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Família, velhice e violência Família, velhice e violência Kátia Jane Chaves Bernardo RESUMO: A violência está presente no dia-a-dia de cada um de nós, em todos os setores da nossa vida, atingindo, diariamente, um número crescente de vítimas, entre eles idosos. No Brasil ainda são poucos os estudos em torno do tema violência e envelhecimento, particularmente no que se refere a sua incidência nas famílias contemporâneas, nas quais o fenômeno da coabitação de gerações distintas é uma realidade cada vez mais freqüente. Neste trabalho, buscaremos discutir dimensões presentes nas relações que se estabelecem em um número significativo de famílias: gênero, geração, velhice e violência. Essas dimensões “expressam diferenças, oposições, conflitos e/ou alianças e hierarquias provisórias. Provisórias porque na dialética da vida os lugares sociais se alternam, as situações sociais se desestruturam e se reconstroem em outros moldes” (BRITTO DA MOTTA, 2003). 1 / 42

Família, velhice e violência - Unijorgerevistas.unijorge.edu.br/intersubjetividades/pdf/2009_Artigo3.pdf · pelas sociedades e expressos nas formas de pensar e agir sobre as diferentes

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Família, velhice e violência

Família, velhice e violência

Kátia Jane Chaves Bernardo

RESUMO:

A violência está presente no dia-a-dia de cada um de nós, emtodos os setores da nossa vida, atingindo, diariamente, umnúmero crescente de vítimas, entre eles idosos. No Brasil aindasão poucos os estudos em torno do tema violência eenvelhecimento, particularmente no que se refere a suaincidência nas famílias contemporâneas, nas quais o fenômenoda coabitação de gerações distintas é uma realidade cada vezmais freqüente. Neste trabalho, buscaremos discutir dimensõespresentes nas relações que se estabelecem em um númerosignificativo de famílias: gênero, geração, velhice e violência.Essas dimensões “expressam diferenças, oposições, conflitose/ou alianças e hierarquias provisórias. Provisórias porque nadialética da vida os lugares sociais se alternam, as situaçõessociais se desestruturam e se reconstroem em outros moldes”(BRITTO DA MOTTA, 2003).

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Palavras-chave: velhice, família, violência, relaçõesintergeracionais.

 

Esse trabalho tem por objetivo As categorias gênero e geraçãoreferem-se ao biossocial; o sexo e a idade estão inscritos nocorpo e na cultura como gênero e geração. O elementofundador de ordem biológica é, com freqüência destacado parajustificar, ideologicamente, o poder e a dominação – o sexofrágil, a idade da “esclerose” – não fosse a essência daideologia a naturalização do social. Com isso, o conhecimentodas categorias gênero e geração/idade remete a uma análisede relações de poder.

A palavra velhice não representa uma realidade bem definida,mas, ao contrário, um fenômeno complexo, cujo conceitodepende da interdependência de dimensões como gênero eclasse, que apontam para oposições, diferenças, conflitos e/oualianças provisórias (BRITTO DA MOTTA, 2003).

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Do ponto de vista sócio-antropológico, podemos afirmar que aidade é ressignificada como um princípio norteador de direitose deveres. Geralmente, nos diversos contextos históricos, háuma atribuição de poderes para cada fase da vida.

Parafraseando Bourdieu (1983, p.112), podemos dizer que“velhice” é apenas uma palavra, isso porque, segundo omesmo autor, “as divisões entre as idades são arbitrárias” e oque de fato existe, na divisão lógica entre velhice e juventude,é disputa pelo poder, é manipulação. Trata-se doestabelecimento de uma ordem na qual cada um deve semanter “em seu lugar”; do estabelecimento de limites que,quando não respeitados ou não bem estabelecidos, fazemsurgir os conflitos entre as gerações.

Quando falamos das relações intergeracionais, vamos buscarrespostas nas dimensões socioculturais da vida social, ou seja,o indivíduo deve ser compreendido como ser social inserido emdeterminado grupo com o qual comunga valores, modos depensar e agir na sociedade. Trata-se, portanto, dainterpretação dos símbolos e dos significados construídospelas sociedades e expressos nas formas de pensar e agirsobre as diferentes fases da vida e das relaçõesintergeracionais.

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Cada etapa da vida expressa certo estado das relaçõesintergeracionais. As “crises” ou os períodos-chave giram emtorno da questão das relações intergeracionais, sobretudo nafamília, no momento da saída dos filhos de casa, ou notrabalho, na passagem para a aposentadoria. Cada rupturaocasiona uma rearrumação da percepção do tempo, na qual semodificam as coordenadas de sua própria duração no eixo dotempo definido pelo conjunto das gerações (FORACCHI, 1972).

Para Forachi(1972), o conflito de gerações pode ser entendidocomo a luta de uma geração com valores básicos que nãosabe ou não quer preservar. “É como se uma geração‘cobrasse’ à outra a fidelidade ao conjunto de problemas que amarcou como geração.” (FORACCHI, 1972, p.25). Porém, nãoé contra a contundência dessa crítica que se define a situaçãode conflito, mas quando a crítica não é absorvida; trata-se deum conflito de valores e não apenas de vivências de idade.

As diferenças naturais em cada momento da vida – donascimento à morte – vão ter significados diversos,dependendo de cada cultura e das diferentes concepçõessociais. Embora possamos afirmar que existe umauniversalização no ato de periodizar a vida, essa periodizaçãovai se dar de acordo com cada cultura e cada sociedade, cada

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momento histórico e social.

As sociedades, em diferentes momentos históricos, atribuemsignificados diversos às etapas do curso da vida dosindivíduos, num movimento de identificação e invenção deestágios dentro de uma ordem cronológica – infância,juventude, velhice. A respeito disso, Ariès afirma que “a cadaépoca corresponderiam uma idade privilegiada e umaperiodização particular da vida humana: a ‘juventude’ é a idadeprivilegiada do século XVII, a ‘infância’, do século XIX, e a‘adolescência’, do século XX” (ARIÉS, 1981, p. 148). 

Nas sociedades ditas primitivas, nas quais não existia essaconcepção cronológica presente no pensamento ocidental, oque orienta a ação dos seus membros é a concepção dematuridade  dos indivíduos e não ‘datações detalhadas’. Deacordo com Bobbio(1997), em algumas sociedades, por seremconsiderados um obstáculo ao progresso, os velhos eramcomidos pelos sujeitos mais jovens da comunidade, ou eramcolocados nas academias, o que se constituía em uma formade ‘embalsamá-los’.

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Nas sociedades tribais, a exemplo dos Suyá  ou dos Guayaki ,os grandes rituais de passagem são rituais da trajetória da vidae essa trajetória é marcada não por princípios biológicos, maspelo lugar social que aquela sociedade considera fundamentalpara marcar a saída da infância ou a entrada na adolescência ena velhice. Na tribo Suyá (Brasil), os velhos vivem na marginalidade(perigosa ou socializada) e são vistos como feiticeiros ou comopalhaços. Em ambos os casos, precisam fazer palhaçadas,dançar, gritar, cantar em falsete, tirar a roupa ou fazer gestosobscenos, para divertir os outros membros da tribo e, com isso,conseguir comida. De acordo com Seeger (1980), aspalhaçadas, e comer alimentos proibidos para outros membros,não são considerados comportamentos desviantes pelo povoSuyá. Ao contrário, são esperados e apreciados pela tribo.

A sociedade Aranda  é um exemplo de sociedade em que osvelhos – “homens de cabelos grisalhos” - são respeitados pelaresponsabilidade de transmissão das experiências práticaspara os outros membros do grupo . O respeito da sociedadeAranda em relação aos seus velhos está associado à memóriasocial que o velho possui, e pela transmissão oral do seuconhecimento (MERCADANTE, 1999).

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Para os Bambara do Mali, a velhice representa uma conquista,e o envelhecimento um processo durante do qual o homemaprende, enriquece e fica cada vez mais nobre. Nesse grupo, avida social é organizada de acordo com o princípio da“senioridade”, sendo a idade, portanto, um elementodeterminante da posição social dos indivíduos na sociedade:envelhecer é conquistar um lugar socialmente valorizado.“Respeito e submissão marcam o conjunto de atitudes ecomportamentos dos mais jovens para com os mais velhos”(UCHOA, 2003, p. 3).

No entanto, pesquisas de caráter etnológico fazem referência asociedades como os Yakute, na Sibéria, os Ainos no Japão eos Thoinga, na África, que matam seus velhos de fome ou defrio. Os koriak e os Chukchee, localizadas na Sibéria, matamseus velhos durante uma cerimônia especial, enquanto osBreek e Crow, localizados na África do Sul, abandonam osvelhos em uma cabana, fora da aldeia, enquanto os esquimós“esquecem-nos na neve ou em um iglu para que morram de frio(BEAUVOIR, 1990).

O comportamento e as atitudes dos esquimós em relação aosmais velhos revelam um paradoxo, pois ao mesmo tempo emque são carinhosos e afetuosos com os parentes mais velhos,

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os mais jovens são capazes de abandoná-los em uma estradaou ajudá-los a cometer suicídio por afogamento ouestrangulamento. “Esta aparente crueldade enraíza-se em umaconcepção particular da vida, de morte e da própria essênciado ser humano, podendo co-existir, sem contradição, comatitudes de interesse e suporte aos mais velhos nacomunidade” (UCHOA, 2003).

Na sociedade moderna, a vida é institucionalizada e pensada apartir da concepção individualista de pessoa. Existimossocialmente se temos uma identidade civil definida peloEstado, em termos de sexo e data de nascimento. Só existimossocialmente porque nos percebemos inseridos em umasociedade e porque acreditamos que temos um mundo interior,uma subjetividade: maneira de ser, pensar, sentir e agir quedefinem a nossa identidade psicológica e nossa singularidade.

 

É nesse contexto da cultura individualista e dainstitucionalização do curso da vida que as noções de crise deidade e de conflito de relações intergeracionais ganham

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sentido. Aí, a trajetória do curso da vida é associada à idéia decrises periódicas, esperadas e que devem ser superadas. Asociedade contemporânea considera essas crises comomarcas que se apresentam ao longo do curso da vida e asconsidera como momentos-chave da trajetória de vida dosindivíduos.

 

A sociedade, então, constrói uma rede de significados que dáaos indivíduos, ao mesmo tempo, modelos de ação econdições de interpretação da realidade. As crises e osconflitos são internalizados como fatos individuais de ordemprivada. Melhor dizendo, as crises são dadas culturalmente; háum papel social que deve ser representado por aqueles quevivem uma situação já considerada socialmente como crise, aexemplo do envelhecimento.

 

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Em diferentes sociedades e épocas, o tratamento social dadoaos velhos, crianças e mulheres, assim como oscomportamentos deles esperados, tem sido diferenciado, e osfatos históricos apontam que os privilégios tradicionalmentecabiam ao sexo masculino e à idade adulta plena, ficando, viade regra, as mulheres, os muito jovens e os velhos socialmenteinvisíveis. Somente em algumas culturas pré-capitalistas, osvelhos gozavam do prestígio da posse da memória e daexperiência (BRITTO DA MOTTA, 1998a, 1998b).

 

De acordo com Britto da Motta (2003), a partir dos anos 60/70,com a crise de paradigmas científicos e a crise da reproduçãodo capitalismo, vemos surgir novos sujeitos teóricos, novosdiscursos sociais e movimentos sociais foramouvidos/percebidos pelas ciências sociais. Entre eles temossexo/gênero e idade/geração, expressos no feminismo, nosmovimentos estudantis e, mais recentemente, no movimentode velhos (aposentados, associações de idosos).

 

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No momento em que os velhos se negam a obedecer ao lugara eles reservado na divisão culturalmente atribuída de direitose deveres por ciclos de vida, a respeitar os limites impostospelo preconceito social, temos aqui o que Bourdieu (1983)aponta como aquilo que faz surgir os conflitos entre gerações:a disputa de poder. E é na família, lugar por excelência dasemoções, da privacidade e da intimidade, que os dramasindividuais ocorrem fundamentalmente.

 

A trajetória da família brasileira atual ocorreu num contexto demudanças socioculturais e políticas, fazendo surgir novosmodelos familiares derivados dessas mudanças sociais (baixataxa de fecundidade, aumento da expectativa de vida, declínioda instituição do casamento, aceitação social do divórcio,transformações nas relações de gênero etc.) que merecem serconsideradas quando queremos compreender como se dão asrelações dentro desse grupo social.

 

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A família apresenta-se como o espaço onde se confrontam ese mesclam valores que privilegiam o indivíduo e valores queacentuam a importância do grupo social, possuindo acapacidade de reorganizar-se e enfrentar os constantesdesafios que encontra na sociedade. Por meio de mecanismosde reação e adaptação às circunstâncias históricas, a famíliaencontra novas formas de estruturação, incorporandomudanças e novos padrões de comportamento quando emcontato com uma realidade social. Dessa maneira, a família sereorganiza e encontra novas formas de relacionamento,repensando hierarquias sempre que uma situação de mudançasocial e individual envolva condições de vida difíceis etransições desenvolvimentais de seus membros (BASTOS,2001).

 

Como reflexo da omissão do Estado frente ao alto índice dedesemprego e à má distribuição de renda, da quaseinexistência de políticas públicas voltadas para as questõessociais em geral e para as questões do envelhecimentopopulacional em particular, da escassez de programas sociaise da precariedade da saúde pública, só resta à família atuar demaneira mais direta e intensa na regulação das relações e nosapoios intergeracionais, realizando uma solidariedade familiar

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importante e diversificada na sociedade brasileira, em que osapoios se efetuam em função da situação social de seusatores.

 

A solidariedade familiar, comum nas regiões urbanasbrasileiras, produz uma transformação no campo da família enos processos de filiação, o que termina por favorecer umaexpansão do núcleo familiar, com o aumento de famílias nasquais coexistem três e mesmo quatro gerações, com os velhospassando a viver na casa de um dos filhos ou, se sãoproprietários de uma casa, um dos filhos adultos vem com afamília morar com eles como forma de baratear os custoshabitacionais e garantindo os cuidados às crianças e a outrosdependentes, que são aqueles que não estão inseridosativamente no mercado de trabalho, como os adolescentes, osidosos e os desempregados (PEIXOTO, 2004). Fica claro,então, que a coabitação pode vir a beneficiar tanto as geraçõesmais novas quanto as mais velhas, embora estudos(CAMARANO, 2004; BAWIN-LEGORS et all., 1995;ATTIAS-DONFUT, 1995) afirmem que as ajudas se dão commais intensidade das gerações ascendentes para asdescendentes, ou seja, dos pais para os filhos, ou mesmo dosavós para os netos.

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Na medida em que a coexistência de várias gerações é umfenômeno cada vez mais freqüente, a geração de 50 a 60anos, chamada por Attias-Donfut de geração “pivô”, passa aenfrentar o que pode ser considerado um dos maiores desafiosdo novo século: cuidar, ao mesmo tempo, dos pais idosos, dosfilhos e dos netos (DELBES E GAYMU, 1993).

A proximidade geográfica ou mesmo a coabitação sãoelementos importantes no desenvolvimento da solidariedadefamiliar e favorecem a construção de verdadeiros laços entrepais, filhos e netos, uma vez que os apoios se manifestamatravés de reciprocidades múltiplas: apoio econômico(pagamento de aluguel e estudos dos netos), intervenções navida cotidiana, ajuda no cuidado dos netos etc. (PEIXOTO,2004).Por outro lado, “o princípio de igualdade absoluta entre osindivíduos nas relações intergeracionais não corresponde àrealidade das práticas familiares” (PEIXOTO, 2000; p. 97), e asdenúncias de violência contra os mais velhos comprovam queo fato dos idosos viverem com os filhos não é garantia dapresença de respeito e de prestígio nem da ausência demaus-tratos e violência.

 

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A sociedade brasileira caracteriza-se por um alto índice deviolência familiar e, de acordo com Saffioti (1994), recai sempresobre as mesmas vítimas - mulheres, crianças ou velhos – oque deve ser considerado a fim de que se possa compreendera sua rotinização. Ocupando, na década de 90, um lugar cadavez maior na mídia impressa e eletrônica, essa forma deviolência apresenta-se nas estatísticas indicando que os crimesperpetrados por desconhecidos competem com aquelescometidos por parentes, amigos e vizinhos  (DEBERT, 2001).

A violência vem sendo considerada como endêmica nasociedade brasileira e muitas são as explicações que asciências de uma forma geral buscam para esse fenômeno, queacompanha e integra a nossa vida, não permitindo quefiquemos alheios ao papel que sempre desempenhou nosassuntos humanos (TAVARES DOS SANTOS, 1999).

Embora não seja um fenômeno exclusivamente urbano, umavez que atinge também a população do campo, sobretudo ostrabalhadores, através de suas diversas expressões, aviolência vem assumindo maiores proporções nas relaçõessociais urbanas (MINAYO, 1993). Os estudos sobre a violênciaurbana surgiram no início do processo de globalização, nadécada de 1980, apontando a criminalidade como uma forma

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de ganhar a vida pelas populações marginais das cidades, mastambém apontando uma relação entre a violência do Estado ea estigmatização social dessas populações.

Com o aumento da violência na década de 1990, fenômenocujas facetas são objeto de apreensão no cotidiano, e, pordesencadear um temor generalizado entre as pessoas, pelopapel que assume diante do número de vítimas (entre elesidosos), que atinge indiscriminadamente (MINAYO, 1993), aviolência passa a ser objeto de reflexão de várias áreas dosaber. Vários trabalhos (ZALUAR, 1994; MACHADO, 1994,MINAYO, 1994, TAVARES DOS SANTOS, 1999) buscamidentificar as características sociais das populações envolvidasna violência urbana, o destino dos jovens das classespopulares neste contexto, as manifestações urbanas dacriminalidade violenta, ou a relação entre a possívelfragmentação social e cultural do espaço urbano como efeitosocial e da crise de governabilidade.

 

Para Tavares dos Santos (1999), a disseminação da violêncianas relações sociais e no cotidiano da sociedade brasileira

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termina por acarretar o esgotamento do sujeito político e pordilacerar a cidadania. A violência difusa na sociedadecontemporânea assume contornos socioculturais,encaixando-se em ideologias vigentes na sociedade eatingindo grupos sociais diversos. Suas formas específicas deexpressão aparecem em todas as regiões do país e nosdiversos grupos sociais. Ao perpassar as várias fases da vida ese instaurar nas mais variadas relações humanas,constituem-se novas formas de violência, expressas pelo crimeorganizado, a violência doméstica, certas práticas dos gruposde jovens, em um contexto de precarização das relações detrabalho, indicando as limitações do sujeito político neste finalde século (TAVARES DOS SANTOS, 1999).

Para compreender esse fenômeno, é preciso que se entendaos atores envolvidos nas cenas de violência, rompendo obinômio vítima/algoz. Juntos, os diversos tipos de violênciaconstituem uma rede intrincada e complexa, na qual todos(cada um a seu modo) são vítimas e autores ao mesmo tempo.Todos são afetados pela fonte comum de uma estrutura socialdesigual e injusta, que alimenta e mantém ativos os focosespecíficos de violência, os quais se expressam no interior dasinstituições, nas relações domésticas, de gênero, de classes eintergeracionais (MINAYO, 1993).

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Podemos apontar as raízes autoritárias da nossa sociedade, afreqüente violação dos direitos humanos e a exclusão moralcomo responsáveis pelo crescimento da violência no país. NoBrasil, é fácil observarmos a não-abrangência dos princípios dejustiça a todos os cidadãos, além dos constantes processos deexclusão, colocando à margem da sociedade grupos, como osidosos, percebidos no imaginário popular como não dignos dosbenefícios que recebem, e trazendo ônus para aqueles que sejulgam os únicos cidadãos. A violência está inserida, cotidianamente, nas relações sociaisde tal forma, que não pode ser considerada apenas como umaforça exterior aos indivíduos, mas como força que a eles seimpõe. Ou melhor, a violência deve ser considerada dentro docontexto histórico, não podendo ser estudada fora do contextoda sociedade que a produziu.

Tavares dos Santos (1999) afirma que a questão social doséculo XX não foi resolvida, pois permanecem as relações deexploração econômica, as relações de dominação política e adisseminação da violência simbólica. Vemos a reprodução deum modo de produção da exclusão social expresso pelas altastaxas de desemprego, pelo aumento da pobreza e pelaproliferação dos racismos, que terminam por produzir “[...] aspráticas de violência como norma social particular de amplosgrupos da sociedade, presentes em múltiplas dimensões daviolência social e política contemporânea.” (TAVARES DOSSANTOS, 1999, p.18).

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Minayo (1997) afirma que, para entendermos a violência naatualidade, é importante levarmos em conta que nassociedades modernas predomina, nas consciências sociais, oconceito de violência criminal que serve para ocultar outrasformas insidiosas de violência, como a opressão dospoderosos sobre os fracos; a violência “naturalizada”, queacompanha os avanços tecnológicos; a violação dos direitoshumanos; a exclusão moral, como no caso dos idosos.

Em entrevista à Folha de São Paulo, Gilberto Velho consideraespecialmente a violência contra os idosos como um sinal deavanço da violência de maneira mais ampla, na medida em quebarreiras sociais antes existentes – como o respeito aos maisvelhos – são rompidas, colocando em xeque elementosbásicos da vida social. Para o antropólogo, os velhos, eacrescentaria, assim como as crianças e mulheres, são vítimaspreferenciais, porque são mais frágeis (CIMIERI, 2005).Na maioria dos estudos internacionais (GASTRÓN, 1999; CH

 

AVEZ, 2002; WOLF, 199), a violência familiar contra idososaparece sempre em primeiro lugar quando comparada com

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outras formas de violência, como a negligência social difusa, aviolência institucional ou a violência do trânsito etc.

Podemos distinguir, no Brasil, uma violência do tipo estrutural,cujas expressões mais fortes são os idosos, cada vez maispresentes nas sinaleiras das grandes metrópoles; umaviolência social, cujas manifestações mais fortes configuram-sena violência doméstica, na qual os idosos são vítimaspreferenciais. A violência estrutural incide sobre as condiçõesde vida das pessoas, a partir de decisões históricas,econômicas e sociais e, por possuir um caráter de perenidade,acaba sendo percebida pelos atores sociais como algo“natural” (COHIN, 2001).

“Eu preciso levar alguma coisa pra casa porque o dinheiro daminha aposentadoria já acabou e se faltar comida meu filho meagride. Ele está desempregado e bebe todos os dias” .

 

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Entretanto, observamos que, no Brasil, ainda são poucos osestudos que se propõem a investigar o fenômeno da violênciarelacionado às questões do envelhecimento, particularmenteno que se refere a sua incidência nas famíliascontemporâneas. Podemos citar os trabalhos de Minayo(2003), Ibias e Grossi (2001), Menezes (1999), Souza et al.(1998), Figueiredo (1998) e Garrido (2004), apenas esterealizado no Estado da Bahia.

Em termos mais qualitativos, menos ainda se conhece acercade como o envelhecimento tem sido vivenciado por essesegmento populacional quando se faz necessário compartilharespaço e experiência com outras gerações, o que significacompreender, entre outros aspectos, a diversidade detrajetórias de vida desses sujeitos, as formas como as relaçõesintergeracionais influenciam suas relações objetivas esubjetivas com a sociedade, a possibilidade de realização deprojetos pessoais, seus vínculos interpessoais, a organizaçãodoméstico-familiar, entre outros fatores.

Para Camarano et al (2004, p. 145), é importante conhecermosse [...] do ponto de vista dos idosos os arranjos familiarespredominantes estão refletindo as suas preferências ou se sãoresultado de uma “solidariedade imposta” [...] por pressões

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econômicas, sociais e/ou de saúde, seja de sua parte, seja daparte de seus filhos [...] pois este pode ser um elementodesencadeador de insatisfações e violência doméstica.

A qualidade do ambiente familiar, assim como a interação doidoso com aqueles com quem compartilha o seu dia-a-dia, tempapel fundamental em sua vida, isto porque o desejo de viverpassa, também, pela possibilidade de ser produtivo e demanter o processo social. 

 A relação com membros das gerações mais jovens tem umpapel fundamental no resgate da auto-estima pelo idoso, namedida em que preconceitos sejam quebrados, que aatualização em termos de padrões e normas sociais, assimcomo a revisão em relação aos novos conhecimentos sejapossível, permitindo-lhe o deslocamento do lugar depassividade para o de ser participativo na sociedade. Noentanto, as relações intergeracionais, no mais das vezes,parecem ser marcadas pelo conflito e pela violência.

A sociedade brasileira caracteriza-se por um alto índice deviolência familiar, seja contra mulheres, crianças ou velhos,

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ocupando, na década de 90, um lugar cada vez maior na mídiaimpressa e eletrônica, com as estatísticas indicando que oscrimes perpetrados por desconhecidos competem com aquelescometidos por parentes, amigos e vizinhos  (DEBERT, 2001).

A família, então, deixa de ser vista como o espaço de proteçãoe cuidado, para ocupar o lugar em que as relações deopressão, abusos físico e emocional, crime e ausência dedireitos individuais, em muitos casos, prevalecem. “O lar é oespaço onde as mulheres e as crianças [assim como os velhos]correm maior risco.” (DEBERT, 2001, p.74).

A violência contra o idoso é um fenômeno que se encontrapresente em nossa sociedade há muito tempo, não seconstituindo em algo recente, porém foi com a criação dasdelegacias especiais de polícia, dentre elas a Delegacia deProteção de Idoso, que este fenômeno ocupou maiorvisibilidade social, levando o governo federal a preparar olançamento do Plano Nacional de Enfrentamento à Violênciacontra a Pessoa Idosa, que tem como um dos objetivos ocombate à violência e aos maus-tratos contra idosos (PlanoCombate Violência a idoso. Jornal A TARDE, CadernoNacional, p. 13-14, 28/09/04).

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Diante da impossibilidade do Estado em formular e sustentarpolíticas sociais, verifica-se um aumento de casos de conflitoseconômicos associados às relações familiares, levando ànecessidade de intervenção estatal. Foi nesse contexto que,em 1991, surgiram as Delegacias Policiais de Proteção aosIdosos, inspiradas nas Delegacias de Proteção à Mulher, masque, ao contrário dessas, que se expandiram, as primeirastiveram suas atividades interrompidas, restando apenas umano centro da cidade de São Paulo e outra no município deGuarulhos  (SINHORETTO, 2000).

Retomando Bourdieu (1983), que adverte para o fato de queaquilo que faz surgir os conflitos entre gerações é a disputa depoder, a violência contra o velho é uma expressão de abuso depoder por membros da família e, via de regra, o (a) velho (a) évítima, ao mesmo tempo, de vários tipos de violência, taiscomo:

• abusos físicos - tapas, empurrões, esp

ancamento, contenção física;

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• abusos psicológicos - ameaças, humilhação constante,insultos, infantilização do idoso (a), privação de informações,retirada do direito de participação na tomada de decisões arespeito de coisas do seu interesse;

• abusos financeiros - filhos que confiscam as aposentadoriasdos pais, por exemplo, ou o uso inadequado do dinheiro dapensão para benefício próprio; indução do idoso a assinardocumentos dando plenos poderes para compra, venda outroca de bens e serviços.

• abusos sexuais;

• negligências - recusa, omissão ou fracasso por parte doresponsável pelo idoso em oferecer os cuidados de que elenecessita – provisão inadequada de medicamento, alimentaçãoe cuidados médicos;

• ideacional – violência das idéias que legitimam  a dominação;

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não está presente permanentemente na consciência do idosos,mas encontra-se presente no pensamento do dominador.

Entre estes, ao se referir aos conflitos intergeracionaisfreqüentes no contexto familiar, Attias-Donfut (2004)particulariza os conflitos entre as gerações de mulheres erecorre ao conceito de matrofobia para qualificar os ataquesdas filhas contra suas mães, fruto das transformações recentesdos estatutos e dos papéis das mulheres, que termina porprovocar a ruptura do processo de identificação entre mães efilhas e por engendrar a disputa de poder no seio da família.

 

Moro com minha única filha, (hoje com mais de quarenta anos)mas as nossas relações são péssimas. Ela me agride de todasas formas. Agora, na cozinha, temos duas geladeiras e doisfogões – eu não posso usar nada dela e tenho que fazer minhacomida. Ela fica na parte de cima da casa com o filho, morandoàs minhas custas, enquanto eu fico sozinha, na parte de baixo .

 

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Um tipo de violência verificado com grande incidência nosúltimos tempos pode ser qualificado como uma violência degênero atingindo, os homens que são abandonados por suasfamílias. A explicação para tal fenômeno pode se dar por duasvias. A primeira diz respeito ao vínculo que normalmente asmulheres estabelecem com seus filhos, muito mais fortes que amaioria dos homens. Outra explicação possível está no fato deque as mulheres envelhecem, mas continuam a desenvolveratividades domésticas importantes nos contextos das famílias,incluindo aí desde a manutenção da casa até os cuidados comos netos.

Em artigo publicado no boletim do Instituto Brasileiro deCiências Criminais, Sinhoretto (2000) informa a ocorrência de1504 casos registrados na Delegacia de Proteção do Idoso dacidade de São Paulo, no período de 1991 a 1998. Das 1559vítimas, 57%, além de idosas, são mulheres. De acordo com asqueixas, os episódios de violência contra mulheres idosasocorrem, sobretudo, no espaço doméstico, mas, apesar disso,para se proteger a sacralidade da família, não se preparam asmulheres, e acrescentaria os idosos e as crianças, paratemerem seus próprios parentes, perpetuando-se a idéia deque devem temer os desconhecidos (SAFFIOTI, 1994).

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Ainda de acordo com a pesquisa de Sinhoretto (2000), osagressores são, na maioria, homens (57%), filhos, netos,familiares ou vizinhos das vítimas. Saffioti (1994) atribui aoreduzido número de queixas de mulheres idosas contra seusmaridos, ao fato de que a mulher, com 50 anos ou mais, temgrande possibilidade de estar viúva, já que sobrevive cerca deseis anos aos homens. Outro dado revelado pela pesquisaaponta que 7 em cada 10 ocorrências encontram-serelacionadas à violência doméstica ou entre vizinhos, e podemser classificadas como violência física ou psicológica.  

Pesquisa semelhante, realizada em Porto Alegre em 1999,aponta que os chamados “conflitos domésticos” correspondema quase metade das ocorrências registradas na Delegacia deProteção ao Idoso, e ultrapassam os conflitos com vizinhos.Dentre os motivos alegados para tais conflitos, envolvendo,principalmente, filhos, netos ou cônjuges (40%) e outrosfamiliares (7%), identificou-se a disputa pelos bens dos idosos,e dificuldades econômicas das famílias em sustentá-los, entreoutras (IBIAS E GROSSI, 2001).

Em Salvador, no dia 31 de julho de 2006, foi inaugurada aprimeira Delegacia de Proteção ao Idoso do norte e donordeste. Vinculada à Secretaria de Crimes Contra a Vida da

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Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia, aDelegacia de Proteção ao Idoso de Salvador funciona 24 horase possui um microônibus a cada 40 minutos, à disposição dosidosos. Os agentes participaram de um curso de 12 horas paraconhecer o Estatuto do Idoso, saber como tratar asocorrências, priorizando-as, e tiveram noções sobre comotratar os idosos. De acordo com dados estatísticos, em apenassete dias foram registradas 54 denúncias; em oito dias já eram70 denúncias; em 18 dias 136 denúncias; em 28 dias, 210queixas; e, em 22 de setembro do mesmo ano, 639 denúncias. Dentre as queixas registradas, destacam-se as ameaças, com34%, seguidas dos constrangimentos (10,3 %), furtos (5,1 %),lesões corporais (4,4 %), maus tratos (4,4%), estelionato,apropriação indevida e abandono.

Os dados apresentados pela Delegacia de Proteção ao Idosode Salvador não deixam dúvidas em relação ao crescimento donúmero de idosos vítimas de violência. Durante o ano de 2006foram registradas 1440 denúncias de maus tratos contra apessoa idosa. Em 2007, esse número aumentou para 2.937 e,em setembro de 2008, já somam 1826. Na tabela abaixo épossível visualizar os tipos de agressões mais freqüentes a quesão submetidos os idosos moradores de Salvador.

 

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INFRAÇÃO PENAL (OCORRÊNCIASDELITUOSAS) FREQÜÊNCIA

AMEAÇA 344APROPRIAÇÃO INDÉBITA 08CÁRCERE PRIVADO 02CONSTRANGIMENTO 23DANO 19DIFAMAÇÃO 17ESTATUTO DO IDOSO 329ESTELIONATO 42FURTO QUALIFICADO 06FURTO SIMPLES 64HOMICÍDIO 01INJÚRIA 111INVASÃO DOMICILIAR 04LESÃO CORPORAL 128MAUS TRATOS 33OUTRAS OCORRÊNCIAS DELITUOSAS 98PERTURBAÇÃO DA TRANQÜILIDADE 44ROUBO QUALIFICADO 02ROUBO SIMPLES 13VIAS DE FATO 03

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O perfil dos agressores dos idosos de Salvador é muitosemelhante ao apontado pela Delegacia de Proteção ao Idosode São Paulo, e os vizinhos ocupam lugar de destaque, com50% dos casos, seguidos pela família, com 47% (filhos(61,8%); netos (10,6); ex-companheiro(a) (10,6%); esposo (a)(4,2); outros (12,8%). As queixas contra estranhos representamum total de 3% (agiota, motorista, corretor, locador, militar,inquilino).

Ao se referir à violência contra a mulher, Saffioti (1994) alertapara o equívoco de se considerar a crise econômica e oalcoolismo como causas da violência no contexto familiar.Segundo a autora, esses fatores funcionam, na verdade, comomeros desencadeadores da violência que já se encontracontida nas relações e que se encontra respaldada pelaassimetria contida na estruturação da sociedade.

De forma geral, as Delegacias de proteção ao Idoso, assimcomo as Delegacias de Proteção à Mulher, registram adificuldade que as vítimas enfrentam para romper com osilêncio, apontando como possíveis causas o medo deinstitucionalização permanente que resultaria na perda de todoo contato familiar, uma vez que a família, ao mesmo tempo emque oprime, também pode oferecer momentos de carinho e

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proteção; medo de não ser acreditado(a) e, conseqüentemente,rotulado(a) de demente e senil, perdendo toda aindependência; sentimentos de vergonha e humilhação peloocorrido; crença de que é um estorvo social para a família oupara a sociedade, conseqüência da estigmatização socialrelacionada ao velho (IBIAS E GROSSI, 2001).

Outro fato verificado com freqüência é o sentimento de culparevelado pelo(a) velho(a) ao denunciar o agressor, muitasvezes o filho ou neto, levando as vítimas a não concluírem osprocessos contra seus agressores, impedindo, portanto, suapunição. Na maioria das vezes, o pedido do idoso é para que apolícia dê “apenas um susto” ou “uma advertência” ao acusado(DEBERT, 2001).

Sabe-se [...] que, em alguns casos, a mera apresentação da queixa emuma delegacia e uma advertência séria sofrida pelo agressorpor parte da autoridade policial conseguem cessar a violência.(...) Ademais, advertir não constitui tarefa da polícia, que deve,por obrigação legal, realizar o inquérito e remetê-lo aojudiciário, seja para fins de arquivamento, seja para instauraçãodo processo-crime (SAFFIOTI, 1994, p. 170).

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Se antes, a grande maioria dos casos de violência contra amulher, assim como contra o idoso, era julgada em juizadosespeciais para atender às “causas civis de menor poderofensivo”, com o agressor recebendo como pena o pagamentode uma cesta básica ou a realização de um serviço voluntário,a partir do dia 08 de agosto de 2006 esse quadro mudaradicalmente com a assinatura, pelo presidente da repúblicaLuiz Inácio Lula da Silva, da Lei da Violência Doméstica eFamiliar contra a Mulher.

A Lei da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher tirados juizados especiais criminais a competência para julgar estetipo de crime, instituindo a criação de juizados especiais deviolência doméstica e familiar contra a mulher comcompetência cível e criminal para abranger todas as questões.As mudanças trazidas com a assinatura dessa lei são: osagressores deixam de pagar multas ou cesta básica; a pena dedetenção que era de seis meses a um ano, passa a ser de trêsmeses a três anos; a nova lei tipifica a violência doméstica efamiliar contra a mulher como uma das formas de violação dosdireitos humanos, além de caracterizar a violência psicológicacomo forma de violência; a partir de agora as vítimas, quemuitas vezes sucumbiam ao pedido de perdão dos maridos –agressores, não vão poder pedir mais que as investigaçõessejam interrompidas. Com a nova legislação, elas só podemrenunciar à denúncia perante o juiz; as medidas que variamconforme cada caso devem ser determinadas pelo juiz em até

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48 horas e vão desde a saída do agressor do domicílio, até odireito da mulher reaver seus bens e cancelar procuraçõesconferidas ao agressor.

Investigar a violência doméstica não se constitui em tarefa defácil execução, na medida em que as questões que envolvemesses eventos são, em sua maioria, “resolvidas” dentro e pelafamília, criando-se a referida “conspiração do silêncio”(FIGUEIREDO, 1998), transformando esse tema em “maldito”,na medida em que, ao abordá-lo, estaremos desvelando umaface que a família tem todo o interesse em manter oculta.

Alguns são os mitos que colaboram para a manutenção dofenômeno da violência contra o(a) idoso(a), perpetrando odesconhecimento, a ignorância ou o interesse ideologicamentecamuflados. O mito da casa como espaço privado, secreto porexcelência, “garantindo” aos seus membros todas as açõesneste contexto, é um deles. Esse mito inibe a ação deprofissionais, parentes e vizinhos, que não querem invadir aprivacidade do outro, mas que é utilizada como espaço detortura de seres incapazes de se defender (COHIN, 2001).

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Apesar disso, faz-se necessário que mais pesquisas sedesenvolvam não apenas para denunciar a existência daviolência familiar contra o (a) velho (a), mas para reconhecê-la,identificar suas formas e propor formas de intervençõesadequadas que protejam as vítimas de um sofrimentodesnecessário, pois, ao se constituir “como uma realidadedesconhecida, ou mal conhecida, acaba por se configurarcomo mais uma forma de violência que opera no nívelestrutural: a invisibilidade” (AZAMBUJA, 2005), que costuma viracompanhada pelo descaso.

 

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