Fala Helio Lygia Pape 1978

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/31/2019 Fala Helio Lygia Pape 1978

    1/10

  • 7/31/2019 Fala Helio Lygia Pape 1978

    2/10

    17PpeObra de Hlio Oiticica, Museu de Belas Artes de Houston

    Lyg Ppe FaLa, hLio*

    Hlio Oiticica voltou agora ao Brasil, depois de passar 7 anos ora, em Nova Iorque. Pretendamos azeruma entrevista sobre seu trabalho e o que pensa hoje esse artista que participou dos Movimentos Concreto

    e Neoconcreto e que, em 1967, na mostra Nova Objetividade Brasileira, no MAM do Rio, apresentou sua

    proposta denominada Tropiclia, seguida de textos tericos (revista GAM) e que desembocaria no Tropicalismo,

    j ento nas reas de teatro, msica e cinema. Mas algumas vezes o prprio Hlio inverteu a posio de

    entrevistado e passou a indagar sobre coisas acontecidas aqui e eventualmente com a nossa participao.

    Optamos pela permanncia de tudo por acharmos que ajudaria a entender melhor o pensamento de Hlio.

    a Entrevst:

    L. Pape Hlio, voc est chegando agora, quando de repente comea-mos a ouvir por todos os lados alar em arte latino-americana, inicia-se uma Bienalde arte latino-americana etc. Para voc que viveu ora, em Nova Iorque, que pers-pectiva teria dessa problemtica? Qual seria seu conceito de arte latino-americanaque, segundo creio, oi colocado pela primeira vez por Mrio Pedrosa?

    H. Oiticica Eu nunca gostei de separar arte latino-americana como

    coisa isolada, por vrias razes. Uma que eu no gostaria de estar includo nisso.Outra, que acho muito provincianismo na maneira como se coloca, alm de que

    Amrica Latina ormada por coisas heterogneas e tudo isso torna tudo muitoproblemtico. Por exemplo, o Brasil no tem nada a ver com o Peru e outrascoisas assim. Acho que ca uma coisa articial uma maneira orada --, alis orada, mesmo. Em Nova Iorque, eu j era contra, porque achava que era umaminoria abricada; essa arte latino-americana mantinha os artistas separados emuma minoria abricada, num pas que j est cheio de minorias. Ento, ca umacoisa reacionarssima, ao meu ver. Mas tudo isso em relao situao de l,

    em Nova Iorque, que no tem nada a ver com aqui, mas eu acho que o Brasil temmais a ver com os Estados Unidos do que com os outros pases da Amrica Latina.Ou com algumas tradies europias. Por exemplo, a Alemanha est mais pertodo Brasil do que o Peru, sob um certo aspecto. Em termos de linhagem artstica, verdade. Eu no sei o que as pessoas querem denir aqui quando alam em artelatino-americana. Fica uma coisa muito problemtica. Seria a arte eita aqui? Emgeral os exemplos que do que so coisas importadas se que se pode dizerisso coisas de segunda mo. Tambm estou ouvindo alar sobre esta Bienal emque o tema proposto seria mitos e magia, mas isso j so conceitos loscos, e

    mito e magia no so um privilgio latino-americano, pelo contrrio.

  • 7/31/2019 Fala Helio Lygia Pape 1978

    3/10

    18 Ppe

    L. Pape Agora, quando alam em arte latino-americana surge o proble-ma da imagem, h uma tentativa de reduo a uma determinada imagem.

    H. Oiticica O problema da imagem me parece muito importante pois

    acho que oi importado errado, uma coisa ruim, mas tudo importado e tudo no.

    L. Pape Esse problema seria resolvido em um processo de assimilaoantropogico. Alguns artistas esto dizendo que a arte acabou, e voc, como visso?

    H. Oiticica Eu no gosto dessa relao de arte e real, essa dicotomia,que para mim j no existe mais, h muito tempo, alis nunca existiu. Isso dealar ui da arte para o real, como se ossem duas realidades, no tem sentido,estou sempre ouvindo isso: o real e a arte. Sartre deniu isso da melhor maneira.

    Antes havia a separao entre o coletivo e a arte, agora, h uma emergncia docoletivo, ele emerge, mas a gente az parte dele. Antes havia uma separao entreesse coletivo e a arte. Agora, nesta ase de transio, em que o coletivo emerge,ns tambm azemos parte do processo. Algumas pessoas continuam na posioanterior, em que o artista estava separado do coletivo. Isto um processo social,tico, todos azendo parte de um mesmo processo. Estamos sem dvida numaase de transio. Ento, azem essa dicotomia, principalmente os artistas pls-ticos. Quanto ao problema da arte ter acabado, eu sinto hoje, aqui, um clima de

    julgamento. Realmente, quanto pintura e escultura, elas no so mais o que

    eram, mas isso parte do meu passado. Para mim esses meios j oram superados,mesmo. Mas a um problema especco. Hoje eu no tenho nada a azer no es-pao de uma galeria de arte, por exemplo. Mas poderia ter. Agora, galeria como seconcebe no Brasil ainda uma coisa para expor quadros e esculturas.

    L. Pape Hlio, esse tipo de galeria seria ento um tipo de mercado ins-titucionalizado e o artista estaria em uno dele?

    H. Oiticica Eu no teria interesse em car em uno desse mercado,

    mas eu posso criar mercado. Voc poderia criar tambm. Por exemplo, dizem queposter no vende, principalmente em galerias. Mas eu garanto que eu posso criaruma situao de venda. Fiz um poster-poema com Romero de um lado em oto, ede outro estava impresso um poema. Na medida em que as pessoas dizem que isto comercial, eu posso transorm-lo em algo que vende.

    L. Pape Mas isso decorre de seu prestgio pessoal.

    H. Oiticica Exatamente, e isso o mercado brasileiro. Se amanh voc

    disser qualquer coisa numa pgina de um jornal, aquilo que voc diz que se

  • 7/31/2019 Fala Helio Lygia Pape 1978

    4/10

    19Ppe

    transorma em mercado. Amanh se voc disser: Lygia Pape vende objetos deseduo1 por tanto, esse passa a ser o preo de mercado. No existe aqui essenegcio de avaliar o preo como se osse um tipo de capitalismo desenvolvido.Como se estivssemos num pas de capitalismo desenvolvido. O mercado de arte

    brasileiro o prestgio pessoal das pessoas. O seu nome, a hora que voc quiser,pelo preo que voc zer. Sob esse aspecto um mercado alienado. Vendem-secoisas por um valor que elas no tm, como os pintores primitivos, por exemplo.

    Voc, por exemplo, vendeu os saquinhos objetos de seduo em sua exposio?

    L. Pape Sim eu vendi, mas a Cr$ 1,00 cada, eu pretendia contestar oprprio mercado, desmistic-lo. Em So Paulo, a Galeria de Arte Global echouimediatamente a minha exposio. No Rio (MAM), a exposio uncionou nor-malmente, mas era interessante ver o novo tipo de consumidor de arte, como o

    varredor de rua, por exemplo, comprando uma obra de arte. De repente o espaoda galeria (ou o museu) passou a ter um novo signicado para ele.

    H. Oiticica Neste caso a galeria unciona de uma maneira nova. E porque no?

    L. Pape Inelizmente a exposio oi echada em So Paulo, pela pr-pria direo da galeria.

    H. Oiticica Incrvel, como no havia quadros eles recusaram a exposi-

    o. curioso, todo o mundo az essa politicazinha: coloca ao centro as inovaese nas paredes quadrinhos para vender. Sua exposio, como era radical, no oientendida; deve ter cado parecendo uma armcia, como essas duas reas decor: vermelho de um lado e azul do outro, e os saquinhos dentro dos cubos deluz. Deve ter cado parecendo tambm um supermercado. Hoje, eu prero ir aum supermercado do que ir ver quadrinhos nas paredes, ento agora quando apa-recem coisas escritas nas paredes, eu no agento car em p lendo coisas comletrinhas pequenininhas na parede; agora, uma mania. Em Nova Iorque estavacheio dessas diluies. At o termo arte conceitual, no posso agentar. Acho das

    coisas mais inelizes que apareceram. Quando a idia de conceito j oi designadapor Nietzsche.

    L. Pape Fale algo do trabalho passado.

    H. Oiticica De repente eu cheguei concluso que tudo o que eu z an-tes era um prlogo para o que est aparecendo agora. As coisas escritas, todas souma espcie de amadurecimento e so importantssimas. As pessoas cam per-guntando e comentando sobre o espao que vai das maquetes do Central Park em

    Nova Iorque, em 1972, e o que estou apresentando em 1977. Como se houvesse

    1. Objeto de sedu-o, saquinhos comobjetos da mostra Eat

    me a gula ou aluxria?, de autoria

    de Lygia Pape.

  • 7/31/2019 Fala Helio Lygia Pape 1978

    5/10

    20 Ppe

    um buraco, como se as coisas escritas nesse perodo no ossem nada. Alm departicipaes minhas em algumas exposies, como a de Pamplona. Quando ascoisas escritas eram projetos para serem eitos e programaes. Esse materialescrito importantssimo: h projetos para perormances, projetos abertos e algo

    muito importante: projeto C. C. program in progress, que acho mais impor-tante do quework in progress.

    L. Pape Qual a dierena entre os dois?

    H. Oiticica Work in progress como se osse uma obra em etapas, comono Finnegans Wake de Joyce. Ao passo que, no C. C. program in progress,a estrutura muito mais aberta. uma coisa que a pessoa mesma pode inventar,participar. Alis, todo o mundo vai participar do C. C. program in progress, as

    poucas pessoas para quem z a proposio no entenderam bem. Por exemplo,Guy Brett no desenvolveu nada. Ele tinha somente que levar; bem, esse era umnegcio de unha, ele tinha que pegar uma lixa de unhas, chamava-se nail-fle e um tipo de lixa de unha de erro. Aquilo, na realidade, era o que Haroldo deCampos me disse ser uma estereotipao de um caduceu, que aquele smbolodos mdicos. So duas cobras que vo se enrolando numa coluna. A lixa temmesmo uma orma curva, parecendo cabea de cobra, aqueles risquinhos queormam a lixa de metal. A proposio C. C., creio que nmero 7, seria o GuyBrett otograar para ormar o poema. As pessoas no assumem, como se osse

    perda participar disso. Talvez pelo nome C. C.. Naquele momento as pessoasno entenderam e isso me inibiu, mas agora, no. Posso colocar todo tipo de gentepara atuar, e necessria a presena sica.

    L. Pape Hlio, voc est usando a cor em seus trabalhos, ale sobreisso.

    H. Oiticica Novamente ouo alar em retomadas. Vou alar em primeirolugar em termos gerais para situar o problema da retomada. Essa maquete, queestou preparando para ser realizada aqui, no tem nada de retomada. Essas pro-

    postas no tm nada de voltar atrs. Por exemplo, uma delas era a descoberta doespao urbano, e somente nesse caso seria uma retomada pois teria partido damaquete Ces de caa, que ainda seria uma coisa isolada do urbano, um projetoideal, como se osse aquilo que Mrio Pedrosa dizia invitation au voyage baudele-riana, no urbano. Aquilo era para ser eito no espao urbano, claro, mas era umacoisa isolada, como se osse uma invitation au voyage.

    Nessas outras no ocorre isso, como se osse a descoberta do espaourbano mesmo, ou do espao pblico. Mesmo que seja eito em um parque, poisparque ainda um espao urbano. Eu uso o nome de penetrvel ainda, inclusive

    eles no tm nada a ver com a Tropiclia.

  • 7/31/2019 Fala Helio Lygia Pape 1978

    6/10

    21Ppe

    O nome no indica que seja uma retomada, pelo contrrio, o que veioantes oi o prlogo de alguma coisa absolutamente nova. Como se osse uma un-dao. Os textos que escrevi antes eram a culminao de obras, eram a sntese deobras. Mas, agora, inicia-se algo inteiramente novo.

    Agora, o problema da cor. Senti a necessidade de usar a cor e isso adescoberta da cor, e no tem nada com uma volta cor, como disseram e vo voltara dizer. Assim como j disseram que eu voltei para buscar as razes que teria perdi-do. Isso eu acho uma coisa gravssima, pois tem a ver diretamente com os proces-sos de criao e de tudo. uma coisa undamental, e no se pode deixar para l,pois isso desesclarece, inclusive a mim mesmo. Passa-se a acreditar no equvoco.Comeam a alar tanto em razes que se acaba acreditando por osmose.

    L. Pape como se osse uma doena.

    H. Oiticica como uma doena que pega. Esse problema de volta asrazes uma coisa subdesenvolvida, colonizada, que eu acho terrvel no Brasil.

    L. Pape Tambm azem-se julgamentos todos os dias.

    H. Oiticica , julga-se tudo, como se osse o dia do juzo nal, isso coisa colonizada da decadncia judaico-crist; prestao de contas. Por exemplo,dei uma entrevista a um jornal do Rio e que tinha somente um carter jornalstico

    e acabou virando um julgamento nal. como se tivesse chegado para prestarcontas e julgar as pessoas e julgar a mim mesmo. E a obrigam a pessoa a emitirum juzo sobre ela mesma, coisa que eu no sei azer. Essa a maneira mais peri-gosa de azer um approach. Tambm perguntam muito: o que voc est azendo?e que uma maneira de aproximar e aastar as pessoas, porque a maneira decolocar a pessoa julgando ela mesma. Eu no sei nada, mas sei que estou nascen-do, todos os dias. E sei de certas reerncias: por exemplo, sei da descoberta dacor, da descoberta do espao urbano, que so coisas totalmente novas e que tudoo que veio antes era um prlogo, era um preldio. Essa coisa de cobrarem a obra

    passada que oi eita, como se osse necessrio azer todos os dias uma srie deatos para justicar o que voc ez antes, e para dar continuidade. Quando a coisacriativa no assim, a meu ver, cada coisa uma inaugurao nova. Tomei cons-cincia disso enomenologicamente, sentindo at no corpo, com o corpo, cadadia. Eu no sei de nada, por isso no posso dizer que nada acabou ou nada vaicomear. Agora, uma coisa eu sei: o que acabou oram certas etapas, como certostrabalhos como os blides que, de repente, no Natal, eu resolvi azer, mas notem nada a ver com os antigos blides. So coisas eitas com a mo, vidros ecores e so outra coisa.

    Eu tinha alguns ready made guardados e de repente pensei em azer

  • 7/31/2019 Fala Helio Lygia Pape 1978

    7/10

    22 Ppe

    alguma coisa para alm desses ready made. Agora chamam-se ready made topolo-gical landscapes que, traduzindo : paisagem topolgica ready made. So vidrosonde eu coloco uma cor, esse aqui era um vidro de mel, encho de lquido coloridocom anilina e por ora desliza uma ta ou aixa de borracha tambm de cor, en-

    to voc muda a paisagem conorme voc quer, subindo ou descendo a ta, semdobrar, alterando a paisagem. Eu nunca pensei em voltar a mexer com as mos,dessa maneira. E no se trata de retomada da cor, ou retomada dos blides.

    Isso uma verdadeira descoberta da cor. E cada vidro tem caractersticasdierentes, esse aqui tem a orma de bala e enrugado, como costelas. O originalera um vidro de cola americana. E a partir da orma do vidro eu achava a cor, des-cobria a cor. Isso tem a ver com os blides mas no mais representao comoo blide era, poderia dizer ainda, o m da representao. Eu sei isso porque en-contrei agora um blide antigo e notei logo a dierena de approach. E o ato de

    ser ready made muito importante tambm. Esse trabalho algo que me interessamuito no momento, e estou com vontade de azer milhares. Trouxe anilinas queno depositam, para no ser preciso agitar, mas tambm posso partir exatamentedo oposto e colocar pigmentos que tero que ser agitados. Esses ready made somgicos e quando a luz incide projetam-se nas paredes, modicando tudo. E olhosempre por eles, pela janela, para ver a paisagem.

    L. Pape como se voc tivesse adquirido uma sabedoria e um poder,que voc usa hoje, quando quer. Voc toca aqui ou ali e a coisa se transorma e

    no uma coisa empobrecedora, redutora. Est no plano do potico.

    H. Oiticica Acho que a previso disso eram as C. C. program in pro-gress onde eu propunha coisas s pessoas, como bem quisessem e elas tinhammedo, como se tivessem medo da liberdade. Isso horrvel. Creio que li algo noCrepsculo dos Deuses onde Nietzsche dizia que certas datas desencadeavamum pretexto para criar coisas, como os eriados ou o Ano Novo.

    L. Pape No importa se voc no lembra bem da citao, mas lindo,

    porque desencadeia o processo criativo, bem longe dos romantismos de inspi-rao, e dentro de determinadas situaes, bem denidas. Voc assimilou umcomportamento.

    H. Oiticica , desencadeia, e agora os aniversrios e eriados estodesencadeando minha atividade criativa.

    L. Pape Eu acho esses ready made mais intensos porque eles tm umacarga aetiva dentro da obra, na medida em que voc az para o aniversrio de al-gum, ele ca como que impregnado de uma carga aetiva, prpria dele, naquele

    momento. E no importa o depois.

  • 7/31/2019 Fala Helio Lygia Pape 1978

    8/10

    23Ppe

    H. Oiticica Tambm essa necessidade de azer alguma coisa para serotograa, desencadeia algo. O Parangol, que eu e Andras Valentin zemospara ser otograado para a reportagem de um jornal, deveria ser de uma matriaespecial que contrastasse com a cor azul do posto de salvamento escolhido como

    cenrio. Usamos jornal, a textura do jornal deu o resultado desejado.

    L. Pape como um comportamento gerador de outros comportamen-tos. De um sinal, parte-se em cadeia para outros sinais at ormar um complexoorganizado e que possui linguagem prpria.

    H. Oiticica Esse posto oi escolhido por lembrar as obras de um arqui-teto do neoplasticismo: J. J. P. Oud. Alis, tambm a vanguarda russa e SophieTaeuber Arp, entre outros, deveriam ser analisados cada dia. So ontes ines-

    gotveis de surpresas. So artistas undamentais na ormao de qualquer um.Indiretamente h a reerncia nessa oto do posto do Leblon.

    L. Pape Fale sobre o trabalho que voc enviou Bienal de So Paulo,passada, ou de 1977.

    H. Oiticica No houve participao, meu trabalho-maquete continuaindito. Mandei ovdeo tape, pois em vez de mandar uma maquete enorme, man-da-se umvdeo onde gravei o processo de construo e uncionamento e um texto

    descrevendo o uso do projeto. Mandei ainda os cortes laterais e a planta baixapara os arquitetos poderem construir. Isso evitou de mandar a partitura original.O texto est at hoje na censura e era somente uma descrio tcnica.

    L. Pape Descreva o projeto.

    H. Oiticica dicil azer uma descrio, sem ver. Chama-se MagicSquare, o nome tem que ser em ingls porque square quer dizer ao mesmo tem-po quadrado e praa. todo baseado no quadrado, e partindo da planta que eu z

    como uma colagem, um plano entrando por dentro do outro e que lembram coisasdo Arp, do incio. Trata-se de um papel parecendo papel de jornal, alis so blocos,uns sobre os outros. Por cima disso esto colocados os painis. So onze painis decinco por cinco metros, brancos dos dois lados e nos, leves. Um deles xo, osoutros tm duas variaes: alguns so pendurados e os outros so apoiados sobrerodinhas embutidas no cho. A dierena entre os dois tipos de painis do comoresultado sensaes dierentes o barulho das rodas deslizando e o antipesodos outros painis do duas experincias diversas. Levei seis meses para realizar amaquete, junto com arquitetos, pra detalhar o projeto. Os painis tinham que ser

    alvssimos, levssimos e em vez de pintados deveriam ser recobertos com plstico

  • 7/31/2019 Fala Helio Lygia Pape 1978

    9/10

    24 Ppe

    branco, sem emenda. A rea total de vinte e cinco metros quadrados.Esse projeto deveria ser construdo denitivamente, pois exige certos de-

    talhes que no valeria a pena ser eito de maneira provisria, e muito preciso. Eno tem msica e se constri de silncios e de branco sobre branco.

    L. Pape Ento na medida em que as pessoas caminham pela rea, oprprio pisar sobre a areia, o deslizar sobre as rodinhas dos painis, o silnciodas olhas suspensas, constroem a prpria msica do projeto. Tambm acho quea reerncia do branco sobre branco remete memria de Malevitch. Todo oconstrutivismo alimenta seus projetos, mesmo quando voc usa de uma liberdadeincrvel, como se osse uma impregnao vigorosa e transormadora. Seu traba-lho tem uma clara linguagem que vem de linhagens ans desde a Semana de ArteModerna, e passa por toda uma vivncia brasileira. Todos os elementos de nossa

    cultura esto latentes em sua obra, mas nunca so ilustraes. Mesmo as ree-rncias vanguarda russa so alimentadoras de um comportamento aberto lcidoe que dimensiona o repertrio brasileiro. E no se ala de razes, e outras coisasmais. Essa maquete construda aqui, e usada por gente daqui, obviamente seralimentada por conceitos daqui. At o pisar na areia vai ser dierente, o gesto aodeslizar os painis ter um ritmo dierente, o olho tambm ver dierente. E issotudo no tem nada a ver com razes e nacionalismos. algo que envolve o sentidode espao-tempo, prprios.

    H. Oiticica Continuando a descrio, rodeando essa rea de 25 x 25metros quadrados colocaria grama. Seria o espao mesmo da praa e por issodaria o nome de Magic Square. Imediatamente, associariam meu projeto comoinfuenciado pelos quadrados de Klee ou Mondrian. Acho timo que associem,talvez aam parte de uma mesma linhagem, mas minha idia no quadradosmgicos, o nome de meu projeto Quadrado-Praa-Mgico. No acho muitobom, e creio que vou pedir aos irmos Campos2 para traduzir.

    L. Pape Esse nome, desse jeito, d uma elipse verbal, voc vai da pa-

    lavra quadrado, passa por cima de praa e vai cair em mgico, uma coisabem visual.

    H. Oiticica importante risar que no so quadrados, ormas no es-pao, como em Le Parc. Eu me lembro de que estava ouvindo um quarteto deBeethoven e de repente vi a estrutura pronta na minha rente a estrutura lem-brava a estrutura de quartetos, era uma experincia que me dava uma viso totalda estrutura. Eu, antigamente, tocava msica e podia ver os grupos de notas naminha rente. Foi a primeira vez que tive a sensao do espao cbico, do espaoambiental, totalmente engendrado.

    2. Irmos Haroldo eAugusto de Campos,

    poetas concretos.

  • 7/31/2019 Fala Helio Lygia Pape 1978

    10/10

    25Ppe

    L. Pape Quando realizei o Livro da Criao tambm tive essa viso daestrutura toda pronta, todas as unidades no espao, mentalmente.

    curioso, quase todos os antigos participantes do Movimento Neoconcretotm hoje alguma reerncia com o espao topolgico: Lygia Clark aps a dissolu-

    o do grupo cria o Caminhando, organizado a partir dafta de Moebius, que um princpio do espao topolgico.

    Tambm trabalhei no projeto Eat me a gula ou a luxria?, sobre essamesmafta de Moebius, agora considerando o espao dentro e ora do MAM comoum plano contnuo e reversvel a exposio acontecia dentro e ora, ao mesmotempo.

    Agora, Hlio, voc me ala de suas paisagens topolgicas ready made eque so tambm projetos dentro do mesmo princpio matemtico.

    As trs experincias so totalmente dierentes entre si, todas trabalhan-

    do dentro do mesmo princpio matemtico e nenhuma, nunca, como uma merailustrao do conceito.

    H. Oiticica Com reerncia ainda maquete de So Paulo, quandome perguntam o que eu ao, sempre respondo: ao msica, pois acho que istoest mais perto de msica do que de outra coisa qualquer. E no se trata de coisamusical. msica. E quero ainda mais uma vez deixar bem claro que no retomeinada, como se tivesse perdido alguma coisa; como se as coisas que voc tivesseeito antes estivessem perdidas. Voc s retoma aquilo que voc perdeu. Ento

    se ala em retomada da cor, volta cor etc. Pois se at os locais aonde voc voltanunca so retomados voc descobre tudo de novo, a cada dia, como se osse oprimeiro. Falar em volta complexo de lho prdigo uma coisa judaico-crist,decadente, que Nietzsche acusou h um sculo atrs e ningum entendeu. Noh voltas, nem remorsos, nem retomadas. Isso uma coisa mais do que resolvidaem losoa e psicanlise. Isto um complexo de culpa crist, tipo ressentimento.Trata-se de pensamento escravo. Voltar signica chegar ao cu, retomar. Trata-seda psicologia do escravo.

    *Entrevista publicada na Revista de Cultura Vozes, Rio de Janeiro, ano 72, n. 5, p.363-370, 1978.