

Ora, qual a relação que o Bispo de Hipona estabelece entre a política e a Cidade

Celeste?273

Para além da compreensão dos conflitos do homem e das dificuldades

morais para a promoção da paz temporal, a oposição e as tensões na coexistência entre

as duas cidades requer uma leitura escatológica: a Cidade Celeste dirige-se para o bem e

alcançará a salvação eterna; a Cidade Terrena subordina a vida feliz aos bens terrenos e

está condenada ao inferno.274

No entanto, o homem somente pode ser curado de tais

270

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 27. 271

Cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Cristianismo e consciência histórica. In: Ontologia e história.

Op. cit., p. 211. 272

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 27. 273

Cf. PIRET, Pierre. La destinée de l’homme: la Cité de Dieu. Bruxelles: Institut d’Études Théologiques,

1991, p. 319. 274

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 28. Agostinho frisa que para os

maus será reservada a segunda morte.

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vícios se, auxiliado pela graça, agir em conformidade com a vontade de Deus. Enquanto

peregrinos, os homens cristãos devem preparar-se na vida terrena para o juízo final.275

Na esperança, tal como assinalara São Paulo, os homens são “bem-aventurados” na vida

terrena onde ainda não há nem paz nem felicidade em plenitude.276

Do exposto, pode-se afirmar que a justiça, a moral, a ética e a política são

indissociáveis no pensamento de Agostinho. O hiponense condena a dissociação entre a

moralidade e a política na vida temporal porque tal separação torna ineficazes as ações

humanas, que procuram promover a justiça. Nesse sentido, o Papa Bento XVI, na

perspectiva agostiniana, afirma que a política é mais do que simples técnica para a

definição dos ordenamentos públicos: “a sua origem e seu objetivo estão precisamente

na justiça e esta é de natureza ética”.277

4.4 Verdade, “justiça social” e felicidade

Considerado esse pano de fundo, a análise dos fundamentos da concepção

agostiniana de “justiça social” procurou salientar a relevância dos fundamentos

ontológicos, antropológicos, éticos e morais no contexto da filosofia cristã. Delineadas

as fronteiras da filosofia cristã, na qual os problemas metafísicos por excelência são

Deus e a alma, Agostinho adota como ponto de partida o homem inserido na vida social

e política. O filósofo não entende a vida social como mera imanência e sugere um

conceito de “justiça social” que tem raízes no Absoluto. Na perspectiva da vida feliz, a

“justiça social” é um bem relativo, na esperança da vida feliz.

Com efeito, o Santo funda a relação entre sociedade e justiça de maneira nova e

fundamenta a identidade de um novo homem, do povo cristão, que deve seguir a lei

eterna como a regra moral e universal à qual se deve converter a vontade do homem. O

problema filosófico colocado pelo referido autor é a relação entre o contingente e o

transcendente, entre o homem e Deus.278

Por um lado, a verdadeira justiça é

transcendente, imutável. Por outro, a verdadeira justiça é também peregrina e habita a

alma do homem que busca e ama a Verdade. Nesse sentido, no devir histórico, a

apreensão da verdadeira justiça se insere nas tensões entre a imanência e a

275

Brown comenta que os homens cristãos, cônscios de serem diferentes, pertenciam à categoria dos

peregrinos — residentes estrangeiros. Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Op cit., p. 400 276

Cf. AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 27. 277

BENTO XVI, Papa. Deus caritas est. Carta Encíclica, 2005. 278

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.

65

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transcendência.

Ao falar da justiça como uma virtude que habita a alma do homem, e que,

quando se pratica, constitui um bem que produz alegria e paz, ou concórdia na vida

social, é possível afirmar que, no pensamento do Santo, a verdadeira justiça é

transcendente, imutável. Contudo, a verdadeira justiça é também uma virtude peregrina,

que habita a alma do homem que busca, por amor a Deus, níveis mais altos de

perfeição. Com efeito, para Agostinho, o homem justo ama a Deus. Todavia, na vida

terrena, mesmo vivendo conforme a ordem do amor e experimentando alegria e paz, o

homem ainda não é plenamente feliz. Nas suas palavras:

[...] aquele que possui esta vida de modo a referir seu uso Àquele que

ele ama com um amor maior e pela qual ele espera com uma

esperança mais firme — não é sem razão que desde já pode chamar

feliz, mais por aquela esperança do que por esta realidade. É que esta

realidade sem aquela esperança é uma falsa beatitude e uma grande

miséria: não oferece à alma verdadeiros bens, pois não é a verdadeira

sabedoria aquela que nos bens de cá — que ela escolhe com

prudência, realiza com fortaleza, emprega com temperança e distribui

com justiça- não dirige a sua intenção para o bem supremo em que

Deus será tudo para todos numa eternidade certa e numa paz

perfeita.279

A partir deste trecho, na perspectiva agostiniana, podemos afirmar que, na vida

terrena, a felicidade se assenta na esperança. Desse modo, a esperança vivifica as

verdadeiras virtudes. Assim, as verdadeiras virtudes — prudência, justiça, fortaleza,

temperança — são indissociáveis da esperança. Desse modo, a verdadeira fortaleza é a

virtude que suporta tudo facilmente por amor a Deus; a verdadeira justiça é a virtude

que subordina a vontade do homem a Deus; a verdadeira temperança é a virtude pela

qual o homem espera com tranquilidade por amor a Deus; a verdadeira prudência é a

virtude do discernimento em conformidade com o amor ordenado.

Como resultado do amor ordenado, prevalece a ordem social, fundada na

caridade. Ao privilegiar a urgência da caridade, Agostinho frisa o primado da ética do

amor. Em outras palavras, a alma informa e vivifica a caritas que gera a justiça e a paz

— a pacífica convivência entre os homens e a harmonia social. A relação com o

próximo pode ser entendida como uma passagem para a relação com Deus —

fundamento da justiça.280

279

AGOSTINHO, Aurelius. A Cidade de Deus. Op. cit. Livro XIX, 20. 280

Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit, p. 111.

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O amor a Deus se afirma numa relação do homem com o seu próximo, na qual

se manifesta a liberdade, enquanto expressão da vontade reta. Santo aponta para a

responsabilidade individual na construção da sociedade justa. Assim, o seu pensamento

aponta para um humanismo em que as escolhas humanas orientadas para a construção

da sociedade justa expressam a ordem do amor. Desse modo, a concepção de sociedade

justa pode ser interpretada na abrangência da convivência humana, no sentido de

privilegiar os fundamentos do agir do povo cristão: o amor à Verdade e a urgência da

caridade.

O Bispo de Hipona frisa uma íntima conexão entre a concepção integral da

pessoa humana e a concepção de “justiça social”. O filósofo coloca dois problemas

centrais — o do sentido da existência do homem e o da orientação ética das ações — e

reconhece a complexidade da experiência da vida social na história. Afirma a natureza

social do homem e, no vir a ser da história, alerta para os seus conflitos morais e para a

mutabilidade das instituições que caracterizam a condição humana. Na medida em que

reflete sobre o problema moral nas relações intersubjetivas, considera a metafísica cristã

como fundamento da ética social. De fato, a metafísica agostiniana tem implicações

éticas e políticas.

Em última análise, o amor à Verdade funda uma concepção de “justiça social”

que privilegia, no entendimento da pessoa humana, uma singularidade universal contra

as abstrações estabelecidas — jurídica ou econômica. Nesse sentido, a atualidade de

Agostinho remete ao debate sobre a necessidade de princípios universais para as

escolhas éticas que tornem possível a permanência e coesão dos laços sociais.

O Santo se afasta da ideia de que devemos entender a ordem social enquanto

uma conquista exclusivamente humana. Tal concepção agostiniana é indissociável do

mistério do Homem-Deus, da mediação e da graça de Cristo, que nos ensina a seguir a

nossa natureza de imago Dei. Nesse sentido, apresenta um caráter teleológico e

escatológico, que afirma um novo fundamento do poder e da justiça na vida social.

Como vimos, o filósofo se mostra crítico da sabedoria do homem e frisa que o

homem não chega à ordem do amor somente pela razão. Com efeito, a razão, por si só, é

insuficiente para alcançar o Sumo Bem, a Verdade, que é a vida feliz. No entanto, a

Verdade é acessível a todos e não reservada apenas para os sábios.281

Nesse contexto filosófico, a caridade é a virtude que habita a alma do homem, e

281

Cf. GUY, Jean-Claude. Unité et structure logique de la “Cité de Dieu” de saint Augustin. Op. cit., p.

47.

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que, quando se pratica, emerge como princípio ético e político cristão ao guiar os

homens na vida social de acordo com o amor ordenado, ou seja, a verdadeira virtude da

justiça.282

Quanto à relação entre a caridade e a vida social, podemos lembrar as

palavras de Arendt que chama a atenção para a articulação entre a ética e a política

subjacente à concepção agostiniana de caritas:

Encontrar um vínculo entre as pessoas suficientemente forte para

substituir o mundo foi a principal tarefa política da primeira filosofia

cristã; e foi Agostinho quem popôs edificar sobre a caridade não

apenas a fraternidade cristã, mas todas as relações humanas.283

Dessa forma, o sentido do dever da caridade vincula-se à necessidade de

desenvolver o espírito de pertencimento social, o espírito de comunidade cristã baseado

na concórdia ou paz temporal. O dever da caridade é imprescindível para a conservação

da comunidade, dos laços sociais. No domínio público, a caridade é a perfeição do amor

(ordenado) que possibilita o convívio dos homens na paz dos justos.

Na perspectiva agostiniana, o processo de conversão do homem cristão é

condição para a “justiça social”. O amor ao próximo e a verdadeira justiça não podem

separar-se porque o amor ao próximo implica o reconhecimento da dignidade do

homem enquanto imago Dei. Desse modo, podemos dizer que, nas relações sociais, a

verdadeira virtude da justiça se fundamenta na reciprocidade do reconhecimento da

dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, na perspectiva agostiniana, a

concepção de “justiça social” é crítica de qualquer orientação individualista na

abordagem e na solução dos problemas vida social, porque tal orientação é incompatível

com o modo de vida do povo cristão.

Assim, a concepção agostiniana de “justiça social” aponta para uma específica

relação do homem frente ao poder e ao próximo na esperança da vida feliz. Da leitura

de A Cidade de Deus emerge uma visão de sociedade como organismo vivo, como um

tecido de relações intersubjetivas no devir histórico. Agudamente crítico do mal moral,

fruto da vontade cindida, Santo Agostinho chama a atenção para a importância do

reconhecimento da alteridade e da vivência da caridade que vai ao encontro do próximo.

Assim, na vida do povo cristão, o amor à Verdade se articula com a vivência do amor

enquanto uma relação transformadora no contexto da promoção da “justiça social”.

282

Cf. ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Op. cit., p. 129. 283

ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit., p. 65.

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CONCLUSÃO

A reflexão sobre as dimensões da justiça marca o pensamento de Agostinho —

no qual a filosofia e a teologia se entrelaçam. O Santo lança os fundamentos filosóficos

para pensar a justiça, a liberdade e a paz do homem peregrino, inserido no devir

histórico. É a partir de Cristo que Agostinho reflete filosoficamente sobre a ordem das

coisas no universo e sobre a história dos homens. A sua filosofia cristã apresenta uma

dimensão ética que alimenta não só o sentido espiritual e religioso do homem como

também orienta suas ações na vida terrena a caminho da eternidade. Com efeito, a

especulação filosófica do referido autor tem como ponto de partida o homem inserido

na vida social e política. Considerando este pano de fundo, a presente dissertação trata

da concepção de “justiça social” em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, entendida

como a dimensão social da concepção de justiça.

No primeiro capítulo mostramos como o Bispo de Hipona, fiel à fé cristã,

redefine os termos da discussão sobre o fundamento da justiça e da questão da

sociedade justa no século V. Em conformidade com as nossas hipóteses, mostramos

como, no pensamento do referido autor, a “justiça social” é a dimensão social da justiça

fundada na lei divina. Os pilares da justiça expressam a visão cosmológica de uma

ordem regida pela lei divina. A lei eterna assinala o que os homens justos, que vivem da

fé, devem fazer se desejam ser felizes.

No segundo capítulo, aprofundamos a reflexão de Agostinho sobre o lugar do

homem na criação, o sentido da vida humana e a ambivalência moral do homem, que se

expressa na oposição e nas tensões entre as “duas cidades”. Na análise da relação entre

justiça e retidão, demonstramos a hipótese inicial a respeito da relevância da concepção

integral de homem para a concepção de “justiça social”.

Com efeito, a relação entre a imanência e a transcendência presentes no homem

é crucial para fundamentar uma filosofia da “justiça social” na perspectiva agostiniana.

A filosofia agostiniana, ao privilegiar a reflexão sobre o homem — sua dimensão

material, sua dependência ontológica, seus sentidos e desejos, seus limites, sua busca

pela Verdade, sua temporalidade finita —, tem implicações éticas de grande alcance. O

Bispo de Hipona combina no seu discurso filosófico as questões do ser, do conhecer em

virtude e do amar de forma ordenada. De acordo com o Santo, o conhecimento da

essência do ser do homem se fundamenta no vínculo ontológico. O conhecimento da

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alma de si mesma, enquanto imago Dei, permite contemplar nela o Verbo Divino. Por

meio do intelecto iluminado pela Luz, a alma pode discernir e reconhecer a sua

efemeridade, as suas limitações, inclusive no âmbito intelectivo.

Com efeito, sendo Deus infinito e a inteligência do homem finita, o ser humano

não pode conhecer a Deus somente pelo desejo da sua alma e pelo esforço da razão

natural. Inclinada sobre as coisas efêmeras, mutáveis e exteriores, a alma cede ao

encantamento dos bens terrenos e esquece que é imago Dei. Como vimos, Agostinho

concede ao auxílio divino um papel fundamental na busca e no conhecimento da

Verdade e, portanto, na restauração da alma. Assim, o Santo não entende a vida social

como mera imanência e defende um conceito de “justiça” e de “justiça social”, que tem

raízes no Absoluto. Nesse sentido, no seu pensamento, há uma íntima conexão entre a

concepção de pessoa humana no contexto de uma antropologia não reducionista e a

concepção de “justiça social”.

No terceiro capítulo, refletimos sobre a justiça e as verdadeiras virtudes,

realçando a ordem interior como condição para a ordem social. Mostramos que, em

conformidade com as nossas hipóteses, no pensamento de Agostinho em A Cidade de

Deus, a conversão da vontade é condição para a construção da sociedade justa onde

impera a “justiça social”. Nesse contexto, a justiça é virtude humanizante de todo

processo político-cultural. O caminho para a justiça se assenta na interioridade, num

processo de conversão que envolve a busca de uma justa medida das coisas e, como

resultado, a “justiça social”, fundada na caridade, pode prevalecer na relação entre os

homens.

Ademais, evidenciamos como o Bispo de Hipona combina, no seu pensamento

filosófico sobre a justiça, as questões do ser, do conhecer e do amar. No seu

pensamento, o ser do homem se fundamenta no vínculo ontológico. Deus vai ao

encontro do homem e, pela infusão da graça, a alma, enquanto imago Dei, pode

contemplar nela a Verdade. Deus, na plenitude de sua bondade, criou o homem e vai a

seu encontro de forma que o homem peregrino não se incline sobre as coisas efêmeras,

mutáveis e exteriores ou, ainda, de forma que a alma não ceda ao encantamento dos

bens terrenos e esqueça que é imago Dei. Assim, a interioridade agostiniana se traduz

numa constante prática reflexiva de autoconhecimento, iluminada por Cristo, de forma a

orientar a existência humana para uma vida virtuosa conforme o amor ordenado.

No quarto capítulo, identificamos os fundamentos do agir do povo cristão, que

subjazem à ética da caridade, e salientamos a relação entre o Absoluto e a alteridade na

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concepção agostiniana de “justiça social”. Demonstramos, de acordo com as nossas

hipóteses, que a “justiça social” no pensamento de Agostinho em A Cidade de Deus, é

construída sob a responsabilidade ética dos homens no devir histórico e tem como

fundamento o amor à Verdade e a urgência da caridade. No âmbito da doutrina social do

Santo, a caridade e a justiça são duas expressões fundantes do ethos cristão quando

enfatizada a perspectiva da promoção da justiça e da paz.

Assim, a partir da análise dos Livros II, IV, XII, XIV e XIX de A Cidade de

Deus, concluímos que a concepção de “justiça social” pode ser pensada na abrangência

da dimensão contingente e transcendente da vida humana no devir histórico. Ainda que

Agostinho não formule de forma explícita a concepção de “justiça social”, é possível

dizer que a “justiça social” é a dimensão social da justiça que expressa o amor à

Verdade e a urgência da caridade. É possível afirmar que, para o Bispo de Hipona, a

verdadeira justiça é um valor transcendente, imutável. Contudo, a verdadeira justiça é

também peregrina e habita o homem que busca níveis mais altos de perfeição espiritual.

Nesse sentido, os fundamentos filosóficos da concepção agostiniana de “justiça

social” destacam a abrangência da compreensão da subjetividade e da intersubjetividade

da vida humana no devir histórico. Desse modo, o viver justamente, do ponto de vista

social e cristão, é um viver que promove a configuração das relações sociais segundo os

princípios da justiça divina. Crítico do mal moral na condição humana, na qual a

tendência do homem ao egoísmo caracteriza a vida social, o hiponense aponta que o

antídoto a essa orientação egoísta, autocentrada, é o auxílio divino que produz efeitos no

sentido da reorientação do amor sui para o amor Dei.284

Alerta que os bens terrenos não

são portadores de sentido, mas eles encontram seu verdadeiro significado no “olhar” do

homem em relação a eles. No entanto, o afastamento do homem em relação à Verdade

faz com que os próprios homens se mantenham na ignorância e não consigam

reconhecer os aspectos ontológicos do ser.

De acordo com o Santo, se o homem amar de forma ordenada haverá justiça,

haverá promoção e reconhecimento de direitos e, portanto, a própria vida social não

estará ameaçada. Assim, no seu pensamento em A Cidade de Deus, a “justiça social”

está subordinada ao amor Dei. Assim, não é possível pensar a “justiça social” sem o

critério de Verdade, ou seja, sem transcendência. Por que o amor a Deus leva à “justiça

social”? Sem o amor à Verdade, o homem não pode alcançar a ordem interior que é

284

Cf. DOODLEY, Mark. The Pursuit of Social Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John;

PAFFENROTH, Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Op. cit., p. 13.

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condição para a “justiça social”. Ao orientar a alma para o amor à Verdade, o homem se

afasta das demandas do amor egoísta, concretizadas no amor aos bens terrenos, glória,

poder e prazer que motivam suas ações. Inclinando a alma conforme o amor ordenado,

as demandas de tais bens terrenos encontrarão o lugar correto na vida do homem.

Embasada nas referências bíblicas, a perspectiva agostiniana de “justiça social” lembra

que o homem cristão não pode obedecer a dois senhores. Em suma, Agostinho nos

esclarece sobre a importância, para o ethos cristão, do estabelecimento de um vínculo

social fundado na ética do amor. Nessa perspectiva, o amor ordenado transforma a

injustiça em justiça. Assim, a justiça na ordem social pressupõe a ordem interior como

fundamento da moral, da ética e da política.

Do ponto de vista da permanência e coesão dos laços sociais, as implicações

morais, éticas e políticas da perspectiva agostiniana são decisivas porque somente com

“justiça social” é possível configurar uma vida realmente social. Desse modo, a questão

do próximo, as relações intersubjetivas e a ética do amor ou da caridade são pilares da

filosofia social agostiniana.

Nesse sentido, a questão da “justiça social” em A Cidade de Deus, de Santo

Agostinho, requer uma visão integral do ser humano e o resgate da dimensão

contingente e transcendente da vida do homem na história. A justiça enquanto

verdadeira virtude é a pedra angular da Cidade de Deus: dela depende a sua unidade

porque o povo cristão ama a verdadeira justiça. Somente na Cidade Celeste reina a

verdadeira justiça porque seu fundador é Cristo. Em verdade, Santo Agostinho aponta

para um humanismo em que os juízos e as escolhas humanas, fundamentadas na

Verdade e na caridade, promovem a sociedade justa.

Há uma íntima conexão entre a concepção de sociedade justa e a concepção de

pessoa humana no contexto de uma antropologia que concebe o ser humano enquanto

um todo — corpo e alma — criado à imagem e semelhança de Deus e que possui um

sentido em sua existência. Assim, há a pressuposição do lugar do homem na criação e

na história. No contexto do pensamento do hiponense, somente pode dar sentido à vida

do homem o que transcende. Agostinho reconhece não só a complexidade da

experiência da vida humana na história, mas aponta para a responsabilidade ética na

promoção da justiça na ordem social. No entanto, na perspectiva agostiniana, prover o

próximo das necessidades materiais, obtendo sistemas econômicos e sociais

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sustentáveis, não é condição suficiente para alcançar a “justiça social”.285

Da leitura de A Cidade de Deus emerge um apelo para o tratamento da questão

da “justiça social”, de modo a fazer valer uma singularidade universal contra as

abstrações estabelecidas — jurídicas ou econômicas — e, ao mesmo tempo, contra toda

reivindicação particularista. Na filosofia agostiniana, não é possível pensar a ética social

sem o Absoluto. Como resultado da ordem da graça, os homens do povo cristão estarão

realmente envolvidos na promoção do bem comum que realiza a “justiça social”.

Considerando o modo de vida do povo cristão, a sociedade justa se constrói sob a

responsabilidade de todos os homens, que direcionam a sua vida de acordo com a ética

da caridade. Nesse sentido, podemos afirmar que Agostinho propõe uma ética com

fundamentos metafísicos que alicerça uma filosofia da justiça social.

Na promoção da “justiça social”, o Santo certamente questionaria de forma

crítica o fundamento dos valores do ordenamento jurídico moderno, que exige que os

direitos dos cidadãos, ou de um grupo de cidadãos, não dependam do compartilhamento

de uma base comum de valores, mas da obediência às leis do Estado. Por último, vale

lembrar que o hiponense condenou a dissociação entre ética e política ou, ainda, entre

moralidade e justiça, porque tal separação torna ineficazes as ações humanas voltadas

para a promoção da sociedade justa.

Ao traçar as condições de legibilidade de um escrito filosófico nascido no século

V, entendemos que Agostinho refletiu sobre as grandes questões do homem, movendo-

se no confronto das posições e na pluralidade de debates do seu tempo. As condições de

legibilidade dos seus textos certamente nos expõem aos paradigmas da filosofia Antiga

e a suas variações, mas também trazem um potencial para pensar o novo.

Ao final desta dissertação, pode-se concluir sobre a radicalidade dos

fundamentos da concepção agostiniana de “justiça social” — ou, ainda, sobre a

dimensão social da justiça fundada na ética da caridade. Na perspectiva agostiniana de

“justiça social”, não existem alternativas para o povo cristão, para os que dizem que

querem viver segundo o amor Dei e não no caminho da hipocrisia que corrompe a vida

social e promove a injustiça. Com efeito, a caridade é pilar da ética social cristã e deve

ser fundada na Verdade. Sem a Verdade, como enfatizou Bento XVI, “a atividade social

acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na

285

Cf. DOODLEY, Mark. The Pursuit of Social Justice. In: DELGADO, Teresa; DOODY, John;

PAFFENROTH, Kim. (Org.). Augustine and Social Justice. Op. cit., p. 17.

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sociedade”.286

Em face da crise ética na atualidade, a leitura de A Cidade de Deus reforça

aspectos centrais do debate sobre a “justiça social” que certamente fundamentam

sugestões de estudos futuros para pesquisar sobre novas hipóteses suscitadas pela nossa

investigação. Hoje nós vivemos uma situação de crise profunda da ética na cultura

ocidental, entendida como feixe de instituições e valores. A mercantilização da vida, ao

negar a natureza do homem, coisifica as relações humanas. Assim, nesse contexto,

importantes questões éticas e políticas se impõem com urgência em face da primazia do

poder econômico global. Na atualidade, o ethos do lucro a curto prazo e da eficiência

subordina as relações sociais e legitima as mais diversas desigualdades. A ideia de que o

valor da pessoa depende dos critérios ditados pelos princípios do lucro e da eficiência

implica uma recusa à centralidade da pessoa humana.

A dinâmica econômica do capital globalizado privilegia a lógica financeira, isto,

é o dinheiro torna-se um fim em si mesmo e o homem um mero instrumento para atingir

esse fim. Em outras palavras, a suposta neutralidade da racionalidade individual

econômica, mercantil, se transforma em desemprego, precarização do trabalho, exclusão

social, pauperização. O esgotamento de recursos, as ameaças contra o ambiente também

revelam aspectos deletérios das atuais formas de poder econômico.

Em verdade, a reorganização dos mercados com dominância do poder financeiro

é acompanhada de uma redefinição política fundada numa concepção reducionista do

homem. A respeito desse ponto, podemos citar a discussão travada pelo economista

francês André Orléan, para quem “O indivíduo é aí [no contexto da mercantilização das

relações humanas] definido como uma carteira de débitos-créditos cujo valor é

necessário defender”.287

Nesse quadro de relações sociais, a figura do financista se nos

apresenta como o profeta que anuncia o futuro, embora não seja mais do que um

carneiro de Panurgo.288

Tal lógica financeira se impõe na reorganização empresarial e dos mercados e,

como resultado, o sentido da finalidade humana é atravessado pela “promessa” de

ganhos de produtividade. Ao criticar a natureza desse processo, Passet afirma que “A

procura de produtividade — fenômeno positivo — transforma-se em produtivismo

negativo a partir do momento em que o fenômeno, deixando de servir as finalidades

286

BENTO XVI, Papa. Deus caritas est. Op. cit. 287

ORLEAN, André. La monnaie privatisée. Alternatives Economiques, n. 37, jun. 1998. Ver também,

do mesmo autor: Le pouvoir de la finance, Paris: Odile Jacob, 1999. 288

Cf. PASSET, René. A ilusão neoliberal. Lisboa: Terramar, 2002, p. 82.

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humanas, se fecha sobre si mesmo para se tornar o seu próprio fim”.289

Nesse cenário, o culto aos bens terrenos — promovidos à categoria dos fins —

provocou um esvaziamento dos valores mobilizadores da justiça social com

consequências profundas na dinâmica social. Estas consequências se expressam nos

custos humanos das novas formas de organização da vida econômica e científica. Com

efeito, a mercantilização do homem se estende à mercantilização das ciências da vida.

No limite da mercantilização da vida, o homem se torna um “material” para o homem.

Nesse contexto, tal como alerta Passet, “é o próprio olhar sobre o ser humano que é

posto em causa”.290

No bojo das profundas transformações políticas e econômicas, a própria natureza

do vínculo entre os homens também se modificou num contexto de fragmentação

latente das esferas do saber científico. Nesse sentido, a situação de profunda crise no

mundo contemporâneo pode ser evidenciada pela crise da metafísica, ou, ainda, pela

incapacidade de expressar uma verdade. Assim, na pós-modernidade, a crise da

totalidade da razão moderna vai apresentar-se como uma crise da filosofia metafísica.

A esse respeito, Lyotard é um nome incontornável em qualquer referência à pós-

modernidade.291

Ao analisar a condição do saber na atual situação da cultura ocidental

nas sociedades avançadas denominadas de pós-industriais, Lyotard aponta para a

reformulação da natureza do saber no bojo de profundas mudanças históricas e culturais

no final do século XX. Ao afirmar que o saber pós-moderno revela uma incredulidade

em relação às metanarrativas, o filósofo francês destaca a crise na filosofia

metafísica.292

É oportuno lembrar que a crítica pós-moderna trouxe à tona discussões

relevantes em torno de alguns pressupostos da tradição iluminista, segundo a qual a

razão científica orienta a ação do homem sem a necessidade de referência a um

transcendente que confira inteligibilidade e normatividade ao existir e às ações

humanas. Nesse sentido, segundo tal tradição, o próprio ser humano levanta a pretensão

de justificar racionalmente o seu pensar e o seu agir.

No entanto, na atualidade não há certezas quanto à razão, aos fundamentos da

verdade e aos valores. Na cultura pós-moderna, a ciência é apresentada como conflitante

com as metanarrativas e, nesse contexto, o discurso moderno não oferece mais um

289

Cf. PASSET, René. A ilusão neoliberal. Op. cit., p. 120 290

Ibidem, p. 128. 291

Cf. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989. 292

Ibidem, p. 12.

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discurso satisfatório. Tal mudança de estatuto do saber, à qual se refere Lyotard,

consiste em uma nova maneira de aplicação do saber nas sociedades pós-modernas que

reforça a própria mercantilização do saber, ou seja, o saber é e será produzido para ser

vendido.

O reflexo dessa prática pode ser claramente percebido nas sociedades pós-

modernas, sob a forma de poder para o domínio das informações. Dessa maneira,

Lyotard alerta para o fato de que o conhecimento, hoje, nada mais é senão um poderoso

instrumento de dominação dos Estados-nações. Assim, estabelece uma relação

indissolúvel entre saber e poder na cultura pós-moderna, na qual o saber assume uma

dimensão pragmática. No entanto, no âmbito do discurso científico só vale o discurso

denotativo, ou seja, aquele que apresenta possibilidade de ser verificado. Assim, o sábio

é aquele que é capaz de produzir enunciados que possam ser reconhecidos pelas

autoridades (os outros cientistas). Desse modo, o saber científico se isola da sociedade.

Como resultado da crise do saber ocorre a “imanentização dos termos da relação

com a transcendência”, tal como salienta Lima Vaz.293

Assim, a metafisica foi

substituída por mitos que orientam a ação humana. Tais mitos, como o das leis do livre

mercado, revelam a relação entre a fragmentação do saber e a fragmentação social.

Nesse cenário, a fragilização da verdade e o relativismo prevalecem e surgem novos

processos de subjetivação, novos modos de ser e de estar no mundo.

Desse modo, na pós-modernidade surge o desafio do relativismo, a afirmação da

relatividade do conhecimento humano e a incognocibilidade do Absoluto e da Verdade

em razão dos fatores contingentes e/ou subjetivos. Do ponto de vista antropológico,

muda a compreensão do tempo, da vida e do futuro. A subjetividade passa a ditar os

rumos da vida, e a “ética do instante” dita as normas de convivência. Assim, as relações

tornam-se “líquidas”, assim como defende Bauman.294

As práticas difusas reforçam o

hedonismo e o imediatismo e o modo de vida do homem é marcado pelas escolhas que

consideram os desejos, as volições. Por outro lado, a redefinição da temporalidade

provoca, também, a morte das utopias. Onde acaba a esperança, denuncia-se a ausência

das utopias, tal como apontou Marcuse.295

No lugar das utopias, a autorrealização pessoal fundada no utilitarismo subjaz à

293

LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Escritos de filosofia VII: raízes da modernidade. São Paulo:

Loyola, Coleção “Filosofia”, 2002, p. 16. 294

Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar,

2003. 295

Cf. MARCUSE, Herbert. O fim da utopia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

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sociedade pós-moralista, tal como alerta Lipovetsky.296

O modo de vida do homem

desta sociedade pós-moderna busca o bem-estar consumista e, assim, a lógica do

consumo de massa exprime-se na estética do gozo. Esse conjunto de fatores favorece

uma nova articulação entre ética e estética que favorece uma cultura narcísica na qual

prevalecem o culto ao corpo e a valorização da aparência. Nesse contexto em que

prevalece o individualismo, dá-se, portanto, o enfraquecimento e a fragmentação dos

laços sociais.

Nesse cenário, a promoção da justiça social vem se desenvolvendo em paralelo a

uma tendência de substituir gradualmente, e cada vez de maneira mais generalizada, o

discurso sobre os valores fundamentais pelo discurso sobre os direitos fundamentais. No

entender de Speamann,297

os direitos humanos fundamentais não dependem do

compartilhamento de uma base comum de valores entre os membros da sociedade, mas

da sua obediência às leis. Como resultado, há uma ameaça latente à dignidade da pessoa

humana. Tal ameaça reside, em especial, no poder de arbítrio dos governos, como

expressão daqueles que, pensando ter encontrado a verdade, configuram as vidas dos

homens de acordo com a sua vontade.

Considerando esse pano de fundo, é inegável a atualidade do debate sobre os

fundamentos da “justiça social” na perspectiva de Agostinho de maneira a embasar

novos estudos que destaquem as questões relativas ao poder e à justiça na dinâmica

social contemporânea. Diante das ameaças à vida social no século XXI, novos estudos

tornam-se prementes para desdobrar a reflexão agostiniana sobre as escolhas éticas que

possibilitam a permanência e a coesão dos laços humanos num contexto de “justiça

social”.

296

Cf. LYPOVETSKY, Gilles. La era del vacío: ensayos sobre el individualismo contemporaneo. 13. ed.,

Barcelona: Anagrama, 2000. 297

Cf. SPEAMANN, Robert. Europa: comunidad de valores y ordenamento jurídico. Madri: Fundación

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