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FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO Rosângela Ribeiro dos Santos O Conceito de Angústia na Obra Homônima de Sören Aabye Kierkegaard São Paulo 2010

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

Rosângela Ribeiro dos Santos

O Conceito de Angústia na Obra Homônima de Sören Aabye

Kierkegaard

São Paulo

2010

FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

O Conceito de Angústia na Obra Homônima de Sören Aabye

Kierkegaard

Rosângela Ribeiro dos Santos

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia

da Faculdade de São Bento do Mosteiro de

São Bento de São Paulo, como requisito

parcial para a obtenção do título de Mestre

em Filosofia.

Área de Concentração: História da Filosofia

Orientador: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e

Silva

São Paulo

2010

Rosângela Ribeiro dos Santos

O Conceito de Angústia na Obra Homônima de Sören Aabye

Kierkegaard

Esta dissertação foi julgada e aprovada para a

obtenção do título de Mestre em Filosofia

no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da

Faculdade de São Bento de São Paulo.

São Paulo, 19 de março de 2010.

Prof. Dr. Elias Humberto Alves

Coordenador do Programa

BANCA EXAMINADORA

________________________________

Prof (a) Dr (a) Silvia Saviano Sampaio

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo

________________________________

Prof. Dr. José Carlos Bruni

Universidade Estadual Paulista

______________________________

Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva

Universidade de São Paulo

Orientador

A Ozorino e Nair.

A Marilzam, Ângela,

Marivaldo e Elisângela.

A Cídio.

AGRADECIMENTOS

Os nossos agradecimentos têm a intenção de ser um singelo reconhecimento à

generosidade e gratuidade de todos os que me ajudaram na concreção deste trabalho.

Sou profundamente agradecida à Faculdade de São Bento de São Paulo, nas pessoas de

Dom Abade Mathias Tolentino Braga e de Dom Carlos Eduardo Uchôa Fagundes Jr., pela bolsa

de estudo concedida; aos Professores Dr. Elias Humberto Alves e Dr. Djalma Medeiros,

Coordenador e Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação, pela disponibilidade

e solicitude com as quais sempre me atendeu; ao Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva,

professor orientador, pelo profissionalismo, pela diligência e sabedoria com as quais

conduziu e orientou a pesquisa; ao Prof. Dr. Luiz Roberto Monzani que, no início deste

trabalho, sugeriu-me um caminho para pesquisar e o tema; a Profa. Dra. Silvia Saviano

Sampaio e ao Prof. Dr. José Carlos Bruni pela participação em banca examinadora de

qualificação; a Cídio Lopes de Almeida pela sugestão do título e pelo encorajamento; a

Marivaldo Ribeiro dos Santos por, um dia, ter me falado de Kierkegaard; a José Carlos

Freire, que me falou do Mestrado na Faculdade de São Bento e a Magnólia Dias

Cardoso pelo incentivo; aos colegas e às colegas de Mestrado pela convivência,

especialmente, Ivânia Hebling Martins e Renata Bastos Cunha; a Nanci Oliveira e Ana

Carolina Laselva pela atenção com a qual sempre me atendeu na Secretaria da

Faculdade. Também sou grata ao Pe. Carlo Faggion, ao Sr. Bruno Rossotti e a Dom

Aldo Gerna, bispo emérito da Diocese de São Mateus-ES, se este trabalho tornou-se

possível foi porque um dia pude contar com a ajuda de todos eles; por fim, àqueles e

àquelas cujos nomes não foram citados, mas que em meus pensamentos jamais deixarei

de agradecer. A todos e a todas, muito obrigada.

“não é meu desejo descobrir novidades, mas cultivar a alegria, o bem amado

esforço de refletir sobre o que não parece senão imensamente simples.”

(Sören Aabye Kierkegaard)

SANTOS, Rosângela Ribeiro dos. O conceito de angústia na obra homônima de Sören

Aabye Kierkegaard. 2010. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Programa de Pós-

Graduação em Filosofia, FSB, São Paulo.

RESUMO

Este trabalho tem a intenção de abordar o conceito de angústia no filósofo

dinamarquês Sören Aabye Kierkegaard. Para isso, recorremos à sua obra de 1844, O

conceito de angústia. Buscamos, em um primeiro capítulo, ao tratar do Indivíduo,

compreender o que o ser humano é, por que a angústia não lhe abandona e em que

consisti sua ambiguidade. Nos capítulos seguintes, a angústia e a liberdade, como ambas

se relacionam, coexistem e se na aparente ausência de liberdade, a angústia fica abolida;

ainda, se angustiar-se consiste ou não uma imperfeição humana. Ressalte-se também,

que o nosso trabalho procurou seguir o movimento proposto por Kierkegaard na obra;

se em alguns momentos, em nosso trabalho, esse movimento parece não fluir é porque,

então, não conseguimos acompanhar-lhe o movimento.

Palavras-chave: Indivíduo, existência, liberdade, angústia, interioridade.

SANTOS, Rosângela Ribeiro dos. O conceito de angústia na obra homônima de Sören

Aabye Kierkegaard. 2010. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Programa de Pós-

Graduação em Filosofia, FSB, São Paulo.

ABSTRACT

This paper intends to address the concept of anxiety in the Danish philosopher

Søren Aabye Kierkegaard. For this, we turn to his work in 1844, The Concept of Dread.

We seek, in a first chapter, dealing with the Individual, understand what man is, why the

anxiety did not leave and what the ambiguity. In the following chapters, the anguish and

freedom, as both relate to coexist and the apparent lack of freedom, distress is

abolished, even if it is troubled or not a human imperfection. It should be noted also that

our study sought to follow the motion proposed by Kierkegaard in the works, in a few

moments in our work, this movement seems to flow is because then we could not follow

him move.

Key-words: Individual, existence, freedom, anguish, interiority.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 8

CAPÍTULO I: O INDIVÍDUO

1. 1. O percurso existencial ............................................................................................ 13

1. 2. Os equívocos na compreensão do percurso: “as imperfeições” na narrativa e nas

interpretações ................................................................................................................... 50

CAPÍTULO II: A ANGÚSTIA

2. 1. O “autor” do livro diante do tema .......................................................................... 60

2. 2. A progressão da angústia na perspectiva do “autor” .............................................. 64

CAPÍTULO III: A LIBERDADE

3. 1. O “lugar” onde se realiza ........................................................................................ 92

3. 2. Por que a liberdade não consiste em saber que não sabe ...................................... 102

3. 3. A liberdade enquanto relação de interioridade com o espírito

3. 3. 1. Pecado e Providência ........................................................................................ 106

3. 3. 2. Culpa e Redenção ............................................................................................. 113

3. 4. O salto qualitativo ................................................................................................. 120

3. 5. O demoníaco em Kierkegaard ............................................................................... 126

3. 5. 1. “A liberdade perdida somático-psiquicamente” ................................................ 130

3. 5. 2. “A liberdade perdida pneumaticamente” ........................................................... 131

3. 6. “O eterno na individualidade” .............................................................................. 136

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 138

BIBLIOGRAFIA

8

INTRODUÇÃO

Soa-nos estranho que a verdade possa se identificar com a subjetividade do

Indivíduo uma vez que a tradição racionalista parece desconsiderar esse elemento como

critério de conhecimento. A subjetividade – metafísica, em Descartes e transcendental, em

Kant –, grosso modo, assume um caráter apenas de vida interior ou de interioridade incapaz

de comunicar algo ao Indivíduo mesmo e a outros. Carente de clareza e objetividade, a

subjetividade nada pode revelar acerca do mundo em que vivemos, não gera conhecimento,

está inclinada apenas à sensibilidade; faz com que os seres humanos acerquem-se dos

objetos segundo os seus quesitos individuais não conferindo, portanto, para o conhecimento

desses objetos nenhum caráter de universalidade da qual o conhecimento baseado na razão

espera do Indivíduo.

Para Kierkegaard a grande tarefa do ser humano não está em erigir sistemas por

meio da razão, mas em tornar-se Indivíduo ou nas palavras do próprio filósofo “tornar-se

este um só”, tornar-se subjetivo. A subjetividade de Kierkegaard é o que há de mais

objetivo no ser humano, pois é ela que revela o que cada ser humano é, um Indivíduo. Os

sistemas científicos são impessoais, abstratos e fantásticos. Os “sistemas” são para a

“multidão”, o “público” como o autor mesmo afirma, isto é, nada comunicam ao Indivíduo,

carecem de verdade. Por Verdade Kierkegaard compreende a “Verdade Eterna”, Deus, da

qual devemos tornar-nos testemunhas. Para isso devemos abandonar a multidão,

“comprometer-se, se possível com todos, mas sempre individualmente, falar a cada um

isoladamente, na rua ou na praça [...] para que este ou aquele se afaste da assembleia e vá

para casa, a fim de se tornar o Indivíduo” (KIERKEGAARD, 2002, p. 114).

9

Ser testemunha da verdade é converter-se em Indivíduo. Os “sistemas” separaram

Deus do homem e este a busca na multidão, nos discursos, nas Igrejas, ou seja, através de

intermediários, contudo a relação do Indivíduo com a Verdade não admite intermediários a

não ser aquele que está dentro do Indivíduo mesmo, a saber: a angústia.

Assim sendo, nada o que é “geral” ou “válido para todos” pode levar o homem a

tornar-se um Indivíduo. Por isso, segundo Chestov, Kierkegaard se decidiu por um lado a

suspender a ética – o que conseguiu até certo ponto – expressão da submissão (CHESTOV,

1965, p. 88); a ética – referindo-se à “filosofia primeira”, cuja essência é a imanência ou a

reminiscência – “repousa imanente em si mesma sem nada de exterior que seja seu telos,

sendo ela mesma telos de tudo o que lhe é exterior e logo que a ética o integrou, não vai

mais longe” (CHESTOV, 1965, p. 169) impossibilitando o homem de tornar-se um

Indivíduo. “Determinado como ser imediato, sensível e psíquico, o indivíduo é o indivíduo

que tem seu telos no geral e esta é sua tarefa ética, que consiste em exprimir-se

contentemente no geral, em despojar-se de seu caráter individual para tornar-se o geral”

(ibidem).

Todos podem tornar-se um Indivíduo. No entanto, a tarefa não é fácil. É uma

empresa de incerteza e insegurança, de temor e tremor, de desespero e angústia, mesmo que

em um estado de inocência ou ignorância, essa seja, apenas, possibilidade. Somente o

homem pode angustiar-se porque é espírito ou possibilidade. Segundo Kierkegaard, não

encontramos angústia no animal, porque este em sua naturalidade não está determinado

como espírito. A angústia “é a realidade da liberdade como possibilidade antes da

possibilidade” (In: REICHMANN, 1972, p. 265).

Ao leitor, num primeiro instante, Kierkegaard poderá parecer um escritor obscuro e

um filósofo despreocupado com questões epistêmicas. A impressão de obscuridade se dá

10

porque em boa parte de seus escritos1 utiliza a comunicação indireta. Inspirado em Sócrates

(c. 470-399 a.C.) o qual, segundo VALLS, Kierkegaard elegeu seu herói intelectual, faz uso

da ironia, constantemente utilizada pelo filósofo grego, para falar aos seus ouvintes.

Kierkegaard tem em Sócrates o modelo de comunicador e em Cristo o paradigma de

Indivíduo.

A nós, a comunicação indireta configurou-se um obstáculo para o entendimento do

autor. Empreendemos, para atenuar este fato, várias leituras de O Conceito de Angústia em

diferentes traduções2. Esta é uma das obras que por seu estilo e pelos recursos que o autor

utiliza soa apaixonante e faz parecer, ao leitor, que cada palavra tenha sido, especialmente,

cunhada para ele. Segundo Gouvêa, nela, Kierkegaard expõe sua teoria de angústia, propõe-

se a dizer por que não cabem à Psicologia e à Ética o desvelar de tal “conceito”. Portanto,

se esperávamos que a Psicologia pudesse fazer-nos dar conta com mais clareza do que seja

a angústia, surpreendemo-nos e curiosos ficamos quando Kierkegaard nos lança para o

campo ao qual mais próximo a angústia pode ser discutida, o campo da Dogmática. O

próprio Vigilius Haufniensis, O Vigia de Copenhague, o heterônimo autor do livro, é um

professor de dogmática escrevendo sobre o problema teológico do pecado original.

Outra obra de Kierkegaard, O Desespero Humano (Doença até à Morte, 1849) dá o

acabamento a O Conceito de Angústia. Em A Doença Mortal, como também é conhecida a

publicação de 1849 Kierkegaard se propõe a investigar o conceito de desespero. Este

1 Segundo Gouvêa, o recurso à comunicação indireta inclui as obras: A Alternativa, Temor e Tremor,

Repetição, datadas de 1843; De Omnibus Dubitandum Est (1842-1843), Migalhas Filosóficas, O Conceito de

Angústia e Prefácios, de 1844; Estações na Estrada da Vida (1845) e Post-Scriptum Não-Científico

Concludente, 1846 (GÔUVEA, 2006, grifo nosso).

2 A portuguesa por João Lopes Alves, 2ª ed., Ed. Presença, s/d e a espanhola, direta do danês, por Demetrio

G. Rivero, Alianza Editorial, 2007 e, quando estávamos já no fim, tivemos a oportunidade de ter em mão e de

utilizar, ainda, neste trabalho a edição brasileira traduzida por Álvaro Luiz Montenegro Valls, editada pela

Editora Vozes, 2010.

11

conceito está intrinsecamente ligado ao conceito de angústia, pois a angústia é também

desespero, oculta-se no desespero. Deste modo, estudiosos como Gouvêa, entre outros,

descreve este livro como uma seqüência a O Conceito de Angústia.

Julgamos que para se compreender um filósofo nada mais conveniente do que ater-

se à leitura das obras do próprio filósofo mesmo que essas não sejam feitas em língua

original como é o nosso caso. Para se ler Kierkegaard isso se faz ainda mais necessário

porque o recurso do qual o autor faz uso, a comunicação indireta dá margens, a quem o lê,

um campo mais vasto de interpretações não obstante, os conceitos-chave de seu

pensamento: Indivíduo, fé, singular, particular, liberdade. Apesar de não encontrarmos

divergência entre seus comentadores e suas publicações, que são bem mais do que

imaginávamos, o cuidado em ler atenta e pacientemente a obra referência para este trabalho

deve ser redobrado.

Para a filosofia da existência kierkegaardiana, o ser humano é uma “síntese de finito

e infinito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade” (KIERKEGAARD,

1979, p. 195). Por síntese Kierkegaard compreende algo bem específico. Ela não é apenas a

relação entre dois termos distintos, é uma relação que se caracteriza particularmente por se

relacionar com quem estabelece a relação entre os termos, o espírito.

Pretender definir o gênero humano em termos de existente, como o que é existência,

implica numa tarefa nada simples porque ainda imbuídos de uma tradição que privilegia o

conhecer e o progresso pela razão a qual atribui-se toda objetividade julgamos, muitas

vezes, que qualquer idéia que destoe dessa linha seja dispensável de uma atenção acurada

por parte dos acadêmicos ou, em outros termos, pouco digna de estudos. Kierkegaard não

desmerece a faculdade racional, em A Alternativa (1843) ele a privilegia na figura do ético

em detrimento do esteta que se consome nos desejos e na fadiga em satisfazê-los, porém a

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excelência humana não reside nem no dever cumprido, nem na sensualidade dos prazeres.

A excelência humana encontra-se na fé capaz de extrapolar os limites da razão que só pode

ser compreendida e vivida na relação do Indivíduo com Deus.

Em Kierkegaard a angústia é vista como uma força positiva, pois ela nos guia à fé e

de volta a Deus, ajuda-nos a tornar quem devemos ser. Na sociedade do plus ou da euforia

que aliena nossa condição no mundo investigar o conceito angústia nos lança a uma estrada

que poderá dar ao encontro e ao conhecimento de nós mesmos, de quem e o quê somos, de

nosso lugar no mundo.

O mundo contemporâneo carece de Indivíduos. O Indivíduo “sumiu” na multidão,

nas instituições. Tornou-se número, não é mais responsável por nada, porque não se

tornando Indivíduo, os seus atos são tomados a partir dos parâmetros da massa. Por seu

turno, a multidão tornou-se o tribunal do Indivíduo, é ela que agora detém a verdade, que

julga certo ou errado, culpado ou inocente.

Estruturamos nosso trabalho em três capítulos: o primeiro refere-se ao Indivíduo e

nos foi de grande auxílio o texto do filósofo Jean-Paul Sartre. Procuramos traçar o percurso

que o Indivíduo percorre na existência, bem como, para entender melhor este percurso, o

que o filósofo dinamarquês vê de “imperfeito” na narrativa do Gênesis. O segundo capítulo

ocupa-se da angústia. Apresenta o autor da reflexão, Vigilius Haufniensis, e a progressão da

angústia. O terceiro e último, apresenta a liberdade e sua relação com a angústia ao

interagir com categorias, tais como: interioridade, demoníaco, perda, ser-capaz-de.

13

CAPÍTULO I

O INDIVÍDUO

1. 1. O percurso existencial

A história do homem é tratada por Kierkegaard (1813-1855) de modo que aquilo

que mais interessa ao Indivíduo apareça: o seu existir. Trata, portanto, de discorrer sobre a

condição dos seres humanos. Para isso, retorna à origem dessa espécie a qual, segundo ele,

encontra-se descrita na Escritura, mais precisamente, no livro do Gênesis. Como seu

próprio nome indica (gênese = começo) o livro conta as origens do mundo e o início da

ação de Deus entre os homens (Gênesis. In: TEB, 1997, p. 21).

A condição do ser humano na existência é a condição de quem vive prenhe de

angústia. Conscientizar-se disso já é, naturalmente, angustiar-se. Podemos concluir,

portanto, que como condição, da angústia não se pode escapar. Logo, o que nos resta?

Resta-nos aprender a angustiar-nos, ou, como diz Kierkegaard, educar-nos para a angústia,

para essa força que suscita em nós uma tensão, a qual amamos e da qual queremos fugir.

Como podemos nos compreender, compreender nossa existência a partir dessa ambigüidade

psicológica que é a angústia, dessa, como nomeará Kierkegaard, uma antipatia simpática e

uma simpatia antipática (KIERKEGAARD, 2007, p. 88; s/d, p. 64)?

Para tal finalidade – de compreensão de nossa existência – Kierkegaard busca

investigar o momento primeiro no qual a angústia se presentou. Será necessário, então,

trazer à tona, nesse percurso investigativo, situações como a do pecado original. A ideia

corrente é que somos tal como somos ou por que, como dirá o pensamento socrático,

ignoramos que sabemos e por isso agimos de modo contrário ao saber, ou porque somos

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herdeiros e herdeiras de Adão e Eva, os responsáveis por introduzir no mundo o erro, o

pecado como preconizam as doutrinas religiosas cristãs. Kierkegaard se manifesta de modo

diverso a essas duas concepções. À primeira porque o contrário de pecado não é virtude

(CHESTOV, 1965, p. 95, tradução nossa) e, à segunda porque Adão não é

“plenipotenciário de toda a humanidade” (KIERKEGAARD, 2007, p. 62, tradução nossa;

s/d, p. 39) como veremos.

O equívoco encontra-se, conforme Kierkegaard, em considerar o pecado original

como o pecado de Adão:

“Identifica-se acaso este conceito com o do primeiro pecado, com o pecado de

Adão, com a queda? É indubitável que a Teologia deu por suficiente muitas vezes

semelhante identificação e que, em conseqüência, a tarefa proposta de esclarecer

o pecado original veio a coincidir dentro da mesma Teologia com a tarefa de

explicar o pecado de Adão. E como por este caminho o pensamento tropeçava

com não poucas dificuldades, não se suspeitou em buscar, expeditamente, uma

saída. Afinal de contas se pretendia esclarecer algo em torno ao assunto, e para

isso se introduziu um suposto fantástico, declarando, ininterruptamente, que a

perda do mesmo vinha a constituir as consequências da queda. Desta maneira se

obteve a vantagem de que todo o mundo concedesse de bom grado que o estado

descrito em tal suposição não se encontrava na terra, mas assim se passava por

alto outra dúvida não menos embaraçosa, a saber, a de se tal estado existiu

alguma vez no mundo, coisa bastante necessária por certo no caso de afirmar sua

queda. Com tudo isto a história da humanidade chegou a alcançar uns começos

fantásticos, Adão ficou situado fantasticamente à parte e o sentimento religioso e

a imaginação obtiveram o que desejavam, isto é, um prólogo divino..., tanto que o

pensamento não obteve nada.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 61-62,

tradução nossa; s/d, p. 38-39)

Ao identificar o pecado original com o primeiro pecado, supôs-se um estado

anterior ao pecado de Adão que teria desaparecido com esse. Se esse estado “existiu”

anterior a Adão e com ele já não existe mais seria Adão um descontínuo na história? O que

Kierkegaard indaga é se esse estado figurado, anterior ao pecado de Adão, chegou mesmo a

alguma vez “existir”, condição pela qual poderia ter desaparecido como se pretende

argumentar.

15

Não obstante, a inconsistência da argumentação acerca de um estado ideal anterior

ao pecado, Adão foi expulso da história como se não nos dissesse a respeito. Quando se

trata de utilizar a Bíblia, adverte-nos Kierkegaard, em alguma explicação, para que sua

influência não resulte prejudicial, “melhor será seguir em tudo um rumo mais natural [...].

Desta maneira nunca se chegará à absurda posição de ter que entender uma explicação

antes de entender o que se trata de explicar; nem tampouco se chegará a ocupar uma

posição [...] que se aproveitem os lugares escriturísticos” (KIERKEGAARD, 2007, p. 85,

tradução nossa; s/d, p. 61) para se proteger. Cientes disso, a ação de buscar nas Escrituras –

para as linguagens, científica e filosófica, da época uma opção extrema – a compreensão de

nós mesmos parte da convicção de nela encontrarmos mais que mitos e odisséias, mas a

história dos Indivíduos e do gênero humano isenta de camuflagem e escamoteações lógicas

e dogmáticas. A filosofia existencial de Kierkegaard admite opor à verdade especulativa a

verdade revelada; segundo Chestov,

“O pecado não reside no ser; não se encontra no que saiu das mãos do Criador. O

pecado, o vício, o defeito residem em nosso „saber‟. O primeiro homem teve

medo da vontade, por nada limitada, do Criador; viu nela essa „arbitrariedade‟,

para nós tão terrível, e buscou proteção no saber, o qual, tal como lhe havia

sugerido o tentador, o igualava a Deus ou, dito de outra maneira, o colocava junto

com Deus, na mesma dependência com respeito às verdades eternas, incriadas,

pois assim descobria „a unidade das naturezas divina e humana‟. E esse „saber‟

achatou, aniquilou sua consciência, introduzindo-a no plano das possibilidades

limitadas que determinam agora, para ela, seu destino terrestre e eterno. Deste

modo descreve a Escritura a queda do homem.” (CHESTOV, 1965, p. 31-

32, tradução nossa)

Adão, portanto, nos diz respeito e se não consideramos assim é porque julgamo-lo a

origem e fonte de toda mazela passada, atual e futura. A despeito disso, segue-se que:

16

“Consistirá, pois, a diferença entre o conceito de pecado original e o conceito de

primeiro pecado em que o indivíduo somente tem parte naquele por sua relação

com Adão e não por sua relação primitiva com o pecado? Neste caso volta-se a

situar Adão, fantasticamente, fora da história. Então o pecado de Adão é algo

mais que passado, é un plus quam perfectum.[3]

” (KIERKEGAARD, 2007,

p. 62, tradução nossa; s/d, p. 39)

Se participássemos do pecado apenas por causa de nossa relação com Adão e não de

uma relação primeira com o pecado, como se explicaria o sentimento de culpa que

carregamos tão arraigado em nós, que se faz presente mesmo quando nos sabemos

inocentes? Participamos do pecado, também, por causa de nossa relação com Adão, pois o

“indivíduo é ele próprio e o gênero humano”; a ascendência nos legou a culpa quando, ao

mesmo tempo, somos inocentes.

A participação no pecado pelo gênero difere-se da participação do Indivíduo no

pecado porque, ao contrário, a participação do Indivíduo no pecado é direta. Nessa não se

supõe apenas a pecabilidade ou pecaminosidade – capacidade de pecar – mas,

precisamente, o pecado, a culpa, o salto qualitativo e não quantitativo como a participação

na espécie sugere. Os conceitos tradicionais diferem o primeiro pecado de Adão e o

primeiro pecado de qualquer outro homem argumentando que “o pecado de Adão tem

como consequência a pecabilidade e qualquer outro primeiro pecado a supõe como

condição” (KIERKEGAARD, 2007, p. 68-69, tradução nossa; s/d, p. 45), porém

Kierkegaard observa que se fosse assim, “Adão ficaria realmente fora da espécie humana e

esta não começaria com ele, mas sim que teria um começo fora de si mesma, o que é

contrário a todos os conceitos.” (ibidem)

O conceito pecado original referindo-se ao pecado de Adão, ao primeiro pecado,

não tem nenhuma substancialidade. “O pecado original é o presente, é a pecabilidade, e

3 “Um mais que passado”.

17

Adão seria o único homem em que não houve pecabilidade ainda que esta fosse introduzida

por ele” (KIERKEGAARD, 2007, p. 63, tradução nossa; s/d, p. 39-40); a responsável por

tão grande equívoco, o qual confunde o pecado de Adão com o pecado original, é a

Teologia que “não demonstrou o menor empenho por esclarecer o pecado de Adão, porém

pretendeu explicar o pecado original em suas consequências” (ibidem); há quem manifeste

que “„o pecado original é uma corrupção da natureza tão profunda e horrenda que não pode

ser compreendido por nenhuma inteligência humana, senão admitido e crido em virtude da

revelação bíblica‟.”4 (In: KIERKEGAARD, 2007, p. 63, tradução nossa; s/d, p. 40). Para

Kierkegaard, esta afirmação e as explicações dadas pela Teologia se conciliam,

perfeitamente, já que tanto numa quanto noutra não se encontram “determinações

teoréticas”, mas sim “a expressão do sentimento religioso – de direção marcadamente ética

– que [...] somente se preocupa em fazer mais e mais repugnante a pecabilidade e a si

mesmo dentro dela, de maneira que não haja palavras suficientemente duras como para

designar o horror da participação do indivíduo na pecabilidade” (ibidem).

Neste sentido, nas diversas confissões nosso autor vê uma gradação ascendente

verificando como, ao final, a piedade protestante alça voz. Assim, teríamos: a Igreja grega,

Tertuliano (155-220), Agostinho (354-430)5 e, por fim, o protestantismo que rejeita as

definições escolásticas e a afirmação de que o pecado original seja uma pena.

4 Em O Conceito de Angústia esse trecho encontra-se em latim, traduzido para o espanhol por Demetrio G.

Rivero, em nota. O trecho, citado por Kierkegaard, participa dos artigos de Esmalcalda (na tradução

espanhola) ou Schmalkalden (na tradução portuguesa) de “redação pessoal de Lutero e logo aprovados – em

1537 – pela famosa Liga que em 1530 formaram os protestantes para defender também suas crenças contra

Carlos V”. (Nota da edição espanhola, p. 65, tradução nossa)

5 “A Igreja grega chama ao pecado original: „pecado do primeiro pai‟. Isto significa que aquela Teologia não

conta em modo algum com um conceito, visto que essas palavras não encerram mais que uma simples

etiqueta histórica, uma etiqueta que não assinala o presente como faz o conceito, a não ser somente o

historicamente concluído. Tertuliano o chama vitium originis [pecado original], o qual é sem dúvida um

conceito, mas com a dificuldade de que essa forma de expressão permite que o histórico possa seguir

considerando-se em última instância como o decisivo. Santo Agostinho o chama peccatum originale [“mal de

18

“Rejeitadas ambas as coisas, o protestantismo começa a avançar por esse clímax

entusiástico que se soma em palavras como vitium, peccatum, reatus, culpa. Aqui

o único que importa é deixar que se desborde a eloquência da alma destroçada,

com o que não é nada estranho que mais de uma vez irrompam algumas ideias

totalmente contraditórias no meio do discurso acerca do pecado original, como

quando se diz: [...] „também agora isso atrai a ira divina sobre aqueles que

pecaram conforme o exemplo de Adão‟. Outras vezes, àquela eloquência dolorida

não lhe interessa nem um pouco nada que tenha relação com o pensamento e

despacha-se a seu gosto afirmando coisas espantosas em torno ao pecado original,

como é o caso da Formula Concordiae quando declara o seguinte: „O que faz que

todos nós sejamos odiados por Deus a causa da desobediência de Adão e Eva‟.”[6]

(KIERKEGAARD, 2007, p. 64-65, tradução nossa; s/d, p. 41-42)

Considerar Adão o precursor da decadência humana é fazê-lo o mais terrível

culpado para o qual não há remissão, eis o que se configura como astúcia da razão7 que nos

faz expulsar Adão da História e atribuir a responsabilidade da história do gênero humano a

um único homem.

Semelhante reflexão, acerca de Adão ser um descontínuo na história ou na história

um momento superado fez Sartre (1905-1980) em O Universal Singular (SARTRE, 2005,

p. 11-38). Além disso, Kierkegaard constitui o próprio testemunho dessa odisséia a qual

escapa à razão especulativa e pode permanecer além do tempo histórico, cronológico no

qual, tratado como objeto, se dera.

origem”] [...], e isto supõe o conceito, o qual fica ainda muito mais claramente definido mediante a distinção

agostiniana do peccatum originans [“pecado das origens” ou “originante”, o pecado de Adão que o Gênesis

relata] e o originatum [“pecado original” ou “originado”, que afeta a humanidade em seu conjunto].

(KIERKEGAARD, 2007, p. 64, tradução nossa; s/d, p. 40-41)

[6]

“Esta Formula Concordiae [Fórmula de Concórdia] é um escrito confessional luterano que data de 1577.”

(Nota da edição espanhola, p. 65, tradução nossa)

7 No pensamento hegeliano, a astúcia da razão é uma categoria “graças à qual Hegel explica que os

indivíduos, cujos móbiles são as paixões, criam automaticamente uma obra racional (universal e livre)”

(D‟HONDT, 1965, p. 54). Ironicamente, a astúcia da razão, para Kierkegaard, consiste em, a razão, criar

definições para esquivar-se ao reconhecimento do pecado.

19

Kierkegaard introduz-nos em um paradoxo, eis o que afirma o existencialista

francês. Esse paradoxo consiste, em um primeiro instante, na seguinte questão: Como pode

alguém permanecer presente quando o seu tempo já se extinguiu? Ou, em palavras pouco

sartreanas: O que faz de alguém um kairós8 quando o seu cronos

9 já não é?

No fluxo desta questão, Kierkegaard é a resposta. O dinamarquês é um morto que

ainda vive e a contradição mesmo está em saber de que modo, ainda, vive.

Morto, Kierkegaard tornou-se objeto de nossas idéias. Um objeto é aquilo que

recuperamos e iluminamos com uma luz nova (SARTRE, 2005, p. 11). Recuperado e

iluminado não mais em uma Dinamarca de 1813-1855, não mais em um momento

localizado, mas onde quer que uma subjetividade faça de Sören uma idéia, um raciocínio

porque “Kierkegaard se funde na morte”, ou seja, de subjetivo passou a histórico mundial.

Contudo, recordemos, o paradoxo se encerra no modo como este morto, vive.

Kierkegaard há tempos não é mais uma subjetividade, um homem que existe em

determinado lugar, em uma época definida, com estes ou aqueles atributos, entretanto, se

manifesta na história mais que um objeto ao qual possa se dirigir nossa atenção. “Ao não

poder ser compreendido mais que como essa imanência que não deixou Kierkegaard

8 Um estudo etimológico foi realizado por Monique Trédé. Segundo CESAR, ao examinar os sentidos da

palavra, Trédé aponta os vários usos do termo, considerando-os em relação ao tempo, ao espaço e à ação.

Relacionando-o “ao tempo, Kairós é o instante crucial, decisivo, a ocasião, o ápice (acmé) de uma época ou

situação, bem como os dias críticos, os momentos de crise histórica [...] ao espaço, sobretudo com referência

ao corpo do homem, Kairós é o ponto nevrálgico, a parte vulnerável, que, se atingido, configura o golpe

mortal [...] à ação, Kairós representa o sucesso ou insucesso, a decisão, o ponto de ruptura. Está ligado à

noção de cortar, decidir, julgar, discriminar.” (In: CESAR, 2008, p. 57-58).

Desse modo, ao denominarmos Sören com a palavra Kairós, pretendemos atribuir-lhe o caráter que a

expressão carrega enquanto aquilo que no tempo, no espaço e na ação se descobre e por que não dizer,

sobrevive. Assim ele, no tempo, revela uma crise; no espaço, uma dor, por ser frequentemente

incompreendido e na ação, um corte em relação ao Sistema e, especialmente, à Cristandade.

9 Irmão de Kairós são filhos de Aion, a eternidade, o grande tempo. Cronos e Kairós estão sempre em luta.

São imagens opostas do reflexo da eternidade no tempo. Representam, desse modo, as duas ressonâncias da

eternidade no mundo sensível. Cronos significa o tempo como repetição, regularidade e Kairós, o tempo

como ruptura e inovação, mudança qualitativa da consciência, das situações (idem, p. 62).

20

escapar para sempre [...] o paradoxo denunciado por este morto consiste em que, mais além

de sua abolição, um ser histórico pode comunicar-se ainda, enquanto não-objeto, enquanto

sujeito absoluto, com as gerações que seguem à sua” (SARTRE, 2005, p. 12, tradução

nossa), ou seja, que Kierkegaard “permanece” no mundo como quem não se separou dele

mesmo após a morte podendo, desse modo, ser denominado objeto o que parece simples

constatar. No entanto, Sören relaciona-se mais que um objeto com o sujeito que o coloca

em questão relaciona-se, precisamente, conosco como sujeito absoluto.

Uma subjetividade somente atravessa o seu tempo se se faz para as que a sucedem

mais que um assunto relevante ao pensamento, mas se se torna um sujeito que pode e que

tem o que ainda comunicar. Kierkegaard colocou-nos a par disso e fez a razão olhar para a

humanidade. Por isso, Adão, Abraão, Jó provavelmente nos interessarão. Pois, também

“esses”, tornaram-se sujeitos absolutos, passaram a atuar como sujeitos trans-históricos. Eis

a questão observada por Kierkegaard, recuperada e iluminada por Sartre que passa a

persegui-la como: “o paradoxo estritamente histórico da sobrevivência” (SARTRE, 2005,

p. 12, tradução nossa). A partir daí desenvolve-se a reflexão sartreana bem como a

compreensão da conversão de um histórico mundial em sujeito absoluto.

Acercar-se da trans-historicidade do homem histórico permite que despontem

interrogativas: O quê, em uma existência, pode escapar ao saber e sobreviver à sua

desaparição? Note-se, “escapar ao saber”, pois uma existência pode apresentar-se ao nosso

raciocínio como mais que um objeto, como sujeito absoluto. É possível que a subjetividade

de uma pessoa possa se dar por algum outro meio que não seja a do conhecimento?

A história é manifestação e realização do Espírito em um processo dialético que

constitui uma autoconsciência cada vez maior desse Espírito, esta é a certeza hegeliana.

Contudo, Kierkegaard pergunta se há a possibilidade de uma certeza eterna, a qual evoca

21

Hegel mediante o Espírito Absoluto. Ainda, se existe alguma outra coisa digna de nossa

atenção na história que não seja o puramente histórico e se, com bases em um saber

histórico, é possível uma felicidade eterna.

Se a história é apenas, e não menos complicada, fruto de uma dialética de

afirmação-negação-superação o que faz com que Kierkegaard, por exemplo, possa “saltar a

história”, isto é, “existir” independente do momento histórico? A morte nega no nosso

século o dinamarquês, mas por que não o superou completamente?

A subjetividade kierkegaardiana, entre outras, se apresentou na história e a razão

puramente especulativa tentara superá-la, porém, a única coisa que conseguira foi

apresentar-lhe oposição e classificá-la como não-saber ou um falso saber uma vez que, ao

modo hegeliano, o subjetivo se aliena no objetivo e ambos se realizam numa síntese, o

absoluto. Assim prevê o Sistema, todavia, isto não sucedera aos patriarcas, a Jesus Cristo

ainda que, cientificamente, questiona-se se existiram, se foram, no sentido estrito, históricos

mundiais. Quiçá, o Sistema não conseguirá superar cada um de nós. Assim, a partir desse

imprevisto, que ora o Sistema não perscrutou, ao contrário rechaçou completamente, o

conteúdo do pensamento de Kierkegaard aparece como não-saber denominado de forma

ainda mais dramática de falso saber.

Se o subjetivo não é um momento superado, pergunta-se: O que “sabe” Adão, de

modo geral, os Patriarcas, o que “sabe” Kierkegaard para que deles queiramos saber?

O que “sabiam” os antecessores e contemporâneos desses sujeitos o quererá “saber”

a sua posteridade é importante afinal, no que diz respeito a Kierkegaard, por exemplo, “é

que ele não contradiz, em sua vida pessoal, o conteúdo do Saber, mas [...] desqualifica o

saber do conteúdo” (SARTRE, 2005, p. 14, tradução nossa). Sören não contesta o

“conteúdo do Saber” porque entende que há algo no conteúdo, isto é, o próprio saber, do

22

qual o ser humano não deve prescindir talvez por admitir que o saber é o que permite ao

gênero humano viver segundo sua própria natureza distanciando-o assim do puramente

instintivo do qual os demais animais não aspiram separar-se. Talvez Sören concordasse

com a idéia segundo a qual “não agir com a razão é agir contra a natureza de Deus”10

. Não

obstante, Sören desclassifica o “saber do conteúdo” o que nos remete ao típico conteudista.

Numa analogia comparamo-lo a um quarto de entulhos: está cheio, praticamente entupido

de coisas inúteis. Mas, teriam os entulhos inutilidade em si mesmos? Não, o “dono” dos

entulhos acaba por dar-lhes um caráter de inutilidade e de imprestabilidade, pois não

consegue realizar a síntese entre sua existência e eles. De modo paradoxal, a existência não

é um conteúdo e sim liberdade, possibilidade, um completo Nada, se contraditoriamente se

necessita de um conceito, existir equivale a um constante vir-a-ser, a um poder-se.

A humanidade rejeitou a tarefa de existir pela liberdade, recusou-se a viver a diária

do poder-se e entregou-se à vida da razão. Eis o que “sabe” Adão, foi o primeiro a

enveredar-se pelas sendas do saber, o primeiro a entregar-se à resignação da Ética com

bases numa Razão castradora da possibilidade no gênero humano, com poucas exceções,

outros tantos seres humanos entregaram-se dia após dia à aparentemente tranqüila

justificativa da razão, também como Adão preferiram saber a acreditar que tudo é possível,

a viver na fé, a existir como a racionalidade jamais os permitirá que existam, em um pleno

possível.

A opção pelo saber desobriga a humanidade da escolha pela fé, pelo impossível,

pela repetição. Deixa a humanidade angustiada e confusa na busca pela síntese finito-

infinito, temporal-eterno. Kierkegaard nos exorta, já que é impossível existir sem angústia,

10

Essa afirmação é do imperador Manuel II Paleólogo (1350-1425). Da dinastia dos Paleólogos, reinou sobre

o Império Bizantino de 1391 a 1425. Foi autor de muitas obras, dos mais variados assuntos: cartas, poemas,

vidas de santos, tratados teológicos e retórica.

23

a aprendermos a nos angustiar. A partir dessa assertiva, indaga-se: O saber é, entre outros, o

que ensina a angustiar-nos ou o que acentua, senão proporciona, o desesperar na angústia

afastando-nos desta tarefa, o aprendizado? A essa questão cada ser humano poderá

responder com sua existência, o que não quer dizer que Kierkegaard não tenha aplainado o

caminho para aquele ou aquela que deseja compreendê-la originalmente.

Voltemos às reflexões. O Sistema é eminentemente previsão de determinações

ontológicas (SARTRE, 2005, p. 14). Os Indivíduos são variações do Ser, Nele tudo

converge e para Ele todos acorrem. Tudo no Ser está determinado e no que se refere ao

gênero humano seu papel será o de um coadjuvante que corre, sem alcançar, para o papel

de protagonista, mas esse cabe somente ao que É; essa relação será, precisamente, de

conhecimento, isto é, de sujeito-objeto e disto não há como o sujeito escapar.

Em Kierkegaard a relação é outra, não há nem sujeito que conhece e nem objeto a

ser conhecido, há apenas a “realização singular de cada singularidade” (2005, p. 15,

tradução nossa), ou, apenas o subjetivo. E eis o que Abraão tem a nos dizer: o Indivíduo é a

condição necessária de sua existência – o que não equivale dizer que a vida e a criação não

tenham sido outorgadas pelo Criador. Existir como condição de si significa, a nosso ver,

escolher. Enquanto que numa ontologia do ser, os entes estão nele predeterminados e

qualquer esforço do ente “privilegiado” homem é o de quem deseja retornar à fonte, sem

jamais conseguir, para conhecê-la, na filosofia kierkegaardiana o movimento em direção à

fonte criadora é opcional, isto é, a relação que o Indivíduo estabelece com o Criador além

de pessoal, é livre, pois essa é oriunda de sua liberdade, de sua escolha. A criatura não

estabelece com o Criador uma relação de quem o deseja conhecer, compreender, ao

contrário, opta pela relação, pois a partir dessa opção poderá existir verdadeiramente. Na

relação entre o Criador e a sua criatura não há nada para ser superado ou qualquer síntese

24

para ser realizada, há o Indivíduo e Deus, o primeiro acorre ao segundo por liberdade e não

por medo ou constrangimento. Denominado de estádio religioso da existência este é o

ponto mais alto ao qual um Indivíduo pode chegar e assim poder estar em sua não-verdade.

A cada vez que o ser humano age por liberdade, não coagido pelas realidades nem

estética e nem ética, mas, unicamente, pela liberdade ele se encontra na verdade. Aqui há

um aspecto importante enunciado por Sartre:

[...] a verdade subjetiva existe. Não é saber, e sim autodeterminação; não se a

definirá nem como uma relação extrínseca entre conhecimento e ser, nem como a

marca interna de uma adequação, nem como a indissolúvel unidade de um

sistema. „A verdade – disse Kierkegaard – é o ato da liberdade‟. Eu não poderia

ser minha própria verdade, mesmo que suas premissas estejam dadas em mim de

antemão: revelá-la é produzi-la, ou produzir-me como eu sou, ser para mim

aquilo que tenho que ser. O que Kierkegaard põe de manifesto é que a oposição

do não-saber ao saber é a oposição de duas estruturas ontológicas. O subjetivo

tem que ser o que é, é uma realização singular de cada singularidade. [...]. A

verdade transforma sem ensinar nada, e não aparece mais que ao fim de uma

transformação. É um não-saber, mas é uma efetividade, uma aplicação

perspectiva, que está presente a si na medida em que se realiza.” (SARTRE,

2005, p.15-16, tradução nossa)

Além disso, “o momento de verdade subjetiva é um absoluto temporalizado, mas

trans-histórico. A subjetividade é a temporalização mesma; é o que me acontece, aquilo que

não pode ser mais que acontecendo” (2005, p. 16, tradução nossa).

A partir disso é que podemos pensar num “Kierkegaard vivo” ou num Adão

contemporâneo. Esses Indivíduos ao produzirem suas existências em um ato de liberdade,

em “um absoluto temporalizado” sem o qual não é efetividade; tornaram-se trans-

históricos, abandonaram a categoria de meros objetos na história e, mesmos mortos,

continuam a comunicar. O modo pelo qual vivem esses Indivíduos é o modo daqueles que

subsistem através dos tempos porque, como dito acima, forjaram suas existências em atos

de liberdade.

25

O sujeito pode ser assim pensado porque, para Kierkegaard, há distinção entre o ser

do saber e o ser do sujeito vivente (SARTRE, 2005, p. 17). O ser do saber é “o ser objetivo,

o ser como exterioridade”; o ser do sujeito é “o ser como interioridade”. Conforme Sartre o

ser objetivo ao pretender tecer conhecimentos sobre o ser subjetivo produz não menos que

um falso saber acerca dele. Um desses consiste na pretensão de converter o subjetivo em

objeto do saber. Em A felicidade eterna prometida pelo Cristianismo (KIERKEGAARD,

1983, tradução de Álvaro Nunes) o pensador dinamarquês afirma: “O problema objetivo

consiste numa investigação acerca da verdade do Cristianismo. O problema subjetivo diz

respeito à relação do indivíduo com o Cristianismo”. Apesar de Sartre em O Universal

Singular isentar-se, como um fiel ateu, de fazer referência ao “problema do Cristo

encarnado” entenda-se, em quais termos, Sören distingue objetivo e subjetivo. Para nós,

salvaguardadas as devidas proporções, o objetivo-subjetivo de Kierkegaard não difere,

substancialmente, do objetivo-subjetivo de Sartre.

Contudo, Kierkegaard com sua existência não conseguiu vencer completamente o

paradoxo, todo sujeito há de um dia converter-se em objeto do saber, eis a face do paradoxo

da qual o filósofo dinamarquês pensou que se esquivaria ao tornar-se sujeito absoluto.

Finito, Sören quer se transmutar num absoluto trans-histórico; a essa ambiguidade responde

com completa paixão.11

(SARTRE, 2005, p. 17)

11

Para Frederico Schwerin Secco da UENF, de modo geral, o que leva alguém a dedicar uma vida inteira à

reflexão é a paixão. “No caso de Kierkegaard, trata-se de uma paixão infinita, pois ele não dedicou apenas a

própria vida a esta tarefa, mas a vida que deveras viveu somada à vida de todos os seus pseudônimos. O

conjunto de sua reflexão, sob o próprio nome ou sob outras rubricas, tinha como questão fundamental a

existência. Embora ele tivesse afirmado em seu escrito Ponto Explicativo de Minha Obra Como Escritor que

a tarefa de sua vida tinha sido refletir sobre o tornar-se cristão, poderíamos afirmar, sem contradizer suas

palavras, que a sua tarefa teve um alcance muito maior. Esse autor pretendeu pensar a existência tanto a partir

da tradição do pensamento ocidental como da sua própria experiência pessoal, dentro de um horizonte

dialético que privilegiava a descrição das esferas da existência com referência a uma finalidade (telos)

específica, qual seja, o tornar-se consciente da própria vida a partir da revelação cristã. (SECCO, 2005, p. 88)

26

O dinamarquês desejava mostrar a Hegel que é impossível que o ser exterior supere

o sujeito interior, mas, como dito, “a subjetividade é a temporalização mesma” (SARTRE,

2005, p. 16, tradução nossa) e ao final da aventura resta, ainda que a autora desta

dissertação admita em parte, o sujeito convertido em exterioridade.

Sören Aabye Kierkegaard é irrepetível e para o pensador francês mesmo que outras

tantas consciências infelizes se irrompam e cada um tente combatê-la com a vida e

confirmá-la com a morte (SARTRE, 2005, p. 19) não conseguirá reproduzir a maneira

como Kierkegaard colocou-se perante a sua própria consciência infeliz.

O mérito de Sören, segundo Sartre, consiste em formular o problema, a saber: “o

paradoxo estritamente histórico da sobrevivência” (SARTRE, 2005, p. 12, tradução nossa)

com sua existência mesma. Crê-se que Sören tenha fracassado na tentativa de estabelecer-

se sujeito absoluto.

“Os ateus poderão, ou bem [...] rejeitar toda relação com esse absoluto e optar

firmemente por um relativismo, ou bem definir de modo distinto o absoluto na

história, ou seja, ver em Kierkegaard o testemunho de um falso absoluto ou o

falso testemunho do absoluto. Os crentes declararão que o absoluto pretendido é,

certamente, o que existe, mas, que logo como Kierkegaard quer estabelecer a

relação do homem histórico com a trans-historicidade, essa relação fica desviada,

se perde, apesar dela mesma, no céu do ateísmo. Tanto em um caso como no

outro, o intento é denunciado como fracasso.” (SARTRE, 2005, p. 19,

tradução e grifos, em negrito, nossos)

Visto a partir da perspectiva do “fracasso” Kierkegaard, considerado enquanto

objeto é um significado, portanto, “é certo que a morte se apresenta principalmente como

uma queda do sujeito no objetivo absoluto” (SARTRE, 2005, p. 20, tradução nossa). Mas,

mediante seus escritos, Sören “se apresenta como significante”, coloca-se no horizonte de

27

nosso olhar, entrega-se à nossa interpretação e permite que a nossa existência encontre a

sua ou que ele e nós tornemo-nos contemporâneos.

Além disso, Sören:

“[...] enquanto não-ser, possui o caráter absoluto da negação [...] pelo fato de que

uma pretensão não se tem realizado na objetividade, nos remete à subjetividade.

Ou mais exatamente: mediante negações moderadas [...] as interpretações do

fracasso tendem a reduzi-lo ao positivo, a fazê-lo desaparecer diante da realidade

afirmativa de vitória do Outro – quem quer que este seja” (SARTRE, 2005, p.

20-21, tradução nossa).

Objetividade e subjetividade se contrariam e se contradizem. A razão ao não

conseguir capturar a subjetividade como absoluto histórico senão como “fracasso” confere-

lhe o caráter de falso saber. O que não é “objetivo”, o que é dado na negação é considerado,

portanto, como um absoluto negativo. Não obstante, Kierkegaard (ou outro Indivíduo)

quando “ressuscitado”, isto é, interpretado nos permite descobrir “o que nenhum saber pode

dar diretamente, porque nenhum progresso histórico pode recuperá-lo: o fracasso vivido na

desesperação. [...] a subjetividade não é nada para o saber objetivo, pois é não-saber; e,

contudo, o fracasso mostra que aquela existe absolutamente” (SARTRE, 2005, p. 21,

tradução nossa). Kierkegaard existiu e fora capturado pela morte, porém a história a qual

Sören escapa, pois não é objetividade acabou, paradoxalmente, tornando-o por causa de sua

vida, de seu pensamento, de sua práxis enfim, por sua existência, um “ser” histórico, isto é,

um agente da história (SARTRE, 2005, p. 21). Um histórico universal que por causa de sua

subjetividade singularizou-se; Sören é este Universal, dono de uma “consciência infeliz”

Singular, tal como: Adão, Abraão, Jó e alguns Outros.

28

O “recado” dessas consciências infelizes ou desses “mortos”, “é escandaloso por si

mesmo” (SARTRE, 2005, p. 21), pois em meio ao saber o pensamento que, ainda,

expressam constitui-se como não-saber e, pela dialética dual kierkegaardiana na qual não é

possível nenhuma síntese, segundo Sartre “ou bem nossa interrogação [acerca do

pensamento desse morto] desaparece, ou bem se transforma, convertendo-se ela mesma em

pergunta do não-saber ao não-saber. Isto significa que o que interroga é posto em questão,

em seu ser, pelo interrogado” (SARTE, 2005, p. 21, tradução nossa), ou seja, ao

inquirirmos um Universal singular, como Kierkegaard, somos por ele mesmo inquiridos; a

nossa subjetividade é posta em questão e a indagação retorna ao sujeito que a fez não mais

como uma indagação que se dirige para o exterior, mas que se converte em interioridade no

indagador.

A tendência à exterioridade que insiste em aparecer na Filosofia faz Kierkegaard

parecer neste campo um antifilósofo. Mas, uma importante observação faz a Professora

France Farago que pensamos corrobora com essas reflexões até o momento, tecidas:

“[...] para Kierkegaard, os limites da filosofia consistem no fato de ela se dirigir à

razão, e não à pessoa. Graças à mediação da generalidade do conceito, imagina o

metafísico poder fugir da esfera do pensamento da existência, ao passo que a

verdade deve se depreender da vida e do esforço que ela implica. Kierkegaard,

porém repudia essa pretensão de efetuar o inventário enciclopédico dos saberes e

dos poderes humanos, esboçando esse domínio pronto a dispor do ser e do ente

na certeza proporcionada pelo desdobramento de um poder de conhecimento

seguro de si. Não é tanto à essência que sua filosofia da existência se opõe, mas

ao Sistema, ou seja, à filosofia como ciência, inclusive do Absoluto!”

(FARAGO, 2006, p. 68).

Do prisma de uma filosofia da razão o pensamento de Kierkegaard não soa apenas

radical, mas carente de racionalidade. Contudo, o “absurdo” é mesmo irracional, pois não é

dado à objetivação. A matéria a qual a razão deveria regular mergulha nas profundezas de

29

um irracional, o qual Kierkegaard chama “paradoxal” (FARAGO, 2006, p. 70). Ainda,

conforme France Farago, para que o ser humano possa chegar ao sentido existencial não

pode pensar em termos de racionalidade. Para ilustrar, recordemos Abraão que não fora

„racional‟ ao escolher sacrificar Isaac. Ou, recorde-se o próprio Kierkegaard que apesar de

amar Régine e ser por ela correspondido deixa-a e se faz parecer, diante dos olhos da

amada, o mais vil dos homens.

A filosofia do dinamarquês é uma filosofia do absurdo que leva ao absurdo. Ao

partir dos dogmas cristãos não pretende negá-los, como fariam as ciências, nem pretende

prová-los, como a Dogmática12

. Os dogmas cristãos – por exemplo, a imortalidade da alma

– observa Sartre,

“não pode ser objeto de saber, mas é, pelo contrário, uma certa relação absoluta

da imanência à transcendência, que não se pode estabelecer mais que no vivido e

pelo vivido. E, claro está, isto vale para os crentes. Mas para o incrédulo que eu

sou, isto significa que a verdadeira relação do homem com seu ser não pode ser

vivida na história mais que como uma relação trans-histórica.” (SARTRE,

2005, p. 22, tradução e grifo nossos)

Para Sartre, “relação trans-histórica” porque o movimento existencial de

constituição do sujeito é processo de um projeto totalizante que nunca chegará a realizar-se,

um “em-si” irrealizável.

Porém, em Kierkegaard, o ser humano se realiza na opção pela fé que tal como a

existência não pode oferecer mais que incerteza. A existência compreendida pela fé é pura

possibilidade. Diante disso, o que sucederá ao que existe na fé é impossível precisar, pois

12

Pelo menos não a Dogmática de Vigilius Haufniensis, o “autor” de O Conceito de Angústia. Para ele, a

Dogmática é uma “teoria da Redenção, cuja explicação dogmática esclarece o pressuposto da pecabilidade”

(KIERKEGAARD, s/d, p. 89). “Se a Dogmática começa por querer explicar a pecabilidade ou provar a sua

realidade, nenhuma Dogmática sairá daí, toda a sua existência será vaga e problemática.” (ibidem, nota)

30

mediante a fé tudo é possível ou indeterminado. Não existindo na fé o ser humano é um

esteta ou um ético e conhecemos quais os caminhos que as escolhas pelo estético ou pelo

ético levam. Contudo, concretamente, a opção religiosa é completa indeterminação. O

“nada” que o sujeito é transforma-se em “tudo” que Sartre somente pode pensá-lo na

história como uma relação trans-histórica.

Como crente que é Kierkegaard insiste que a fé e suas implicações são vivenciadas

no existir mesmo do Indivíduo e se a partir dela o Indivíduo caminha em direção à

transcendência isto se dá devido ao caráter singular da fé.

Ao saber o dinamarquês responde com a fé. A fé é a expressão encontrada pelo

filósofo para desestimar o saber no que tange a existência. Se a liberdade é a condição da

existência somente a fé pode ser sua expressão possível já que o saber é precisão e

delimitação.

Sören dá testemunho de seu próprio pensamento e isto o difere de Hegel, o qual dá

testemunho do saber e por ele é dissolvido (SARTRE, 2005, p. 23). Por isto é que de Hegel

só restou o Sistema enquanto que de Sören, após sua desaparição, o seu pensamento

aparecido insiste em dar testemunho do pensador (ibidem, p. 22). Isso para dizer que o

absoluto não se dá fora do mundo. Ele é compreendido pelo existente ao modo como sua

existência se situa, isto significa que as condições transcendentais dão-se na realidade

mesmo do Indivíduo e não ao final de um percurso. Por isso mesmo, não podemos acusar o

pensamento kierkegaardiano de não-histórico. Para Sartre ele é “duplamente histórico:

capta a envoltura13

como conjuntura”, isto é, Kierkegaard capta as determinações de seu

13

“Contra o começo não-humano e fixo de Hegel, Kierkegaard propõe um início móvel, condicionado-

condicionante, cujo fundamento é muito parecido ao que Merleau-Ponty [1908-1961] chamava a „envoltura‟.

Estamos envoltos: o ser está detrás de nós e diante de nós. O vidente é visível e não vê mais que em razão de

sua visibilidade. „o corpo – disse Merleau-Ponty – está preso na tela do mundo, mas o mundo está feito do

tecido de meu corpo‟.” (SARTRE, 2005, p. 23, tradução nossa)

31

tempo – o cristianismo, mais concretamente, a comunidade cristã da Dinamarca em suma,

“o ser que o faz” (SARTRE, 2005, p. 23, tradução nossa) e ao definir seu pensamento como

“identidade do começo do pensamento e do pensamento do começo” pretende dizer,

parece-nos, que o começo do pensamento identifica-se com o não-saber, num sentido

primitivo, a crença e ainda, se a considerarmos uma dimensão do pensamento a fé é, por

seu turno o “pensamento do começo”.

Desse modo, dupla também é a universalidade da qual Kierkegaard dá testemunho.

Mediante o seu existir, o homem histórico, transforma a universalidade das determinações

históricas: “Tudo é”, em uma situação particular “Alguma é”; e a necessidade geral, “É

necessário que...” converte-se em contingência “Pode ser que...”. Ao sermos envolvidos por

algumas determinações outras tantas nos escapam de modo que o homem histórico somente

possa existir de maneira contingente. Portanto, o “fundamento da singularidade” não pode

ser mais que um “acaso”, isto é, as condições históricas dadas anteriores ao e em nosso

existir. Eis o que incomoda o filósofo dinamarquês, eis o seu e o nosso “ferrão na carne” –

no fundo, o que angustia Sören é o fato de não conseguir resposta para seus conflitos no

saber donde se pode inferir que o saber não prevê o Indivíduo e que a verdade não pode ser

mais que subjetiva dado o “acaso” no qual o Indivíduo é envolvido. Desse modo, da

possibilidade de uma certeza eterna, Sartre responde por Kierkegaard afirmando que: “não

há absoluto histórico mais que se está enraizado no acaso” (SARTRE, 2005, p. 27, tradução

nossa). “A necessidade hegeliana não é negada, mas não pode encarnar-se sem fazer-se

contingência opaca e singular; em um Indivíduo a razão da história é vivida

irredutivelmente como loucura, como acaso interior, que expressa encontros de

casualidade” (ibidem). A existência singular contraria qualquer possibilidade de

necessidade universal nos termos que propõe Hegel, pois ela é pura casualidade.

32

Mas o quê acontece a Kierkegaard? Não é ele mesmo “universal”? Por seu existir

não se tornara universal? Sim. Conforme Sartre, o universal vem ao mundo pelo homem

singular e o acaso toma este homem singular como necessidade pelo qual ele possa

aparecer. O “universal singular”, portanto, é a maneira do ser humano existir, enquanto

existindo ele atribui significado. O maior e mais autêntico sentido que o ser humano pode

atribuir à sua existência é o significado religioso ou de “como” irá “se deixar elevar do

próprio coração do tempo à vida eterna” (FARAGO, 2006, p. 79).

“Deixar-se elevar” é tarefa árdua. Nessa tarefa a angústia encontra o seu fomento.

Essa “aparece como interiorização do ser, ou seja, de sua contradição” (SARTRE, 2005, p.

28, tradução nossa). Anterior à síntese, há o estado de ignorância não obstante, uma leve

perturbação palpita no coração do homem, a angústia prenuncia-se. No estado de

ignorância ou inocência o ser humano é alma, corpo e potencialmente espírito, pois este

ainda não se deu. Quando o espírito estabelece a síntese, sem a qual o ser humano é apenas

imediatidade, o conflito oriundo dos opostos, alma e corpo, aparece. O primeiro dos

elementos, a alma aponta o ser humano para o infinito enquanto que o segundo, o corpo

circunscreve-o no finito. A angústia deriva dessa contradição: a possibilidade do infinito na

finitude. A relação alma-corpo-espírito retira o ser humano da inocência-ignorância, a partir

dela o homem é consciente de si, o seu eu é mediatizado pela reflexão. A partir de então,

toda a existência será o esforço de administrar a contradição, finito-infinito, corpo-alma. A

angústia instala-se, portanto, no gênero humano mediante a consciência que ele tem dessa

contradição.

Não há o existir sem angústia e Sören Kierkegaard apercebeu-se disso muito

profundamente. Mesmo em estado de inocência-ignorância, no qual Adão ainda não tivera

que se fazer, pois a síntese ainda não havia se dado, um perturbar na alma, que ainda não é

33

propriamente angústia, se assenhora de Adão e de Eva. O disposto para o qual o ser

humano fora criado – “ser fecundo e prolífico, encher a terra e dominá-la, submeter os

peixes do mar, os pássaros do céu e todo animal que rasteja sobre a terra” (Gen. 1, 28) –

sugere ao homem, mesmo em estado de inocência, mesmo que ele não saiba precisar o que

é14

, que a existência exigirá dele mais que a imediatidade. Contudo, veio a síntese e o ser

humano passou a existir pelo espírito e Deus, desejoso de mostrar que a liberdade está no

seio mesmo da criação apresenta-lhe o interdito: “não comerás da árvore do conhecimento

do que seja bom ou mau” (Gen. 2, 17). “Bom” ou “Mau” é modo como a consequência de

nossa liberdade, de nossa escolha se apresenta donde se pode inferir que Deus não intenta

limitar as escolhas humanas mas apenas demonstrar que “ser” pelo espírito equivale a

existir em meio à angústia. Portanto, o homem somente é quando faz escolhas, ainda que

seja a escolha da inércia, pois a liberdade se dá mediante o ato.

Crê Sartre, que quem proíbe e sugere a Adão, em estado de inocência-ignorância,

fazer-se Adão seja Deus, mas se Deus proíbe e/ou sugere a Adão tal coisa não estaria Deus

a escolher pelo ser humano? Adão não entendera plenamente o que Deus proibira e

prescrevera como punição afinal, o que existe somente é compreendido no vivido, antes

disso há somente o nada ou alguma coisa que não se sabe bem o que é. Apresentam-se as

“condições” divinas no existir de Adão e Eva e tudo o que estas condições descobrem é a

experiência da imensidão da existência. No entanto, o interdito lhes será conhecido, vivido

em sua plenitude, não se satisfazem em apenas “saber” as suas consequências, mas

escolhem fazer a experiência da “morte” perante outros possíveis. Existir ou fazer-se livre é

algo do qual só podemos compreender no vivido, não há um conhecimento prévio de tal

14

Esse não saber precisar o que é, é a “angústia peculiar da inocência, que por certo não é outra coisa que a

reflexão da liberdade em si mesma e sem sair de sua possibilidade.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 111,

tradução nossa)

34

fato, isto é, o “vivido não pode ser previsto” porque a existência é em ato, ou, porque “a

existência precede a essência”.

É certo que a independência humana não pode coexistir com a “dependência divina”

ou, em outras palavras, ao optar por fazer-se Adão o ser humano passa a existir por “sua

conta e risco”; não que Deus tenha se retirado da constituição do homem, contudo retirou-

se do horizonte de sua liberdade, isto é, a “Onipotência” não será mais “alvo” da liberdade

do homem. Ao retirar-se da liberdade humana qualquer tentativa do Indivíduo de

restabelecimento de sua relação com Deus soa, não menos, que absurda e a fé, torna-se

sinônimo de loucura. Será que pode ser diferente? Por mais insana que a relação com Deus

possa parecer, é necessário considerar que Abraão por ousar escolher mais que o “previsto”

ganhou uma “nação” inteira (Gen. 17, 5); Jó, por sua não-resignação teve elevado ao dobro

todos os seus bens (Jó 42, 10 b).

Jaz a angústia: da possibilidade da liberdade, eis porque Adão nos é contemporâneo.

Como ele, escolhemos ser humanos, nada mais, nada menos. Para Sartre, este é o acaso do

qual padecemos: “a trama da vida subjetiva, o que Kierkegaard chama paixão – e Hegel,

pathos – não é outra coisa que a liberdade instauradora do finito e que é vivida na finitude

como necessidade inflexível” (SARTRE, 2005, p. 29, tradução nossa).

A essência da existência humana é o homem enquanto Indivíduo que como tal

consiste em ser si mesmo e a espécie inteira, de maneira que toda a espécie participa no

Indivíduo e o Indivíduo em toda a espécie (KIERKEGAARD, 2007, p. 66, tradução nossa).

“Se não se faz ênfase nisto, então caímos na singularização numérica do

pelagianismo, o socinianismo e a escola filantrópica, ou nos perdemos no

fantástico. O prosaísmo da razão consiste em fazer que a espécie se dissolva

numericamente num singular irrevogável. Por contraste, a fantasiação consiste em

fazer gozar Adão a bem-intencionada honra de ser mais que a espécie inteira, ou a

duvidosa honra de estar situado fora da espécie. Em todo momento, pois, o

35

indivíduo é si mesmo e a espécie. Esta é a perfeição do homem vista como

estado.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 67, tradução nossa)

Porém, essa perfeição do homem, a qual consiste em o Indivíduo ser si mesmo e a

espécie, radica uma contradição, isto é, “o indivíduo tem história, e se a tem o indivíduo

também a tem a espécie” (KIERKEGAARD, 2007, p. 67, tradução nossa); todos os

indivíduos possuem a mesma perfeição, por isso não podemos separá-los uns dos outros

como números, caso contrário o que seria do conceito de espécie? Um fantasma, responde

Kierkegaard. “Todo indivíduo está essencialmente interessado na história de todos os

demais indivíduos [...] como na sua própria. Por isso a perfeição intrinsecamente consiste

na plena participação da totalidade.” (ibidem)

Por mais que a história do gênero humano progrida, o Indivíduo começa sempre do

início – por ser si mesmo e a espécie – o que faz dele o motor constante da história da

mesma história da espécie. Vejamos:

“Adão é o primeiro homem, ele é por sua vez ele mesmo e a espécie. Nós não nos

vinculamos a ele em virtude da beleza estética; nem nos associamos com ele em

virtude de um sentimento valoroso [...] nem tampouco é a força do entusiasmo da

simpatia e a persuasão da piedade que nos faz decidir participar a culpa com ele

[...] nem tampouco, finalmente, é a força de uma compaixão obrigada a que nos

ensina a tolerar o que não temos mais que tolerar. Não, nada disso, senão que é a

força do pensamento a que nos impele a não nos separar dele. [...] Adão não é

essencialmente distinto da espécie, pois neste caso não existiria a espécie; nem

tampouco é a espécie, já que também neste caso deixaria de existir a espécie: ele

é si mesmo e a espécie. Por isso o que explica Adão explica à espécie, e vice-

versa.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 68, tradução nossa)

Designamos Adão como o autor do primeiro pecado, mas qual a diferença entre o

primeiro pecado de Adão e o primeiro pecado de qualquer outro homem? Segundo

Kierkegaard, o primeiro pecado, o de Adão, é uma determinação qualitativa, o primeiro

36

pecado é o pecado se, ao contrário, significasse numericamente “um” pecado, então não

haveria história correspondente, isto é, ele não nos diria a respeito, quiçá nossa história, se

houvesse, seria outra. Por ser o primeiro pecado uma determinação qualitativa, o pecado

tem história no Indivíduo e na espécie. “Porque a condição para isso sempre é a mesma,

mas não por isso a história da espécie seja enquanto tal a do indivíduo, nem a do indivíduo

a da espécie, a não ser na medida em que a contradição nunca deixa expressar o problema”,

ou seja, que há a história do Indivíduo sem a espécie e a da espécie sem o Indivíduo.

Não é necessário que Adão tivesse pecado várias vezes, tantas quantas conseguisse,

para que algo novo se produzisse. As coisas são a partir do instante em que adquirem

existência. Para adquirir existência não é necessário que o fenômeno, por várias vezes, se

repita, pois no instante em que existe ele é. O primeiro pecado, o de Adão, não é diferente

do primeiro pecado de qualquer outro homem; “o pecado veio ao mundo pelo primeiro

pecado” e não há distinção se este primeiro refere-se ao de Adão ou ao de qualquer outro

Indivíduo.

O “conceito” de pecado é sempre o presente, o atual. O pecado entra no mundo a

cada vez que um ser humano peca porque está em nossa condição existencial pecar; é

contraditório atribuir esta condição a um único homem ou tratar numericamente o pecado

como a lógica faz a Adão. O conceito fixa a realidade num já sido, o pecado, portanto, não

é um “conceito”, em Kierkegaard ele é ele mesmo, no instante em que existe, uma

qualidade. “A existência da pecabilidade no homem, o poder do exemplo”, como o que se

vê em Adão, “não são mais que determinações quantitativas que não explicam nada, a não

ser que se suponha que um só indivíduo é a espécie inteira, em vez de admitir que cada

indivíduo é ele mesmo e a espécie.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 71-72, tradução nossa;

s/d, p. 48)

37

Pretendendo qualificar, o pensamento quantifica os Indivíduos numa escala de

importância. Com isso, somente Adão teria importância na história e todos os que vieram

após seriam apenas cópias vivenciando uma história que esse os legou. Mas, o movimento

do pensamento kierkegaardiano não consiste uma linearidade, ao contrário, caracteriza-se

por um dinamismo. Para Kierkegaard, a narração genesíaca do primeiro pecado – ainda que

por muitos seja considerada um mito – é a concepção do assunto que encerra consequência

dialética, expressa do seguinte modo: “o pecado veio ao mundo por meio de um pecado”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 72, tradução nossa; s/d, p. 48). Em outros termos, a liberdade

como pressuposto instaura ou não, mediante o salto, o pecado através do Indivíduo; se

assim não fosse, o pecado teria surgido de forma acidental para o qual não haveria nenhuma

explicação, mas como a existência não admite acidentes, já que se encontra circunscrita

pela liberdade, em relação à pecabilidade – a capacidade de pecar – não podemos assentir

que essa anteceda ao pecado, pois teríamos que concordar que a pecabilidade apareceu no

mundo mediante uma coisa distinta do pecado; em vez disso, se apareceu mediante o

pecado, então é este o que a precedeu. Para o nosso autor, “esta contradição é a única que

revela consequência dialética e guarda as rédeas tanto no que se refere ao salto como no

que se refere à imanência – queremos dizer: à imanência posterior” (2007, p. 73, tradução

nossa; s/d, p. 49) dos descendentes de Adão.

Os “filhos” de Adão, como veremos mais adiante, contam com determinações – a

força do exemplo e a propagação do gênero – com as quais não pode contar Adão e o que

isto significa? Significa que por meio delas, as determinações, podemos nos aproximar do

sentido da filosofia do dinamarquês Sören A. Kierkegaard. O filósofo e ensaísta russo Leon

Chestov (1866-1938) apresenta em seu livro Kierkegaard y la Filosofia Existencial de 1965

38

duas passagens que, segundo ele, nos aproximam das fontes da filosofia existencial

kierkegaardiana; uma dessas passagens profere:

“„Nada é mais contrário à fé que a lei e a razão, e é necessário um esforço e um

trabalho enorme para vencê-las. Mas é indispensável fazê-lo se o homem quer

salvar-se. Por isso, quando tua consciência, assustada pela lei, luta contra a justiça

divina, não escutes nem à razão nem à lei; deposita toda tua esperança na graça e

na palavra consoladora de Deus. Comporta-te como se não houvesse ouvido

jamais falar da lei, e penetra na cegueira donde nem a lei nem a razão te

iluminam, mas sim onde brilha tão somente o enigma da fé; ele te anuncia com

certeza que serás salvo em Cristo, fora da lei e apesar da lei. Assim, fora e por

alto da luz da lei e da razão, o Evangelho nos introduz na cegueira da fé, onde

nada tem que fazer nem a lei nem a razão. Tem que obedecer à lei, mas em seu

lugar e em seu tempo. Quando Moisés subiu à montanha no lugar em que se

encontrou cara a cara com Deus, não fez nem aplicou leis. Mas quando desceu da

montanha se converteu em legislador e governou a seu povo segundo a lei‟.”

(LUTERO. Comentários à Epístola aos Gálatas. In: CHESTOV,

1965, p. 257-258, nota, tradução nossa)15

O substrato máximo da existência não é nem a razão e nem a ética – pelas quais

orientamos nossa vida pessoal e social – mas a fé porque essa é a única que depende

unicamente do Indivíduo. Quando as escolhas provêm da fé, o Indivíduo estabelece relação

com Deus e dá testemunho Dele. Por outro lado, se a sua escolha não provém da fé, é

pecado – já que se entregou à razão e à ética – e o Indivíduo estabelece uma relação com o

geral, ainda que Kierkegaard desconfiasse da possibilidade de se romper radicalmente com

esse; não obstante, “a dificuldade para a inteligência constitui justamente o triunfo da

explicação: o pecado entra no mundo subitamente, isto é, mediante um salto; este salto põe

ademais a qualidade” – o novo na existência –, “e no mesmo momento de ser posta a

qualidade tem lugar o salto na qualidade” – a mudança que esse novo na existência provoca

– “de maneira que a qualidade supõe o salto e o salto supõe a qualidade”

15

Por cegueira entende-se, no trecho transcrito, a cegueira moral ou intelectual.

39

(KIERKEGAARD, 2007, p. 72, tradução nossa; s/d, p. 48-49), com outras palavras, o novo

na existência supõe a escolha e a escolha supõe a qualidade.

A partir da qualidade podemos pressupor o pecado da mesma maneira que a partir

do pecado pressupomos a qualidade, pois ambos existem por causa da liberdade: há pecado

porque há liberdade. Segue-se que o movimento kierkegaardiano seja dinâmico, dinamismo

o qual Hegel não teria, plenamente, alcançado com as unidades denominadas Tese, Antítese

e Síntese porque não se trata apenas “de um movimento pelo qual realidades novas se

explicitam, se deduzem graças à contradição, à oposição que existe na realidade anterior”

(NÓBREGA, 2005, p.43). Trata-se de algo que se institui a cada momento cuja finalidade

não é a consumação de um Espírito Absoluto, mas a presença de um espírito finito,

individual e singular; observa Kierkegaard que para compensar o mito que é um escândalo

para a inteligência, “a mesma inteligência inventa um novo mito, negando o salto e fazendo

do círculo uma linha reta [...] começa por fantasiar um pouco sobre como seria o homem

antes da queda, e à medida que aquela desata a falar sobre o particular sem mais nem

menos, insensivelmente vai-se convertendo a suposta inocência em pecabilidade”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 72-73, tradução nossa; s/d, p. 49).

A razão especulativa propõe o pecado como consequência da capacidade de pecar.

No entanto, a pecabilidade não é algo necessário no sentido que dela se segue,

obrigatoriamente, o pecado sem nos deixar escolha; supor isso implica considerar uma

imperfeição divina na criação do homem, o homem teria sido criado imperfeito. Ademais,

considerando que o pecado é em ato e de fato enquanto que a pecabilidade é somente

possibilidade a origem dessa encontra-se naquele. A pecabilidade aparece sempre que o

pecado se torna existente, portanto a pecabilidade é possibilidade, atualizada sempre que

introduzimos o pecado no mundo, eis o movimento! “O pecado original visto em Adão é

40

com exclusividade aquele primeiro pecado. Será acaso Adão o único indivíduo que não tem

história? Então a espécie começaria com um indivíduo que não é um indivíduo, com o qual

ficaria anulado tanto o conceito da espécie como o de indivíduo.” (KIERKEGAARD, 2007,

p. 74, tradução nossa; s/d, p. 50)

O gênero humano terá começado de algum Indivíduo histórico, portanto, que este

seja Adão não por arbitrariedade, mas “se qualquer outro indivíduo da espécie pode

significar com sua história algo para a história da raça humana, então também Adão pode

fazê-lo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 74, tradução nossa; s/d, p. 50), contudo o significado

de Adão para a história não deve restringir-se ao primeiro pecado, do qual é autor, senão “a

história haveria passado no mesmo momento de iniciar-se” (2007, p. 74, tradução nossa;

s/d, p. 51). O significado de Adão deve ser esse o qual consiste em a espécie não começar

de novo com cada Indivíduo, mas cada Indivíduo começar de novo com a espécie (2007, p.

75; s/d, p. 51), naturalmente não se trata aqui de abandonar o geral, mas a principiá-lo num

particular que não se generaliza, ao contrário, se singulariza; “é claro que a pecabilidade da

espécie tem uma história. Não obstante, esta história vai avançando segundo determinações

quantitativas, enquanto o indivíduo participa nela com o salto da qualidade. Esta é a razão

porque a espécie não comece de novo com cada indivíduo, pois neste caso não existira a

espécie” (ibidem).

Vê-se, então, que a história não surgiu de algo geral e abstrato (Ideia) do qual se

desvinculou (Natureza) para então se particularizar (Espírito). A história se faz a partir de

um particular que se singulariza, por isso o Indivíduo importa ao gênero humano e esse

importa ao Indivíduo, pois enquanto ele começa o gênero progride. Do fato o qual cabe ao

Indivíduo recomeçar o gênero humano, advém a participação do Indivíduo na totalidade. A

41

pecabilidade do gênero humano tem uma história no Indivíduo que a atualiza ou não

através do salto.

Quanto maior é o número de seres humanos, mais evidente a pecabilidade se torna,

pois a capacidade de pecar é uma determinação quantitativa da espécie que nenhuma

qualidade produz a não ser por força do Indivíduo, portanto não devemos dar à

descendência uma importância a qual ela não tem, pois essa “não é mais que a expressão da

continuidade dentro da história da espécie, a qual nunca deixa de mover-se segundo

determinações quantitativas, e por isso mesmo de nenhum modo é capaz de produzir um

indivíduo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 75, tradução nossa; s/d, p. 52), mas supondo que

não descendêssemos de Adão o quê nos ocorreria? “Se o segundo homem não descendesse

de Adão, não seria o segundo homem, senão uma repetição vazia e, em consequência,

tampouco haveria daí surgido a espécie nem o indivíduo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 76,

tradução nossa; s/d, p. 52), pois estaria o ser humano naquela condição a qual seria apenas

“estátua isolada, sem mais definição que a da indiferente categoria do número [...] cada

indivíduo teria sido no mais alto grau si mesmo, não si mesmo e a espécie; nem tampouco

teria chegado a ter história” (ibidem).

Uma determinação quantitativa, por exemplo: a descendência, é incapaz de produzir

uma qualidade. O gênero humano existe mediante uma qualidade. Adão foi um Indivíduo

logo, a humanidade originada a partir dele produz-se como qualidade o que equivale a dizer

que tem uma história da qual participa, afeta e é afetada. Uma determinação quantitativa

pressupõe unidades numéricas; a individualidade supõe a possibilidade, a liberdade.

“[...] a história da humanidade prossegue tranquilamente em seu caminho, ao

longo do qual nenhum indivíduo começa no mesmo ponto em que o outro

começou, enquanto que cada indivíduo começa do começo e, no mesmo instante,

42

está lá onde ele deveria começar na História.” (KIERKEGAARD, 2010, p.

37; s/d, p. 53)

Um Indivíduo não começa do mesmo lugar que outro. A existência singular

constrói-se só, na dinâmica da liberdade; o Indivíduo ao instaurar a qualidade passa a se

fazer, fazendo-se o gênero humano continua a história. Isto nos revela o mito adâmico:,

circunscritos pela temporalidade, o único “lugar” no qual os Indivíduos podem se

“encontrar” é na História, no tempo, mas sempre a partir de pontos diferentes; nisto

consiste a originalidade em tornar-se Indivíduo.

O mito da razão nega, ao homem, as condições de compreender-se original e lhe

estabelece uma Ética da qual lhe dependerá a vida e o sentido que a essa atribuirá, pois

nada na existência humana é imediato, como dissemos tudo é fruto de uma escolha, da

atividade da liberdade – trata-se de uma evidência lógica. Em Kierkegaard, há um conceito

que difere do conceito de imediatidade; tal conceito é o de inocência, o qual encontra-se na

Ética. “O conceito de imediatidade tem seu lugar na Lógica, mas o conceito de inocência na

Ética, e cada conceito deve ser tratado a partir da ciência a que pertence, quer o conceito

pertença à ciência e nesta se desenvolva, quer venha a ser exposto ao ser pressuposto”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 38; s/d, p. 54).

Resta-nos considerar, sob a perspectiva ética como enfatiza Kierkegaard, o caráter

da inocência e como se pode perdê-la.

“Ora, é antiético dizer que a inocência deva ser superada, pois ainda que o fosse

no instante em que viesse a ser mencionada, a ética não permite esquecer que a

inocência não pode ser anulada senão pela culpa. Se alguém fala, pois, da

inocência como de algo imediato, e com a rudeza indiscreta da lógica deixa

desaparecer esta coisa volátil, ou com a sensibilidade da estética comove-se por

ela ter sido e ter desaparecido, está sendo apenas [“espirituoso”], esquecendo-se

do essencial.

43

Portanto, como Adão perdeu a inocência pela culpa, assim a perde todo e

qualquer homem. Se não foi pela culpa que a perdeu, tampouco foi a inocência o

que perdeu, e se ele não era inocente antes de tornar-se culpado, então jamais se

tornou culpado.

No que concerne à inocência de Adão, não há falta de toda sorte de

fantásticas representações [...]. Quanto mais se vestia Adão com roupagem

fantasiosa, mais se tornava inexplicável que pudesse pecar e mais horrível ficava

o seu pecado. [...] mas não se captava o essencial da questão em termos éticos.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 38-39; s/d, p. 54-55)

O que passou despercebido aos teólogos para negligenciar o ponto mais importante,

na perspectiva ética, da inocência? Que ponto será este? Os teólogos fizeram da

humanidade a observadora da culpabilidade por isso, a humanidade tece sórdidas fantasias

a respeito de Adão e da “mãe de todos os viventes”, Eva. Mas este lugar, de espectadora da

culpa, explicita uma contradição quando o ser humano lança mão de uma conjunção

condicional “se” a fim de especular como seria se Adão não tivesse pecado. Para

Kierkegaard, um inocente jamais faria tal pergunta por que ignora a culpa. Somente o

culpado pode formulá-la e ao fazê-la peca, pois pretende esquivar-se da culpabilidade e que

ele tenha perdido a inocência pela culpa (KIERKEGAARD, 2010, p. 39; s/d, p. 55-56).

“A inocência não é, pois, como o imediato, algo que deva ser anulado, cuja

destinação é ser anulado, algo que para falar propriamente não existe, e que só

vem a existir pelo fato de ser anulado, isto é, vem a existir como aquilo que

existia antes de ser anulado e que, agora, está anulado. [...]. A inocência é algo

que se anula por uma transcendência, justamente porque ela é algo (ao contrário,

a expressão mais correta para o imediato é a que Hegel usa para o puro ser, é

nada), e, por isso, quando a inocência é anulada por uma transcendência, surge

daí algo de completamente diferente, enquanto que a mediatidade é precisamente

a imediatidade. A inocência é uma qualidade, é um estado que pode muito bem

perdurar, e por isso a pressa lógica para vê-la anulada não significa nada [...]. A

inocência não é uma imperfeição, na qual não se possa permanecer, pois sempre

se basta a si mesma [...]”. (KIERKEGAARD, 2010, p. 39-40; s/d, p. 56-

57)

44

A inocência, portanto, é o estado de quem ainda não pecou, não se fez culpado. Por

isso, somente se tem consciência dela a partir do momento em que está destruída, à medida

que a culpa não é mais ignorada, porque o ser humano tornou-se culpado. O Pensador

chama a atenção para a ação de se desejar retornar ao estado de inocência. O desejo16

, aqui,

constitui um doce engano porque somente pode desejar a inocência quem a perdeu, isto é,

quem é culpado. “A narração do Gênesis também dá, agora, a verdadeira explicação da

inocência. Inocência é ignorância. Não é, absolutamente, o ser puro do imediato, mas é

ignorância” (KIERKEGAARD, 2010, p. 40; s/d, p. 57).

O que caracteriza a inocência é a ignorância do pecado. Não porque a liberdade se

esconda ao Indivíduo, mas porque o ser humano não tem a consciência em si de que ela

existe, ou, de que ele seja liberdade. Em nada a ignorância em Kierkegaard se compara à

ignorância socrática, pois nada tem a ver com ignorância, aquilo que observado de fora,

apareça como destinado ao saber (ibidem). Para o filósofo dinamarquês, “a

pecaminosidade[17]

tem sua determinidade quantitativa contínua, mas invariavelmente a

inocência só se perde pelo salto qualitativo do indivíduo” (idem, ibidem).

A fim de exemplificar, arriscamo-nos a interpretar as Escrituras e por falta de

expressão mais apropriada, justificar por que Deus não teria destruído Sodoma e Gomorra

(Gen. 18-19) se lá houvesse, ao menos, dez justos (Gen. 18, 32). Deus se isentaria de

destruir as cidades não somente por causa da intercessão de Abraão, tio de Lot, habitante

em Sodoma, mas e principalmente, pelo fato de que existindo na cidade alguns justos,

16

Do ponto de vista ético, “[...] o pecado de desejar voltar para antes da realidade do pecado não é um pecado

no geral, e jamais ocorreu um desta espécie”. A Ética “não visa à situação, mas sim em como esta se converte

no mesmo momento em um novo pecado”, ou seja, a Ética olha, apenas, para o desfecho da situação.

(KIERKEGAARD, 2010, p. 121 e nota)

[17]

Tal como a tradução portuguesa Valls opta por pecaminosidade na tradução. Nós optamos por

pecabilidade, porém tanto um como o outro significam a mesma coisa: capacidade de pecar.

45

necessariamente, estes justos são inocentes, ignorantes. Mediante o salto o Indivíduo

estabelece a qualidade bem como perde a inocência, pois, a inocência, supõe a

inconsciência no Indivíduo, ou seja, que o Indivíduo é inconsciente de si, pois, ainda, não

se determinou como espírito. “É bem verdade que uma pessoa pode dizer, com profunda

seriedade, que nasceu na miséria e que sua mãe a concebeu em pecado; mas, a rigor, só

poderá afligir-se com razão quando ela mesma tiver trazido o pecado ao mundo”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 41; s/d, p. 58 e s.), pois não há sofrimento efetivo na

pecabilidade, ao contrário, o sofrimento é verdadeiro quando se faz do pecado um fato.

O centro da questão da inocência, o qual os teólogos outrora se descuidaram e que

Kierkegaard pretende dar relevância, diz respeito a como o ser humano perde o estado de

inocência, mas principalmente ao aparecimento da angústia. Estádio indica uma condição

momentânea. A inocência é esta qualidade com a qual o ser humano se encontra em

determinado instante e que como tudo o que é transitório não cabe definir. Porém, em se

tratando de um estádio incumbe ao existencialismo acompanhar, como o quê investiga o

processo. A perda da inocência constitui o instante em que a diferença entre o homem e

Deus torna-se para aquele objeto de medo e vergonha perante o Criador e de fraqueza

diante dos seus. “Na inocência, o ser humano não está determinado como espírito, mas

determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade. O espírito está

sonhando no homem” (KIERKEGAARD, 2010, p. 44-45; s/d, p. 63).

No estado de inocência, quando o ser humano ainda não é consciente de si, quando

“não está ainda determinado como espírito”, a liberdade estabelece com ele uma relação

confusa, já que o ser humano não a vê claramente presente em sua existência. Este estado

de indeterminação do espírito gera no ser humano uma angústia, a qual Kierkegaard atribui

o lugar na Psicologia e a qual chamamos de angústia psicológica.

46

A angústia psicológica é aquela na qual o homem põe diante de si um projeto que,

por definição, não é uma realidade efetiva, mas – conforme a acepção da palavra em nossa

língua – uma “ação de lançar para frente, de se estender”; uma “extensão”, sem, contudo,

sair do lugar, é um vir-a-ser. Neste estado da realidade humana a angústia se apresenta sob

a forma do nada engendrado no bojo de uma realidade possível não-efetiva. “A realidade

efetiva do espírito se apresenta sempre como uma figura que tenta sua possibilidade, mas se

evade logo que se queira captá-la, e é um nada que só pode angustiar. Mais ela não pode,

enquanto apenas se mostra” (KIERKEGAARD, 2010, p. 45; s/d, p. 64).

As determinações dialéticas da angústia, segundo Kierkegaard, demonstram que ela

possui ambiguidade psicológica, ou seja, que a angústia é: uma antipatia simpática e uma

simpatia antipática (2010, p. 46; s/d, p. 64). Ao mesmo tempo em que o ser humano deseja

se aproximar também deseja fugir da angústia, quando a atrai também a rejeita; quando a

experimenta doce, também, a experimenta como o que há de mais amargo. Contudo, no

estado de inocência é bom ressaltar que a angústia que aí se encontra, “primeiro não é uma

culpa e, segundo, não é um fardo pesado, um sofrimento que não se possa harmonizar com

a felicidade da inocência” (KIERKEGAARD, 2010, p. 46; s/d, p. 64-65).

A angústia psicológica é aquela, portanto, que nos põe em um movimento e em uma

paralisia simultâneas. Donde se pode inferir que a angústia não é um problema na

existência humana e se há um problema, este é o de não saber angustiar-se.

A angústia apresenta ambiguidade, a própria existência humana é ambígua. Por

apresentar-se de modo ambíguo a angústia deve ser explicada pela Psicologia visto que esta

“é a parte da filosofia que trata da natureza e da alma como tal, como origem dos

fenômenos psíquicos, que seriam objeto de uma ciência experimental específica”

(JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 224). Mesmo que as relações dos estados d‟alma na

47

existência com seus respectivos objetos: angústia-nada, inocência-culpa, sejam por vezes

sugeridas de maneira ambíguas, há uma coisa que está fora de toda ambiguidade: o salto

qualitativo. Porém, “aquele que pela angústia torna-se culpado é contudo inocente, pois não

foi ele mesmo, mas a angústia, um poder estranho, que se apoderou dele, um poder que ele

não amava, diante do qual, pelo contrário, se angustiava – e, não obstante, indubitavelmente

é culpado, pois afundou na angústia, que contudo amava enquanto temia”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 46-47; s/d, p. 65-66).

Se a relação da angústia com seu objeto, o nada, é completamente ambígua; a

passagem da inocência à culpa não será, obrigatoriamente, diferente (2010, p. 46). “O

homem é uma síntese do psíquico e do corpóreo. Porém uma síntese é inconcebível quando

os dois termos não se põem de acordo num terceiro [...] o espírito. Na inocência, o homem

não é meramente um animal. [...]. O espírito está, pois, presente, mas como espírito

imediato, como sonhando” (2010, p. 47), contudo, ansioso para estabelecer a síntese.

O ser humano é uma síntese, uma unificação de alma, corpo e espírito. Destes

elementos o espírito é o que, necessariamente, estabelece a diferença entre o ser humano e

os outros seres, os animais; e que, também, o coloca numa relação íntima e indissociável

com a angústia.

O espírito é esta parte integrante e fundamental do homem que lhe permite fazer-se

na existência. No estado de ignorância o espírito encontra-se em estado latente, pois, ainda,

não foi preciso fazer-se evidente; “não há nenhum saber sobre bem e mal etc., mas a

realidade inteira do saber projeta-se na angústia como o enorme nada da ignorância”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 47; s/d, p. 67).

Contudo, quando o espírito faz a síntese, ou seja, quando precisa fazer-se manifesto

ou presente de modo mediato a angústia não admite mais como objeto o nada, mas a

48

liberdade. A angústia toma como presa a liberdade. “O que tinha passado desapercebido

pela inocência como o nada da angústia, agora se introduziu nele mesmo, e aqui de novo é

um nada: a angustiante possibilidade de ser-capaz-de” (KIERKEGAARD, 2010, p. 48; s/d,

p. 68).18

A inocência se perde com a liberdade. No entanto, é preciso relevar que a liberdade

imediata circunscreve o homem num estado no qual ele ainda não tem que decidir-se, onde

a “possibilidade de poder” ou a “possibilidade de ser-capaz-de” não se faz premente. A

liberdade mediada, isto é, que se estabelece mediante um terceiro elemento, o espírito exige

do Indivíduo o salto.

É impossível nos anteciparmos às coisas, às repercussões de nossas escolhas. No

entanto, tentamos previamente saber das escolhas as consequências precisas. Isto é obra da

Ética que como tudo que é racional pretende, também, tomar a dianteira dos atos. A Ética

prescreve um cânon à liberdade na intenção de tornar racional a vida do Indivíduo.

Entretanto, a única certeza possível é a certeza da liberdade, esta possibilidade de poder ou

de ser-capaz-de que lança o ser humano à frente sem precisão alguma; a Ética, “„tal como

se diz da lei, é uma disciplinadora cujas exigências se revelam simplesmente repressivas,

nada criando‟.” (KIERKEGAARD. In: ALMEIDA; VALLS, 2007, p. 43). Além disso, há a

fé que não oferece ao ser humano nenhuma certeza, mas que ao contrário da Ética não quer

nem discipliná-lo e nem repreendê-lo, por causa disso a liberdade se apresenta muito mais

na fé que na Ética, pois essa é a resignação, enquanto que a fé é a repetição.

A possibilidade de poder ou de ser-capaz-de não é implacavelmente moral, uma

possibilidade que por ocasião, apenas, de seu aparecimento já suponha juízos de valor. A

possibilidade de poder é a possibilidade diante da liberdade e aí cabe ao Indivíduo dar o

18

Para o “ser-capaz-de” da edição brasileira, a edição portuguesa e a edição espanhola utilizam “poder”.

49

salto. A qualidade deste salto, por sua vez, não se dará no objeto, isto é, não é o objeto que

muda. Ao fazer juízo de alguma coisa, temos por hábito lhe atribuir um valor, pelo qual ao

comparar-se com outro, se sofrer de incompatibilidade, será melhor ou pior, bom ou mau,

certo ou errado dando a entender que o que se julga tem sobre tudo e todos um poder ou um

valor absoluto. Na existência não ocorre deste jeito; vejamos, por exemplo, Adão.

“A proibição o angustia porque desperta nele a possibilidade da liberdade. O que

tinha passado desapercebido pela inocência como o nada da angústia, agora se

introduziu nele mesmo, e aqui de novo é um nada: a angustiante possibilidade de

ser-capaz-de. Ela não não tem nenhuma ideia do que é que ela seria capaz de

fazer, pois de outro modo se pressupõe, certamente – como em geral sucede – o

que só vem depois, a distinção entre bem e mal. Existe apenas a possibilidade de

ser-capaz-de, enquanto uma forma superior da ignorância e enquanto uma

expressão superior da angústia, porque esta capacidade, num sentido superior, é e

não é, porque num sentido superior ela a ama e foge dela.

Às palavras da proibição seguem-se as palavras da sentença: „Certamente

tu morrerás‟. O que significa morrer, Adão, naturalmente, não compreende de

jeito nenhum, mas, por outro lado, nada impede [...] que tenha recebido a

representação de algo horrível. [...]. Se acaso se admite que o desejo desperta a

proibição, então também se deve admitir que a ameaça do castigo desperta uma

representação assustadora. No entanto, isso confunde as coisas. O horror aqui

apenas se converte em angústia, pois Adão não compreendeu o enunciado e tem

portanto novamente apenas a ambiguidade da angústia. A infinita possibilidade

de ser-capaz-de, que a proibição despertou, aproxima-se agora ainda mais porque

esta possibilidade manifesta uma outra possibilidade como sua consequência.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 48; s/d, p. 68)

No que se refere às escolhas humanas, não há uma diferença a priori. A diferença só

se torna existente por força da liberdade, no ato, no salto qualitativo. Por isso, é possível à

fé de Abraão que Deus queira o sacrifício do filho Isaac, mesmo que esse “querer” não seja

racional.

A história do Indivíduo, portanto, é marcada mesmo por esta irracionalidade que é a

fé, irracionalidade que tanto é rechaçada pela razão, mas que permite ao Indivíduo o salto, a

existência genuína. Assim, a existência é possível porque há a liberdade, com ela a

pecabilidade – capacidade de pecar – e a tão paradoxal angústia.

50

1. 2. Os equívocos na compreensão do percurso: “as imperfeições” na narrativa e nas

interpretações

O teólogo suíço Hans Urs von Balthasar (1905-1988) escreve na introdução do seu

livro O cristão e a angústia editado pela Fonte Editorial, a seguinte afirmação: “Pode dizer-

se sem medo de errar, que o estudo tão profundo e apesar disso tão claro de Kierkegaard,

que tem por título O Conceito de Angústia (Begrebet Angest, 1844), foi a primeira e a

última tentativa para tratar desse tema sob o ponto de vista teológico” (BALTHASAR,

2004, p. 11).

As reflexões deste “estudioso de Agostinho” influenciado por, entre outros,

Kierkegaard (2004, p. 7) tem a contribuir com este trabalho não só por que a história do

Indivíduo encontra-se revelada na Escritura bem como, pelo fato de a angústia, objeto

investigativo desta dissertação, não encontrar campo fértil nem na ciência e nem na

Psicologia.

O que queremos realçar é a reflexão que o filósofo dinamarquês constrói a partir de

uma construção teológica que é a narrativa genesíaca. No entanto, se se trata de um estudo

filosófico o qual tem por finalidade esta dissertação que contribuição, podemos indagar,

pode oferecer as reflexões teológicas acerca da trajetória existencial humana? Não

estaríamos negligenciando o nosso propósito? Descambando para outros rumos?

Segundo GOUVÊA,

“Kierkegaard recuperou o conceito de angústia (em alemão, Angst) para a

filosofia e o pensamento teórico em geral por meio de seu livro O Conceito de

Angústia (em dinamarquês, Begrebet Angest) de 1844, no qual relaciona a

angústia ao conceito bíblico-cristão de pecado.” (In: BALTHASAR, 2004, p. 9)

51

Na esperança de recuperarmos para a filosofia a noção de angústia, noção esta pela

qual somos todos afligidos, é que a perspectiva teológica pretende, neste trabalho

dissertativo, encontrar lugar. A reflexão kierkegaardiana acerca da angústia é filosófica,

mas o autor desta consideração, Kierkegaard, parte não de um “conceito” senão de uma

“revelação”. “A Escritura compreende o testemunho categorial ou registro humano e

canônico da Palavra, sendo teologia em forma elementar, nuclear e primária. A Bíblia é,

por assim dizer, a verdadeira „morada‟ da Palavra” (MATOS, 2005, p. 28).

Ao partir da Escritura Kierkegaard pede ao leitor que deixe de lado a ideia de que a

narrativa genesíaca seja um mito. “Repassemos então mais de perto a narrativa do Gênesis,

tentando deixar de lado a ideia fixa de que se trata de um mito e recordando-nos de que

nenhuma época foi tão ágil em produzir mitos do entendimento quanto a nossa, que produz

mitos enquanto pretende extirpar todos os mitos” (KIERKEGAARD, 2010, p. 49; s/d, p.

69-70). Se não deixarmos de lado o preconceito de considerar a Bíblia um livro de mitos

corremos o risco de não entender por que Kierkegaard, para uma reflexão acerca da

existência, parte do livro do Gênesis no qual confere especial atenção à passagem “os

primórdios da humanidade”. Mas, há de se perguntar: O que contém o Gênesis?

“O Gênesis relata diversos episódios da vida dos patriarcas, agrupados de modo a

mostrar que Deus intervém constantemente junto a Abraão e sua família com

vistas a preparar a salvação do mundo. É por isso que os relatos patriarcais são

precedidos de um prólogo que situa Abraão e seus descendentes no quadro dos

povos da terra e contém alguns dos capítulos mais célebres da Bíblia: a criação,

Adão e Eva, o Dilúvio, a torre de Babel (...) capítulos que constituem como que

um resumo impressionante da caminhada da humanidade na terra, dos seus

empreendimentos e dos seus fracassos (...).

Para bem compreender este livro e o sentido dos relatos nele contidos, é

preciso considerá-lo no seu dinamismo e não dissecá-lo em pedaços destituídos

de relação uns com os outros. Mesmo que o leitor se atenha especificamente a

algumas das páginas célebres que o livro contém, há de se lembrar [...] que o

Gênesis não constitui uma obra independente, uma espécie de história dos

patriarcas, mas que ele representa o começo de um vasto conjunto que narra

52

como Deus, no meio das nações, forma para si um povo sobre a terra para dar

testemunho dele.” (Gênesis. In: TEB, 1997, p. 21)

O relato da criação não será transcrito aqui, é possível encontrá-lo com toda sua

poesia e originalidade na própria Escritura em Gen. 1-3 e quem desejar dirigir-se

imediatamente ao primeiro sinal da humanidade no relato da criação basta, então, verificar

Gen. 2, 4b-3. O nosso interesse é compreender “o quê” Kierkegaard identifica como

“imperfeições na narrativa” e “por que” ele considera equivocadas as interpretações aceitas

no seu tempo e por que não dizer ainda hoje para, ao menos, uma boa parte das pessoas.

Eva fora criada, pois dentre os seres na criação o homem não encontrara para si a

companhia que lhe fosse adequada. “Eva travou com ele a relação mais íntima que pode,

mas, apesar disso, tratava-se de uma relação externa” (KIERKEGAARD, 2007, p. 94,

tradução nossa); Adão e Eva eram apenas repetições numéricas daquilo que na criação

levou a insígnia de espécie humana.

A serpente trata então de seduzir a mulher, de quem a angústia participa mais da

natureza; não é difícil imaginar, portanto, o motivo pelo qual a serpente escolhera-a e não

ao homem.

Nascer humano ou de um ser humano derivar-se é existir predispondo-se ao pecado.

No entanto, essa predisposição não é, necessariamente, culpa é “um sinal de pecabilidade

inscrito pela procriação”; isto significa que a pecabilidade progride através de

determinações quantitativas, mas a presença do pecado no mundo representa sempre um

salto qualitativo do Indivíduo.

Um equívoco comum quando se trata de interpretar o relato da criação é aquele em

que a mulher aparece em toda a sua imperfeição. Ela foi a primeira a ser seduzida, sendo,

em seguida, quem seduz o homem; muitos desejam acreditar que a ordem dos

53

acontecimentos revela o quanto o sexo feminino é frágil e quão danosa pode ser sua

existência no mundo.

A Kierkegaard ocorre uma ideia diferente. Se se pretende continuar a dizer que a

mulher é o sexo fraco essa expressão deve ser compreendida no sentido de que a mulher é

mais sensual que o homem, como mais adiante veremos. Há ainda o fato de a angústia

participar mais da sua natureza que da natureza do homem, a qual muitos insistem em

afirmar tratar-se de uma imperfeição. A esta interpretação o filósofo dinamarquês, responde

que embora a angústia seja mais própria da mulher do que do homem, “angústia não é, de

maneira alguma, um sinal de imperfeição. Se há que falar de imperfeição, esta reside num

outro ponto, ou seja: no fato de que ela, na angústia, prefere pendurar-se em outro ser

humano, no homem” (KIERKEGAARD, 2010, p. 50; s/d, p. 71; nota).

Outro engano trata de considerar o pecado apenas enquanto determinação

quantitativa. Para Kierkegaard apenas a pecabilidade – capacidade de pecar – se difundi

mediante a geração, isto é, mediante uma determinação quantitativa: quanto “maior” o

número de pessoas, maior evidência adquiri a pecabilidade. Contudo, “o pecado

constantemente irrompe pelo salto qualitativo do indivíduo” (2010, p. 50; s/d, p. 71). Não

considerar isto é alienar-se da condição de se tornar Indivíduo. Enquanto que a pecabilidade

apresenta-se sob a forma de propagação, pois encontra seu locus no gênero humano, o

“salto” é singular, pois o ato livre é sempre o ato de um Indivíduo. “A natureza de ser

derivado predispõe o Indivíduo para o pecado, sem, contudo, o tornar culpado”.

A predisposição para o pecado em nós, seres derivados, existe por que existimos a

partir de Adão, o Indivíduo? Sim, porque existir enquanto ser humano implica existir

enquanto liberdade, jamais haveria “história” se o ser humano não tivesse acontecido – ser

54

derivado de um macaco, por exemplo, nos desobrigaria desse fardo. Não, porque Adão não

responde por toda a humanidade.

Passemos às imperfeições do relato no Gênesis. Essas se encontram primeiro, nas

fórmulas da proibição e do castigo; segundo, na figura da serpente e terceiro, na

“consequência tal como é contada naquela narrativa” (KIERKEGAARD, 2010, p. 52; s/d,

p. 73).

O relato apresenta Deus prescrever ao homem a proibição e o castigo. Quanto à

proibição: “no Gênesis, Deus diz a Adão: „mas os frutos da árvore do bem e do mal não

comerás‟.” (s/d, p. 67) e ao castigo: “„certamente morrerás‟” (KIERKEGAARD, s/d, p. 68).

Conforme Kierkegaard, Adão não poderia compreender a diferença entre bem e mal antes

de fazer a opção pela qual a ação o faria distinguir, ou seja, antes de degustar o fruto. No

campo do agir não há uma distinção a priori, a vida humana se afasta deste ideal a priori

metafísico e lógico, segundo o Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva em aula, legado das

correntes filosóficas tradicionais, o humano se faz a partir e mediante o existir mesmo.

A inferência decorrente desta interpretação pelo filósofo dinamarquês é que não

poderia ter sido Deus a proibir Adão comer os frutos senão Adão mesmo. O ser humano

prescreve a si as proibições por supor as consequências que determinadas escolhas lhe

trarão, consequências em sua maioria funestas. Transmitir a Deus a tarefa daquele que

proíbe, significa colocar Deus no lugar da Ética que Kierkegaard tanto critica. Através da

Ética o ser humano obedece sem dar-se conta de modo consciente por que obedece ou por

que tal coisa se lhe faz proibida. Vale lembrar aqui onde reside a liberdade, isto é, não se

encontra em nada exterior ao Indivíduo e é por isso que o ser humano pode estabelecer uma

relação genuína com os outros, com o mundo e com Deus.

55

Compreensão semelhante se aplica ao castigo. Adão não sabia o que era morrer,

somente sentia a angústia que a proibição lhe causava bem como a angústia que a

possibilidade desta transgressão lhe proporcionava.

Quanto ao aparecer da serpente na narrativa, sua ação foi a de seduzir a mulher para

que essa experimentasse os frutos; é justamente nesse ponto que a serpente parece

inapropriada. O raciocínio filosófico para tal inapropriação ocorre do seguinte modo:

“[...] com efeito, a tentação, na narrativa, chega do exterior, o que contradiz a

doutrina da Bíblia formulada na passagem clássica de S. Tiago, segundo a qual

Deus nem tenta nem é tentado por ninguém e, pelo contrário, cada pessoa é

tentada por si mesma. Se julgamos ter salvo Deus graça ao papel de tentadora

atribuído à serpente, gabando-nos, assim, de assegurar o acordo com S. Tiago

quando este afirma „que Deus não tenta ninguém‟, encalhamos na segunda

afirmação de que Deus por ninguém é tentado, posto que, com efeito, o atentado

da serpente contra o homem representa ao mesmo tempo uma tentação indireta

contra Deus, ao intrometer-se na relação entre Deus e o homem; e encalhamos,

finalmente, no terceiro ponto: todo homem é tentado por si mesmo” (KIERKEGAARD, s/d, p. 72-73).

O ser humano, origem e fonte de desejos, vontades e paixões não tem por “motor”

de seu existir nada que seja externo a si. São os desejos, as vontades e a paixões os

impulsos que o seduzem e o tentam; estes “impulsos” subordinam-se à extraordinária

liberdade, à síntese que o espírito estabelece com a alma e o corpo.

Por fim, a queda referida no relato; ela é o salto qualitativo. A consequência desse

salto sugerida pela narrativa no Gênesis foi dupla e ambas são tidas por inseparáveis: a

primeira foi o pecado ter entrado no mundo, a pecabilidade; a segunda, a inauguração da

sexualidade. Este caráter dual na consequência da queda revela o estado original do ser

humano: se o homem não fosse a síntese de alma e corpo apoiado no espírito19

, se fosse

19

“Na inocência, Adão, como espírito, era um espírito em estado de sonho. Portanto, a síntese não era real,

uma vez que o ligame é justamente o espírito e o espírito ainda se não instituíra como tal. No animal, a

diferenciação dos sexos pode desenvolver-se instintivamente; não é esta porém a maneira de existir no

56

uma unidade não haveria dualidade, ou seja, a consequência é dual porque o ser humano é

uma dualidade; se o homem não fosse alma e corpo sustentados pelo espírito, mas apenas

alma ou apenas corpo, o sexo não se estabeleceria no mundo como capacidade de pecar.

Com isto não queremos dizer que antes do pecado ele não existisse mas que, com o pecado,

a sua qualidade mudou; o que o filósofo de Copenhague pretende nos dizer é que, a

contragosto de muitos, o pecado não advém dos sentidos20

, isto é, da sensibilidade ou

sensualidade do ser humano, mas que o pecado instaurou nesta uma qualidade nova. No

episódio da queda, descrita no Gênesis, a qualidade nova estabelecida é a sexualidade; essa

foi a característica inscrita no espírito humano através do próprio ser humano, a

consequência do pecado sem a qual não haveria a história do gênero humano

(KIERKEGAARD, s/d, p. 74).

O ser humano, no estado de inocência-ignorância, naturalmente era masculino ou

feminino. Não cogitava Adão, por exemplo, o significado de existir como homem, nem a

Eva o significado de existir como mulher; concretamente, a ambos, não se impunha a

diferença. Ela era vivida, experienciada, mas não era posta em questão; bastava-lhes

haverem sido criados homem e mulher. Porém, a liberdade inscreve no espírito a

sexualidade, essa certa estranheza do Outro, que tanto nos vem do olhar como do Outro, o

homem e justamente porque o homem é uma síntese. No instante em que o espírito se institui a si próprio,

institui a síntese, mas, para a instituir, deverá primeiro penetrá-la como agente diferenciador, e o cume da

sensualidade reside precisamente no sexo. O homem não pode atingir este ponto extremo senão no instante

em que o espírito se realiza. Antes, não era um animal, mas no fundo também não era um homem; só no

momento de se tornar homem é que se torna homem precisamente porque também é, ao mesmo tempo,

animal.” (KIERKEGAARD, s/d, p.74)

20

A sensualidade, em si mesma, não é pecabilidade. A degradação da sensualidade em pecabilidade ocorreu e

continua a ocorrer sempre que o pecado entra no mundo.

57

qual seria impossível deixar de encarar; o que significa dizer que a existência do Outro se

desnaturalizou, perdeu o sentido na obra da Criação, diferenciou-se.21

No pensamento kierkegaardiano é o espírito o que permite distinguir e ele não é

natureza física como o corpo e nem “sopro vital” destinado a animar o corpo, ou seja, a

alma. Concordamos que a ideia de espírito em Kierkegaard seja a mesma herdada da

filosofia cartesiana, mas com uma ressalva. Enquanto que para a filosofia de Descartes

(1596-1650), grosso modo, o espírito é epistemológico, isto é, um espírito que se direciona

para o conhecimento do outro e do mundo enquanto objetos; daquele que conhece, o sujeito

e daquilo que é conhecido, o objeto; em Kierkegaard ainda que o espírito estabeleça esta

relação de estranheza com o mundo, como no cartesianismo, não vai aos mesmos

patamares e pelas mesmas vias. A filosofia cartesiana é uma filosofia do Cogito e para o

Cogito, para a Razão. O filósofo dinamarquês,

“Quem, como ele, se interroga tão profundamente sobre si mesmo, também

quando filosofia, tem de se interessar necessariamente pelo próprio homem. E

isso não tanto no sentido de um problema científico, que poderia deixar

indiferente o interrogante, mas de modo tal que quem filosofa também seja posto

em jogo no seu interrogar. „Pois todo conhecimento essencial diz respeito à

realidade.‟ Assim, em sua reflexão sobre o homem, Kierkegaard torna-se um

pensador existencial. É por isso que ele só exercerá sua maior influência em um

tempo em que, em sentido amplo, o homem se torna enigmático para si mesmo,

ou seja, em nosso século: na teologia como na filosofia.” (WEISCHEDEL,

2001, p. 259-260).

Com o fim de apresentar o tom característico da liberdade Sören ocupou-se de

apresentar as imperfeições na narrativa. Ao considerar a existência uma realidade aberta,

21

Comte-Sponville (1952) observa que “[...] os pais da geração 68 [do slogan: „É proibido proibir‟, „Viver

sem tempos mortos, gozar sem entraves...‟], têm tanto medo quanto nós, e não apenas da aids. Eles têm medo

da sexualidade, como todo o mundo, é o que chamamos de pudor: medo diante de si, e diante do outro.”

(COMTE-SPONVILLE, 2006, p. 73, grifo nosso)

58

apenas enquanto possibilidade o modo, mais razoável, para dela podermos falar faz-se por

intermédio da angústia,

“[...] a qual está longe de explicar o salto qualitativo como de justificá-lo

eticamente. A angústia não é uma categoria da necessidade, mas tampouco o é da

liberdade. A angústia é uma liberdade travada, onde a liberdade não é livre em si

mesma, senão que está travada, ainda que não travada pela necessidade, mas por

si mesma” (KIERKEGAARD, 2007, p. 99, tradução nossa).

A angústia é o sinal concreto da impossibilidade de poder-se pleno da liberdade. No

entanto, é impossível não questionar por que Kierkegaard se ocuparia de escrever um livro

para tratar da angústia quando a liberdade parece ser, no livro, o tema mais evidente.

Porque,

“É na angústia [...] – essa é a grande descoberta de Kierkegaard –, que o homem

experimenta a possibilidade da liberdade, precisamente, como sua essência

fundamental. Pois a angústia resolve a realidade em um feixe de possibilidades

atormentadoras, diante das quais o homem deve decidir-se. Na angústia, então,

descobre que ele não está determinado de uma vez por todas: seu ser é um poder-

se. „A coisa mais terrível concedida ao homem é a escolha – a liberdade.‟”

(WEISCHEDEL, 2001, p. 261)

O ser humano terá que fazer-se. Porque existe terá que se fazer, pois que não está

determinado, é uma síntese apoiada no espírito significando que, para existir, deverá

sempre escolher; o ser humano não foi dado de antemão: moldou-lhe um corpo, insuflou-

lhe um hálito quente – a vida –, proveu-lhe um habitat, guarneceu-o de suprimentos, mas

ainda não se encontrou pronto ao contrário, ao término da sua criação, ele se encontrava

incompleto, inacabado. Em sua relação com a existência ou na existência mesma, a

angústia está neste senso de incompletude, de ser inacabado com o qual nós nos

reconhecemos. Por isso, a liberdade só se consuma no ato, na ação, na escolha. Ainda, se

59

por meio da angústia, na escolha, o ser humano faz a experiência da fé – diante de todos os

possíveis opta pelo racionalmente impossível – atinge, no tempo, o ápice de sua

humanidade, pois a medida de um existente é como a medida da liberdade: uma desmedida,

motivo pelo qual o ser humano convive com a angústia e nela vive. Com as palavras do

filósofo: “A angústia é o possível da liberdade e só essa angústia forma, pela fé, o homem,

no sentido absoluto da palavra, devorando todas as finitudes, pondo a descoberto todas as

ilusões” (KIERKEGAARD, s/d, p. 232). Portanto, não deixa de ser curioso o fato de a

angústia ser continuamente constrangida pela Razão. O homem de Razão julga-se livre e

verdadeiro quando não se sente molestado por esta simpatia antipática-antipatia simpática,

quando para esquivar-se dela ou para abandoná-la tece fantasias, ergue sistemas em sua

cabeça ou passa a esquecer de si.

60

CAPÍTULO II

A ANGÚSTIA

2. 1. O “autor” do livro diante do tema

O Conceito de Angústia é de autoria de Vigilius Haufniensis um dos pseudônimos

latinos utilizados por Kierkegaard. Para o Prof. Dr. Ricardo Quadros Gouvêa, Vigilius

Haufniensis é mais que um nome suposto ou um pseudônimo consiste em um heterônimo,

isto é, um personagem-autor com personalidade completamente desenvolvida e estilo

diverso do dinamarquês e de cada um dos outros heterônimos. Em suma, Gouvêa afirma ser

Vigilius Haufniensis, um alter-ego plenamente construído.

“Um dos menos definidos dos personagens-autores de Kierkegaard, ele mal pode

ser chamado de verdadeiro heterônimo, mas também não é exatamente um nom-

de-plume. Seu estilo é muito peculiar, de um professor de dogmática. Ele é o

primeiro representante do estágio religioso[22]

, mas não completamente genuíno,

pois parece faltar-lhe interioridade, olhando para as doutrinas do cristianismo

ainda um tanto objetivamente, como conhecimento a ser alcançado, mais do que

uma vida a ser vivida. O livro, não obstante, parece funcionar como sua própria

educação para uma maior interioridade.” (GOUVÊA, 2006, p. 312)

Vigilius Haufniensis ou O Vigia de Copenhague como pode ser designado surge em

1844, ano mesmo de O Conceito de Angústia. Como o próprio nome sugere, o “autor” é um

observador que, revestido por uma autoridade psicológico-poética, pretende além de

desenvolver uma ideia e de desenhar-lhe a individualidade correspondente, traçar um

esquema de si (KIERKEGAARD, s/d, p. 83-84, nota).

22

Os outros representantes são: Frater Taciturnus (o Irmão Reservado ou o Frade Silencioso, 1845), “o

personagem-editor-e-autor de Culpado/Inocente [Culpado? – Não-Culpado?] terceira parte de Estações na

Estrada da Vida (1845) e Anti-Climacus, “o tardio personagem-autor criado por Kierkegaard para representar

a „Religiosidade B‟, o cristianismo.” (GOUVÊA, 2006, p. 313 e s.)

61

O Vigia de Copenhague não é um “pedante solitário”, ao contrário, é “quem se

ocupou, segundo um critério correto, com psicologia e observação psicológica” adquirindo,

por isso, “uma flexibilidade humana universal que o põe em condições de prontamente ser

capaz de formar seu exemplo, o qual, se não possui a autoridade da facticidade, tem

contudo uma outra autoridade”23

(KIERKEGAARD, 2010, p. 60). É preciso ser um

observador para ver, com mais frequência, o fenômeno, o qual se pretende estudar.24

“Se só

raras vezes ele é visto na vida [...] é porque ele se deixa esconder, e ainda porque com

frequência ele é afugentado, quando os homens se valem de uma ou outra regra de

sabedoria de vida para expulsar este que é um embrião da vida suprema”, sem o qual o ser

humano torna-se “desprovido de espírito” (KIERKEGAARD, 2010, p. 124).

O observador psicológico possui notáveis habilidades. Uma agilidade ímpar, com a

qual consegue de algum modo “entrar na pele das pessoas e imitar seus gestos”; um

silêncio, no instante da confiança, sedutor e voluptuoso, com o qual pretende fazer

escapulir a coisa oculta; uma originalidade poética na alma, “para prontamente conseguir

criar o total e o regular a partir daquilo que no indivíduo geralmente só está presente de

maneira parcial e irregular” (2010, p. 60). Mas, como e onde o observador captura os seus

exemplos? Antes de capturá-los ele terá aperfeiçoado as suas habilidades e assim

“conseguirá pescar suas observações bem frescas, recém-saindo da água, ainda pulando e

dançando em seu brilho colorido. De jeito nenhum precisará esfalfar-se no esforço de

prestar atenção a alguma coisa” (ibidem), pois é capaz de formar prontamente aquilo de que

23

Segundo Almeida e Valls é através desses exemplos, inautênticos materialmente, que “Kierkegaard

personificava os problemas, hipostasiando-os em figuras conhecidas (Don Juan, Fausto, o Judeu Errante e

Abraão). Haufniensis [o autor de O Conceito de Angústia] trabalha com a figura de Adão e dos homens

posteriores, estuda a liberdade, condição de possibilidade daquilo que os teólogos costumam chamar

„pecado‟.” (ALMEIDA; VALLS, 2007, p. 19)

24

A saber, a consequência do pecado.

62

precisa ou tê-lo à mão rapidamente em virtude de sua prática ordinária (idem, ibidem). “Se

ele ficasse em dúvida, já estaria tão orientado na vida humana e o seu olhar seria tão

inquisitoriamente agudo, que ele saberia onde procurar e facilmente descobrir uma

individualidade qualquer que lhe servisse para o experimento” (KIERKEGAARD, 2010, p.

60). O observador sabe que sua “observação deve permanecer confiável, digam os outros o

que quiserem, mesmo que ele não a documente com nomes ou citações eruditas”, ou,

mesmo que não busque os “seus exemplos nos repertórios literários” ou, ainda, coloque no

balcão reminiscências semimortas (2010, p. 60 e 61), pois o interesse da Psicologia “está

em tudo o que acontece a cada dia, contanto que o observador esteja presente” (2010, p.

61). O observador não é um imitador e nem um mentiroso. Envolve-se de uma autoridade

psicológica, aplicando-a não ao objeto observado, mas a si mesmo na intenção de mudar a

perspectiva, isto é, de encontrar e utilizar aquela que mais convém à pesquisa. Porém, não

esqueçamos, que acompanha a característica psicológica, a autoridade da qual se veste o

observador, outra que ele denomina de poética, visto que o observador não pretende, a

partir de seu experimento, explicar, argumentar, convencer e definir aspecto algum extraído

de suas observações, intenta: comunicar, transmitir e relacionar-se com o seu estudo, com a

existência mesma.

Além do que já se disse, a observação “deve ter a marca da novidade e ter o

interesse da realidade efetiva, quando ele emprega a precaução de controlar sua observação.

Para essa finalidade, imita em si mesmo cada tonalidade afetiva, cada estado de alma que

descobre numa outra pessoa” (ibidem), se não for assim como conseguirá criar um laço de

empatia?25

“Depois verifica se pode iludir o outro com a imitação, se consegue lançá-lo a

25

“Desde que se preste bem atenção a respeito de si mesmo, cinco homens, cinco mulheres e dez crianças já

serão suficientes para o observador descobrir todos os estados possíveis da alma humana. O que eu poderia ter

63

uma realização mais extremada, a qual é sua própria criação pela força da ideia. Assim,

quando se quer observar uma paixão, escolha-se o seu indivíduo” (idem, ibidem); para

espionar-lhe importa, agora, a calma, o silêncio e não se fazer notar. “Depois se exercita o

que se aprendeu até ficar-se em condições de iludi-lo. [...] se compõe poeticamente a

paixão, que é mostrada a ele na grandeza sobrenatural da paixão. Se tudo for feito

corretamente, o indivíduo sentirá um alívio e uma satisfação indescritíveis

(KIERKEGAARD, 2010, p. 61). Vê-se, portanto, que o observador é, antes de tudo, um

experimentador. Além disso, é importante notar o que Vigilius Haufniensis tem a intenção

de nos comunicar: a existência somente se compreende por meio de um existente; paixão,

angústia, pecado e fé, entre outros, somente podem ser descobertos no ser humano, in

concreto, pois não são alheios e externos ao Indivíduo. Por fim, supondo que o observador

não seja bem-sucedido em sua pesquisa, “o motivo pode estar num erro de operação, mas

pode ser também porque esse indivíduo” – aquele, o qual escolheu para observar uma

paixão – “era afinal um exemplar ruim.” (ibidem)

a dizer talvez pudesse ser de alguma importância, especialmente para os que se ocupam de crianças ou têm

alguma relação com elas. É de infinita importância que a criança seja educada com a noção do mutismo

superior, e que seja libertada do equivocado. No aspecto exterior é fácil de ver quando chega a hora em que

podemos ousar deixar a criança caminhar sozinha; no que se refere ao espiritual não é tão fácil. No sentido

espiritual a tarefa é muito difícil, e não nos alforriamos dela contratando uma babá ou adquirindo um andador

de vime. A arte reside em estar sempre presente e, contudo, não estar presente, a fim de que se permita à

criança, desenvolver-se por si própria, enquanto se mantém a supervisão bem clara do que acontece. A arte

consiste, no seu grau mais elevado, em deixar a criança entregue a si mesma segundo o padrão maior possível,

e conferir a este aparente abandono uma forma tal que sem ser percebido se esteja informado de tudo. Para

isto sempre se pode arranjar tempo, mesmo que seja funcionário do rei, basta querer. Quando a gente quer

mesmo, a gente pode tudo. E o pai ou o educador que tudo fez em favor daquele que lhe foi confiado, porém

não impediu que a criança se tornasse hermeticamente fechada, incorreu sem dúvida em todo caso numa

pesada responsabilidade” (KIERKEGAARD, 2010, p. 134). Eis o método de educar kierkegaardiano!

64

2. 2. A progressão da angústia na perspectiva do “autor”

Como dito, a liberdade é pura possibilidade, mas concretamente ela não pode ser

experienciada enquanto possibilidade ilimitada de poder-se, então ela é experienciada como

angústia26

que coloca a descoberto os obstáculos postos ao movimento da liberdade e nos

faz cientes de que perante todos os possíveis apenas um possível é realizável enquanto os

outros, por seu turno, serão abandonados.

A história, tal como a conhecemos, do gênero humano inicia-se a partir do fazer-se

de Adão ou a ação de Adão em fazer-se, em constituir-se. Adão e Eva fizeram a experiência

da angústia, mas não puderam dar-se conta de sua progressão. Adão, ao fazer-se, institui

uma qualidade na criação outrora inexistente. Principiada com Adão, esta qualidade nova é

o pecado; a partir dela, portanto, ficou demonstrado que a realidade da angústia ou a sua

consequência para o Indivíduo pode fazer derivar o pecado. Este, uma experiência singular,

jamais pode ser estabelecido pelo gênero humano a título de Indivíduo e, muito menos, por

um Indivíduo a título de gênero humano, como pretendiam fazer de Adão. A importância

de Adão consiste justamente nisto: o pecado que instituíra em si produziu como efeito a

pecabilidade aos outros a qual, obviamente, não conheceu, pois se trata de uma

determinação quantitativa que tem nele o seu início. A angústia que produzira a entrada do

pecado no mundo, através de Adão, produziu outra angústia: a angústia da possibilidade de

continuidade do pecado no gênero humano e na natureza27

– a pecabilidade.

26

Em relação ao tempo, a angústia é a liberdade diante da liberdade. Em relação ao conteúdo, a angústia é a

não liberdade, é o demoníaco, o hermeticamente fechado, como veremos mais adiante.

27

“[...] a distinção entre angústia objetiva e subjetiva pertence a uma nova consideração, a que precisamente

se tem em conta o mundo e o estado de inocência do indivíduo posterior” (KIERKEGAARD, 2007, p. 111,

tradução nossa). Ao distinguir em objetiva e subjetiva “a angústia aparece justamente como o que é, isto é,

como algo subjetivo.” (ibidem)

65

À angústia na natureza28

Sören designou angústia objetiva a qual “entendemos o

reflexo dessa pecabilidade da geração em todo o âmbito do mundo” (KIERKEGAARD,

2007, p. 113) indicada na Sagrada Escritura, conforme o filósofo dinamarquês, na Epístola

aos Romanos 8, 19 do seguinte modo: “[...] a criação espera com impaciência a revelação

dos filhos de Deus”.

Ao fazer a descrição da angústia objetiva parece apropriado, ao nosso filósofo,

retornar a uma expressão29

procurando “desvelar a verdade que ela encerra apesar de todas

as confusões” (KIERKEGAARD, 2007, p. 112, tradução nossa). A expressão consiste

naquela a qual “com o pecado de Adão veio a pecabilidade ao mundo” (ibidem); é

importante notar a consideração que Kierkegaard faz desta sentença, pois ela “deixa Adão

no mesmo momento em que pecou e permanece orientada para o ponto de partida do

pecado de qualquer indivíduo posterior.”30

A “verdade limitada” dessa expressão a qual Sören se dispõe a desvelar é: primeiro,

a qualidade que ela manifesta; “Adão põe o pecado em si mesmo, mas também para toda a

espécie” (KIERKEGAARD, 2007, p. 112 e s., tradução nossa). No entanto, para

Kierkegaard, “o conceito de espécie é demasiadamente abstrato para que possa instituir

uma categoria tão concreta como a do pecado, justamente instituída porque o indivíduo a

28

O quê Deus qualificara de “ajuda [ao ser humano] que lhe seja adequada” (Gen. 2, 18 b).

29

De acordo com a tradução espanhola direta do danês por Demetrio G. Rivero, a expressão aparece,

primeiramente, no capítulo I (“La angustia como supuesto del pecado original y como médio de su

esclarecimiento, precisamente retrocediendo en la dirección de su origen”) na parte dois (“El concepto del

„primer pecado‟”).

30

Para Sören: “Esta mudança de perspectiva é necessária uma vez que foi posta a geração. Porque o conceito

de indivíduo estaria eliminado se a pecabilidade da espécie tivesse sido introduzida com o pecado de Adão no

mesmo sentido que o foi, por exemplo, o modo ereto de andar dos homens” (KIERKEGAARD, 2007, p. 112,

tradução nossa), isto é, segundo a evolução do gênero humano. Em outras palavras, a pecabilidade foi

introduzida com o caráter de qualidade na existência, ou seja, Adão põe o pecado para toda a espécie, mas

não o põe na espécie ou não peca por ela.

66

institui a título de indivíduo”31

(ibidem). Assim, na qualidade que a sentença exprime, é

que podemos encontrar a verdade a ser descoberta além de nela poder enxergar a

significação32

que Adão representa na espécie humana; isto terá que conceber, segundo o

“dogmático” Vigilius Haufniensis, “qualquer ortodoxia que busque compreender bem seu

próprio encargo, já que a ortodoxia ensina que tanto a espécie humana como toda a

natureza caíram sob o pecado em virtude do pecado de Adão”33

(KIERKEGAARD, 2007,

p.113, tradução nossa). Ao vir ao mundo o pecado assume, para a criação, a importância de

nela estabelecer uma qualidade não a partir dela mesma, mas como efeito da liberdade do

Indivíduo; é este efeito do pecado na existência não humana que Kierkegaard designa com

o nome de angústia objetiva.

É precisamente neste ponto que em O Conceito de Angústia, Vigilius Haufniensis

nos reporta à Epístola aos Romanos 8, 19 a qual, segundo ele, está apontada a ânsia ou a

angústia da criação pela revelação dos filhos de Deus. Para o nosso dogmático, se nesta

passagem a Sagrada Escritura fala de um “ansiar das criaturas” é porque estas se encontram

num estado de imperfeição, pois se estivessem em um estado de perfeição não haveria o

anseio; anseio, desejo, espera, entre outras expressões, implicam um estado anterior, mas

que, por consequência, não deixa de estar presente e de adquirir certo valor no desenvolver

da nostalgia. A nostalgia, “o estado em que se encontra o que está à espera, não é um estado

em que aquele se colocou por casualidade ou algo parecido, de maneira que o que espera o

31

“Por esta razão, a pecabilidade na espécie nunca passará de uma aproximação quantitativa, a qual, desde

logo, começa com Adão” (KIERKEGAARD, 2007, p. 113, tradução nossa). É importante observar que

começa, mas da qual Adão não participa.

32

“[...] maior que a de nenhum outro indivíduo”, Kierkegaard completa.

33

No que se refere à espécie humana, o pecado entra como pecado, mas no que se refere “à natureza o pecado

não pode entrar na qualidade de pecado” porque a qualidade somente é estabelecida pelo Indivíduo por força

da liberdade.

67

encontre completamente desconhecido” (KIERKEGAARD, 2007, p. 113 e s., tradução

nossa), ou seja, uma vez que a natureza não se apóia numa síntese como o ser humano, a

nostalgia na qual ela se encontra somente pode lhe ter sido imputada pelo Indivíduo

mediante suas escolhas. Vê-se, portanto, mais uma vez que a angústia é eminentemente

subjetiva, humana e o que antes na natureza pensávamos ser apropriado chamar de angústia

objetiva será mais bem considerada se a denominarmos nostalgia: “produto, não das

criaturas, mas daquela mudança de iluminação que estas sofreram quando o pecado de

Adão degradou a sensualidade em pecabilidade, degradação que continua a produzir-se se é

verdade que o pecado continua a entrar no mundo” (KIERKEGAARD, s/d, p. 89-90).

Para Kierkegaard, uma expressão análoga à nostalgia – na natureza – é a angústia –

na existência humana –; “pois na angústia se anuncia aquele estado do qual o indivíduo

deseja sair, e precisamente se anuncia porque somente o desejo não é suficiente para

libertá-lo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 114, tradução nossa).

Disse-se que a angústia é uma ambiguidade psicológica e que, portanto, a Psicologia

poderia explicá-la. Contudo, Sören nos recorda que as explicações dadas por ela não vão

muito longe. Assim, impõe-se a ciência cujo “ponto de arranque” é o cerne de nosso

estudo: o pressuposto da pecabilidade, a angústia.

“Em que sentido todas as criaturas se perderam devido ao pecado de Adão, de

que modo a liberdade, instaurada pelo próprio abuso que dela se praticou, veio a

lançar um reflexo de possibilidade e um como que frêmito de cumplicidade sobre

as criaturas, como teria tudo isto de acontecer uma vez que o homem é a síntese

cujos contrastes extremos foram então instituídos, tornando-se precisamente um

deles, em virtude do pecado do homem, um contraste ainda bem mais externo do

que anteriormente – nada disto tem lugar nos domínios da meditação psicológica,

cabendo sim à Dogmática, à teoria da Redenção, cuja explicação dogmática

esclarece o pressuposto da pecabilidade.” (KIERKEGAARD, s/d, p. 89,

grifo nosso)

68

Acerca desta teoria, da Redenção, é bom pôr em relevo a Dogmática de Vigilius

Haufniensis. Curiosamente e não sem motivo, a Dogmática de Vigilius Haufniensis não é a

Dogmática de seus contemporâneos que destronara o Cristianismo.

“Enquanto deveria reinar sobre os homens, transformar a vida deles cada dia e

não só aos domingos, enquanto deveria intervir categoricamente em todas as

circunstâncias da existência, é visto como simples doutrina científica à distância:

mostra-se a concordância de seus diversos dogmas; mas a minha vida e a tua

vida, a conformidade ou a não-conformidade da vida dos homens com esta

doutrina, é indiferente.” (KIERKEGAARD, Discours chrétiens,

“Pensées qui attaquent dans le dos”. In: FARAGO, 2006, p. 209).

A Dogmática de nosso autor não quer “explicar a pecabilidade ou provar a sua

realidade” (KIERKEGAARD, s/d, p. 89, nota), pois quando intenta provar a realidade dos

dogmas torna-se “totalmente indiferente à atitude do ouvinte ou do discípulo” (In:

FARAGO, 2006, p. 209) porque, no Cristianismo, o que importa é a atitude do ser humano

em relação a ele: “Um homem pode ser instruído em toda a sua doutrina, explicá-la,

desenvolvê-la, expô-la. Mas se ele considera indiferente sua relação com o cristianismo, é

pagão” (ibidem).

No que se refere ao pressuposto da pecabilidade, a perspectiva do nosso autor

diverge da de seus coetâneos dogmáticos racionalistas, ela envolve “uma negação evidente

dos pontos de vista racionalistas, segundo os quais a sensualidade em si mesma é

pecabilidade” (KIERKEGAARD, 2007, p. 115, tradução nossa).

Para os racionalistas, “a sensualidade é, em si mesma, pecabilidade”; mas sensuais

todos nós somos, isto é, possuímos um corpo físico dotado de sentidos pelos quais

recebemos impressões causadas pelos objetos externos nisto não há nenhuma qualidade

69

nova logo, a sensualidade, em si mesma, não pode ser pecabilidade34

. Acontece, e é o que

Kierkegaard advoga, que:

“Depois que o pecado entrou no mundo e todas as vezes que aí entra, a

sensualidade devém pecabilidade. Só que, devindo-o, não o era antes. [...]

sensualidade coincide com pecabilidade; mas não coincidirá, no que respeita ao

indivíduo, antes que ele mesmo, por seu turno, quando institui o pecado,

transforme a sensualidade em pecabilidade.” (KIERKEGAARD, s/d, p. 90)

Ao problematizar que “sensualidade devém pecabilidade” o filósofo dinamarquês

pretende desconstruir a ideia de substancialidade fixada e tão cara aos essencialistas sobre a

sensualidade humana, bem como evidenciar que esta somente é convertida em pecabilidade

quando o Indivíduo a institui como Indivíduo. É sabido que do pecado de Adão devém a

capacidade de pecar – a pecabilidade – que não a experimentara Adão por essa se tratar de

uma progressão quantitativa, contudo a sensualidade foi e se converterá em pecabilidade

todas as vezes que o ser humano, pelo pecado, rebaixá-la o que implica instaurar-lhe uma

qualidade nova.

Prossigamos, procurando destacar:

“A angústia tal como era em Adão jamais reaparecerá, porque Adão introduziu a

pecabilidade no mundo. Donde que essa angústia tem, hoje, duas analogias graças

ao último fato assinalado: a angústia objetiva na natureza e a angústia subjetiva

no indivíduo; das quais a segunda contém „um mais‟ com respeito àquela

angústia adâmica e a primeira „um menos‟.” (KIERKEGAARD, 2007, p.

117, tradução nossa)

34

Em que sentido a sensibilidade é pecabilidade ou em que sentido a sensibilidade coincide com pecabilidade,

conforme tradução espanhola, Kierkegaard esclarece nesta passagem: “A sensibilidade se fez pecabilidade

uma vez que o pecado veio ao mundo e cada vez que o pecado vem ao mundo, mas o que aquela chega a ser

não o foi anteriormente. [...] Na progressão quantitativa da espécie – isto é, de uma maneira que não toca à

essência mesma – a sensibilidade é pecabilidade; em vez disso, no o é em relação ao indivíduo, senão até o

momento em que este, pecando pessoalmente, volta a fazer da sensibilidade pecabilidade” (KIERKEGAARD,

2007, p. 115, tradução e grifo nossos), ou seja, a “essência mesma” da existência é o Indivíduo, portanto,

somente quando ele peca é que a sensibilidade devém pecabilidade porque é o Indivíduo quem estabelece a

qualidade.

70

Segundo Kierkegaard, quanto mais profunda é nossa reflexão sobre a angústia mais

fácil se torna convertê-la em culpa, mas a culpa, adverte-nos o dinamarquês, é apenas uma

determinação aproximativa que não produz o salto e que apesar de “mais fácil” não facilita

a explicação (KIERKEGAARD, s/d, p. 92):

“Por mais que a angústia se torne cada vez mais reflexiva, não por isto deixa de

conservar a culpa – que brota em meio da angústia com o salto qualitativo – o

mesmo grau de responsabilidade que a de Adão, continuando a angústia no

mesmo grau de ambiguidade que a caracteriza desde o princípio.”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 117-118, tradução nossa)

Por causa de sua progressão no gênero, a angústia no homem posterior a Adão é

mais refletida, não obstante, ela continua a preservar a culpa tal como em Adão com os

mesmos graus de responsabilidade e de ambiguidade; isto também significa que apenas

quantitativamente a angústia de Adão difere da do homem posterior e que, portanto,

qualitativamente ambas permanecem idênticas. Cada ser humano é dono de uma existência

singular, ou, como disse Sartre, nenhum ser humano consegue reproduzir o modo como

outro ser humano colocou-se ou coloca-se diante de sua própria consciência infeliz;

somente Adão existiu como Adão, em outros termos, como dissemos, Indivíduo algum

pode existir ao modo de outro Indivíduo, mas ainda que pudéssemos existir apenas como

repetição numérica desafogando-nos de nossa singularidade, de uma coisa não

conseguiríamos nos despojar: da culpabilidade porque ela é própria do ser humano.35

O que

faz a culpabilidade uma determinação própria do Indivíduo? Para que possamos delinear

mentalmente esta questão uma outra se antecede: Onde está a causa da angústia?36

A causa

35

Do ser humano posterior a Adão, é bom lembrar.

71

da angústia está tanto no ser humano como na existência. Se o ser humano não tivesse

existido! Se o ser humano não tivesse que existir! A angústia é “vertigem da liberdade, que

nasce quando, ao querer o espírito instituir a síntese, a liberdade mergulha o olhar no

abismo das suas possibilidades e se agarra à finitude para não cair” (KIERKEGAARD, s/d,

p. 93). Ao agarrar-se à finitude,37

a liberdade esmorece porque na imensidão das suas

possibilidades não consegue existir;38

então, tudo muda: quando um Indivíduo faz da

liberdade realidade, quando escolhe, quando põe-se a realizar a possibilidade à qual se

agarrou, “quando a liberdade se incorpora de novo,[39]

vê que é culpado”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 118, tradução nossa). Aparece, então, o salto: entre a infinitude

da liberdade e a finitude à qual, mediante o Indivíduo, ela se agarra para não cair; para

prover com exemplo, sigamos Abraão40

: aos olhos de Deus, Abraão fez a melhor escolha,

36

Antecede-se porque a culpa “brota em meio da angústia com o salto qualitativo”; querer saber da culpa é

perguntar-se, primeiramente, pela angústia.

37

Isto é, ao escolher. “No abismo das suas possibilidades” a liberdade precisa agarrar-se a uma possibilidade

para fazer-se valer.

38

Eis até onde alcança e quer ir a Psicologia: até a finitude, a escolha.

[39]

A primeira “incorporação” da liberdade é aquela em que ela aparece sob a forma de múltiplas

possibilidades, como: poder-se.

40

Em Gênesis 22, 1-14, narra-se que “[...] Deus pôs Abraão à prova e lhe disse: „Abraão‟; ele respondeu:

„Eis-me aqui‟. Ele prosseguiu: „Toma o teu filho, o teu único, Isaac, que amas. Parte para a terra de Moriá, e

lá o oferecerás em holocausto sobre uma das montanhas que eu te indicar‟. Abraão levantou-se de manhã

cedo, encilhou o jumento, tomou consigo dois de seus criados e seu filho Isaac. Rachou as achas de lenha para

o holocausto. Partiu para o lugar que Deus lhe havia indicado. No terceiro dia, ergueu os olhos e viu de longe

esse lugar. Abraão disse aos criados: „Fica aqui, vós, com o jumento; eu e o jovem iremos lá adiante

prosternar-nos; depois voltaremos a vós‟.

Abraão tomou as achas de lenha para o holocausto e as pôs aos ombros de seu filho Isaac; tomou a

pedra-de-fogo e o cutelo, e os dois se foram juntos. Isaac falou a seu pai Abraão: „Meu pai‟, disse ele, e

Abraão respondeu: „Aqui estou, meu filho‟. Ele continuou: „Aqui estão o fogo e a lenha; onde está o cordeiro

para o holocausto?‟ Abraão respondeu: „Deus saberá ver o cordeiro para o holocausto, meu filho‟. Os dois

continuaram a andar juntos.

Ao chegarem ao lugar que Deus lhe havia indicado, Abraão ergueu ali um altar e arrumou as achas

de lenha. Amarrou seu filho Isaac e o pôs em cima da lenha. Abraão estendeu a mão para apanhar o cutelo e

imolar seu filho. Então o anjo do SENHOR chamou do céu e exclamou: „Abraão! Abraão!‟ Ele respondeu:

„Aqui estou‟. Ele prosseguiu: „Não estendas a mão contra o jovem. Não lhe faças nada, pois agora sei que

temes a Deus, tu que não poupaste teu filho, teu único filho, por mim‟. Abraão ergueu os olhos, observou, e

eis que um carneiro estava preso pelos chifres num denso espinheiro. Ele foi apanhá-lo para oferecê-lo em

72

“no abismo das suas possibilidades” agarrou-se à melhor finitude, isto, repetindo, aos olhos

de Deus e do Abraão religioso. Contudo, as escolhas humanas e o próprio Indivíduo se

movem em uma realidade cujas determinações não são apenas religiosas, mas também

estéticas e éticas, deste modo é impossível escapar da culpa porque se, efetivamente, não se

é culpado41

, a culpabilidade penetra em nós como um modo de existirmos. Vê-se, portanto,

que a “culpabilidade do que se faz culpado em meio da angústia é o mais ambígua

possível” (KIERKEGAARD, 2007, p. 118, tradução nossa). Por causa disso, para Sören

Kierkegaard, a angústia “é uma impotência feminina em que se desvanece a liberdade”,

porque a angústia “é uma liberdade travada, onde a liberdade não é livre em si mesma”42

(KIERKEGAARD, 2007, p. 99, tradução nossa), pois está travada pela finitude. Além

disso,

holocausto, em lugar do seu filho. Abraão chamou aquele lugar „o SENHOR vê‟; por isso se diz hoje em dia:

„É sobre a montanha que o SENHOR foi visto‟.” (grifo nosso)

O capítulo 22 do livro do Gênesis que se estende do versículo 1 ao 24, “é atribuído, no essencial, à

tradição „eloísta‟.* Este relato célebre, geralmente denominado „o sacrifício de Isaac‟, inclui implicitamente

uma condenação dos sacrifícios de crianças em Israel e evidencia a fé de Abraão, a quem Deus pede o que ele

tem de mais caro**. O patriarca se tornará na tradição bíblica o modelo do justo que obedece pela fé. O

„amaramento‟ de Isaac desempenhará um grande papel na piedade e no rito judaico; os Padres verão no

sacrifício de Isaac uma prefiguração do sacrifício de Jesus Cristo; o Corão alude a esta cena sem nomear o

filho que Abraão deve imolar; para a tradição muçulmana, é Ismael que Deus pede a Abraão.”

* Fragmentos narrativos que se distinguem pela utilização do nome genérico “Elohim” para falar de Deus nas

narrativas que precedem a revelevação do nome YHWH (pronunciado Iahvé ou Iahô). Daí o nome eloísta

dado a essa camada, com a inicial E. Existem ainda as tradições: sacerdotal (P), deuteronômica (D) e javista

(J) com a qual os vários fragmentos narrativos da camada E se combinam. (Gênesis. In: TEB, 1997, p. 51)

** “Praticava-se entre os semitas do oeste o sacrifício dos primogênitos, por exemplo, em certos casos de

aflição: o homem oferecia o que possuía de mais caro. A questão não podia apresentar-se para Abraão, que

vinha do leste, onde sacrifício semelhante não era praticado; segundo este relato, desde a época patriarcal a

vítima humana devia ser substituída pelo animal.” (Gênesis. In: TEB, 1997, p. 51)

41

Enquanto que o fator quantitativo – a geração – faz-nos participar da culpabilidade, o fator qualitativo –

aquele que somente é instituído pelo Indivíduo a título de Indivíduo – nos oferece, em sentido estrito, a culpa.

“[...] o indivíduo só pode tornar-se culpado em virtude de uma decisão pessoal; o fator quantitativo da geração

atinge aqui, contudo, o grau máximo, a ponto de, por vezes, confundir todo o problema, caso não consigamos

conservar bem firme a diferença já indicada entre o fator quantitativo e o salto qualitativo.”

(KIERKEGAARD, s/d, p. 82)

42

Onde a liberdade é “não liberdade”. A não liberdade faz de si mesma prisioneira. “A liberdade é sempre

comunicante [...] a não liberdade torna-se cada vez mais fechada e não quer a comunicação.”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 132)

73

“A queda, falando em termos psicológicos, sempre acontece em meio de uma

grande impotência [impotência, porque o ser humano existe na finitude]. E,

ademais, a angústia é uma das coisas que maior egotismo encerra [egotista,

porque volta-se sobre si mesma]. Neste sentido nenhuma manifestação concreta

da liberdade é tão egotista como a possibilidade de qualquer concreção [é o

Indivíduo realizando-se como Indivíduo]. Esta é, uma vez mais, a opressão que

trás consigo o comportamento ambíguo do indivíduo, sua situação de simpatia e

antipatia simultâneas. Na angústia reside a infinitude egotista da possibilidade, a

qual no lhe tenta de uma vez como uma escolha que tenha que fazer, senão que o

angustia seduzindo com sua doce ansiedade.” (KIERKEGAARD, 2007, p.

118-119, tradução nossa)

Disse-se que por causa da determinação quantitativa do gênero, a angústia no

homem posterior a Adão é mais refletida, isto é, mais consciente; segue-se, desta realidade,

a seguinte constatação: “o nada – que é o objeto da angústia – parece que se torna mais e

mais algo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 119, tradução nossa). Mas, o que significa este algo

o qual se torna o nada da angústia? Este algo corresponde a um “complexo de

pressentimentos refletidos sobre si mesmos e aproximando-se cada vez mais do homem,

embora, no fundo, ainda nada signifiquem na angústia” (KIERKEGAARD, s/d, p. 94);

nisto, o mais curioso é que este complexo de pressentimentos autorrefletidos que, ainda,

nada significam na angústia não se trata de “um nada que seja indiferente ao indivíduo, mas

um nada em comunicação viva com a ignorância da inocência” (KIERKEGAARD, s/d, p.

94), pois o Indivíduo não se fez, ainda, culpado. “Estes reflexos constituem uma

predisposição que, antes que o indivíduo se faça culpado, significa essencialmente nada”

(s/d, p. 94), pois somente significará alguma coisa quando, mediante o salto qualitativo, o

Indivíduo fizer-se culpado; a partir de então, os reflexos “constituem o suposto desde o qual

o indivíduo se remonta além de si mesmo, uma vez que o pecado se autopressupõe. Claro

que este não se pressupõe antes de ser posto, o que seria uma predestinação..., mas sim

somente enquanto é posto.” (KIERKEGAARD, s/d, p. 95)

74

A par do que corresponde o algo no qual converte-se o nada da angústia, Sören

Kierkegaard põe-se a analisar o que esse algo pode significar no Indivíduo posterior a Adão

ou que valor ele pode ter. Conforme o autor de O Conceito de Angústia, este algo, o qual

significa o pecado original, significa no Indivíduo posterior: a consequência da geração e a

consequência da relação histórica, vejamos: o efeito ou a consequência da geração “não se

trata de algo que pode ocupar aos médicos, como enfermidades de nascença. Tão pouco se

poderá obter um resultado por meio de quadros estatísticos. O importante, nesta como em

todas as questões, é a autenticidade da disposição correspondente”43

(KIERKEGAARD,

s/d, p. 95; 2007, p. 120, tradução nossa), ou seja, dispor-se do meio adequado acompanhado

de uma vontade profunda e de um desejo genuíno para conduzir a questão.

“Elaborar tábuas estatísticas a propósito do estado de pecabilidade, traduzi-lo em

mapas com ajuda de cores e de sombreados que facilitem a ideia geral, é, afinal,

tentar abordar o pecado como se este fora uma curiosidade natural que não

podemos suprimir mas tão só calcular, a exemplo da pressão atmosférica ou do

grau de precipitação [...] não seria sumamente grotesco que alguém pretendesse

falar a sério de uma média de pecabilidade para cada homem na ordem das 3

polegadas e 3/8 por indivíduo ou aludisse ao fato de, no Languedoc, a média

43

Em seu livro, originalmente em francês com o título Impromptus, traduzido para o português como Bom

dia, angústia! Comte-Sponville faz a distinção entre “a crise de angústia, com suas manifestações somáticas

tão espetaculares, da angústia existencial, que o mais das vezes é desprovida delas.” O autor afirma que a

saúde não está, exclusivamente, do lado da diversão e que a angústia nem sempre é patalógica: “A sanidade

mental não poderia medir-se apenas pelo bem-estar. A angústia do soropositivo, a angústia do condenado à

morte, a angústia da mãe cujo filho está doente, quem as julgará patológicas? E quem não vê que a nossa de

certo modo se parece com a deles? Qual dentre nós escapará da morte? E qual de nossos filhos? Que podem

os ansiolíticos contra uma ideia verdadeira? Isso não impede de utilizá-los, quando é preciso, quando a vida

seria muito mais insuportável ou atroz. Mas é preciso sempre? E não será pagar caro, muito amiúde, só

suprimir o sofrimento – mediante medicação ou diversão – em troca da coragem e da lucidez? Será a saúde

que se quer, ou o conforto? A capacidade de enfrentar o real, ou a possibilidade de fugir dele? [...] Que é a

sanidade psíquica? Talvez a capacidade de enfrentar o real e o verdadeiro sem perder toda a força, toda a

alegria, toda a liberdade. Onde há margem para a angústia, e é isso que distingue a sanidade da sabedoria. [...]

É o estado, esta definição não é inferior a outra, que torna a filosofia possível e, aliás, necessária. Dirão que

houve filósofos loucos. Mas, se o fossem deveras, não teriam filosofado; tendo-o ficado completamente

(Nietzsche), deixaram de filosofar. Que um filósofo, às vezes, tenha necessidade de um psiquiatra, isso não

poderia, pois, dispensar os psiquiatras de filosofar. É isso que a angústia lembra a uns e aos outros, marcando

os limites da filosofia, quando a angústia é patológica, bem como da medicina, quando ela não o é. Que tais

limites sejam imprecisos, que por vezes se invadam mutuamente (onde termina o normal? onde começa o

patológico?), isso é uma evidência, mas que não poderia suprimi-los. A angústia existencial não é uma

doença; a neurose de angústia não é uma filosofia.” (COMTE-SPONVILLE, 1997, p. 15 e ss.)

75

atingir apenas 2 ¼, contra 3 7/8 na Bretanha?” (KIERKEGAARD, s/d, p.

96)

Assim, quando se pretende ensinar o “efeito da geração” há de se tomar o cuidado,

mesmo que se tenha boa intenção, de não fazê-lo um dito espirituoso que debilita o

conceito de mal e o adorna com uns tons quase humorísticos (KIERKEGAARD, 2007, p.

120, tradução nossa). O efeito do pecado no mundo foi ter convertido a sensualidade em

pecabilidade, porém o que isto significa? Isto significa duas coisas: primeiro, que com o

pecado se torna pecabilidade a sensualidade; segundo, que com Adão veio o pecado ao

mundo.44

Estas consequências da relação da geração estão prefiguradas, conforme nosso

autor, na criação de Eva; de certo modo ela é o sinal do derivado.45

Enquanto “derivado” Eva é apenas quantitativamente diferente de Adão, “o

original”. Sabemos que o aspecto quantitativo não estabelece nenhuma qualidade e que a

única coisa que ele exprime é a progressão do gênero, aliás, em O conceito de angústia ele

exprime, especificamente, a progressão da angústia no gênero. “O indivíduo posterior é

essencialmente tão original como o primeiro. A diferença está para todos os indivíduos

posteriores em bloco, na derivação; todavia, para cada um em particular, a derivação pode,

por seu turno, significar algo mais ou algo menos” (KIERKEGAARD, 2007, p. 122-123,

tradução nossa; s/d, p. 97); se, para cada Indivíduo em particular, a derivação pode

44

“Ambas as afirmações devem equilibrar-se mutuamente em todo momento, pois do contrário se expressa

algo que não é verdade. O fato da sensualidade se converter um dia em pecabilidade constitui a história da

geração; mas que hoje a sensualidade se torne pecabilidade, isto é o salto qualitativo do indivíduo.”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 122, tradução nossa)

45

“E o derivado nunca é tão perfeito como o original” (KIERKEGAARD, 2007, p. 122, tradução nossa).

Conforme Kierkegaard, naturalmente, isto só é válido para a espécie humana, em que o indivíduo se

determina como espírito (ibidem, nota).

76

significar algo mais ou menos, para Eva ou para qualquer outra pessoa posterior do sexo

feminino, a derivação significou ainda mais.

Para o nosso autor, a condição de derivação da mulher explica em que sentido ela é

mais frágil que o homem46

não obstante, “por mais que sejam as diferenças, nunca se

poderá discutir a essencial igualdade do homem e da mulher” (KIERKEGAARD, 2007, p.

123, tradução e grifo nossos); qual é, então, a “expressão da diferença” entre o homem e a

mulher? A diferença consiste em a angústia refletir-se mais na mulher que no homem,

“mais em Eva do que em Adão”; porque a mulher é mais sensual que o homem47

– segundo

nos assegura o filósofo, isto não se baseia em dados empíricos ou de amostragem – a

diferença entre ambos refere-se “à diversidade da síntese”,48

ou seja, ao contrário do

homem, a síntese na mulher excede um dos termos – o corpo – fazendo-a, desse modo,

mais sensual.

“[...] ao estabelecer-se o espírito, inevitavelmente será maior a divergência mútua

se há „um mais‟ em uma das partes da síntese; e, então, a angústia também

encontrará, dentro da possibilidade da liberdade, um maior campo de ação.

Segundo a narração do Gênesis, é Eva quem seduz. Porém disto não se segue, de

maneira alguma, que sua culpa seja maior que a de Adão, e, ainda menos, que a

angústia seja uma imperfeição, ao contrário, sua grandeza é um presságio da

perfeição.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 123, tradução nossa; s/d, p.

98)

46

“Isto é algo que se tem admitido em todos os tempos com plena unanimidade por parte dos homens, tanto

por um „paxá‟ como por um cavaleiro romântico.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 123, tradução nossa; s/d, p.

98)

47

Na tradução espanhola, lê-se: “a mulher é mais sensível que o homem.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 123,

tradução e grifo nossos)

48

O homem e a mulher são uma síntese. “Uma síntese é a relação de dois termos. [...] Numa relação de dois

termos, a própria relação entra como um terceiro, como unidade negativa, e cada um daqueles termos se

relaciona com a relação, tendo cada um existência separada no seu relacionar-se com a relação; assim

acontece com respeito à alma, sendo a ligação da alma e do corpo uma simples relação. Se, pelo contrário, a

relação se conhece a si própria, esta última relação que se estabelece é um terceiro termo positivo, e temos

então o eu.” (KIERKEGAARD, 1979, p. 195)

77

Disto podemos ver, conforme nosso autor, que há uma correspondência entre a

sensualidade e a angústia, pois desde que se iniciara a geração “o que se diz de Eva não

passa de um sinal da própria relação com Adão de todos seus descendentes, a saber, que a

angústia vai aumentando à medida que a sensualidade aumenta com a geração”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 123, tradução nossa; s/d, p. 98). Assim, a consequência do

efeito da geração ou da relação da geração no Indivíduo posterior tem o valor ou “significa

„um mais‟ de que não se pode eximir nenhum indivíduo. Isto é o „plus‟ de todos os

descendentes a respeito de Adão, mas de tal sorte que isso nunca possa constituir por si

mesmo uma diferença essencial entre o indivíduo posterior e Adão” (KIERKEGAARD,

2007, p. 123-124, tradução nossa).49

A sensualidade é este “mais”, absorvido em um dos

termos da síntese – corpo – sobrepesando-o, a qual não conheceu Adão50

, “o original”, mas,

incluindo Eva, todos os seus descendentes.

Dissemos que o pecado de Adão – o pecado original – significa para o Indivíduo

posterior a consequência da geração, a qual estamos tratando; e a consequência da relação

histórica. O efeito da geração converteu a sensualidade em pecabilidade a todos os

Indivíduos posteriores, sem discriminação de sexo; logo, em que sentido a mulher tem mais

sensualidade e sente mais angústia que o homem? (KIERKEGAARD, 2007, p. 124,

tradução nossa) Não será por causa de sua constituição física; a tese kierkegaardiana

demonstra-se estética e eticamente. Esteticamente, considerando a mulher “sob o seu

ângulo ideal, a Beleza”; eticamente, examinando-a “sob o seu ângulo ideal, a procriação”,

49

Se há uma diferença entre o Indivíduo posterior e Adão, no âmbito da relação da geração, esta é somente

quantitativa que, por seu turno, nada modifica na relação.

50

Adão não conheceu a sensualidade porque esta é posta na relação deste com seus “derivados”.

78

estas duas circunstâncias provam ser a mulher mais sensual que o homem”

(KIERKEGAARD, s/d, p. 99). Sob o ponto de vista estético, tem-se que

“Sempre que a beleza reina, produz uma síntese de onde é excluído o espírito.

Este é o segredo de todo o helenismo. [...]. A exclusão do espírito explica essa

despreocupação característica da Beleza grega, mas também o motivo de sua

profunda aflição inexplicável. Isto não quer dizer que a sensualidade seja

pecabilidade, mas sim um certo enigma insondável que nos enche de angústia. E,

por isso mesmo, a ingenuidade sempre vai acompanhada de um nada inexplicável

como é o da angústia.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 125, tradução

nossa; s/d, p. 99)

A beleza grega, segundo nosso filósofo, concebe o homem e a mulher de modo

idêntico, isto é, “não os concebe espiritualmente” (ibidem). Porém, nessa aparente

igualdade grega, subjaz uma diferença: a diversidade no rosto, ou, que “o espiritual

encontra sua expressão no rosto” (idem, ibidem).

“[...] limitarei [-me] a mostrar a diversidade aludida com uma única referência.

Vênus[51]

é igualmente bela mesmo que se a represente dormindo, é assim até

mais bela que nunca, e, não obstante, é justamente o sono a expressão da ausência

de espírito. A isto se deve que o homem dormindo seja tanto menos belo quanto

mais velha e espiritualmente desenvolvida se encontre a sua individualidade. A

criança, ao contrário, nunca é mais bela que quando está dormindo. Vênus

emerge das águas do mar e é representada em uma atitude de repouso, ou em uma

atitude que sirva para relegar a um plano de dispensabilidade a importância da

expressão de seu rosto. Se, pelo contrário, se trata de representar um Apolo[52]

ou mesmo um Júpiter[53]

–, não lhe ocorreria representá-lo dormindo. Neste caso

Apolo apareceria feio, e Júpiter ridículo. Com Baco,[54]

poderia abrir-se uma

[51]

Vênus, a deusa do amor e da beleza, é equivalente a Afrodite na mitologia grega. A deusa Vênus era

esposa de Vulcano, porém mantinha relações extraconjugais com Marte, o deus da guerra, com quem gerou:

Harmonia, Cupido, Deimos e Fobos. Vênus era o ideal da beleza feminina; de quem os romanos se

consideravam descendentes. (Adaptação nossa)

[52]

O belíssimo e ambíguo deus portador da saúde e de terríveis epidemias, patrono da música e das letras,

dava a conhecer seu valor através de respostas enigmáticas, os oráculos. Era venerado, sobretudo, em Delfos e

Delos, mas também tinha grandes templos em Corinto, Figaléia, Termos e Dídimo. (DURANDO, 2005, p. 70)

[53]

Júpiter, para os romanos; Zeus, para os gregos, era o rei dos deuses e dos homens.

[54]

Relativo a Dionísio na mitologia grega, é filho de Júpiter e da mortal Sêmele; era o deus do vinho e

representava a embriaguez, porém também era um promotor da civilização, legislador e amante da paz.

Segundo a lenda, Sêmele pediu para Júpiter mostrar-lhe todo o seu esplendor. Júpiter tentou dissuadi-la,

79

exceção, mas este constitui justamente dentro da arte grega a indiferença entre a

beleza masculina e a feminina, e por esta razão suas formas são também

femininas.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 126-127, tradução nossa; s/d,

p. 100)

Quando o padrão de beleza se tornara outro, observa Kierkegaard, no

Romantismo55

repete-se, outra vez, “a mesma diversidade [no rosto], e, novamente, dentro

da essencial igualdade”. A imagem da beleza, cujos exemplos ilustrativos da Antiguidade e

do movimento romântico Kierkegaard nos ofereceu, mostra-nos que a história do espírito56

não teme manifestar-se na face do homem porque a revelação de sua face, contanto os seus

traços sejam claros e nobres, é suficiente para que esqueçamos todo o resto de seu corpo

(KIERKEGAARD, s/d, p. 101); quanto à mulher,

“esta causará um efeito estético de uma maneira distinta, concretamente como

totalidade, embora com o Romantismo o rosto ganhe maior importância do que

na Antiguidade. A expressão, pois, do feminino é de uma totalidade que não tem

nenhuma história. Por isso, o silêncio não é somente a mais alta sabedoria da

mulher, mas também sua beleza suprema.” (KIERKEGAARD, 2007, p.

126, tradução nossa; s/d, p. 101)

Do ângulo da Ética, a mulher atinge o apogeu na procriação por isso, o seu desejo,

deve sempre visar o homem, afirma a Sagrada Escritura, segundo nosso autor. Apesar de à

mulher dever-se dirigir o desejo do homem, a vida, do homem, não deve culminar no

porém ela insistiu, fazendo com que o deus mostrasse todo seu esplendor, o que provocou sua morte, pois

Sêmele era apenas uma mortal. Com sua morte, Júpiter pegou o feto, Baco, das cinzas e o colocou em sua

perna, gerando assim, o deus do vinho. (Disponível em: http://www.brasilescola.com/mitologia/baco.htm.

Acesso em: 14 de janeiro de 2010)

55

Movimento artístico-literário irrompido na Europa no século XVIII abrangeu, praticamente, todos os países

europeus estendendo-se, a seguir, por outras partes do mundo; teve sua fase áurea no decorrer da primeira

metade do século XIX, ao fim da qual foi, gradualmente, perdendo terreno para o Realismo. (AZEVEDO,

1999, p. 402 e s.)

56

“este é justamente o segredo do espírito que nunca careça de história”, ou seja, o espírito tem sempre

história. (KIERKEGAARD, 2007, p. 126)

80

desejo pela mulher – nem mesmo no matrimônio57

– restando, apenas, “os casos em que o

homem leve uma vida medíocre ou perdida.”58

Quanto a declarar que a mulher sente mais angústia que o homem Sören

Kierkegaard assegura que isto não se deve ao fato que ela tenha menos forças físicas, “já

que aqui não se trata em absoluto de semelhante angústia”.59

A mulher sente mais angústia

porque ela é mais sensual e porque, ao mesmo tempo, está essencialmente determinada pela

espiritualidade como está o homem (KIERKEGAARD, 2007, p. 126; s/d, p. 101), ou seja,

que a sua existência, também, se move em um universo de possibilidades.

57

O matrimônio é a expressão do estádio ético da existência. Para Pierre Mesnard, o estádio ético muito mais

fácil de caracterizar que o estádio estético trata-se “a priori de um saber unitário e de uma vida coerente

governada por normas morais”. Em A Alternativa, escrito de 1843, Kierkegaard nos apresenta o herói deste

plano moral, a saber: o HERÓI DA VIDA CONJUGAL representado pelo conselheiro Wielhem que “defende

a sua própria causa, a do casamento feliz, num eloquente discurso. [...]. Entre a teoria do amor romântico,

caracterizada pela paixão, e a teoria de um acordo econômico e social em que a realidade fisiológica (porém

ignorada pela jovem) deve forçosamente trazer o amor consigo, Kierkegaard traça a efígie do amor cristão,

dádiva generosa de duas pessoas que reconheceram perante Deus a sua predisposição recíproca. Içada a este

nível, a defesa do casamento confunde-se indissoluvelmente com a exaltação do amor. A vida conjugal, digna

deste nome, não poderá ser senão a vontade de guardar para o primeiro amor toda a graça da Primavera no

momento mesmo em que se provam os frutos saborosos do Outono. Assim entendido, o casamento é

essencialmente uma escolha perante Deus, em que cada um se escolhe a si mesmo na escolha do outro esposo:

o casamento introduz assim a vida real, põe lastro na personalidade enfim consciente da seriedade da ética,

permite ao homem moral construir o seu destino lutando doravante pro aris et focis (pelos altares e pelos

lares). Mas este admirável elogio do casamento empreendido em A Alternativa confronta-se com objeções de

fato que As Etapas no Caminho da Vida [1845] divulgam. Tal como no plano estético, as objeções provêm

em grande parte da presença da mulher, esse ser caprichoso que é tão difícil de fixar-se numa relação

definida. Dificuldade que atinge aqui o paroxismo se é verdade, como nos diz Kierkegaard, que a mulher se

situa ela própria no plano da estética e só se revela plenamente no plano religioso. [...] é necessário, para que

uma relação funcione bem, que o homem aceite, no que lhe diz respeito, o heroísmo moral da vida quotidiana,

único meio de desviar a sua esposa de oscilações demasiado perigosas entre fruição estética e a renúncia

religiosa. [...]. O casamento não poderia passar, segundo o desejo do assessor Wilhelm, por uma solução

geral. É necessário reservar ao lado do caso típico a possibilidade de soluções excepcionais, e é bem evidente

que aquele que renuncia à vida conjugal para responder ao apelo do gênio religioso [como fez Kierkegaard?!],

„comprando pelo mais alto preço a vida mais penosa‟, atinge um plano de existência superior à do marido

mais perfeito.” (MESNARD, 2003, p. 29e s.)

58

A que se vive no estádio estético da existência. Nesse estádio, “o indivíduo singular deixa-se guiar pelos

momentos aleatórios que se apresentam, é incapaz de um projeto e de uma decisão que comportem a

radicalidade da doação como compromisso e responsabilidade, antes pauta sua vida no e com o efêmero, o

acidental, passa o tempo que lhe foi destinado inebriado e prisioneiro das vaidades proporcionadas pelos

„meios financeiros, da força física e exuberante da juventude‟.” (ALMEIDA; VALLS, 2007, p. 34)

59

A angústia tratada aqui não é aquela em que o Indivíduo se consome por falta, mas aquela em que o

Indivíduo se perde em “excesso” de possibilidades.

81

“Eis por que motivo o refrão acerca do sexo fraco me é completamente

indiferente, uma vez que esta fraqueza não impediria que a mulher

experimentasse menos angústia que o homem. Mas aqui sempre tratamos da

angústia na direção da liberdade. E assim, quando contra toda analogia a história

genesíaca nos apresenta a mulher seduzindo o homem, não temos de ver nisso,

precipitadamente, uma pura arbitrariedade, contanto que meditando-o a fundo se

nos revela como o mais normal do caso. Definitivamente, aquela sedução foi

justamente uma sedução feminina enquanto Adão de fato somente pela

intervenção de Eva se deixou seduzir pela serpente. Nos demais casos, sempre

que se fala de sedução, semelhante linguagem – encantar, persuadir, etc. –

concede sem exceção a iniciativa ao homem.” (KIERKEGAARD, 2007, p.

126-127, tradução nossa; s/d, p. 101-102)

Com uma “observação experimental”, como a denomina nosso autor, procura

demonstrar o quê, segundo ele, “é unanimemente reconhecido em todo o âmbito da

experiência”; eis a “observação de experimentador” de Vigilius Haufniensis:

“Suponhamos uma mocinha inocente a quem um homem ao passar lhe lança um

olhar anelante. A mocinha, sem dúvida, se encherá de angústia. Também pode

suceder que se enche de indignação e outros sentimentos parecidos, mas

primeiramente se encherá de angústia. Suponhamos agora a situação inversa, isto

é, uma mulher que lança um aneloso olhar sobre um rapazinho inocente, então a

reação deste não será de angústia, mas sim no mais alto grau uma certa vergonha

tingida de repugnância, precisamente porque ele está mais determinado como

espírito.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 127, tradução nossa; s/d, p.

102)

O ser humano que se determina mais como espírito, pouco ou nada se consome com

as manifestações do corporal e do psíquico – as que lhe são próprias e as de outrem – ao

contrário tem delas, em certa medida, pudor. Por quê? É o que veremos a seguir.

A consequência da geração, é oportuno lembrar, deu-se com a entrada do pecado de

Adão no mundo sendo para o Indivíduo posterior sinal de pecabilidade e, também, de

sexualidade “que acabou significando, para o mundo, pecabilidade. Assim se institui o

82

sexual” – numa atmosfera em que a sexualidade adquiria ar de pecabilidade também o sexo

passa a figurar como tal –; quando o ser humano não o conhece diz-se que é ingênuo ou

inocente, pois “a inocência é ingênua e ignorante”, contudo, “falar de ingenuidade quando

já se tem consciência do sexual equivale a irreflexão ou afetação, e algumas vezes a algo

ainda muito pior, a um ocultamento dos prazeres correspondentes”. O que tudo isso

significa? Significa que, fatalmente, o homem peque quando deixa de ser ingênuo?

Absolutamente. “Estes não são mais que insípidos galanteios com os que se pretende iludir

aos homens, afastando sua atenção do verdadeiro e do moral.” (KIERKEGAARD, 2007, p.

128, tradução nossa; s/d, p. 102)

Assim, cientes dos adornos com os quais – o teatro e o púlpito – pretendem nos

iludir acerca do sexual, um enunciar de nosso autor, inquire-nos: Qual a importância do

sexual e sua significação nas diversas esferas particulares? Falar sobre essa questão de

maneira verdadeiramente humana, conforme Kierkegaard, constitui toda uma arte.60

“O sexual enquanto tal não é pecaminoso”; a ignorância do sexual está destinada

somente ao animal “por isso mesmo, este sempre se encontra atado à cegueira do instinto e

sempre marcha às cegas” (KIERKEGAARD, 2007, p. 129, tradução nossa; s/d, p. 104);

outra ignorância acerca do sexual – que não está, como no animal, realmente presente –

que “implica também um ignorar o que não é”, o que não existe, pois ainda não está

determinada como espírito, é a da criança.

60

Talvez por não ter a companhia de alguém com quem pudesse compartilhar as idéias, com quem pudesse

confrontar antes de as apresentar ao grande público, Sören Kierkegaard evoca Sócrates: “[...] tenho a certeza

de que se Sócrates vivesse hoje não haveria deixado de meditá-lo [o problema do sexual] a fundo [...] estou

convencidíssimo de que em tal caso – apesar de que ele poderia fazer muito melhor que eu e, por assim dizer,

de uma maneira muito mais divina – me teria dito: „Oh, amigo meu, que bem fazes em pensar estas coisas tão

dignas de ser meditadas! Sim, poderia passar as noites inteiras em diálogo e, não obstante, sem chegar nunca a

penetrar inteiramente o admirável prodígio da natureza humana‟. Esta convicção é para mim de um valor

infinitamente mais alto que todos os „hurras‟ da contemporaneidade; pois tal convicção me converte a alma

em uma rocha inquebrantável, enquanto os aplausos a fariam vacilar.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 129,

tradução nossa)

83

“A inocência é um saber que equivale a ignorância. Sua diferença da ignorância

moral é bem notória, já que aquela está determinada na direção de um certo saber.

Com a ignorância começa um saber cuja primeira determinação é a ignorância.

Este é o conceito de pudor – Schaam –. O pudor entranha angústia precisamente

porque no ápice da diferença da síntese que é o homem, o espírito não só se

encontra determinado como pertencendo ao corpo, mas também como corpo com

determinada diferença sexual. ” (KIERKEGAARD, 2007, p. 130,

tradução nossa)

Por não haver ainda um Eu – do que se pode depreender que o espírito, na síntese,

não tenha ainda se estabelecido como um terceiro termo positivo – o ser humano se acha na

ignorância mais, especificamente, como corpo onde se mostram as diferenças dos sexos. O

pudor, este saber, ainda ignorante daquele que começará com o ápice da síntese – o saber

que fará o Indivíduo refletir sobre si mesmo – introduz profunda angústia no ser humano,

no homem e na mulher, uma angústia em que impera a vergonha na qual não há nada de

quê se envergonhar, uma angústia em que o simples saber acerca da diferença dos sexos é

suficiente para que lhes acene o nada enquanto dor inexprimível.

“O pudor, certamente, é um saber acerca da diferença dos sexos, mas não implica

uma relação com essa diferença sexual. O que significa que o impulso não se fez,

enquanto tal, ato de presença. O autêntico significado do pudor está em que o

espírito, por assim dizer, não as tem todas consigo nesse ápice extremo da síntese.

Por isso é tão enormemente ambígua a angústia do pudor. Para começar, não há

nele nem o mais mínimo sinal de prazer sensual; e, todavia, impera uma certa

vergonha. De quê? De nada! E, contudo, o indivíduo pode morrer de vergonha; e

o pudor ferido é a mais profunda das dores, precisamente porque é a mais

inexplicável de todas.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 130, tradução

nossa; s/d, p. 104-105, grifo nosso)

Para o nosso autor, este é o motivo porque a angústia do pudor seja capaz de

despertar por si mesma (ibidem) uma vez que não pode ser o espírito a despertá-la já que

não se estabeleceu, ainda, na síntese; que seja assim, que seja aquela angústia capaz de

84

autodespertar-se, que “não seja o prazer o que pretenda desempenhar esse papel”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 131, tradução nossa).

A diferença sexual está posta no pudor, mas sem a orientação do sexo masculino

para o sexo feminino que somente acontece com o impulso que nos animais é dado pelo

instinto. No ser humano, o impulso não é o mesmo que ou não é só instinto (ibidem); o

impulso ou o movimento de um ser humano para o outro tem um telos: a propagação que

faz com que se movam orientados um para o outro;61

sem a propagação como telos só há o

erotismo62

que cessa a partir do instante em que o espírito se instaura enquanto tal, isto é,

não só como um termo da síntese, mas como espírito que ao reunir os constituintes, corpo e

alma, forja o Indivíduo.

“A suprema expressão pagã deste processo [este em que o espírito se instaura não

só como constituinte da síntese mas como espírito cessando todo o erotismo] nos

a dá a afirmação clássica de que o erótico é o cômico. Isto, naturalmente, não há

que entendê-lo no sentido da interpretação que lhe dá um libertino qualquer,

confundindo o erótico e o cômico e empregando-o como matéria estupenda de

suas brincadeiras lascivas; ao contrário, o que aqui decide é a força e

preponderância da inteligência, neutralizando tanto o erótico como a

correspondente relação moral na indiferença do espírito. Por certo que esta é uma

consideração de profundo entalhe. A angústia do pudor consistia em que o

espírito se sentia estranho, mas agora o espírito venceu totalmente e encara o

sexual como algo estranho e cômico.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 131,

tradução nossa; s/d, p. 105)

61

Na edição espanhola, direta do danês, há uma observação feita pelo tradutor que nos parece relevante.

Segundo Kierkegaard, o impulso ou movimento de um sexo para o outro que não tem por fim a propagação,

ao contrário, é “estático”, equivale a amor, a erotismo puro. Conforme RIVERO, trata-se esse amor “do amor

correspondente ao „estádio estético‟, amor imediato puramente instintivo e erótico, submetido totalmente ao

prazer, à sensibilidade e ao instante passageiro. Não é nenhum amor „decisivo‟, como o que corresponde ao

„estádio ético‟ [...] e está infinitamente distante do amor – caridade – [...].” (KIERKEGAARD, 2007, p. 131,

nota, tradução nossa)

62

A expressão que o espírito dá do erótico é que este é, ao mesmo tempo, o belo e o cômico. (ibidem, p. 132)

85

O pudor, afirma Kierkegaard, jamais poderia atingir a liberdade que o espírito tem

de estabelecer-se e encarar o sexual cômico. “O sexual é a expressão dessa enorme

contradição que radica no fato de que o espírito imortal esteja determinado como genus63

.

Esta contradição se manifesta como um pudor profundo que oculta esse fato e não se atreve

a compreendê-lo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 132, tradução nossa) a não ser no erótico,

graças à beleza, “pois a beleza é cabalmente a unidade do psíquico e do corporal. Mas esta

contradição que o erotismo chega a esclarecer no meio da beleza representa para o espírito

duas coisas ao mesmo tempo: a beleza e a comicidade” (ibidem); a partir de então, o que se

vê, é o amadurecimento do espírito, motivo pelo qual “já não há nenhum reflexo dos

sentidos sobre o erótico”, pois o Indivíduo “relegou o erotismo a uma zona de

indiferença”.64

Por isso dissemos, que o Indivíduo que se determina mais como espírito,

pouco ou nada se consome com as manifestações corpóreas e psíquicas, nem com as suas e

nem com as dos outros que chegam a lhe parecer, tanto uma como a outra, cômicas.65

É importante notar que o espírito ao encarar o erotismo belo e cômico não quer

torná-lo desnecessário – o que nos parece impossível já que o espírito se determina como

genus cujo modo de se exprimir, entre outros, é erótico – e menos ainda anulá-lo; no

entanto, observa Sören Kierkegaard, o cristão tende a suspendê-lo66

– a sublimá-lo, diria

Freud – ao invés de neutralizá-lo pela ironia argumentando fazer, assim, o espírito avançar.

63

Raça.

64

Para Kierkegaard, Sócrates é um dos poucos homens que foi indiferente ao erotismo.

65

Pertinente e bastante atual é a observação que Kierkegaard faz acerca da indiferença ao erotismo. Para ele,

raras vezes se conserva toda a beleza sublime desta ideia, para tal “seria necessário que coincidissem de um

modo admirável tanto uma feliz evolução histórica como umas extraordinárias qualidades originais. Porque

neste ponto, tão logo aparecem as objeções, por mais distantes que sejam, nos encontramos eo ipso metidos

em uma concepção repugnante e afetada.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 133-134, tradução nossa)

66

“No cristianismo, o religioso suspendeu o erotismo, não precisamente em virtude de uma incompreensão

ética, como se fora o pecado, mas sim considerando-o como algo indiferente, já que o espírito não estabelece

diferença entre o homem e a mulher.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 134, tradução nossa; s/d, p. 108)

86

“Enquanto no meio do pudor o espírito sentia angústia e medo ao apropriar-se a diferença

sexual, agora, em vez disso, a individualidade salta de repente fora dela mesma e, em vez

de aprofundar eticamente nela, a sujeita a uma explicação tomada das mais altas esferas

espirituais” (KIERKEGAARD, 2007, p. 134, tradução nossa); a alguns cristãos mais vale

sublimar e/ou negar o erotismo – que junto ao pudor nos dá o saber acerca da diferença dos

sexos – alegando salvar o espírito ao invés de reconhecer que a individualidade é este

complexo o qual não sabem bem o que é e que, portanto, lhes causam grande temor.67

Disse-se que o sexual enquanto tal não é pecado e, reafirmamos, não é, apesar da

angústia – do mesmo modo que está posta no meio do pudor – estar presente em todo gozo

erótico. A angústia, segundo nosso autor, está presente em todo gozo erótico,

“Não porque este gozo seja pecaminoso, de nenhuma maneira! Por isto mesmo,

tampouco serve de nada – neste sentido, se entende – que o pároco bendiga dez

vezes seguidas ao casal recém-casado. Até quando o erótico se expresse da

maneira mais bela, pura e moral que seja possível, sem o menor rastro de reflexão

voluptuosa que denigra sua alegria..., até então estará presente a angústia, mas

não perturbando a alegria do gozo, senão como formando parte integrante com

todo ele.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 134-135, tradução nossa)

“E por que essa angústia?”, pergunta-se e nos pergunta Vigilius Haufniensis.

“Porque o espírito não pode estar presente no momento culminante do erótico. [...] Porque

sem dúvida que o espírito está ali presente, já que é ele quem constitui a síntese; mas,

apesar disso, não pode expressar-se no erótico e se sente estranho” (KIERKEGAARD,

2007, p. 135, tradução nossa); o espírito sente-se estranho porque não tem nenhuma função

a desenvolver no erotismo muito menos em seu momento culminante, o sexual, assim – por

não ser traço de união, por não ser o mediato – se oculta até quando ele durar. Por isso, por

67

“Este é um dos aspectos peculiares da concepção monacal, importando muito pouco, ao fim de contas, que

se a considere dentro de um rigorismo ético ou como uma contemplação meditativa.” (KIERKEGAARD,

2007, p. 134, tradução nossa; s/d, p. 108)

87

ter o espírito que se ocultar – mesmo quando o erótico se exprime da maneira mais bela,

inocente e pura – a angústia se manifesta ou está presente68

como companhia amistosa e

doce (KIERKEGAARD, 2007, p. 136, tradução nossa) muito maior na mulher que no

homem uma vez que o espírito se oculta mais na síntese do indivíduo do sexo feminino que

na síntese do indivíduo do sexo masculino, porque aquela é mais sensual que esse a quem o

erótico soa belo e cômico.

Sabemos que a consequência da relação da geração no Indivíduo é “„o mais‟ que

temos que pôr à conta de qualquer dos indivíduos posteriores ao compará-los com Adão”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 136, tradução nossa), este “mais” – engendrado na concepção

e no nascimento quando o ápice repousa em um dos extremos da síntese – é, cabalmente, o

plus comum da geração que quanto mais angústia tem, tanto mais sensual se torna.

Durante o momento concepcional69

quando o espírito está mais longe se manifesta,

pela primeira vez, o cume da angústia na mulher; o novo Indivíduo se cria, precisamente,

no seio desta angústia. A segunda vez em que a angústia atinge o seu auge é no instante do

nascimento, momento no qual vem ao mundo o novo ser humano e por quê? Porque é

durante o parto, que a mulher atinge de novo o ápice de um dos extremos da síntese e, por

isso, o espírito treme cumulando-a de angústia, o que é natural “já que nesse instante o

espírito não exerce nenhuma de suas funções permanecendo como em suspenso”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 136, tradução nossa). A partir disso, vê-se que muito longe de

consistir uma enfermidade, a “angústia, todavia, é uma expressão da perfeição da natureza

humana e é por isso que só nas raças humanas inferiores se encontram analogias de um dar

68

“Isto é cabalmente a angústia e o que, definitivamente, também constitui o pudor; na verdade, como é

imbecil acreditar-se que basta a benção da Igreja ou a fidelidade do marido à mulher para salvaguardar uma

união! Já se tem visto mais de um casamento profanado sem a menor contribuição de terceiros.”

(KIERKEGAARD, s/d, p. 109)

69

O momento relativo à concepção entendida como ato de conceber ou ser concebido; geração.

88

à luz tão fácil como a que se dá nos animais.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 136, tradução

nossa)

O Indivíduo procriado distingue-se, quantitativamente, do primitivo por ser mais

sensual. O “mais”, efeito da conseqüência da geração, é o plus “que temos que por à conta

de todos os indivíduos posteriores ao compará-los com Adão” (KIERKEGAARD, 2007, p.

137, tradução nossa). Este plus – de angústia e sensualidade – que todos os Indivíduos

posteriores têm a respeito de Adão pode significar, no Indivíduo particular, um mais ou

menos; de acordo com nosso autor, a vida proclama isto, ao tornar autênticas as palavras da

Sagrada Escritura as quais nos ensina, que “Deus castiga nos filhos as iniquidades dos pais

até a terceira e quarta gerações”.70

“De nada serve querer esquivar o espantoso desta declaração precipitando-se com

a insinuação de que essas palavras encerram uma doutrina judia. O cristianismo,

por seu lado, nunca reconheceu em nenhum indivíduo particular o privilégio de

que este começara a partir de um princípio no sentido da exterioridade [de pai

para filho]. Porque todo indivíduo começa na realidade dentro de um nexo

histórico e, neste aspecto, as consequências naturais seguem tendo hoje o mesmo

valor que sempre tiveram. A única diferença [no tempo de Kierkegaard e quiçá

em nosso tempo] está em que o cristianismo nos ensina superficialmente a elevar-

nos desse „mais‟ e julga que quem assim não o faz é porque não quer fazê-lo.”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 137-138, tradução nossa)

Talvez por isso, pelo ensino superficial com o qual se deseja que aprendamos a

elevar-nos, é que “a angústia do espírito – ao ter que assumir a sensualidade – é maior que

nunca, precisamente porque a sensualidade define-se como „um mais‟” (KIERKEGAARD,

2007, p. 138, tradução nossa), cujo ponto máximo é este em que “a angústia diante do

pecado gera o pecado”. Nisto, reside a ambiguidade na qual o Indivíduo se faz, ao mesmo

70

Exo. 20, 5 e Deut. 5, 9.

89

tempo, culpado e inocente;71

na impotência da angústia – impotência porque o Indivíduo

nada pode fazer quanto ao fato de que o espírito não tenha nenhuma função a desenvolver

e, portanto, se esconda enquanto a sensualidade atua – o Indivíduo desvanece porque é

tanto culpado – por escolher a concupiscência, a paixão, a luxúria, etc. – como inocente.

Passemos agora à segunda consideração do pecado de Adão a qual, no Indivíduo

posterior, significa a consequência da relação histórica. O plus que temos que por à conta

de todos os Indivíduos posteriores ao compará-los com Adão consiste em que a

sensualidade pode significar pecabilidade (KIERKEGAARD, 2007, p. 138, tradução

nossa). De acordo com Kierkegaard, este fato contém, simultaneamente, três coisas:

primeiramente, “o obscuro saber de que esse seja o significado da sensualidade”; segundo,

“um obscuro saber do que, por outro lado, o pecado pode significar”; terceiro e último,

“uma apropriação historicamente desatinada dos dados históricos encerrados no de te

fabula narratur” – A fábula fala de ti –, “com o que permanecem esguelhados tanto o

aspecto principal do assunto como a originalidade do indivíduo, ao mesmo tempo em que

este fica sem mais confundido com a espécie e a correspondente história” (ibidem, p. 138-

139); examinemos o que essas três coisas querem nos dizer.

Quando se diz que a sensualidade pode significar pecabilidade, parece óbvio que

com isso se diz que a sensualidade, necessariamente, não é pecabilidade, absolutamente. A

sensualidade enquanto tal não é pecabilidade, mas o pecado a converte em tal coisa;

“pensando nos indivíduos posteriores a Adão, não cabe dúvida de que cada um deles se

encontra em um meio histórico dentro do qual é notório que a sensualidade pode significar

pecabilidade” (KIERKEGAARD, 2007, p. 139, tradução nossa; s/d, p. 112) não para o

71

A ambigüidade desapareceria se, no Indivíduo, fosse verdadeiro que os maus apetites, a concupiscência,

entre outros, são inatos.

90

Indivíduo mesmo, mas para o saber do meio histórico que acrescenta à angústia um mais.

Por causa disso, sucede ao espírito que ele tem que fazer ao Indivíduo posterior mais do

que ele fez a Adão, ou seja, “não somente tem que fazer frente à oposição da sensualidade,

senão também à da pecabilidade.”72

(KIERKEGAARD, 2007, p. 139, tradução nossa; s/d,

p. 112)

Para o Indivíduo particular o plus da conseqüência da relação histórica pode

significar um mais ou menos quantitativo, por quê? Porque aqui também há a ambiguidade

da angústia a qual “o indivíduo precisamente não é culpado ao estar angustiado, mas por sê-

lo quando é culpado”; (ibidem, p. 140) tudo isto dependerá do salto qualitativo quando o

espírito tiver que colocar a síntese porque apenas um mais – de sensualidade e angústia –

não é suficiente para gerar uma qualidade. Esse mais quantitativo pode ser também

traduzido, numa palavra, como “o poder do exemplo” que, segundo nosso autor, não deixa

de ter influência inclusive nas crianças,73

ou seja, para que alguém se torne,

inevitavelmente, culpado é necessária uma categoria intermediária sem a qual o indivíduo

por mais angustiado que esteja não é culpado; essa categoria não é, nem em primeira e nem

em última instâncias, “o poder do exemplo” do pecado de Adão, essa categoria é a angústia

que em qualquer circunstância, à força do exemplo ou não, faz de alguém culpado ou

inocente.74

Adão pecou não porque estava nos planos divinos que ele pecasse e, mais, cada

72

“[...] é uma coisa clara que o indivíduo inocente não chega ainda a compreender esse saber, pois isto

somente sucede quando se o compreende qualitativamente.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 139, tradução nossa)

73

“[...] se começa por supor que a criança é um anjo, mas que o ambiente corrompido o precipitou na

corrupção. Segue-se falando, sem acabar nunca, do enormemente corrompido que está o ambiente..., e assim,

sem que haja outra coisa por meio, já temos a criança corrompida. Não obstante, quem poderá por em dúvida

que o conceito fica anulado se se chega a tal corrupção por um simples processo quantitativo? [...] tampouco é

raro que se comece por supor que a criança era como a maioria das crianças, ou seja, nem boa nem má, mas se

encontrou com boas companhias e resultou bom, ou se juntou com más companhias e resultou mau. O que

fizeram das categorias intermediárias? Onde estão as categorias de enlace?” (KIERKEGAARD, 2007, p. 142-

143, tradução nossa)

91

um de nós pecamos não porque Adão pecou, mas porque “a possibilidade da liberdade se

anuncia na angústia” (KIERKEGAARD, 2007, p. 140, tradução nossa) categoria sem a qual

não existiríamos humanos e pela qual herdamos uma outra categoria: a Redenção ou a

Salvação.

O saber do meio histórico nos revela, portanto, que a qualidade, essa que é posta

pelo Indivíduo através da liberdade em meio à angústia, não pode ser concebida como

consequência da relação histórica porque o mais que essa relação subentende é um mais

quantitativo; além disso, em qualquer circunstância o Indivíduo pode tornar-se culpado ou

inocente, vejamos Adão: ele habitava um jardim em Éden, onde tudo parecia correr

tranquilo e em harmonia, e o quê fez Adão? Pecou e jamais conseguiu retornar ao estado

em que vivia anterior ao pecado isto para dizer que “sempre que se põe o pecado, tanto ao

princípio como daqui para frente, este nunca deixa de converter a sensualidade em

pecabilidade.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 143, tradução nossa)

74

“[...] é imprescindível lançar mão de uma categoria intermediária que tenha a ambiguidade suficiente para

poder abrigar a ideia – sem isto, sem dúvida, a salvação da criança é uma ilusão – de que a criança, em

quaisquer circunstâncias, sempre é capaz de fazer-se tanto culpada como inocente. Se não se tem à mão e com

a devida claridade estas categorias de enlace, então se podem dar por perdidos – e com eles a mesma criança –

os conceitos de pecado original, pecado, espécie humana e indivíduo.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 143,

tradução nossa)

92

CAPÍTULO III

A LIBERDADE

3. 1. O “lugar” onde se realiza

Em outro momento deste trabalho disse-se que a angústia é eminentemente

subjetiva.75

No seu sentido mais estrito, a angústia subjetiva “é a angústia instalada no

indivíduo como consequência de seu próprio pecado” (KIERKEGAARD, 2007, p. 111,

tradução nossa); no seu sentido mais lato é “o instante na vida do indivíduo” (ibidem, p.

151), o que isso significa? Vejamos.

Segundo Vigilius Haufniensis, foi introduzido – pelos filósofos modernos – tanto

nas investigações lógicas como nas que se referem à Filosofia da História a categoria de

transição76

(KIERKEGAARD, 2007, p. 151); com Hegel e sua escola, além da categoria de

transição, chegaram as categorias de negação e de mediação todas elas “princípios do

movimento no pensamento hegeliano” (ibidem) que, para nosso autor, não passam de “três

agentes – agentia – camuflados, suspeitos e secretos que vêm por em marcha todos os

movimentos.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 152, tradução nossa; s/d, p. 124)

Na esfera da liberdade histórica encontra-se o verdadeiro lugar da transição

enquanto que na Lógica, de acordo com Kierkegaard, ela é e sempre será pura

engenhosidade, uma vez que por ela não compreendemos o seu conteúdo77

; a transição é

75

Capítulo II.

76

“Passagem” na tradução portuguesa.

77

A transição não é, para Kierkegaard, uma categoria como para “os modernos”. Por isso a Lógica – a qual,

grosso modo, ocupa-se em investigar as categorias e os princípios do pensamento – não explica o seu

conteúdo.

93

uma situação, uma realidade e para entendê-la será necessário retomarmos e progredirmos

em direção à maneira como Sören Kierkegaard concebe o ser humano.

Anteriormente dissemos que Kierkegaard concebe o ser humano como uma síntese

de alma e corpo apoiada e sustentada pelo espírito sem o qual o ser humano seria pura

imediatidade78

; mas ao mesmo tempo em que é uma síntese de alma e corpo, o ser humano

também é uma síntese do temporal e do eterno. Esta síntese abarca dois fatores: o temporal

e o eterno. “Onde está aqui o terceiro?”79

Será esta, como parece sugerir, uma segunda

síntese? “O que é o temporal?” Para começar, não há aqui o terceiro.80

Quanto ao temporal:

este é o instante, “essa coisa ambígua em que se tocam o tempo e a eternidade – tal contato

institui o conceito de temporalidade –, em que o tempo está continuamente secionando a

eternidade e esta continuamente transpassando o tempo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 163,

tradução nossa; s/d, p. 135); vejamos.

Deve-se ressaltar, para continuarmos, que o temporal é visto, nessa investigação, na

perspectiva do pensamento e não da imaginação, o que isso quer dizer? Na perspectiva da

imaginação o tempo se define como uma sucessão infinita de presente, passado e futuro

definição, “contudo, inexata tão logo se considere que radica no tempo mesmo, já que

somente aparece enquanto o tempo se relaciona com a eternidade e enquanto esta se reflete

78

“Nesta [...] constituíam a alma e o corpo os dois momentos da síntese e o espírito era o terceiro, com a

particularidade de que somente se podia falar propriamente de síntese senão no momento em que se

instaurava o espírito” (KIERKEGAARD, 2007, p. 157, tradução nossa; s/d, p. 129), ou seja, no momento em

que o espírito não estava mais como que sonhando, uma vez que se estabeleceu.

79

Segundo os princípios lógicos “[...] se não há nenhuma terceira coisa, então tampouco há realmente síntese,

já que uma síntese que encerra uma contradição nunca pode chegar a ser perfeita sem um terceiro. Neste caso,

afirmar que a síntese encerra uma contradição é exatamente o mesmo que dizer que não há tal síntese. Isto nos

obriga a fazer-nos a seguinte pergunta: o que é o temporal?” (KIERKEGAARD, 2007, p. 157, tradução

nossa; s/d, p. 129-130, grifo nosso)

80

Segundo FARAGO, “Kierkegaard substituiu [...] a dialética resolutiva de um Hegel por uma dialética com

dois termos em que nenhuma síntese definitiva poderia lhe fazer encontrar o repouso na graça [...].”

(FARAGO, 2006, p. 70)

94

no tempo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 157, tradução nossa; s/d, p. 130), ou seja, o tempo

aparece sob as formas de presente, passado e futuro porque, ao prisma da imaginação, é

considerado ad infinitum fazendo-se perceber através dos modos temporal; o que seria

perfeitamente aceitável se nessa sucessão infinita encontrássemos um presente que servisse

como fundamento divisório o qual, no fluxo, não se transformasse em um não é mais. O

tempo é um avançar de momentos, um processo no qual não há nem presente, nem passado

e nem futuro e se cremos que é possível manter aquela divisão é porque não fazemos mais

que espaciar um momento – “sem considerar de que com isto fica freada a sucessão

infinita” – pondo em jogo a força da representação, consequentemente, convertendo o

tempo em um objeto da imaginação e não do pensamento (KIERKEGAARD, 2007, p. 158,

tradução nossa; s/d, p. 130).81

Da perspectiva do pensamento, que é a que interessa ao filósofo, o eterno é o

presente enquanto sucessão abolida, isto é, sem passado e sem futuro, simplesmente,

presente representado como progressão, mas uma progressão que não avança uma vez que

o presente, enquanto sucessão, foi abolido.82

O tempo é a sucessão infinita – sem presente, sem passado e sem futuro como ficou

evidente –, é a vida “que é no tempo e que por referir-se somente ao tempo não tem

nenhum presente” (ibidem, p. 159; p. 131). Contudo, Kierkegaard se antecipa em observar

que não se trata da vida sensual – pela qual se distingue o esteta – uma vez que para defini-

81

“Mas, ainda quando assim se proceda, incorremos em erro, pois até para a representação é a infinita

sucessão do tempo um presente infinitamente vazio. Isto é uma paródia do eterno. Os hindus falam de uma

dinastia que reinou setenta mil anos. Dos distintos reis não se sabe nada, nem sequer, segundo suponho, seus

nomes. Se tomamos este exemplo como um símbolo do tempo, esses setenta mil anos são para o pensamento

um infinito desaparecer; para a representação, ao contrário, se estendem e se dilatam até converter-se na

ilusória intuição de um nada infinitamente vazio.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 158, tradução e grifo nossos)

82

“Para a representação o eterno é um avançar que apesar de tudo não se move do lugar, já que o eterno

equivale para ela ao infinitamente pleno. No eterno tampouco se dá nenhuma discriminação do passado e

futuro, pois o presente está posto como a sucessão abolida.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 159, tradução nossa;

s/d, p. 131)

95

la dizemos que esta se vive no instante e somente no instante entendido como abstração do

eterno, “convertendo-o em uma paródia da eternidade, enquanto se pretende fazê-lo

presente” (KIERKEGAARD, 2007, p. 159, tradução nossa; s/d, p. 132).

Se desejarmos prosseguir com a categoria de presente deve-se defini-lo como o

eterno ou “o eterno é o presente e este é a plenitude” (ibidem). O instante, na vida sensual,

designa o presente como algo que não tem nem passado e nem futuro, portanto

absolutamente inconsequente, motivo pelo qual dizemos que essa vida é imperfeita, mas o

eterno também designa o presente sem passado e sem futuro, ao contrário do outro,

absolutamente pleno o qual assinala a perfeição da eternidade; portanto, se a vida sensual é

imperfeita justamente por desconsiderar um antes e um depois, a perfeição da eternidade

estar em considerar apenas o presente – eterno – o qual prescindi a vida sensual, mas não

dispensa a vida ético-religiosa mais, ainda, a religiosa.83

As determinações temporais – presente, passado e futuro – caracterizam-se

sumariamente em passar ou em ir passando o instante, porém não é uma simples

determinação temporal porque “esta somente consiste em passar, de tal maneira que o

tempo não será mais que tempo passado se para defini-lo não temos outras categorias que

as que se descobrem imediatamente nele” (KIERKEGAARD, 2007, p. 160, tradução nossa;

s/d, p. 132), a saber, as categorias de passado e futuro; ao contrário, o instante aparece

quando o tempo e a eternidade se tocam no tempo sem necessitar de qualquer outra

categoria como referência.

83

Contudo, “se pretende empregar o instante para designar o tempo, fazendo que o primeiro signifique a

eliminação puramente abstrata do passado e do futuro e que assim seja o presente, então temos de afirmar

taxativamente que o instante não é de modo algum o presente, pela simples razão de que semelhante

intermediário entre o passado e o futuro, concebido de um modo meramente abstrato, não existe em

absoluto.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 160, tradução nossa; s/d, p. 132)

96

O instante, segundo nosso autor, se compara a uma mirada. “Nada há tão rápido

como a mirada e, não obstante, é comensurável com o conteúdo do eterno” (ibidem; s/d, p.

133), mas por que o olhar?

“um suspiro, uma palavra [...] encerrariam sem dúvida com sua sonoridade uma

maior determinação temporal; estariam mais perto de ser o presente a ponto de

desaparecer e não significariam tão acentuadamente a presença do eterno..., mas

também é verdade que um suspiro, uma palavra, etc., têm a virtualidade de

aligeirar a carga que pesa sobre a alma, precisamente porque basta que se

mencione a pena que a oprime para que somente com isso comece a ser uma

coisa do passado. Por isso uma mirada é algo que serve para designar o tempo;

mas, entenda-se bem, enquanto o tempo se encontra nesse conflito fatal que

provoca o entrar em contato com a eternidade.” (KIERKEGAARD, 2007, p.

161, tradução nossa; s/d, p. 133)

A arte grega, de acordo com Kierkegaard, culmina numa arte na qual falta

justamente a mirada: a escultura. Isto porque os gregos desconheciam, em seu sentido mais

profundo, o conceito de espírito e, consequentemente, a sensualidade e a temporalidade84

(ibidem, nota); é claro que este “sentido mais profundo” significa aquele que Kierkegaard

empreende aos conceitos supracitados, mas referir-se aos conceitos – espírito, sensualidade,

temporalidade – desse modo, tem uma razão de ser e esta razão está em o instante sempre

estar em relação com a categoria do invisível (KIERKEGAARD, 2007, p. 162, tradução

nossa) que

“Para o grego não podia ser de outra maneira, já que concebia de um modo

igualmente abstrato o tempo e a eternidade, uma vez que lhe faltava o conceito da

temporalidade e, em última instância, lhe faltava o conceito de espírito. Em latim

se diz momentus, que enquanto derivado do verbo movere não expressa de seu

outra coisa que o mero desaparecer.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 161-

162, tradução nossa; s/d, p. 133-134)

84

Em contraposição absoluta com a arte grega, o cristianismo “nos oferece a representação plástica de Deus

como um grande olho.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 161, tradução nossa; s/d, p. 133, nota)

97

Em perpétua relação com a categoria do invisível o instante é, na perspectiva do

filósofo, um átomo da eternidade, o primeiro reflexo da eternidade no tempo, “é como o

primeiro intento da eternidade para frear o tempo. Por isso o helenismo não chegou a

entender o instante [...]. Os gregos não o definiam mirando para adiante, mas sim para

trás”85

(ibidem) como aquilo que era e que, por sua entrada no mundo, não é mais.

A par do que, no pensamento kierkegaardiano, compreende-se por temporalidade

passemos àquela questão a qual a síntese do temporal e do eterno pela qual, também, o ser

humano se define constitui ou não uma segunda síntese. Não. Com as palavras de Sören

Kierkegaard, a “síntese do temporal e do eterno não é uma segunda síntese, mas sim a

expressão daquela mesma síntese em virtude da qual o homem é uma síntese de alma e

corpo, sustentada pelo espírito” (KIERKEGAARD, 2007, p. 163, tradução nossa; s/d, p.

135); se a síntese do temporal e do eterno parece sugerir um segundo modo de compreender

o ser humano isso, talvez, deva-se ao fato de tendermos a pensá-lo para fora da existência

ou para fora da vida mesma a partir de uma “crença” dogmática mui talentosa segundo a

qual a “verdadeira” vida encontra-se distante e além do Indivíduo ou em outro lugar senão

na existência mesma. “O instante existe assim que fica posto o espírito” e o ser humano é o

único capaz de vivê-lo, pois que a “natureza não radica no instante.” (ibidem)

“Com a temporalidade sucede o mesmo que com a sensualidade; já que a

temporalidade parece ser muito mais imperfeita e o instante muito menos

significativo que a aparentemente segura persistência da natureza no tempo. E,

não obstante, acontece todo o contrário, pois a segurança da natureza resulta de

que o tempo não tem absolutamente nenhuma importância para ela. Somente com

o instante começa a história. Pelo pecado se converteu a sensualidade do homem

em pecabilidade e situa-se, portanto, mais baixo que a do animal: porém, aí

começa a superioridade do homem, pois aí começa o espírito.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 163, tradução nossa; s/d, p. 135)

85

Faziam isto porque para os gregos, “o átomo da eternidade era essencialmente [...] a eternidade mesma,

com o que, naturalmente, nem o tempo nem a eternidade chegaram a gozar de seus legítimos direitos.”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 162, tradução nossa)

98

Com os devidos esclarecimentos acerca do temporal, faz ainda sentido falar das

determinações: presente, passado, futuro? Segundo Kierkegaard, a partir de agora é que

começa a ter sentido a divisão mencionada: o tempo presente, o tempo passado e o tempo

futuro (KIERKEGAARD, 2007, p. 163, tradução nossa; s/d, p. 135).86

“[...] nos damos conta com esta divisão de que o futuro significa de certo modo

muito mais que o presente e que o passado, posto que o futuro é em certo sentido

a totalidade da qual o passado não é mais que uma parte; e ademais, o futuro pode

significar, também em certo sentido, a mesma totalidade. Isto se deve a que o

eterno significa primariamente o futuro; ou, com outras palavras, a que o futuro é

o incógnito em que o eterno, incomensurável com o temporal, quer manter

todavia suas relações com o tempo.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 163-

164, tradução nossa; s/d, p. 135-136)

De acordo com Kierkegaard, os gregos – para os quais faltava a categoria de espírito

– não tiveram um conceito do eterno e tampouco um conceito do futuro, por isso não

viviam o instante e “tomavam a temporalidade tão ingenuamente como a sensualidade”.87

(KIERKEGAARD, 2007, p. 164, tradução nossa)

Apesar de o presente – no qual o instante penetra88

– ser o “lugar” das decisões, no

futuro está tudo aquilo que o Indivíduo quer ser, seu projeto. Neste sentido, o presente não

86

Segundo RIVERO, em função da plenitude da eternidade, para Kierkegaard, “os três êxtase do tempo” –

presente, passado, futuro – somente adquirem sentido quando o tempo e a eternidade se tocam no instante.

(RIVERO. In: KIERKEGAARD, 2007, p. 158, nota, tradução nossa)

87

Em que perspectiva a temporalidade e a sensualidade eram tomadas ingenuamente, veja-se a seguir. “A

filosofia grega e a filosofia moderna se instalam do seguinte modo: tudo nelas gira movido pelo afã de que o

não-ser chegue a existir; ainda que eliminá-lo e fazê-lo desparecer se estima que seria uma coisa demasiado

fácil. Em vez de, a perspectiva cristã se situa nesta posição: o não-ser existe em todas as partes como o nada

de que foram feitas as coisas, como aparência e vaidade, como pecado, como sensualidade afastada do

espírito, como temporalidade esquecida da eternidade; e, em consequência, importa muitíssimo tirá-lo do

meio para que apareça o ser. Somente nesta direção se concebe com exatidão histórica o conceito da

redenção, tal como o cristianismo o trouxe ao mundo. Se concebe-se na direção contrária – partindo o

movimento de que o não-ser não tem existência –, então fica a redenção como evaporada e posta do

contrário.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 153-154, tradução nossa; s/d, p. 125-126, nota)

99

é mais importante que o futuro, uma vez que nele ressoam as consequências das decisões

humanas algumas até previsíveis, mas nenhuma delas concisas; neste sentido, o futuro

aparece, no tempo, desconhecido e temeroso mais, também, como uma fonte de onde

jorram influências para o presente. Revela-se aqui o ponto de interseção entre o instante e o

futuro, esses dispõem por seu turno o passado, “não enquanto este se define em relação

com o presente e o futuro, mas sim definido como simples passar, que é em si a definição

geral do tempo” (KIERKEGAARD, 2007, p. 164, tradução nossa; s/d, p. 136). Tal como o

instante – o qual os gregos definiam não apontando para frente, mas para trás – a eternidade

nos gregos também é o passado, ambos os conceitos totalmente abstratos; mas quanto à

eternidade, “tanto se a definição [...] fica delimitada mais proximamente com perfis

filosóficos – é o caso desse „morrer ao mundo‟ enquanto falam disso os filósofos – como se

se a delimita com perfis históricos.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 165, tradução nossa)

“Regra geral, nas mesmas definições conceituais do passado, do futuro e da

eternidade pode aparecer bem clara a maneira de definir o instante. Se não existe

o instante, então o eterno vem avançando pelas costas como o passado. É como se

fizéssemos avançar um homem por um caminho, mas sem que desse um passo.

Qual seria o resultado? Que o mesmo caminho, enquanto percorrido, viria como

avançando detrás de nosso homem. Ao contrário, se se dá positivamente o

instante, mas somente como discrímen [linha divisória], então o futuro é o eterno.

Por fim, se se dá positivamente o instante, então há eternidade, e também há

futuro, o qual volta outra vez como o passado. Isto se vê com toda claridade na

concepção grega, judia e cristã. O conceito em torno ao qual gira tudo no

cristianismo – aquilo que o renovou todo – é a plenitude dos tempos. [...] esta

plenitude é o instante enquanto eternidade; e, não obstante, esta eternidade é

também o futuro e o passado.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 165-166,

tradução nossa; s/d, p. 137)

A eternidade é “o que será” e “o que foi”. Por este último, sabemos que Adão pecou

e pelo primeiro, sabemos que o futuro do ser humano é possibilidade de pecado, a qual

88

“„em frente ao viver no superficial, dissipado e atomizante „agora‟ [...].” (RIVERO. In: KIERKEGAARD,

2007, p. 165, tradução nossa)

100

Adão foi o primeiro a constatar89

; “todo indivíduo posterior começa de um modo

completamente idêntico a Adão, mas no quadro da diferença quantitativa, a qual é

consequência tanto da relação geracional como da relação histórica” (2007, p. 166,

tradução nossa; s/d, p. 138), não obstante, a diferença quantitativa o instante, segundo

Kierkegaard, existe para Adão tal como para o homem que lhe sucede (ibidem) porque a

síntese a qual define o primeiro homem também define aqueles que se seguem. O espírito

institui a síntese da alma e do corpo; o espírito é o eterno que somente existe quando o

mesmo espírito institui, ao mesmo tempo, a primeira síntese: do temporal e do eterno. “O

instante não existe enquanto não é posto o eterno, ou no máximo existe como discrímen.

Desta maneira – e uma vez que o espírito se define dentro do estado de inocência como um

espírito que está sonhando – o eterno se manifesta como o futuro, já que esta, segundo

dissemos, é a primeira expressão do eterno, sua incógnita” (KIERKEGAARD, 2007, p.

166-167, tradução nossa; s/d, p. 138), ao contrário, quando é posto o espírito – quando este

não está mais sonhando – o eterno deixa de se manifestar como futuro passando a

manifestar-se como presente nos quais, contudo, não deixa de se mostrar a angústia.

“Por isso [...] do mesmo modo que o espírito, enquanto era possibilidade do

espírito – isto é, da liberdade –, se expressava na individualidade como angústia

ao ter que ser posto com a síntese ou, com maior exatidão, ao ter ele mesmo que

por a síntese..., assim também agora o futuro, enquanto possibilidade do eterno –

isto é, da liberdade –, é por sua vez angústia no indivíduo. Esta é a razão de que a

liberdade se enche de calafrios ao manifestar-se a possibilidade da mesma ante

seus próprios olhos, aparecendo nesse momento a temporalidade com o mesmo

adorno que tinha a sensualidade, isto é, no sentido da pecabilidade.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 167, tradução nossa; s/d, p. 138)

89

“A diferença entre Adão e o indivíduo posterior consiste em que o futuro é mais reflexivo para o segundo

que para Adão. Este „mais‟ – falando em termos psicológicos – pode significar algo espantoso, mas a respeito

do salto qualitativo seu significado é o de uma coisa inessencial. A mais alta diferença com relação a Adão

estriba agora em que o futuro parece antecipado pelo passado; ou em que se tem a angústia de haver perdido a

possibilidade antes que esta tenha existido.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 167, tradução nossa; s/d, p. 138-139)

101

A angústia na vida individual refere-se a que “o possível corresponde por completo

ao futuro. O possível é para a liberdade o futuro, e o futuro é para o tempo o possível”

(ibidem); por isso que, para Kierkegaard, não há sentido em dizer “que nos angustiamos do

passado”. Porém, reflete o filósofo dinamarquês, se observarmos melhor, não veremos que

ao falar em uma angústia do passado a única coisa que fazemos é enfocar, de um jeito ou de

outro, o futuro? Sim, é. “Porque para que o passado me cause angústia é necessário que

esteja em uma relação de possibilidade comigo. Se me angustio por uma desgraça passada”

– tal como, a queda de Adão90

– “não é precisamente enquanto passada, mas sim enquanto

pode repetir-se, isto é, fazer-se futura” (2007, p. 168, tradução nossa; s/d, p. 139).

Assim, de acordo com Kierkegaard, voltamos a que nos ocupava o capítulo I de O

Conceito de Angústia, a saber: A angústia como hipótese do pecado original e como meio

de seu esclarecimento, retrocedendo precisamente na direção de sua origem.91

Em que

sentido deverá ser considerado? Considerá-lo-emos no sentido em que a angústia “é o

estado psicológico que precede ao pecado, encontrando-se tão perto dele, tão

angustiosamente perto dele, que já não pode estar mais. Isto não quer dizer que a angústia

explique o pecado, pois este brota justamente com o salto qualitativo” (ibidem; s/d, p.

140)92

o que significa que a disposição da alma do ser humano, neste caso, somente importa

90

“Se tenho angústia por uma má ação passada, então é que não a relacionei essencialmente comigo enquanto

passado, mas sim que há algo em minha vida que de uma maneira mais ou menos subreptícia lhe impede de

ser passada. Pois se realmente fosse passada, então não poderia angustiar-me, mas sim somente arrepender-

me. Se não o faço, é precisamente porque com anterioridade me foi permitido converter em dialética minha

relação com ela, e assim aquela má ação se tornou em si mesma uma possibilidade e não algo passado”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 168, tradução nossa). A seguir o que há de mais atual da queda de Adão em nós,

ou seja, a culpa que sentimos mesmo quando não há nada aparente de que se culpar: “Se me angustio pelo

castigo é porque este foi posto imediatamente em relação dialética com a culpa – do contrário suportaria meu

castigo –, o que significa que me angustio por algo possível e futuro.” (ibidem)

91

Título do Capítulo I de O Conceito de Angústia sugerido pela tradução espanhola.

92

Ou, ainda com as palavras do filósofo: “a angústia é o último estado psicológico do qual irrompe o pecado

mediante o salto qualitativo [...].” (KIERKEGAARD, 2007, p. 170, tradução nossa; s/d, p. 142)

102

no que se refere ao temor e ao tremor os quais lhe propicia a angústia, porém nenhuma

qualidade nova se origina daí a não ser por força do salto qualitativo do Indivíduo.

Quando o pecado entrou no mundo trouxe com ele a pecabilidade. Essa, por sua

vez, pode ser o significado da sensualidade, mas também, o significado da temporalidade, é

claro “desde o momento em que o pecado torna-se posto” (ibidem), isso explica por que

peca quem vive somente no instante,93

uma vez que abstrai-se do eterno. “Se Adão não

tivesse pecado – permitindo-me outra vez somente por alguns instantes o emprego de uma

linguagem acomodatícia e medíocre –, sem dúvida que teria passado instantaneamente à

eternidade”,94

mas uma vez introduzido o pecado de nada vale o se cuja finalidade é

“querer fazer abstração da temporalidade, como tampouco de nada vale abstrair da

sensualidade” (KIERKEGAARD, 2007, p. 169-170, tradução nossa; s/d, p. 140-141)

porque, necessariamente, com a entrada do pecado no mundo a temporalidade começa a

significar pecabilidade.

3. 2. Por que a liberdade não consiste em saber que não sabe

Para o nosso autor, o paganismo – o qual se repete dentro do cristianismo –

movimenta-se em umas determinações meramente quantitativas – por exemplo, “a

multidão”95

– das quais não emerge o salto qualitativo do pecado; mas que, nem por isso,

93

Como é o caso de quem vive no estádio estético da existência.

94

É importante enfatizar que Adão – e não a sua linhagem – teria passado, instantaneamente, à eternidade se

não tivesse pecado.

95

Expressão tomada da “Nota I: Sobre a Dedicatória „Ao Indivíduo‟”; “„a multidão‟ é o número, o numérico;

um número de nobres, de milionários, de grandes dignatários, etc.; a partir do momento em que agem pelo

número, tornaram-se „multidão‟, „a multidão‟. [...] A multidão, não esta ou aquela, atual ou de outrora,

composta de humildes ou de grandes, de ricos ou de pobres, etc..., mas a multidão considerada no conceito, a

multidão, é a mentira; porque, ou ela provoca uma total ausência de arrependimento e de responsabilidade,

ou, pelo menos, atenua a responsabilidade do indivíduo, fracionando-a.” (KIERKEGAARD, 2002, p. 112,

nota, p. 113)

103

configura-se um estado de inocência, já que “considerado desde o ponto de vista do

espírito, é cabalmente um estado de pecabilidade” (KIERKEGAARD, 2007, p. 170,

tradução nossa; s/d, p. 142), por que? Porque ao mover-se com essas determinações

quantitativas tanto o paganismo quanto o cristianismo esticam o tempo, sem nunca chegar

ao pecado em seu sentido mais profundo e o pecado é isso mesmo (2007, p. 171; s/d, p.

142); ainda que, para Kierkegaard, quando se trata do paganismo dentro do cristianismo,

isso mude ainda mais: “a vida dos pagão-cristãos não é nem culpável nem tampouco

inocente, é uma vida que na realidade desconhece toda diferença entre o presente, o

passado, o futuro e a eternidade (ibidem) que ao olharmos, “com olhos estéticos”, resulta

eminentemente cômica – afinal, não damos boas risadas quando um esteta nos fala de suas

aventuras e/ou um ético quando diz poder dormir em paz porque, naquele dia, cumpriu

todos os seus deveres? –, para o nosso autor, “que coisa mais cômica que o espetáculo de

uma soma de criaturas racionais convertidas em um murmúrio sempiterno e sem sentido!”

(2007, p. 171, tradução nossa; s/d, p. 143). Aqui aparece, através do discurso de

Kierkegaard, uma verdade que por mais chocante que seja é mister admitir:96

“Eu não sei se

a Filosofia poderá fazer uso desta plebe como de uma categoria que lhe sirva de substrato

para uma grandeza superior, como é o caso, por exemplo, dessa confusão vegetal

encharcada que vai convertendo-se pouco a pouco em terra e em seguida começa a ser

turba[97]

e logo outras coisas” (ibidem). Ao contrário, olhando essa existência “com os

olhos do espírito”, toda ela é pecado, “e isto é o menos que podemos fazer por ela, já que

com tal afirmação estamos exigindo-lhe que tenha a devida espiritualidade” 96

Especialmente nós que pensávamos ser a maiêutica socrática resposta para a mediocridade humana, quando

a resposta, a esta, é a liberdade.

[97]

Turba, em espanhol, tanto é combustível de origem vegetal, como esterco misturado com carvão vegetal e

multidão, por isso mantemos a palavra em espanhol.

104

(KIERKEGAARD, 2007, p. 171-172, tradução nossa; s/d, p. 143, grifo nosso) que,

evidentemente, apenas é valido para o cristianismo, pois “semelhante existência somente

pode encontrar-se dentro do cristianismo”, pois “quanto mais alto se determina o espírito,

tanto mais profunda se manifesta sua perda, e quanto mais elevados estavam os que se

perderam” – a bem dizer, “os pagão-cristãos” –, “tanto mais desgraçados são em seu

contentamento” (2007, p. 172, tradução nossa; s/d, p. 143).

A existência de quem perdeu a espiritualidade mostra-se como a mais espantosa de

todas; isso porque o mal da in-espiritualidade98

é estar em relação com o espírito, relação

que em si mesma não é nada (ibidem), já que sobre o espírito estabelece-se, com maior

ênfase, outros termos da síntese.

“Por isso a in-espiritualidade de que estamos falando pode possuir até certo ponto

todo o conteúdo da espiritualidade, mas – note-se bem! – não como coisa

espiritual, mas sim como brincadeira, galimatias, frases feitas, etc. Também pode

possuir a verdade, mas – note-se bem! – não como verdade, mas sim enquanto

rumor e mexerico.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 172, tradução nossa;

s/d, p. 143-144)

Isto, naturalmente, “aos olhos da Estética”, o cômico profundo da falta de espírito

que, segundo o nosso autor, se expressa em sua própria linguagem, mas como? Ora,

dizendo – o homem sem espiritualidade – absolutamente o mesmo que o espírito mais rico,

só com a diferença que não o diz em virtude do espírito; ora, convertendo-se – ainda o

mesmo homem – em uma máquina falante motivo pelo qual “não há nada de estranho que

possa aprender de memória uma série de textos filosóficos tão bem como uma confissão de

fé ou um recital político”; porém o que impede o homem mais desprovido de espírito

98

Na tradução portuguesa, temos: a-espiritualidade, ou seja, o “a” enquanto prefixo negativo e não o “in”.

105

distinguir entre o que entende e o que não entende – apenas aprende de cor – é a falta da

espiritualidade: “somente há uma prova da espiritualidade, e esta prova é a do espírito

mesmo em cada um de nós. Ele que queira outras provas talvez logre fazer um acúmulo

enorme delas, mas de pouco lhe servirão, pois já está rotulado como „desprovido de

espírito‟.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 173-174, tradução nossa; s/d, p. 144)

O que sucede no homem sem espiritualidade, conforme Sören Kierkegaard, é que

não há nele nenhuma angústia,99

o que não deve ser motivo de alegria, pois “a diferença

entre o paganismo e a in-espiritualidade estriba no fato que o primeiro caminhava para o

espírito e a segunda, ao contrário, já está de volta, afastando-se constantemente do espírito”

(2007, p. 174, tradução nossa; s/d, p. 145). Para nós, contudo, o mais curioso nesta

afirmação está em, “se assim se quer, o paganismo é simples ausência do espírito e neste

sentido é muito distinto da positiva falta de espírito. E por isso mesmo é aquele

infinitamente preferível” (ibidem) uma vez que, em seu seio – se por causa disto

julgávamo-lo desafortunado –, se quer aparece o espírito, mas para o qual pode caminhar,

enquanto que a “falta de espírito é um estancamento da espiritualidade e uma caricatura da

idealidade”, motivo pelo qual o espírito foi e está de volta, já que a relação de quem é in-

espiritual com o espírito, em si mesma, não significa nada (ibidem); além disso, se tratando

ainda de uma curiosidade para nós, a falta de espírito, segundo Kierkegaard, não é

“precisamente estupidez quando nos vem com todas as suas séries, mas sim que o é,

sobretudo, no sentido em que se diz do sal na Sagrada Escritura: „se o sal tornou-se

insípido, com que se salgará?‟”100

(KIERKEGAARD, 2007, p. 174-175, tradução nossa;

99

“é um homem demasiado feliz e está demasiado satisfeito e desprovido de espírito para poder angustiar-se.”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 174, tradução nossa; s/d, p. 145)

106

s/d, p. 145), isto para dizer que diante dos sentimentos de fracasso, derrota, angústia e

completa ausência de sentido para a vida, o que poderão fazer os sistemas e as idéias

filosóficas? Uma vez insípidas, para quê servem? E, ainda: Onde e como encontrar sabor?

No homem, em quem é positiva a falta de espírito, não há nenhuma angústia, pois,

também ela, ficou excluída do mesmo modo em que está o espírito; mesmo assim, de

acordo com o nosso autor, a angústia está à espreita. O espírito é um credor que ninguém

nunca iludiu; assim, a partir desta perspectiva, há angústia na falta de espírito, contudo

oculta e mascarada (KIERKEGAARD, 2007, p. 175; s/d, p. 146).

3. 3. A liberdade enquanto relação de interioridade com o espírito

3. 3. 1. Pecado e Providência

O paganismo jaz na angústia porque é sensualidade, “mas uma sensualidade que

tem certa relação com o espírito, sem que este tenha sido, todavia, instituído como espírito

no sentido mais profundo da palavra. Não obstante, essa possibilidade é cabalmente a

angústia” (KIERKEGAARD, 2007, p. 176, tradução nossa; s/d, p. 146-147), a qual tem por

objeto o nada.

Segundo Kierkegaard, a angústia e o nada sempre se correspondem; a angústia,

“fica eliminada assim que aparece deveras a realidade da liberdade e do espírito” – já que

deixam de ser apenas possibilidade –; então, “que significa mais precisamente o nada da

angústia dentro do paganismo? Resposta: esse nada é o destino.” (2007, p. 176, tradução

nossa; s/d, p. 147)

100

Conforme João Lopes Alves, o tradutor da edição portuguesa, a cita encontra-se em Mat. 5, 13: “Vós sois

o sal da terra. Se o sal perde seu sabor, como tornará a ser sal? Não serve mais para nada; jogam-no fora e é

calcado aos pés pelos homens.” (Mateus. In: TEB, 1997, p. 1863-4)

107

Que relação pode o destino estabelecer com o espírito? Uma relação externa, “uma

relação entre o espírito e algo que não é espírito, mas com o que o espírito mantém apesar

de tudo uma relação espiritual. O destino pode significar as coisas mais opostas, já que é a

unidade da necessidade e da casualidade”101

(2007, p. 177, tradução nossa; s/d, p. 147) que,

para o nosso autor, significa dizer: “o destino é cego”. Não parece sensato afirmar que

“quem avança às cegas se move tanto necessária como casualmente”? Sim. “Uma

necessidade que não esteja consciente de si é eo ipso pura casualidade em relação com o

momento seguinte” – é bom lembrar que não é necessário ser pagão para viver ao modo de

pura necessidade e casualidade, ou seja, ao bom e velho estilo “ao Deus dará” –; deste

modo, “o destino é nada da angústia” (ibidem), no qual o espírito parece habitar uma

inércia, não mirando em direção nenhuma; “um nada”, pois basta que o espírito entre em

cena para que a angústia desapareça e o destino também, já que o seu lugar vem ocupar a

Providência (2007, p. 177; s/d, p. 147-148), na qual a liberdade e o espírito tecem-se em

uma relação interna.

Disse-se que o destino pode significar as coisas mais opostas. No paganismo quem

se prestava a descobrir o destino era o oráculo, tão ambíguo como o próprio destino e com

quem o consulente, no momento da consulta, se acha com ele em uma relação ambígua de

simpatia e antipatia. O oráculo, segundo nosso autor, podia dar a entender também as coisas

mais opostas. “Por isso, a relação do pagão com o oráculo volta a ser a da angústia”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 178, tradução nossa; s/d, p. 148). Assim – permitindo-nos uma

digressão –, a relação do “espírito imediato” – aquele para o qual uma vida toda é virada

101

“Com frequência se tem falado do fatum [destino] pagão [...] como se este fora a necessidade. Inclusive se

tem conservado um resto desta necessidade na mesma concepção cristã, entendendo por destino o casual, o

incomensurável com a ideia da Providência. As coisas, não obstante, não são assim, visto que o destino é

precisamente unidade de necessidade e casualidade.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 177, tradução nossa; s/d, p.

147)

108

para o exterior – com os Meios de Comunicação é de angústia porque se estes, ao contrário

do oráculo, não dão a entender as coisas mais opostas, em certa medida, contribuem para

restringir-lhe a liberdade, em que sentido? Não pretendemos entrar no mérito da questão,

mas apenas acenar com uma consideração que, salvaguardas as devidas diferenças, não

diverge, até certo ponto, das acenadas até então. O sentido é este, o qual apresenta Sartori;

segundo ele:

“Leibniz [1646-1716] achou correto definir a liberdade humana uma spontaneitas

intelligentis, uma espontaneidade de alguém que é inteligente, de alguém que é

caracterizado pelo intelligere. Se não se especifica desse modo o que é

espontâneo no homem, não se poderia diferenciar daquilo que é espontâneo no

animal, e a noção de liberdade não teria mais sentido. [Mas] liberdade de quê e

para quê? Talvez de zapping, isto é, a liberdade de mudar constantemente de

canais? A criança vídeo-dependente, por ser criança, é irresistivelmente atraída

pelo jogo. Assim, acaba-se ou corre-se o risco de fazer com que a nossa „livre

participação ativa‟ se reduza para os logorréicos no abarrotar a Internet com a sua

necessidade de se exprimir (por meio de seus grafitos), e para os demais nos

videogames, no videojogo. É verdade que a criança dependente do vídeo poderia

perguntar e saber quantos discursos o Papa faz por dia. Mas tal informe não lhe

interessa, aliás, nem mesmo sabe quem é o Papa. [...] os „digerados‟ falam de

liberdade, mas eles entendem – e é a única coisa que eles sabem – apenas de

quantidade e velocidade: uma quantidade cada vez maior e sem limites de bit, e

uma velocidade cada vez maior de elaboração e transmissão. Mas quantidade e

velocidade não têm nada a ver com liberdade e escolha. Aliás, e antes disso, uma

escolha infinita e sem limites é uma fadiga infinita e despropositada. A

desproporção entre o produto oferecido na rede e o usuário que deveria consumir

tal produto é colossal e mortal ao mesmo tempo. [...] arriscamos de nos afogar no

excesso do qual nos defendemos ao rejeitá-lo; tal fato nos deixa pairando entre o

excesso e o nada. O hiper-bombardeamento leva para a atonia, para a anomia,

para a recusa por indigestão: e assim tudo termina, de fato, em uma realidade

muito pequena.” (SARTORI, 2001, p. 122-124)

Uma característica da inteligência humana ou uma característica do espírito, a

vivência da liberdade, das tarefas, parece não ser ao ser humano a mais simples; contudo,

retornemos às reflexões propriamente kierkegaardianas. O cristianismo surge em meio a

uma contradição, a qual o homem torna-se culpado por obra do destino;102

bem entendida,

102

“O paganismo não alcança compreender semelhante contradição, pois procedia com demasiada ligeireza

na determinação do conceito de culpa.” O conceito de pecado e de culpa determina o indivíduo enquanto

109

essa contradição nos oferece, com o dizer do filósofo, o verdadeiro conceito, o qual deixa a

salvo a proposição de que o Indivíduo é si mesmo e a espécie e, além disso, que o Indivíduo

posterior não é essencialmente diferente do primeiro (KIERKEGAARD, 2007, p. 179; s/d,

p. 149); ao contrário, quando essa contradição é compreendida de modo equivocado tem-se,

como resultado, um conceito equivocado do pecado original. Entenda-se que: quando a

angústia é, ainda, apenas uma possibilidade, a liberdade esmorece sob o domínio do

destino, já que neste o objeto da angústia é o nada – do qual o gênio não consegue sair –;

porém, imediatamente, se reincorpora a liberdade em sua realidade, a saber: o Indivíduo, na

condição de culpável. Eis, para o nosso autor, a angústia em seu momento mais importante:

quando não é, todavia, a culpa – onde o Indivíduo tornou-se culpável sem ser culpado –;

isto, para mostrar que o “pecado não sobrevém, pois, nem como uma necessidade nem

como uma casualidade, e esta é a razão de que ao conceito do pecado corresponda: a

Providência” (ibidem); enquanto que o destino não é mais que uma antecipação da

Providência, uma antecipação que revela o quanto essa é necessária para a compreensão do

pecado.

A “ideia da Providência” não é inata no ser humano e se quer se a adquire com a

educação, “sem que por isso eu [Kierkegaard] venha a negar a importância da educação”;

ao conceito de pecado corresponde a Providência porque o destino é impotente diante dele:

“O destino é o limite de todo espírito imediato, coisa que sempre é o gênio” – que,

enquanto tal, é uma preponderante subjetividade, na qual o espírito está presente, mas sem

que tenha sido, ainda, essencialmente posto enquanto espírito – “e por certo que em um

sentido eminente com respeito a todos os demais espíritos dessa categoria”, para os quais

Indivíduo. Na tradução portuguesa, lê-se: “É este conceito de culpa e de pecado que transforma cada

indivíduo no Isolado.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 178, tradução nossa; s/d, p. 148-149)

110

nada supera o temporal (KIERKEGAARD, 2007, p. 180; s/d, p. 150); enquanto que a

Providência, somente aparece no horizonte do pecado, motivo pelo qual “o gênio tenha que

sustentar uma luta gigantesca antes de alcançar esse nível” (ibidem). Mas, o que é o gênio?

“O gênio é como uma onipotência à parte que conseguiria abalar o mundo inteiro. Por isso,

para que haja certa ordem, aparece juntamente com o gênio outra figura, a saber, a do

destino. Este não é nada, é o gênio mesmo o que o descobre, e quanto maior seja o gênio,

mais o descobrirá.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 180, tradução nossa; s/d, p. 150)

O gênio é aquele que levará a cabo as façanhas mais assombrosas – se reduz-se a ser

meramente um gênio e se volta em direção ao exterior – e, não obstante, continuamente

sucumbirá ao destino, se não externamente para os demais, ao menos interiormente. Por

isso que a sua existência seja sempre uma aventura, e nunca deixará de sê-la enquanto não

retornar a si mesmo, interiorizando-se profundamente. (2007, p. 180-181; s/d, p. 150-151)

O gênio pode tudo e, não obstante, é dependente de uma bagatela, a qual ninguém

chega a ver, mas à que o mesmo gênio confere um poderoso significado. As coisas

exteriores em si mesmas não significam nada para o gênio; por isso não pode ser

compreendido por ninguém. Tudo depende de como o mesmo gênio o entenda na

proximidade de seu amigo secreto o destino. Tudo pode estar perdido; mas o gênio sabe

que ele é mais forte que o mundo inteiro, importa-lhe não descobrir um comentário que

encerre alguma dúvida em torno ao texto invisível em que lê a vontade do destino. Se o que

lê é à medida de seus desejos, então segue adiante; e pode ser que triunfe em todos os

campos, mas no momento mesmo em que recebe tão faustas notícias, talvez mencione uma

palavra cuja significação não entenda nenhuma das criaturas, sequer Deus dos céus – já que

em certo sentido nem Deus entende o gênio –, e baste para que o gênio caia completamente

desarmado. (2007, p. 181-182; s/d, p. 151-152)

111

O gênio está situado fora do comum, é grande graças a sua fé no destino, e o é tanto

ao triunfar como ao afundar-se, já que deve ambas as coisas ao destino. Geralmente,

admira-se somente sua grandeza quando triunfa, mas na realidade nunca é maior que

quando cai diante de si mesmo – no sentido de que o destino não se anuncia de uma

maneira externa –; ao contrário, precisamente no momento em que, humanamente falando,

tudo está ganho, é quando o gênio descobre o texto suspeito e fatal, caindo completamente

vencido. Vendo-lhe caído, exclamam: “Que gigante não seria preciso para o abater!”. Por

isso nenhum outro pode fazer isto – desafiar o destino – a não ser o gênio mesmo. Aquela

fé que pôs a seus pés reinos e países, de maneira que os homens criam estar vendo o

desenvolvimento de um conto, essa mesma fé chegou-o a derrubar e sua queda foi um

conto, todavia, mais lendário e insondável (KIERKEGAARD, 2007, p. 182-183; s/d, p.

152-153).

Assim, o gênio sente angústia em horas bem distintas daquelas em que se sentem

angustiados os homens correntes que somente se acham seguros antes de descobrir e ao

passar o perigo; o gênio, ao contrário, nunca é mais forte que no momento do perigo; a

angústia lhe assalta em um momento antes e um momento depois, ou seja, nesses dois

momentos de oscilação em que tem que haver-se com esse grande desconhecido que é o

destino. Talvez sua angústia seja maior exatamente no momento depois, já que a

impaciência da certeza cresce em razão inversa à pequenez da distância, pois que há sempre

mais a perder à medida que se está mais perto da vitória e, mais do que nunca, no mesmo

momento da vitória. Mas o motivo decisivo de tal angústia está em que a lógica do destino

é precisamente sua falta de lógica (2007, p. 183; s/d, p. 153).

O gênio enquanto tal é incapaz de apreender-se religiosamente, e por isso nunca

chega ao pecado nem à Providência; permanece sempre nessa relação de angústia com o

112

destino. Jamais existiu um gênio sem está angústia, a menos que tenha sido também,

religioso. Se se mantém fixo nos limites de sua própria imediatez e de sua direção

centrífuga o gênio, será então grande e suas façanhas assombrosas, mas nunca alcançará e

nem será grande para si mesmo. Todas as suas obras se polarizam para fora, mas o núcleo

planetário das irradiações peculiares do gênio nunca terá existência própria. A importância

que o gênio tem para si mesmo sempre será nula ou, no máximo, suspeitamente nostálgica;

nunca chega a ser significativo para si mesmo no sentido mais profundo da palavra e, em

todo caso, sua significação nunca ultrapassará os limites que o destino tem assinalados na

esfera da sorte ou das categorias temporais: a desgraça, a glória, a honra, o poder e a fama

eterna; e é inútil buscar outras categorias de mais profundo porte dialético para delimitar a

angústia que sobressalta o gênio. Nesta ordem, o último motivo de sua angústia seria o que

se lhe tivesse por culpado, mas de tal maneira que a angústia não se refira então à culpa

mesma, mas sim a uma aparência dela, como uma mera questão de honra. Coisas

semelhantes podem suceder a qualquer homem, mas o gênio as tomaria em seguida tão a

sério que já não o teríamos lutando com os homens, mas sim com os mistérios mais

profundos da existência (2007, p. 184-185; s/d, p. 153-154).

Portanto, será preciso muita coragem para entender que semelhante existência

genial é, apesar de todo o seu brilho, sua glória e sua importância, um pecado. Dificilmente

o compreenderá assim quem não tenha aprendido com anterioridade a aplacar a fome da

alma cheia de nostalgias. E, não obstante, é assim. E não é nenhuma demonstração contra, o

fato possível de que tal existência seja feliz até certo ponto. Na realidade, podem-se

considerar seus dotes excepcionais como um meio de distração sem que nos elevemos um

instante só, ao manejá-los na realidade, acima das categorias temporais; apenas mediante

um retorno religioso sobre si mesmo se justificam verdadeiramente o gênio e o talento.

113

Seguir as categorias da pura imediatez sempre é uma coisa fácil na vida, seja-se grande ou

pequeno, claro que a recompensa também é proporcional; contudo, o homem que,

desprovido da suficiente madurez espiritual, não compreenda que inclusive uma glória

imortal através de todas as gerações da história não é mais que um valor temporal; nem

compreenda que tais coisas são bem míseras em comparação com a verdadeira imortalidade

que está destinada a todo homem, e que se somente estivesse reservada a um só seria o

bastante para que todos os demais sentissem uma autêntica inveja, esse homem, sem

dúvida, não chegará muito longe em sua explicação do espírito e da imortalidade, uma vez

que se encontra preso à temporalidade103

(KIERKEGAARD, p. 185-186; s/d, p. 154-155).

3. 3. 2. Culpa e Redenção

O Judaísmo – que também se situa na angústia – é o ponto de vista da lei. Porém,

com efeito, aqui o nada, objeto da angústia, passa a significar algo ou deixa de se

identificar com o destino presente no helenismo. É possível observar ainda, a partir do

Judaísmo, que a fórmula: “angustiar-se por nada” encontra-se em um paradoxo ainda

maior, uma vez que a culpa é algo o qual o objeto da angústia pode se tornar, mas que

enquanto seja somente objeto da angústia não é nada. “Esta ambiguidade se funda na índole

mesma da relação correspondente; já que uma vez que apareça a culpa como o que

formalmente é, desaparecerá a angústia para dar lugar ao arrependimento” (2007, p. 186,

tradução nossa; s/d, p.156). Desse modo, se ao conceito de angústia do pecado corresponde

a Providência, ao conceito de angústia da culpa corresponde o arrependimento –

correspondências que somente ocorrem, é bom lembrar, em uma relação interna, aquela a

103

Ainda, apenas para fazer notar, em Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor, à p. 179-197 tem-

se acesso ao texto Sobre a diferença entre um gênio e um apóstolo, datado de 1847 do filósofo.

114

qual o espírito encontra-se instituído enquanto tal, isto é, com que o espírito não apenas

mantém uma relação espiritual, mas na qual o espírito está instituído enquanto espírito pelo

espírito mesmo. Se a angústia da culpa não desaparece para em seu lugar obter lugar o

arrependimento, “a relação será sempre – como é próprio da angústia – tanto de simpatia

como de antipatia” (2007, p. 187, tradução nossa; s/d, p. 156), ou seja, a angústia

continuará na esfera da ambiguidade psicológica e se sentindo amedrontada, seguirá

mantendo uma comunicação astuta com seu próprio objeto não podendo e nem querendo

afastar a vista dele; a não ser que o Indivíduo o queira fazer para então dar lugar ao

arrependimento – o qual não experimenta o Indivíduo que vive na temporalidade.

“A não poucos parecerá muito difícil de entender o que estamos dizendo. Que

vamos fazer! Ao contrário, a coisa não será nada obscura para aqueles que com

imperturbável ânimo tenham sido capazes de fiscalizar divinamente – se é que

posso expressar-me assim – não tanto o comportamento dos demais quanto o seu

próprio. De resto, a mesma vida apresenta bastantes casos nos quais o indivíduo

angustiado fixa a culpa com um olhar quase ávido ao mesmo tempo que a receia.”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 187, tradução nossa; s/d, p. 156-157)

Ainda, conforme o filósofo, a culpa que tem sobre os olhos do espírito o poder de

encantamento – “o mesmo poder de encantamento que o olhar da serpente” – não se

conquista apenas através do pecado, mas, como já dissemos, pelo fator quantitativo da

geração: a culpabilidade – ainda que essa culpa não corresponda à culpa enquanto tal – que

difere daquela que ocorre no instante mesmo da decisão, isto é, quando o espírito imediato

se põe como espírito mediante o espírito (2007, p. 187; s/d, p. 157); não obstante, tanto essa

como aquela são modos do ser humano chegar à perfeição.

A angústia que habita o Judaísmo é a angústia da culpa. A culpa é um poder que se

expande por todas as partes e, não obstante, esse poder envolver a existência mesma

ninguém é capaz de compreendê-lo profundamente (2007, p. 188; s/d, p. 157); explicação

115

que somente a dará uma coisa que seja de natureza idêntica à culpa, tal como o oráculo

correspondia ao destino. Essa coisa é o sacrifício. O judeu se refugia no sacrifício para

suplantar a culpa, mas esse não lhe serve de nada; ele precisaria que “a relação da angústia

com a culpa se anulasse, e se estabelecesse uma relação efetiva. Já que isso não ocorre, o

sacrifício torna-se ambíguo, o que se expressa em sua repetição, cuja extrema consequência

seria um puro ceticismo no sentido da reflexão sobre o ato mesmo do sacrifício”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 111-112; 2007, p. 188).

Há, contudo, um sacrifício – cuja perfeição corresponde ao fato que esteja

estabelecida a relação real do pecado – que não se repete: a Redenção. Assim, a afirmação

segundo a qual somente com o pecado se dá a Providência ressurge com maior vigor nesta

em que, somente com o pecado aparece a Redenção. “O sacrifício sempre se repetirá

enquanto não se estabelecer a relação real do pecado [...] assim é como o sacrifício que se

repete indubitavelmente dentro do catolicismo, se bem que, por outra parte, se reconheça a

sua perfeição absoluta” (KIERKEGAARD, 2010, p. 112; 2007, p. 189) que evidentemente

está no sacrifício mesmo e não em sua repetição numérica; o sacrifício, repetido várias

vezes no catolicismo funcionaria como um remédio com o qual se pretende prevenir uma

doença – a doença do espírito –, ou, seus sintomas antes mesmo de começar a aparecer e

mesmo antes de se descobrir a sua causa; a fim de “fazer memória” o catolicismo esvazia,

não poucas vezes, o sacrifício de sua mensagem principal: a Redenção. Deste modo,

também no cristianismo nos deparamos com aquele distinto indivíduo: o gênio, que

“somente se distingue em geral de qualquer outro homem pelo fato de que conscientemente

começa, dentro de seu pressuposto histórico, tão primitivamente quanto Adão” (2010, p.

112; 2007, p. 189), em que sentido? Cada vez que nasce um gênio, este recorre e revive

tudo o que ficou atrás, até que ao fim se alcança a si mesmo, motivo pelo qual, segundo

116

Kierkegaard, “o saber que um gênio tem do passado é completamente distinto do que nos

oferecem os panoramas histórico-universais” (KIERKEGAARD, 2007, p. 189, tradução

nossa; 2010, p. 112).

Para o filósofo, toda vida humana está disposta religiosamente.104

Negar isto é

confundir e abolir os conceitos de Indivíduo, gênero humano e imortalidade, nos quais

estão fixados problemas dificílimos, a saber: como minha existência religiosa entra em

relação e se expressa em minha existência exterior, ou, como uma existência religiosa

penetra e transforma uma existência exterior (2007, p. 190-1, tradução nossa; s/d, p. 159;

2010, p. 113).

“Por isso, caso de não se perder no torvelinho da desesperação, os homens têm

por hábito agarrar-se com todas as forças ao que tem mais à mão. Desta maneira

talvez cheguem a ser algo grande no mundo; e se de vez em quando vão à igreja,

então já não cabe pedir mais. O que parece indicar que o religioso é para alguns

indivíduos o absoluto e para outros não o é. Se isto fosse certo, a vida não teria

nenhum sentido. Aquela meditação [como uma existência religiosa penetra e

transforma uma existência exterior] se fará, naturalmente, tanto mais difícil

quanto mais afastadas estejam as tarefas externas do religioso enquanto tal. Um

ator cômico, por exemplo, necessitaria uma enorme capacidade de concentração

religiosa para assumir neste sentido semelhante tarefa exterior.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 191, tradução nossa)

Ainda que, segundo o nosso autor, tal assunção – referindo-se à do ator cômico –

seja realizável, já que a esfera do religioso é mais maleável que o ouro e dona de uma

comensurabilidade absoluta com todas as coisas, temos que ver o que falta ao ator cômico

para que não consiga realizar tal movimento. Kierkegaard dizia, supondo-o, evidentemente,

no século XIX, que “os homens nascem hoje com a inteligência muito mais esclarecida que

104

“Se cada ser humano não participa, essencialmente, no absoluto, então tudo acaba. Por isso, na esfera do

religioso, não se deve falar do gênio como de um talento especial dado só a alguns; pois o talento aqui

consiste em querer, e, a quem não quer, convém que, ao menos, demos a honra de não o lamentar.”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 122)

117

nos tempos passados, mas também são, em sua grande maioria, cegos de nascimento a

respeito do religioso” (2007, p. 192, tradução nossa).

O gênio que não quer paralisar-se dentro dos limites de sua própria imediatez – o

gênio religioso – prorroga, cada vez mais para adiante a questão: Chegarei algum dia a

voltar-me para fora? Já que, primeiramente, o que faz é voltar-se para si mesmo. Neste

movimento acompanha-lhe a figura da culpa – do mesmo modo que a figura do destino

acompanha o gênio imediato –, porque quando o gênio religioso se volta em direção a si

mesmo, por esse fato se volta em direção a Deus, “e definitivamente é uma regra protocolar

a que impõe que todo espírito finito que queira ver a Deus comece sentindo-se culpado”

(2007, p. 193, tradução nossa), mas ao voltar-se para si mesmo, já não está descobrindo a

culpa? Sim, está. E “quanto maior seja o gênio, com tanta maior profundidade descobrirá a

culpa” (ibidem).

O gênio religioso, de acordo com o nosso autor, não é como a maioria da gente, nem

tampouco lhe satisfaz a ideia de chegar a ser um entre tantos. Isto não é porque o gênio

despreze os homens ou porque seja atacado de misantropia, mas sim porque, de uma

maneira original, se sente atarefado consigo mesmo proporcionando a todos os demais

homens e suas costumeiras explicações o abandono (KIERKEGAARD, 2010, p. 115; 2007,

p. 194; s/d, p. 162).

O fato de o gênio descobrir profundamente a culpa demonstra que este conceito,

bem como o conceito contrário a esse: o da inocência, está presente em sua mente.

Interiorizando-se, o gênio descobre a liberdade – não uma liberdade para fazer isto ou

aquilo no mundo, para chegar a ser rei e imperador, mas sim a liberdade de saber

conscientemente que em si mesmo é liberdade (grifo nosso) – “não teme ao destino, pois

118

para ele não existem tarefas na direção da exterioridade, constituindo a liberdade sua bem-

aventurança” (2007, p. 194, tradução nossa).

Quanto mais se eleva um Indivíduo, tanto mais caro se compra para si as coisas, que

acabam por reivindicar que junto com esta liberdade essencial apareça uma segunda figura:

a culpa; figura a qual o gênio teme – como o gênio imediato temia o destino –. “Contudo, o

temor do gênio não é aqui [...] um temor de aos olhos dos demais ser considerado culpado,

mas sim que o que se teme é sê-lo”105

(2007, p. 195, tradução nossa), já que a culpa pode

roubar-lhe a liberdade. Assim, no mesmo grau em que descobre a liberdade, no mesmo

grau pesa sobre o gênio, no estado da possibilidade, a angústia do pecado. A liberdade de

que nos fala Sören Kierkegaard “não é de jeito nenhum desafio, nem liberdade egoísta no

sentido finito”, com a qual tantas vezes se procurou explicar o surgimento do pecado.

Concebida assim, desafiadora e egoisticamente finita, a liberdade tem por oposto a

necessidade, “o que mostra que se concebeu a liberdade numa determinação-de-reflexão”,

segundo a tradução de VALLS (2010, p. 116), ou, “dentro de uma categoria puramente

mental”, conforme a tradução de RIVERO (2007, p. 195).

“Não, o oposto da liberdade é a culpa, e o máximo na liberdade está em que ela

sempre tem a ver só consigo mesma, em sua possibilidade projeta a culpa, e a

põe, por conseguinte, por si mesma e, se a culpa é posta realmente, a põe por si

mesma. Se não se prestar atenção a isso, ter-se-á brilhantemente confundido a

liberdade com algo totalmente diferente: com força.” (KIERKEGAARD,

2010, p. 116)

Se a liberdade teme a culpa, e de fato, conforme Kierkegaard, teme, não é por se

reconhecer culpada quando o é, mas o que teme é tornar-se culpada. Por isso que, uma vez

105

No caso anterior, a saber: do gênio imediato, o momento decisivo de sua angústia era o de ser considerado

culpado; mas essa angústia não corresponde à angústia aludida do gênio religioso, na qual o temor existe em

função da possibilidade de se ser, verdadeiramente, culpado.

119

posta a culpa, a liberdade reaparece como arrependimento; “a relação da liberdade com a

culpa é, primeiramente, uma possibilidade”. E assim, “se revela de novo o gênio, ao não

pular fora da decisão primitiva, não procurar a decisão fora de si, junto a fulano e beltrano,

ao não se satisfazer com o regatear usual”; somente dentro de si mesma pode a liberdade

chegar a saber se é liberdade ou se a culpa foi posta (2010, p. 116).

Qual relação tem a liberdade com a culpa? A relação de angústia, porque tanto a

liberdade como a culpa ainda são possibilidade. Porém,

“à medida que a liberdade fixa seu olhar sobre si mesma desse modo tão

característico seu, isto é, com toda sua paixão e ardendo em desejos, não

querendo por nada do mundo que se aproxime-lhe a culpa [...] nesse mesmo

momento e sem que o possa evitar a encontramos olhando também fixamente a

mesma culpa, e este seu olhar fixo constitui a ambiguidade da angústia.

Exatamente da mesma maneira que a renuncia de uma coisa representa dentro da

possibilidade o desejo correspondente.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 116;

2007, p. 196)

A partir disso, se nos revela em que sentido, no indivíduo posterior, existe um

“mais” na angústia que o domina e que não existia na de Adão.106

Na relação da

possibilidade, “sempre que o arrependimento aparece com o pecado real, ele tem como seu

objeto o pecado real” e não possível. Por fim, tal como o destino que apoderando-se do

gênio imediato culmina naquele momento em que tal gênio desmorona-se intimamente por

obra do destino e ante seus próprios olhos; a culpa apodera-se do gênio religioso e este é

seu momento culminante, o momento de sua maior grandeza. O momento, segundo

Kierkegaard, em que, por si e diante de si mesmo, o gênio sucumbe no abismo da

consciência do pecado (2010, p. 117; 2007, p. 198).

106

O mais da “consciência reprimida do pecado”. (KIERKEGAARD, 2007, p. 196, nota, tradução nossa)

120

3. 4. O salto qualitativo

O pecado107

veio e continuará vindo ao mundo através do salto qualitativo. Mas o

que é o salto qualitativo? É a realidade efetiva, na qual “o objeto da angústia é agora algo

determinado, o seu nada é alguma coisa efetiva, já que a diferença entre bem e mal está

posta in concreto, e por isso a angústia perdeu sua ambiguidade dialética”; isto tanto para

Adão quanto para qualquer indivíduo posterior, pois pelo salto qualitativo são

completamente iguais (2010, p. 119-120). Mas, “o que é o bem”? Para Kierkegaard, temos

que ser cautelosos ao pretender dar a resposta, “o bem não admite que se o defina” (2007,

p. 200, nota, tradução nossa); pois deixar-se definir, é não existir. Ao afirmar que o bem

não admite definição, Kierkegaard chama a atenção para que não passe, a ninguém,

despercebido que esse não existe e nunca existirá como objeto do pensamento108

, visto que

“o bem é a liberdade” e que é, somente, para a liberdade e na liberdade que a diferença

entre bem e mal existe, diferença que nunca existirá in abstracto – esse um mal-entendido

que surge por transformarmos a liberdade em algo de diferente, isto é, um objeto do

pensamento –, mas somente in concreto. Disso provém, segundo o filósofo, “o que perturba

quem não é tão experiente no método socrático quando este de um instante para outro

reconduz o bem, que parece infinitamente abstrato, ao que há de mais concreto. O método é

107

“O pecado significa aqui o concreto, naturalmente; pois jamais se peca por atacado ou na generalidade.”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 121)

108

“[...] diante dos conceitos da existência, o abster-se das definições sempre mostra um tato seguro, porque é

impossível que se possa inclinar-se a querer captar na forma da definição – com o que tão facilmente surge

um estranhamento e o objeto se transforma em outra coisa: aquilo que essencialmente deve ser compreendido

de outro modo, que a gente mesma compreendeu de modo diferente, o que a gente amou de um modo

totalmente diferente. Quem ama de verdade, dificilmente poderá encontrar prazer, satisfação, para nem dizer

crescimento, em ocupar-se com uma definição do que é propriamente amor. Quem vive numa relação diária, e

contudo festiva, com a ideia de que existe para nós um Deus, dificilmente poderá desejar estragar ele mesmo

isso, ou vê-lo ser estragado, para conseguir costurar com suas próprias mãos, como um remendão, uma

definição do que seria Deus.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 154)

121

totalmente correto, e apenas falhava [...] ao conceber o lado exterior do bem (o útil, o

teleológico finito).” (KIERKEGAARD, 2010, p. 119, nota)

A liberdade não se apresenta in abstracto. “Quando se quer dar à liberdade um

instante para escolher entre o bem e o mal, sem que ela mesma esteja empenhada em uma

das partes”, aí ela “não é liberdade, mas uma reflexão sem sentido”, pura especulação.

Ainda, supondo que a liberdade permaneça no bem, “não sabe absolutamente nada do mal”.

Para Sören, é com esse sentido que deve-se reconhecer que “Deus nada sabe a respeito do

mal. Com isto não digo, de modo nenhum, que o mal é apenas o negativo, „o que deve ser

superado‟; mas o absoluto castigo do mal consiste em que Deus o desconheça, que nada

possa nem queira saber dele” (KIERKEGAARD, 2010, p. 119; 2007, p. 200, nota, tradução

nossa). Vigilius Haufniensis, nota que a expressão “„para longe de‟” no Novo Testamento

indica “o afastamento para longe de Deus, e, se me atrevo a dizer, a ignorância de Deus no

que tange ao mal”. Além disso,

“Quando se concebe Deus de modo finito, poderia ser cômodo para o mal se

Deus quisesse desconhecê-lo, mas, já que Deus é o Infinito, o ignorar dele

corresponde à sua viva destruição, pois o mal não pode prescindir de Deus nem

mesmo para subsistir como o mal. Citarei uma passagem das Escrituras 2 Tes. 1,

9, onde se diz daqueles que desconhecem Deus e não obedecem ao Evangelho:

[...] „Sofrerão como castigo uma perdição eterna, longe da face do Senhor e da

glória do seu poder‟.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 119; 2007, p. 200-

201, nota)

Através do salto qualitativo, estabelecem-se o pecado no Indivíduo e a diferença

entre bem e mal; portanto, é insano pensar que o ser humano “tem de pecar”; o nosso autor,

sempre protestou “contra todo saber apenas experimental” e afirma: “o pecado pressupõe a

si próprio do mesmo modo como a liberdade, e não se deixa explicar por meio de algo

antecedente” (KIERKEGAARD, 2010, p. 120; 2007, p. 201), principalmente, pela

122

necessidade, cujo modo de se exprimir é: ter de. Para Vigilius Haufniensis, nenhuma

explicação acerca da liberdade é possível se começa afirmando que essa “entra em cena

como um liberum arbitrium [livre arbítrio] que tanto pode escolher o bem como o mal.

Falar do bem e do mal como objetos de liberdade equivale a tornar finitos tanto a liberdade

como os conceitos do bem e do mal.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 201, tradução nossa)

Acima foi dito que o bem é a liberdade que, por sua vez, “é infinita e aparece do

nada. Por isso, querer dizer que o homem peca de maneira necessária, é querer esticar numa

linha reta o círculo do salto” (2010, p. 120); a vida de cada ser humano individual caminha

para adiante em um movimento de estado a estado,109

o qual aparece por meio de um salto.

O pecado entrou no mundo por um Indivíduo e, se não é parado, continua a entrar todas as

vezes que um Indivíduo peca; mas, poderíamos pensar que cada uma das repetições do

pecado é, apenas, uma simples consequência? Não, absolutamente.

“Cada uma de suas repetições não é, apesar de tudo, uma simples consequência,

mas sim um novo salto. A cada um destes saltos precede-lhe, como sua máxima

aproximação, uma situação [ou “estado”, segundo a edição brasileira e

portuguesa]. Esta situação é o objeto da Psicologia. Em toda situação está

presente a possibilidade e, por conseguinte, a angústia. Assim acontece desde que

foi introduzido o pecado, pois somente no bem se dá a unidade da situação e da

passagem.” (KIERKEGAARD, 2007, p. 202, tradução nossa)

O pecado, ao entrar no mundo, trouxe com ele uma qualidade nova: a pecabilidade

ou a capacidade de pecar a qual, já se sabe, pode significar a sensualidade e/ou a

temporalidade, portanto, possibilidade e angústia, as quais – de acordo com a transcrição

acima – somente se oferecem na liberdade (bem). Vê-se, mais uma vez, agora com maior

109

“de situação a situação”, na edição espanhola (KIERKEGAARD, 2007, p. 202, tradução nossa)

123

clareza, que o quê antecede ao salto110

é algo concreto: uma situação, não uma reflexão ou

mera especulação. Já que toda situação (estado) acompanha-se de possibilidade e angústia

(liberdade), como fica esta última, a angústia, diante do pecado posto? Fica uma

possibilidade anulada, mas também uma realidade indevida ou injustificada. “Até aí, a

angústia pode relacionar-se com ela. Já que ela é uma realidade indevida, deve ser negada

outra vez. A angústia assumirá esse trabalho” (KIERKEGAARD, 2010, p. 121); também é,

em si, consequência, ainda que estranha à liberdade. “Esta consequência se anuncia, e a

relação da angústia se volta para o sobrevir da consequência, que é a possibilidade de um

novo estado. Por mais fundo que um indivíduo tenha afundado, sempre pode afundar ainda

mais fundo, e este „pode‟ constitui o objeto da angústia” (ibidem). Para o nosso autor, tanto

“mais a angústia afrouxa, tanto mais quer dizer que a consequência do pecado penetrou no

indivíduo in succum et sanguinem [“na carne e no sangue”], e que o pecado conquistou

direito de cidadania na individualidade” (ibidem), motivo pelo qual justifica-se, ainda mais,

a existência da presente investigação, por Vigilius Haufniensis, de O Conceito de Angústia.

Angústia que é mais perceptível uma vez que o pecado é posto, mas que, à medida que a

consequência do pecado penetra no Indivíduo, desaparece mais e mais acercando-se do

Indivíduo desta vez, por fora. Não obstante, do ponto de vista do espírito, a angústia, neste

caso, é maior do que qualquer outra, visto que a angústia “se depara com a possibilidade de

pecar ainda mais”, isto é, com “a possibilidade extrema do pecado”. Se aqui a angústia

decresce, então o explicamos pelo fato de que a consequência do pecado vence”

110

“O salto, que é de ordem qualitativa, permite que o indivíduo passe de uma esfera a outra da existência,

por uma decisão pessoal. Porque não é certamente a largura material do fosso que impede o salto, mas a

paixão dialética interior que dá ao salto sua largura infinita. Ter estado tão perto de uma coisa, já tem seu lado

risível; mas, ter estado tão perto de efetuar o salto, é sem importância, justamente porque o salto é a categoria

da decisão”. (KIERKEGAARD. In: SAMPAIO, 2001, p. 168)

124

(KIERKEGAARD, 2010, p. 122); portanto, na existência, a angústia se compara a um

termômetro, cuja indicação expõe ao Indivíduo a sua verdade.

Ao avançar no sentido de sua consequência o pecado é seguido a passo, porém um

instante atrasado, pelo arrependimento que “se obriga a contemplar o terrível”, a partir do

qual a angústia alcança o seu ponto máximo; observemos, entre tantos, um destes

momentos através dos Indivíduos abaixo.

“Mas Adão e Eva choraram por terem de sair do jardim, a sua primeira habitação.

E, certamente, quando Adão olhou para sua carne, que estava alterada, chorou

amargamente, ele e Eva, pelo que haviam feito. E eles caminharam e desceram

docilmente para a Caverna dos Tesouros. E ao chegarem Adão lamentou-se e

disse a Eva: „Olha para esta caverna que será nossa prisão neste mundo, é um

lugar de castigo! Que é isto comparado com o jardim? Que é esta estreiteza

comparada com o espaço do outro? Que é esta rocha ao lado destas grutas? Que

são as trevas desta caverna comparadas à luz do jardim? Que é esta lápide de

rocha suspensa para nos abrigar comparada à misericórdia do Senhor que nos

acolhia? Que é o solo desta caverna comparado à terra do jardim? Esta terra,

coberta de pedras, e aquela plantada com deliciosas árvores frutíferas?‟ E Adão

disse a Eva: „Olha para teus olhos e para os meus, que dantes viam anjos no céu

louvando; e eles, também, sem cessar. Mas agora nós não vemos como víamos:

nossos olhos são de carne; não podem ver da mesma maneira como viam antes.‟

Adão disse novamente a Eva: „Que é nosso corpo hoje comparado ao que era em

dias passados, quando habitávamos no jardim‟? Após isso, Adão não gostou de

ter de entrar na caverna, sob a rocha suspensa, nem entraria nela jamais por

vontade própria. Mas curvou-se às ordens de Deus, e disse a si mesmo: „A não

ser que eu entre na caverna, serei novamente um desobediente‟. Então Adão e

Eva entraram na caverna e permaneceram em pé orando, em sua própria língua,

desconhecida para nós, mas que eles bem conheciam.” (O Primeiro Livro de

Adão e Eva, Cap. 4, 1-12; 5, 1. In: PROENÇA, 2005, p. 15-16)111

111

Aqui, a descrição de Vigilius Haufniensis: “O arrependimento perdeu a razão e a angústia ficou potenciada

em arrependimento. A consequência do pecado avança, arrasta atrás de si o indivíduo como a uma mulher que

o carrasco vai arrastando pelos cabelos enquanto ela grita no desespero. A angústia vai à frente, ela descobre a

consequência antes que esta chegue, como se pode pressentir em si mesmo que uma tempestade está a se

formar; ela se aproxima, e o indivíduo treme como um cavalo que estanca, fremente, no lugar onde uma vez

se assustou. O pecado triunfa. A angústia atira-se desesperada nos braços do arrependimento. O

arrependimento arrisca sua derradeira cartada. Concebe a consequência do pecado como o padecimento de um

castigo, a perdição como a consequência do pecado. Ele está perdido, sua sentença já foi lida, sua condenação

está garantida, e o agravamento da pena reside em que o indivíduo será arrastado através da existência, até o

local da execução. Em outras palavras: o arrependimento enlouqueceu.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 123)

125

O estado de arrependimento, nota Kierkegaard, “raramente se encontra entre aquelas

naturezas totalmente corrompidas, mas em geral só nas mais profundas”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 123), nas quais a consequência do pecado mostra-se numa

medida adequada. Porém, não nos enganemos; decerto que “quanto mais profundo é o

indivíduo, mais profundo o arrependimento. Mas o arrependimento não consegue libertá-

lo” (2010, p. 124). Contudo, há uma coisa que consegue, como diz Kierkegaard, desarmar

os “sofismas” do arrependimento: a fé, “a coragem de crer que o próprio estado é um novo

pecado, a coragem de renunciar sem angústia à angústia, o que só a fé consegue, sem que,

contudo, com isso elimine a angústia, mas, ela mesma sempre eternamente jovem, se

desvencilha do instante mortal da angústia. Disto só a fé é capaz, pois só na fé a síntese é

possível, eternamente e a cada momento.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 125)

Suponhamos que o que foi trabalhado até agora acerca do arrependimento e do

próprio arrependimento pertença à Ética, o que aconteceria? Vejamos. “Para a Ética, a

questão toda está em deixar o indivíduo corretamente posicionado em relação ao pecado.

Uma vez posto aí, fica penitenciando-se no pecado. E, no mesmo instante, do ponto de vista

da ideia, retorna à Dogmática. O arrependimento é a contrição suprema da Ética”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 125), por isso pertence à Psicologia.

O arrependimento é a contradição da Ética por vários motivos: primeiro, “porque a

Ética, justamente ao exigir a idealidade, tem de se contentar com o arrependimento”;

segundo, “porque o arrependimento torna-se dialeticamente ambíguo com referência ao que

deve anular, ambiguidade essa que só a Dogmática anula na Redenção, na qual a

determinação do pecado hereditário se faz nítida” (ibidem). O arrependimento, ademais,

“retarda a ação, e é esta última o que a Ética propriamente exige. Por fim, o arrependimento

126

tem então de tomar a si mesmo como objeto, na medida em que o instante do

arrependimento torna-se um déficit de ação” (idem, ibidem).

Para Vigilius Haufniensis, o ponto dialético e, diga-se, extremo do arrependimento

está em que “uma vez posto, este quer anular a si próprio por meio de novo

arrependimento, e em que então ele afunda junto” (idem, ibidem).

3. 5. O demoníaco em Kierkegaard

Há um “ponto em questão” ao qual Kierkegaard se refere ao demoníaco. Qual é ele?

É o da não liberdade. Quando se vê descrito o fenômeno demoníaco vê-se que “aquilo de

que se fala é a servidão do pecado” (2010, p. 126); contudo, “a servidão do pecado ainda

não é o demoníaco” (2010, p. 127).

Em algumas linhas anteriores foi dito que são possíveis duas formações quando o

pecado é uma vez cometido e o Indivíduo permanece nele. A primeira, “o indivíduo está no

pecado, e sua angústia se dá frente ao mal”;112

a segunda, “é o demoníaco. O indivíduo está

no mal e se angustia diante do bem. A escravidão do pecado é uma relação forçada com o

mal, mas o demoníaco é uma relação forçada com o bem”, o qual significa, naturalmente,

“reintegração da liberdade, redenção, salvação ou como quer que se chame” (2010, p. 127).

O demoníaco, ao longo do tempo, teve os mais diversos pontos de vista “possíveis”

e “reais”. Foi considerado, por exemplo, sob um ponto de vista estético-metafísico. Neste,

submete-se a categorias como: infortúnio, destino, entre outras, “permitindo ser

considerado por analogia com a demência congênita ou outras desgraças similares”

(KIERKEGAARD, 2007, p. 212).

112

No entanto, para o nosso autor, “de uma perspectiva mais elevada, esta formação radica no bem, e é por

isso que o indivíduo se angustia frente ao mal.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 127)

127

Em relação a este, bem como aos demais pontos de vista, Kierkegaard é taxativo ao

afirmar que nos relacionamos com o demoníaco de um “modo compadecente”. O

demoníaco provoca-nos compaixão e é nos compadecendo que nos relacionamos com o

fenômeno113

demoníaco. A compaixão – “no sentido em que habitualmente se toma, é a

mais miserável de todas as virtuosidades e habilidades sociais” – longe de beneficiar o

padecente, apenas conserva nosso próprio egoísmo.

“Não ousamos no sentido mais profundo meditar sobre tais coisas e então nos

salvamos pela compaixão. Só quando o compassivo em sua compaixão se

relaciona com o padecente de tal maneira que compreende no sentido mais

rigoroso que é de sua causa que se trata, só quando sabe identificar-se com o que

padece de tal maneira que, lutando por uma explicação, luta por si mesmo,

abjurando de toda irreflexão, tibieza e covardia, só então a compaixão adquire

significado e só aí encontra talvez o sentido, pois nisso o compassivo se

diferencia do que padece, que o primeiro padece de uma forma mais elevada.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 127-128)

A compaixão quando comporta-se autenticamente com o demoníaco dispensa as

palavras de consolo, as esmolas e a indiferença. “Se o demoníaco é um destino, pode

alcançar qualquer um. [...]. Daí resulta que, em nosso tempo, chega-se a saber tão pouco

dos mais elevados conflitos espirituais, enquanto por outro lado sabe-se tanto mais de todos

os frívolos conflitos, entre os homens e entre o homem e a mulher, que uma refinada vida

de sociedade e de saraus traz consigo” (KIERKEGAARD, 2010, p. 128); no dia que a

verdadeira compaixão humana assumir o papel de fiadora e devedora subsidiária dos

sofrimentos humanos será necessário, afirma Kierkegaard, verificar até que ponto o

demoníaco é destino e até que ponto é culpa; verificação que deverá ser concluída com a

113

“[...] os fenômenos possuem a característica comum de serem demoníacos, mesmo que sua diversidade de

resto seja fantástica”. Contudo, “o que decide se o fenômeno é demoníaco é a postura do indivíduo diante da

revelação: se ele quer impregnar de liberdade aquele fato, assumi-lo em liberdade. Toda vez que não o queira,

o fenômeno será demoníaco.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 135 e s.)

128

toda a paixão preocupada e enérgica da liberdade de maneira que se ouse mantê-la, ainda

que o mundo se destroce (ibidem).

Sob o ponto de vista ético o demoníaco é concebido como algo condenável. “É bem

conhecido com que espantoso rigor ele foi perseguido, descoberto e castigado. Em nosso

tempo estremecemos ao simples relato desses fatos, ficamos sentimentais, emotivos ante a

ideia de que em nossa época esclarecida já não se age mais assim” (idem, ibidem).114

Mas,

pergunta-nos Kiekegaard, a compaixão sentimental nesse caso merecerá tanto louvor?

Aqui, o nosso autor não se autoriza julgar e condenar, porém, apenas, observar. “O fato de

que outros tempos foram eticamente tão severos revela justamente que sua compaixão era

de melhor qualidade. Identificando-se com o fenômeno, pelo pensamento, não encontravam

outra explicação senão a de que se tratava de culpa” (2010, p. 129), por isso o

endemoninhado acabaria desejando por si mesmo que contra ele se procedesse com toda

crueldade e rigor, pois naquele que “não é, no sentido forte, eticamente desenvolvido”,

nada lhe causa maior consolo e alívio do que saber que sofre por culpa e não por destino.115

“[...] não foi Agostinho quem recomendou o emprego do castigo e inclusive da

pena de morte para os hereges? Será que ele carecia de compaixão ou será que

seu procedimento não se diferencia mais provavelmente do de nossa época pelo

fato de que sua compaixão não fez dele um covarde? Desta maneira, teria dito

sobre si mesmo: „Se tal coisa vier a suceder comigo, queira Deus que exista uma

Igreja que não me abandone, senão que use de todo o poder‟. Mas em nosso

tempo teme-se, como Sócrates disse em algum lugar, deixar-se cortar e cauterizar

pelo médico para ser curado.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 129)

Considerou-se também o demoníaco sob outro ponto de vista: o médico-terapêutico.

“Juntarem-se, pois, o farmacêutico e o doutor. O paciente foi afastado para não atemorizar

114

Em nosso tempo, isto é, no tempo desta dissertação, um comentário assim somente é feito quando se faz

referência ao Tribunal da Inquisição adotado pela Igreja de Roma.

115

Cf. nota em O Conceito de Angústia, edição brasileira de 2010, p. 129.

129

os outros. Em nossos bravos tempos, não se ousa dizer a um paciente que ele há de morrer,

não se ousa chamar o pastor [...] não se ousa dizer a um paciente que no mesmo dia morreu

alguém com a mesma enfermidade” (2010, p. 129), ou seja, apartaram o paciente-

padecente, ninguém vai mais lhe visitar – mandam perguntar por seu estado –; para

fornecer uma média, pela qual está tudo explicado, o médico promete-lhe um quadro com

tabela e estatística; o demoníaco, sob esse ponto de vista, tornou-se algo puramente físico e

somático (ibidem).

Como o fenômeno demoníaco é ambíguo. Demonstra ser possíveis três perspectivas

diferentes e, de algum modo, pertence a todas essas esferas: “à somática, à psíquica e à

pneumática”, as quais indicam que o demoníaco tem um alcance muito maior do que se

supõe, “em razão de o homem ser uma síntese de alma e corpo mantida pelo espírito, razão

pela qual a desorganização numa esfera mostra-se demais” (2010, p. 130).

Na investigação acerca da angústia o demoníaco ocupa um lugar muito particular.

“Na inocência não faz sentido falar do demoníaco. Por outro lado, há que abandonar toda

representação fantástica de alguém que se vende ao mal [...]. Se se perguntar aqui até que

ponto o demoníaco é um problema psicológico, deve-se responder: o demoníaco é um

estado”, do qual pode sair, continuamente, cada um dos atos pecaminosos (ibidem, grifo

nosso); porém, é bom ressaltar, o estado “é uma possibilidade, ainda que comparando com

a inocência seja, é claro, uma realidade colocada pelo salto qualitativo” (idem, ibidem),

colocada pelo Indivíduo no Indivíduo.

Resumidamente, “o demoníaco é angústia diante do bem”. Na inocência, como já

foi dito, “a liberdade não estava posta como liberdade, sua possibilidade era angústia”

(2010, p. 130). No estado demoníaco, a relação se inverte: “A liberdade está posta como

não liberdade; pois a liberdade está perdida. A possibilidade da liberdade é aqui de novo

130

angústia. A diferença é absoluta, pois a possibilidade da liberdade apresenta-se aqui em

relação com a não liberdade, a qual é diametralmente oposta à inocência, que é uma

determinação rumo à liberdade.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 131)

O conceito do demoníaco em Kierkegaard é mais abrangente. “Não adianta tornar o

demoníaco um monstro, que leva a gente a estremecer de horror, para em seguida ignorá-

lo” (2010, p. 143) em detrimento de uma aparente compaixão. Para o nosso autor, “talvez

jamais ele tenha estado tão espalhado quanto em nossos tempos, só que hoje em dia mostra-

se especialmente nas esferas espirituais.” (2010, p. 143-144)

“A não liberdade, o demoníaco é, pois, um estado” (ibidem), no qual a liberdade

perde-se somático-psiquicamente e pneumaticamente. Vejamos.

3. 5. 1. “A liberdade perdida somático-psiquicamente”

O corpo é o órgão da alma e do espírito. “Sempre que cessa essa relação

coadjuvante, sempre que o corpo se revolta, sempre que a liberdade conspira junto com ele

contra si mesma, a não liberdade se apresenta como o demoníaco” (KIERKEGAARD,

2010, p. 144); decerto que a angústia também aqui está presente, mas como “angústia

diante do mal, não como angústia diante do bem” (ibidem). O demoníaco, segundo

Kierkegaard, insere nesta esfera uma multiplicidade de nuances, de ínfimas a dialéticas,

algumas difíceis de discorrer a respeito in abstracto, já que o discurso fica completamente

algébrico (ibidem). Uma nuance deste tipo é a perdição bestial. “O demoníaco neste estado

se mostra no fato de que ele, tal como aquele demoníaco do NT[116]

, diz, com referência à

salvação: [„Que tens a ver comigo?‟]. Ele evita por isso todo e qualquer contato, seja que

[116]

NT é a sigla para Novo Testamento. A passagem acima, segundo Kierkegaard, encontra-se em Mar. 5, 7.

131

este então de fato o ameace ao querer auxiliá-lo para a liberdade, seja que o contatou de

maneira totalmente casual” (KIERKEGAARD, 2010, p. 144-145).

Neste estado, o endemoninhado vê a sua existência, completamente, perdida para a

qual ele diz não haver mais salvação, o que consiste um equívoco. Mas mesmo que ela lhe

apareça ele a rejeita, por causa da angústia que ela lhe provoca, pedindo para ser deixado

em paz, na miséria em que está ou lamenta-se dizendo que se afundou ainda mais porque, já

que o auxílio não lhe chegou oportunamente, não pode ser mais salvo. “Nenhum castigo,

nenhum discurso tonitruante o angustia, mas sim, ao contrário, qualquer palavra que o

queira pôr em relação com liberdade que se afundou na não liberdade” (2010, p. 145).

Outro modo como a angústia tem de se apresentar por toda a esfera da perdição

bestial é o da “socialidade”. Há entre os demoníacos uma coesão “em que se agarram uns

aos outros tão ansiosa e indissoluvelmente, a que nenhuma amizade se iguala em

interioridade. [...] A socialidade, tão só, já contém uma certeza de que o demoníaco está

presente” (ibidem), pois não podemos esquecer que para Kierkegaard a multidão é a

mentira e a mentira ou a inverdade é a não liberdade.

3. 5. 2. “A liberdade perdida pneumaticamente”

Nesta formação, a categoria do demoníaco está na “relação da liberdade para com o

conteúdo dado e para com o conteúdo possível em relação à intelectualidade”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 145). Aqui o demoníaco pode se expressar como “comodidade

que quer pensar mais um pouquinho; como curiosidade que nunca chega a ser mais do que

busca de novidades; como auto-engano desonesto; como moleza feminina que se confia aos

outros; como um nobre ignorar; como estúpida azáfama, etc.” (2010, p. 145-146).

132

Considerado sob uma perspectiva intelectual, o conteúdo da liberdade é verdade, “e

a verdade torna o ser humano livre”, motivo pelo qual, segundo Kierkegaard, a verdade é a

obra da liberdade, de modo que a liberdade engendra constantemente a verdade (ibidem),

mas de qual “verdade” quer falar o nosso autor? Da verdade que só existe para o Indivíduo

à medida que ele próprio a produz na ação (idem, ibidem).

“Se a verdade está de algum outro modo para o indivíduo, e é impedida por ele de

estar deste modo para ele, temos aí um fenômeno do demoníaco. A verdade

sempre teve muitos que a proclamaram em altos brados, mas a questão é saber se

um homem quer, no sentido mais profundo, conhecer a verdade, quer deixá-la

permear todo o seu ser, assumir todas as consequências, e não ter um esconderijo

para si, em caso de necessidade, e „um beijo de Judas‟ para as consequências.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 146)

O que determina se o Indivíduo é o não demoníaco é “a certeza, a interioridade que

só se alcança pela e só existe na ação” (idem, ibidem). Fenômenos negativos como:

arbitrariedade, descrença, escárnio à religião, crendice, subserviência, beatice, entre outros,

carecem, para Kierkegaard, de certeza “porque eles residem na angústia diante do

conteúdo”, isto é, diante da verdade (idem, ibidem). Apesar dos esforços metafísicos e

lógicos e, acrescenta-se em nossos dias, científicos, “para conseguir uma demonstração

nova, exaustiva, absolutamente correta, combinando todas as demonstrações anteriores, da

imortalidade da alma” (2010, p. 147), a certeza interior diminui constantemente, pois não

basta que qualquer individualidade leve a efeito a demonstração da imortalidade da alma, se

não estiver convencida ela mesma, experimentará “a angústia diante de qualquer fenômeno

que queira tocá-la de tal modo que a force à compreensão mais extrema do que significa

dizer que um ser humano é imortal” (ibidem).

Outro exemplo, de acordo com Kierkegaard, da diminuição da certeza interior é esse

no qual um sectário da mais rigorosa doutrina pode ser demoníaco. “Ele conhece tudo e

133

mais um pouco, faz mesuras diante do sagrado, para ele a verdade consiste no conjunto de

todas as cerimônias, ele fala de se encontrar diante do trono de Deus e sabe quantas vezes

se deve inclinar a cabeça, ele sabe tudo” (KIERKEGAARD, 2010, p. 147) e não se

angustiará se a cada vez que ouve algo esse seja literalmente igual.

Crendice – a qual concede à objetividade um poder de petrificar a subjetividade – e

descrença são, ambas, formas de não liberdade, de inverdade ou, se quisermos, de

exterioridade. A descrença se expressa através da zombaria que por carecer, justamente, da

certeza, zomba (2010, p. 148). Assim, outros se atarefam em conseguir desenvolver uma

prova completa da existência de Deus, mas no mesmo grau em que cresce a excelência da

prova, parece decrescer a certeza, constata o filósofo. “A demonstração da existência de

Deus é algo com que a gente só se ocupa ocasionalmente, de modo erudito e no âmbito

metafísico, mas a ideia de Deus se imporá em qualquer ocasião” (ibidem), de tal modo

onipresente à liberdade do Indivíduo que para a individualidade delicada será

constrangedora, por quê? Porque falta a esta individualidade a interioridade. Mas à direção

oposta, o beato, também pode faltar a interioridade, pois quando “não é livre em relação à

sua devoção, isto é, carece de interioridade, então, visto de maneira puramente estética, ele

é cômico” (idem, ibidem), digno de zombaria. O beato angustia-se diante de qualquer um

que não seja beato como ele, reconfortando-se em observar “que o mundo odeia o sujeito

piedoso” (2010, p. 149).

“A certeza e a interioridade são, pois, a subjetividade, mas não em um sentido

completamente abstrato”117

(KIERKEGAARD, 2007, p. 248), no qual torna-se tão difusa e

117

Certeza e interioridade, “é seriedade”, a qual brota da fonte de interioridade e jorra para a vida eterna. A

seriedade “é uma coisa tão séria que até mesmo uma definição sua já constitui uma leviandade”. Não

obstante, Kierkegaard trata, como ele mesmo diz, de expor algumas observações orientadoras. Nessas,

seriedade e Gemüth (caráter) se correspondem, mutuamente, de tal forma “que a seriedade é uma expressão

mais elevada e a mais profunda do que seja Gemüth. O Gemüth é uma determinação da imediatidade,

134

incerta quanto a objetividade, ambas sem interioridade. “A ausência da interioridade é

sempre uma categoria da pura reflexão” (ibidem) ou situa-se primeiramente na reflexão,

fenômeno que se define pelo nome de: atividade-passividade ou passividade-atividade,

ambas as formas no sítio da autorreflexão. “A interioridade é um compreender, mas in

concreto o importante é saber como se deve compreender este compreender”, ou seja, com

outras palavras, como é que vivemos concretamente, aquilo que compreendemos

abstratamente? Quanto mais concretamente vivermos aquilo que abstratamente

compreendemos, tanto mais concreta se tornará a compreensão; caso contrário, “teremos

um fenômeno da não liberdade que se quer encerrar em si mesma contra a liberdade”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 150), pois o demoníaco está em justamente temer a

interioridade. Não obstante, Kierkegaard observa que “o demoníaco pode ter nas esferas

religiosas uma semelhança bastante enganadora com a dúvida religiosa. Jamais se pode

decidir esta questão in abstracto” (ibidem, nota). Uma dúvida religiosa é aquela que se

mostra na relação do Indivíduo com a angústia, por exemplo, “um cristão que crê com

devoção pode ser presa da angústia, sentir angústia de ir à comunhão. Essa é uma dúvida

religiosa” (idem, ibidem). O demoníaco, “ao contrário, pode ter chegado tão longe, sua

enquanto que, em contrapartida, a seriedade é a originalidade conquistada do Gemüth, sua originalidade

conservada na responsabilidade da liberdade, sua originalidade mantida no gozo da bem-aventurança. A

originalidade do Gemüth, em seu desenvolvimento histórico, mostra justamente o eterno na seriedade, razão

por que a seriedade jamais se pode mudar em hábito. [...] o hábito aparece tão logo o eterno desaparece da

repetição. Quando a originalidade na seriedade é conquistada e conservada, aí ocorre uma sucessão e

repetição; mas, quando falta originalidade na repetição, aí temos então o hábito. O homem sério é justamente

sério graças à originalidade com que ele retorna ao ponto inicial na repetição [Cf. nota 295 da edição 2010 da

obra]. Mas, esta coisa, sempre a mesma, a que a seriedade deve retornar mais e mais com a mesma seriedade

só pode ser a própria seriedade; pois, senão, vem a ser pedantismo. A seriedade neste sentido significa a

personalidade mesma, e só uma personalidade efetiva; e só uma personalidade séria pode fazer algo com

seriedade, pois para fazer alguma coisa com seriedade se requer, acima de tudo e principalmente, que se saiba

o que é objeto da seriedade. [...]. Este objeto, cada ser humano o possui, pois é ele mesmo, e quem não se

tornou sério em relação a si mesmo, porém a partir de qualquer outra coisa, de qualquer coisa grandiosa e

barulhenta, é, apesar de toda a sua seriedade, um brincalhão, e, mesmo que consiga durante algum tempo

enganar a ironia, acabará volente deo [“Se Deus quiser”] por tornar-se cômico, pois a ironia zela pela

seriedade.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 154-157)

135

consciência religiosa ter-se tornado tão concreta que a interioridade diante da qual ele se

angustia e, em sua angústia, dela quer fugir, é a compreensão puramente pessoal da

compreensão sacramental”, com a qual ele “só quer relacionar-se pelo saber, quer, de um

modo ou outro, tornar-se mais do que uma individualidade empírica, historicamente

determinada, finita” (idem, ibidem).

A consciência de si, do próprio Indivíduo é o conteúdo mais concreto que a

consciência pode ter. Uma autoconsciência que é ato, mas um ato que é de novo

interioridade118

e não especulação. A ausência da interioridade não resulta de um

comportamento mecânico ou repetitivo, em todo fenômeno correspondente à perda

pneumática da liberdade se dá uma atividade mesmo que esta comece por uma passividade.

O que acontece é que os fenômenos que começam com atividade são mais fáceis de

visualizar e por causa disso, ser concebidos; porém, mesmo esses fenômenos que começam

com atividade há neles passividade e se se quer demonstrar o demoníaco tem que se tomar

conjuntamente o fenômeno oposto (2007, p. 251, tradução nossa). Entre os exemplos

oferecidos por Kierkegaard, encontra-se: descrença-crendice, ambas “se correspondem

plenamente, ambas carecem da interioridade, só que descrença é passiva por meio de uma

atividade, e crendice é ativa por meio de uma passividade; a primeira é, se quisermos, a

formação mais masculina, a segunda, a mais feminina, e o conteúdo de ambas as formações

[...] autorreflexão” (2010, p. 151); hipocrisia-escândalo, a primeira “principia por uma

atividade, o escândalo por uma passividade. [...] Ambos carecem de interioridade e não

ousam enfrentar-se a si mesmos” (ibidem); orgulho-covardia, o primeiro “começa por uma

118

“A interioridade, a certeza, é seriedade. Parece meio pouco, se pelo menos eu tivesse dito que a seriedade é

a subjetividade, a pura subjetividade, a übergreifende [“Que avança sobre o lado oposto, que se alastra”]

subjetividade – aí sim eu teria dito alguma coisa – que certamente teria tornado séria uma porção de gente.

Contudo, posso também expressar a seriedade de um outro modo. Quando falta a interioridade, o espírito é

reduzido à finitude. Por isso, a interioridade é a eternidade, ou a determinação do eterno num ser humano.”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 158, grifo nosso)

136

atividade, covardia por uma passividade; de resto, são idênticos, pois há na covardia

exatamente tanta atividade que a angústia diante do bem consegue se manter”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 152).119

3. 6. “O eterno na individualidade”

Segundo Kierkegaard, diz-se muito do eterno, ora é rejeitado, ora é aceito, “e tanto o

primeiro caso quanto o último (levando em consideração o modo como isso ocorre)

indicam carência de interioridade. Mas aquele que não entendeu corretamente o eterno, ou

seja, de modo totalmente concreto, carece de interioridade e de seriedade” (2010, p. 159).

Kierkegaard a este respeito não entra em minúcias, mas salienta alguns aspectos. O

primeiro aspecto é este, o qual “nega-se o eterno no homem”. Toda e qualquer

individualidade na qual nega-se o eterno é demoníaca. A qual pode, “direta e indiretamente,

expressar-se das mais diversas maneiras: como zombaria, como prosaica embriaguez da

razão comum, como azáfama, como entusiasmo pela temporalidade, etc.” (2010, p. 160).

No segundo aspecto, “concebe-se o eterno de modo inteiramente abstrato”. O

eterno, em Kierkegaard, é “a fronteira da temporalidade, porém aquele que vive com todas

as forças na temporalidade não chega até a fronteira” (ibidem). No terceiro aspecto, “verga-

se a eternidade para dentro do tempo, em prol da fantasia”. Aqui, a “ideia do eterno torna-

se uma ocupação fantástica, e a atmosfera de alma é sempre esta: sou eu que sonho, ou é a

eternidade que está sonhando comigo?”, ou, concebe-se a, ainda, “pura e sem mistura, para

a fantasia, sem aquela ambiguidade coquete” (idem, ibidem). Por fim, há aquele aspecto no

qual se concebe metafisicamente a eternidade, porque não se quer pensá-la seriamente,

119

Cf. em O Conceito de Angústia, à p. 153, edição 2010, a nota 286, na qual Kierkegaard observa a

importância de se saber se o primeiro é o positivo ou o negativo.

137

porque, como disse Kierkegaard, se tem medo dela, “e a angústia inventa centenas de

subterfúgios. Entretanto, isso é justamente o demoníaco” (KIERKEGAARD, 2010, p. 162).

138

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Talvez, agora, estejamos esperando por aquele momento em que aparece breve e

clara a definição do problema deste trabalho: a angústia. Parece-nos, ser suficiente dizer, ou

melhor, dizer novamente porque Kierkegaard já o disse que “aprender a angustiar-se é uma

aventura pela qual todos têm de passar”; uma aventura que tememos e por temê-la,

pecamos. Um aprender, que para ser verdadeiro deve dispensar qualquer intermediário, de

modo que reste apenas o Indivíduo diante dele mesmo e de Deus. Diante disto,

perguntamos: A quem poderá interessar a filosofia da existência do filósofo dinamarquês?

Interessará a todo aquele que falta interioridade; que sucumbe ao temporal, que vive na não

liberdade. Interessa a todo aquele que por causa de um instante julga toda a existência

perdida e se afunda ainda mais na angústia, portanto, a todo aquele que pensar que um

instante constitui toda a realidade. Por fim, é bom ressaltar que a angústia não consiste uma

imperfeição da e na vida humana. Se esta imperfeição existe está em alguém não ter estado

jamais angustiado ou, como dissemos antes, em nos afundar na angústia; contudo,

experimentará a mais doce alegria aquele que, segundo Kierkegaard, “aprendeu a angustiar-

se corretamente”, pois “aprendeu o que há de mais elevado” (KIERKEGAARD, 2010, p.

163). Aprender a angustiar-se corretamente é angustiar-se na fé, somente vivenciando-a

desse modo, na existência é que a liberdade é uma liberdade formadora, isenta de equívocos

e ilusões; somente na esfera da fé é que a liberdade, esta ser-capaz-de é uma experiência

gratificante. Por isso, o ser humano terá que cada vez menos se entregar ao quantitativo, ao

numérico, à “multidão” e convencer-se cada vez mais que somente se torna um Indivíduo

isoladamente, coisa que tão bem, nos parece, Kierkegaard se tornou. A propósito do

filósofo e do seu pensamento, especificamente esse esboçado em O conceito de angústia,

139

uma pergunta que, durante a pesquisa e escrita do trabalho, sempre nos fazíamos era: Se

Kierkegaard é tão oportuno aos tempos de hoje por que os cursos acadêmicos não lhe

dedicam tanta atenção? Porque, parece-nos, os cursos acadêmicos padecem daquele mal

que o próprio Kierkegaard enfatiza, aquele o qual está tão atento à exterioridade que não se

preocupa em dizer nada de absolutamente significativo e essencial ao existir humano.

Sempre consideramos muito o pensamento filosófico de Platão, as categorias aristotélicas, a

arrojada filosofia de Descartes, o criticismo kantiano, a obscuridade do sistema hegeliano,

mas tudo isso, entre outros, sempre nos comunicou muito pouco, porque como disse Sartre

esses são, e isto tem o seu valor, é óbvio, saber de conteúdo; ao contrário, Kierkegaard e os

demais existencialistas, de modo geral, não somente nos comunica como também nos

provocam e nos instigam e isto, recorrendo mais uma vez a Sartre, porque eles nos

oferecem com a vida, as ideias e a existência o conteúdo do Saber.

140

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