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99 FAMÍLIAS DE ELITE E ESTRATÉGIAS DE MANUTENÇÃO DE PODER (SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ, 1875-1900) CARINA MARTINY Mestre em História – UNISINOS [email protected] Resumo O presente artigo analisa como a elite política se utilizou de laços familiares visando garantir sua influência nas esferas econômica, política e social. A análise centra-se na ação de alguns membros da elite política do município de São Sebastião do Caí, entre os anos 1875-1900. Demonstra que ganhos econômicos, vantagens sociais e benefícios políticos, além de uma endogamia étnica e profissional, constituíram motivações para muitas uniões matrimoniais. Através de documentos de diferente natureza, como inventários e registros da Câmara Municipal, evidencia-se que alguns laços familiares permitiram que redes de poder fossem construídas e acionadas, visando o atendimento dos interesses desta elite tanto no campo político quanto econômico. Assim, os vínculos familiares, transformados em redes de poder, constituíram-se como uma estratégia de manutenção de prestígio, preservação de riqueza e inserção política. Palavras-chave: Família; elite; estratégia familiar. Introdução Os laços estabelecidos e as relações entre indivíduos podem ser de distinta natureza. Laços consanguíneos, vínculos sociais ou de amizade e relações econômicas e de vizinhança são exemplos de interação dos indivíduos com o meio social no qual se inserem. Neste artigo, analisamos os laços familiares constituídos por famílias que compunham a elite municipal de uma região marcada pela imigração, demonstrando as estratégias de constituição de laços familiares pela via matrimonial. Para tanto, tomamos por objeto de análise algumas famílias pertencentes à elite política do município de São Sebastião do Caí (RS). Através destas, evidenciamos a utilização dos laços familiares como estratégia de ascensão econômica, política e social. É necessário destacar que este artigo deriva da pesquisa desenvolvida para a Dissertação de Mestrado, que teve por centro de análise a caracterização da elite política do município de São Sebastião do Caí no quartel final do século XIX, as estratégias de acesso, manutenção e ampliação do poder, bem como a constituição de redes sociais e políticas desta elite. Assim, se na Dissertação as relações familiares formaram apenas um viés de análise da elite local, neste artigo estas passam a constituir o centro da discussão. 1 A análise se divide em três partes. Primeiramente, propomos uma pequena discussão 1 O presente artigo baseia-se em ideias desenvolvidas no terceiro capítulo da Dissertação de Mestrado “Os seus serviços públicos e políticos estão de certo modo ligados à prosperidade do município” Constituindo redes e consolidando o poder: uma elite política local (São Sebastião do Caí, 1875-1900) (MARTINY, 2010).

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FAMÍLIAS DE ELITE E ESTRATÉGIAS DE MANUTENÇÃO DE PODER (SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ, 1875-1900)

Carina Martiny

Mestre em História – [email protected]

Resumo

O presente artigo analisa como a elite política se utilizou de laços familiares visando garantir sua influência nas esferas econômica, política e social. A análise centra-se na ação de alguns membros da elite política do município de São Sebastião do Caí, entre os anos 1875-1900. Demonstra que ganhos econômicos, vantagens sociais e benefícios políticos, além de uma endogamia étnica e profissional, constituíram motivações para muitas uniões matrimoniais. Através de documentos de diferente natureza, como inventários e registros da Câmara Municipal, evidencia-se que alguns laços familiares permitiram que redes de poder fossem construídas e acionadas, visando o atendimento dos interesses desta elite tanto no campo político quanto econômico. Assim, os vínculos familiares, transformados em redes de poder, constituíram-se como uma estratégia de manutenção de prestígio, preservação de riqueza e inserção política.

Palavras-chave: Família; elite; estratégia familiar.

Introdução

Os laços estabelecidos e as relações entre indivíduos podem ser de distinta natureza. Laços consanguíneos, vínculos sociais ou de amizade e relações econômicas e de vizinhança são exemplos de interação dos indivíduos com o meio social no qual se inserem. Neste artigo, analisamos os laços familiares constituídos por famílias que compunham a elite municipal de uma região marcada pela imigração, demonstrando as estratégias de constituição de laços familiares pela via matrimonial.

Para tanto, tomamos por objeto de análise algumas famílias pertencentes à elite política do município de São Sebastião do Caí (RS). Através destas, evidenciamos a utilização dos laços familiares como estratégia de ascensão econômica, política e social.

É necessário destacar que este artigo deriva da pesquisa desenvolvida para a Dissertação de Mestrado, que teve por centro de análise a caracterização da elite política do município de São Sebastião do Caí no quartel final do século XIX, as estratégias de acesso, manutenção e ampliação do poder, bem como a constituição de redes sociais e políticas desta elite. Assim, se na Dissertação as relações familiares formaram apenas um viés de análise da elite local, neste artigo estas passam a constituir o centro da discussão.1

A análise se divide em três partes. Primeiramente, propomos uma pequena discussão

1 O presente artigo baseia-se em ideias desenvolvidas no terceiro capítulo da Dissertação de Mestrado “Os seus serviços públicos e políticos estão de certo modo ligados à prosperidade do município” Constituindo redes e consolidando o poder: uma elite política local (São Sebastião do Caí, 1875-1900) (MARTINY, 2010).

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conceitual acerca da família. Em seguida, uma reflexão sobre as fontes documentais passíveis de auxiliar na reconstrução e análise do papel desempenhado pela família no Oitocentos. E, por fim, analisamos os laços matrimoniais da família Trein, demonstrando como estes laços fizeram parte de uma estratégia familiar e foram fundamentais para a manutenção – e possivelmente ampliação – do poder econômico e político da família no município de São Sebastião do Caí.

Uma Breve Discussão Conceitual: Redes Sociais, Laços e Família

A família constitui-se num privilegiado espaço de sociabilidade a partir do qual, e no qual, laços de dependência e inter-relação são tecidos e constantemente reiterados. O universo político Oitocentista não foi excluído da ação imposta por laços e relações familiares.

No século XIX, a família constituía-se em importante meio para a conservação e ampliação de riquezas, de poder e de importância social. Em muitos casos, os laços familiares foram determinantes para definir posições políticas e centrais nas disputas eleitorais. Richard Graham é enfático ao apontar um dos traços definidores da política brasileira do século XIX: “[...] os cidadãos dividiam-se politicamente não por causa de lealdades partidárias, muito menos por considerações ideológicas, mas devido a laços pessoais – de família, neste caso – tornando os rótulos partidários enganadores, tanto em nível local, como no nacional.” Ele completa: “O que predominava era a lealdade a uma pessoa e não a um partido ou programa” (GRAHAM, 2003: 8).2

Na esteira dos estudos feitos por Graham, Jonas Moreira Vargas, ao analisar a elite política sul-rio-grandense do Segundo Reinado – em que concede especial atenção às ligações políticas que se estabeleceram entre a paróquia e a Corte – reabilita a importância do papel das famílias no jogo político. Segundo Vargas, a família, em termos das relações estratégicas por ela estabelecidas, sejam estas relações verticais – para cima ou para baixo – ou horizontais, se torna a chave para o entendimento do funcionamento da política no século XIX, quando, mais do que os partidos, eram as famílias e as relações dela derivadas que determinavam a própria organização da elite política local.

A importância política desempenhada pela família no século XIX fica evidente quando Vargas demonstra como o Partido Conservador vencia eleições na região da Campanha – apontada pela historiografia tradicional como uma região de domínio político Liberal. A explicação para a vitória conservadora, segundo o historiador, estava na força política da família Ribeiro de Almeida em Alegrete, força que era estendida a outros municípios através do estabelecimento de uma complexa rede de relações (VARGAS, 2007: 235-241).3 As composições familiares Oitocentistas são encaradas, assim, tanto por Graham, quanto por Vargas, como principais agentes políticos do país, uma vez que eram elas que funcionavam como mediadores entre o poder central e o poder local.

No campo da imigração, a análise das relações familiares não é menos importante. Como assinalou Marcos Witt, mesmo que a historiografia clássica da imigração alemã tenha

2 Deriva desta concepção de família – como centralidade dos rumos da política imperial – a grande crítica que é feita a José Murilo de Carvalho por Jonas Vargas. Segundo Vargas, sua análise busca criticar “[...] um tipo de fatalismo metodológico que tende a deduzir (e posteriormente reduzir) comportamentos políticos somente através de alguns indicadores como profissão e curso de formação, como fez José Murilo de Carvalho, sem levar em conta a existência de outros tão ou mais importantes, como as vinculações familiares e as redes de relações sociais com outros setores” (grifo nosso) (VARGAS, 2007: 67).

3 O importante papel desempenhado pelas famílias da elite política local é abordado por Vargas no Capítulo 3 de sua Dissertação, com maior ênfase no item 3.4 - “O voto em família”: os Ribeiro de Almeida, os Nunes de Miranda e outros senhores anônimos (VARGAS, 2007: 235-241).

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proposto uma análise limitada dos laços familiares, se dedicando à reconstrução genealógica e familiar dos núcleos coloniais, “há ainda, muito o que pesquisar e escrever sobre as relações familiares” (WITT, 2008: 71). Estudos genealógicos e familiares estruturados por esta historiografia tradicional podem tornar-se importante fonte de informações para análises que propõe um olhar sobre as relações, ações e redes criadas pelos imigrantes e seus descendentes com os mais variados objetivos.

Apesar de reconhecermos a centralidade do papel da família na análise das relações de poder, algumas questões não podem ser desconsideradas. A primeira está relacionada à definição do modelo de família com que se trabalha. Apesar dos inegáveis méritos dos primeiros trabalhos sobre família no Brasil, deve-se considerar que estes acabaram reduzindo a análise relacional ao âmbito da família nuclear, derivada de uma leitura limitada das fontes paroquiais utilizadas, não atendendo à complexidade dos modelos familiares existentes historicamente no Brasil. Do mesmo modo, a adoção do modelo de família patriarcal, tal qual descrito na década de 1930 por Gilberto Freyre, na obra Casa grande & Senzala (1977), tornou-se insuficiente e limitado.

O modelo de família que, então, melhor atende à complexidade dos laços e relações familiares Oitocentistas é aquele que está para além dos laços consanguíneos, e que compreende uma diversidade de motivações que determinavam a inclusão – ou exclusão – de um indivíduo a uma unidade familiar. Giovanni Levi, na obra A herança imaterial, chama a atenção para a problemática da adoção de um modelo familiar limitador da análise, sustentando a necessidade de afastarmo-nos um pouco de “uma definição de família como unidade de residência ou como um agrupamento ao redor do fogo para cozinhar” (LEVI, 2000: 98) já que a estratégia de muitas famílias – no caso por ele estudado, no Piemonte – “estava exatamente na separação das residências e na unidade dos negócios” (LEVI, 2000: 100). Assim, Levi define família “no sentido de grupos não-co-residentes, mas interligados por vínculos de parentela consanguínea ou por alianças e relações fictícias” (LEVI, 2000, p. 98-99).

A centralidade que assumem as relações para além da consanguinidade enquanto definidoras da família, também são observadas por Marta Hameister, que afirma a necessidade de tratar a família “de um modo mais dinâmico, dotado de movimento, pois, qualquer definição que venha a defini-la, não pode, doravante, prescindir do termo ‘relação’ ” (HAMEISTER, 2006: 41). A historiadora conclui que, se a família constitui um conjunto de relações – e não sendo a relação algo estático –, mas sim mutável, também as famílias apresentam variações (HAMEISTER, 2006: 41).4 Assim, partido das inúmeras formas de composição familiar existentes no Brasil no século XIX, entendemos que: a) tanto consanguinidade quanto relações afetivas são elementos definidores da família, muitas vezes vinculados à co-residencia, mas não sempre; b) as relações familiares não correspondem a uma composição estática, estando sujeitas a modificações constantes.

Assim, uma segunda questão a ser considerada diz respeito à mutabilidade das relações familiares e ao fato de que estas não podem ser consideradas sempre como relações positivas. Neste sentido, Michel Bertrand afirma que é preciso levar em conta a evolução das relações familiares: buscar observar a passagem de relações familiares a não familiares, medir o impacto das rupturas e dos enfrentamentos entre o sistema relacional (BERTRAND, 2000: 71-72). Segundo Bertrand, supor que toda a relação familiar está imbuída de uma valoração positiva, pode levar os pesquisadores a ignorarem a força e frequência com que ocorrem os conflitos familiares.

Concordando com Bertrand, Jean-Paul Zúñiga afirma que, muitas vezes, relações familiares não funcionam como uma rede social, não havendo uma mobilização de todos os envolvidos na família em torno de um objetivo comum (ZÚÑIGA, 2000). Este autor

4 Apesar de a historiadora ter se debruçado sobre um período anterior ao nosso, consideramos as conclusões que chegou acerca da família ainda válidas no final do XIX.

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considera a própria utilização do termo estratégia familiar como problemática e apresenta três razões para tal. A primeira está relacionada ao fato de que “La palabra estrategia presupone la existencia de un consenso tácito sobre una supuesta estrategia familiar”, ou seja, um envolvimento de toda uma família, inclusive em casos em que o fim desejado pressupõe o envolvimento de mais de uma geração, de modo que existe a necessidade de alguém coordenar os esforços de todo o grupo familiar, sendo que em alguns casos é apenas um indivíduo deste grupo que capitaliza os ganhos imediatos.

A segunda razão está no fato de que o termo estratégia cobre práticas e comportamentos muitas vezes diversos e contraditórios. Neste caso, por exemplo, o investimento de parte significativa do capital com o fim de beneficiar um indivíduo da família, afetando à própria economia familiar, põe em dúvida ser esta uma estratégia coletiva de fato. E, por fim, assim como Bertrand, Zúñiga destaca que o conceito de estratégia familiar supõe que os laços de parentesco são relações positivas por definição, o que não corresponde à realidade se considerarmos episódios de assassinatos familiares e litígios por sucessões (ZÚÑIGA, 2000). Neste mesmo sentido, Martha Hameister, ao atentar para a questão da família no século XVII, já observou que:

Havia, portanto, também internos a essas famílias, tensões e conflitos de interesses que tiveram que ser administrados, combatidos, elididos ou dissimulados para que, essa estrutura familiar se preservasse, assim como também se preservasse a própria existência dessas famílias (HAMEISTER, 2006: 40).

Uma terceira questão relativa ao conceito de família refere-se à relação laços familiares e redes de poder. Segundo Bertrand, um problema que surge quando se toma o grupo familiar como centro dos estudos acerca das relações mantidas pelos indivíduos é que a centralidade com que são encaradas as relações de âmbito familiar impede, muitas vezes, que sejam vistas aquelas que se dão fora do âmbito familiar, e que são até mais importantes e duradouras que as primeiras (BERTRAND, 2000). O problema, portanto, no caso das análises que buscam identificar o funcionamento de redes sociais, está menos no modelo de família de que parte a análise e mais na centralidade que lhe é conferida pelo historiador.

Neste sentido, cumpre destacar que a família é entendida, em nossa análise, não como uma rede social e de poder, mas sim como constituidora de redes. Esta diferenciação é fundamental e nela está intrínseca uma questão conceitual envolvendo laços e redes que não pode ser ignorada. Um laço – e, portanto, os laços familiares - remetem à estrutura de uma rede, ou seja, à dimensão morfológica da rede, e não à própria rede. Uma rede, ao contrário, mais do que a estrutura, é formada pela dinâmica que circula dentro da estrutura. Os laços passam a constituir uma rede no momento em que entre os sujeitos envolvidos cria-se um objetivo comum. Assim como as relações, as redes são mutáveis, e muitas, inclusive, sobrevivem por um período limitado, até que o objetivo motivador de sua criação tenha sido atingido. Assim, nem todo o laço se traduz em relação e, portanto, em rede.

Se nem todo o laço se traduz em rede, tal não significa que estes devam ser ignorados como mecanismos de constituição e funcionamento das redes. A família, enquanto tipologia de laço, segue sendo espaço fundamental para que se concretizem as relações, como demonstramos neste artigo, mas não pode ser tomada como única e central. Ela divide importância com uma série de laços e relações de distinta natureza que são constituídas entre indivíduos. Relações de trabalho, relações clientelísticas, relações de amizade, de sociabilidade ou por interesses específicos tornam possíveis, juntas, a constituição de redes sociais, mobilizadas em favor de um dado objetivo.

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Fontes para o Estudo da Família

Grande parte dos estudos sobre família tem nas fontes eclesiásticas – especialmente registros paroquiais de batismo e matrimônio – a base de suas análises. Nossa análise, porém, não utilizou registros paroquiais. Certamente as informações obtidas através destes registros poderiam ter auxiliado na identificação dos vínculos matrimoniais dos indivíduos e das famílias em estudo, bem como das estratégias por eles intentadas para a obtenção de sucesso no campo econômico e político. Entretanto, a análise das estratégias matrimoniais que aqui apresentamos deriva de uma pesquisa mais ampla sobre a atuação política da elite municipal. Nesta análise maior, os documentos prioritários eram os de âmbito administrativo do poder municipal (especialmente da Câmara Municipal), sendo que o estudo das relações familiares foi um esteio, um olhar complementar, que não poderia ser ignorado, mas para o qual não dispúnhamos de tempo suficiente para abarcar uma maior quantidade de fontes. Assim, o levantamento das relações familiares baseou-se nos documentos utilizados na análise geral, como listas de qualificação de votantes (onde consta a filiação dos votantes), mapas de população, inventários, além dos levantamentos genealógicos realizados por Carlos Hunsche e Maria Astolfi (HUNSCHE; ASTOLFI, 2004; HUNSCHE, 1975; HUNSCHE, 1977) , bem como a compilação dos Livros de Registros da Comunidade Evangélica de São Leopoldo, disponível no CD-ROOM organizado por Martin Dreher (2003). Deste modo, as informações que possuímos acerca das relações familiares da família Trein – assim como ocorreu em relação a outras famílias da elite política caiense analisadas na Dissertação de Mestrado – estão condicionadas às fontes que consultamos.

Mesmo que as fontes utilizadas limitem o universo de informações acerca das famílias, o presente artigo demonstra que uma análise da família é possível também por vias documentais alternativas às fontes eclesiásticas. Posto isto, nos concentremos nas alianças matrimoniais dos Trein em São Sebastião do Caí buscando identificar o papel e a importância política, econômica e social dos laços familiares no século XIX.

Selando alianças econômicas e políticas: o caso da família Trein

Francisco Pedro Trein partiu de Amsterdam em 25 de outubro de 1825 e chegou a São Leopoldo no dia 31 de dezembro daquele mesmo ano. No Brasil, casou-se, em 1847, com Catarina Kessler, também imigrante. Passou a residir na Linha do Hortêncio, onde abriu uma casa de negócios que, ao longo do século XIX, prosperou a ponto de tornar-se uma das maiores da região. O poder econômico de Trein advinha de seu sucesso no processo de inserção econômica local, do próprio desenvolvimento e integração da região à economia regional e das estratégias familiares perpetradas.

Empregamos o termo estratégia familiar na acepção utilizada por Giovani Levi para quem estratégia corresponde às ações dos indivíduos dentro de um universo de problemas, incertezas e escolhas com vistas a formar e transformar “as estruturas essenciais da realidade social” (2000: 45). Assim, as alianças matrimoniais tecidas pelos membros da família Trein são entendidas como utilização estratégica das normas sociais, qual seja o matrimônio. Apesar de não podermos, convictamente, afirmar que os casamentos dos membros da família Trein foram arranjados pelo patriarca – prática muito comum no século XIX, como observado por Mary Del Priori (DEL PRIORI, 2005: 157)5 – acreditamos que o patrimônio e os atributos

5 Segundo Mary Del Priori, “Com honrosas exceções em alguns grupos da elite, a mentalidade das relações familiares e sociais era profundamente marcada pelo ambiente rural que predominava até então. Uma rede de solidariedades, deveres e obrigações mútuas a consolidava. O consentimento dos mais velhos continuava abençoando as uniões e cabia ao pai decidir e determinar o futuro dos filhos sem lhes consultar, [...]” (DEL PRIORI, 2005: 157).

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políticos e sociais daqueles que ingressaram na família Trein pela via do matrimônio apontam para o empenho de Francisco Pedro Trein em dirigir as escolhas de seus filhos. O fato é que as uniões matrimoniais firmadas pela família Trein – e por tantas outras famílias – evidenciam o emprego de uma estratégia que visava, fundamentalmente, manter e ampliar seu prestígio, tanto em termos econômicos, quanto em termos políticos e sociais.

Nos centremos no primeiro aspecto observável entre os laços matrimoniais firmadas pelos filhos de Francisco Trein: os ganhos econômicos obtidos pela família Trein a partir das alianças matrimoniais.

No dia 2 de setembro de 1874, no então povoado de Porto do Guimarães6, segundo os registros da Comunidade Evangélica de São Leopoldo, ocorreu o matrimônio de Francisco Trein, então com 22 anos, terceiro filho de Francisco Pedro Trein e Catharina Kessler. Negociante como o pai, Francisco casava-se então com Margaretha Zirbes, 17 anos, filha de Guilherme Zirbes e Magdalena Müller. (LIVROS, [1874] 2003: 22). Uniam-se pela via matrimonial duas importantes famílias de negociantes locais: os Trein e os Zirbes. A união matrimonial entre Trein e Zirbes resultava em vantagens econômicas para as duas famílias. Francisco Trein era filho de um dos maiores negociantes da região, sendo evidente para os Zirbes que se o filho já seguia os passos do pai nos negócios, sucesso não lhe faltaria, e sua filha teria um bom futuro assegurado. Já o patriarca da família Trein parece ter buscado assegurar, através do casamento de filhos e filhas, uma espécie de sociedade comercial com potenciais concorrentes nos negócios. Do ponto de vista econômico, o casamento de Francisco Trein e Margaretha Zirbes não fugia à regra que orientou todos os demais casamentos dos filhos de Francisco Pedro Trein.

Júlio Trein casou-se, em primeiras núpcias, com Maria Cristina Schmitd, filha de João Jacob Schmidt, negociante em São José do Hortêncio. Já a filha de Trein, Maria Mathilda, contraiu matrimônio com João Jacob Schmidt Filho – outro filho do negociante João Jacob Schmidt – que se dedicava à mesma atividade econômica do pai. Outro importante negociante do povoado de São José do Hortêncio era Henrique Ritter. Filho do imigrante, vendeiro e cervejeiro Georg Henrique Ritter, Henrique era dono de uma importante casa de negócios, na qual funcionava também uma cervejaria e que, por vezes, era transformada em casa de baile. Com a família de Henrique Ritter, Francisco Trein também assegurou laços familiares. Felipe Carlos Trein, Christiano Jacob Trein e João Jacob Trein casaram-se com filhas de Henrique Ritter, respectivamente Guilhermina Ritter (segundas núpcias de Felipe Carlos), Elisabete Ritter e Carolina Ritter. Frederico Guilherme Trein, por sua vez, casou-se com a irmã de Henrique Ritter, Catarina. Já Frederico Trein uniu-se matrimonialmente com Carolina Noll, selando relações com a família Noll. Carolina era sobrinha de Pedro Noll, importante comerciante de Picada Feliz, distrito de São Sebastião do Caí. Ao final das contas, temos que pelo menos oito dos dez filhos de Francisco Pedro Trein firmaram laços com famílias de comerciantes do município, como demonstra o Diagrama 1. Apenas uma das filhas de Trein, Catarina Trein, manteve-se solteira, e outra, Amália Margarida Trein, casou-se com um lavrador, José Horn. Com essas uniões, as famílias envolvidas concentravam todo o capital econômico e simbólico que até então haviam acumulado nos novos casais que se formavam.7

6 São Sebastião do Caí era conhecido, ao longo do século XIX, pelo nome Porto do Guimarães, em alusão a uma das primeiras famílias que habitaram o local, a família de Antônio de Alencastro Guimarães.

7 Esta mesma interpretação já foi feita por Marcos Witt acerca do casamento de Carlos Frederico Voges Sobrinho e Philipina Risina Schmitt (WITT, 2006: 98).

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Diagrama 1 – Relações matrimoniais da família Trein com base no critério econômicoFontes: AHMBM: SÃO JOSÉ DO HORTÊNCIO (1879); SANTANA DO RIO DOS SINOS (1878); SÃO

SEBASTIÃO DO CAÍ (1890); APERS: Inventários de NOLL (1899), RITTER (1889), SCHMIDT (1890), SCHMIDT (1885), TREIN (1899), TREIN (1878) e ZIRBES (1915).

E, parece que esta estratégia matrimonial da família Trein se estendeu para a geração subsequente, como mostram alguns dos casamentos de filhos de Christiano Jacob Trein. Sua filha Catarina acabou casando-se com Frederico Mentz que, junto ao sogro, administrou a casa comercial que este herdara do pai. Outra filha de Christiano Trein, Matilda Trein, casou-se com Antônio Jacob Renner (A. J. Renner). Filho de Jacob Renner e Clara Fetter, moradores do distrito caiense de Picada Feliz, A. J. Renner trabalhou, inicialmente, com seu pai, na fábrica de banha que este possuía e, em seguida, em Porto Alegre, na Joalheria Foernges. Aos 18 anos transferiu-se para o município de São Sebastião do Caí, abrindo sua própria ourivesaria. Em 1905, após casar-se com Matilda Trein, tornou-se sócio de seu sogro, e seis anos depois, sócio do empreendimento têxtil Frederico Engel & Cia, que acabou tornando-se a empresa A. J. Renner & Cia., transferida em 1914 para Porto Alegre (REICHEL, 1978: 41).

Se, como ficou evidenciado, Francisco Pedro Trein foi um grande comerciante em São Sebastião do Caí, transferindo para sua família este capital econômico, por outro lado ele representou importante força política no município. Liderança do partido Liberal desde o tempo em que o povoado em que residia pertencia ao município de São Leopoldo, Trein envolveu-se de forma ativa no processo eleitoral de 1875 que escolheria os componentes da primeira Câmara Municipal de São Sebastião do Caí, município criado naquele mesmo ano.

Naquela primeira eleição municipal, Francisco Trein, Juiz de Paz de São José do Hortêncio, presidiu a mesa eleitoral daquela paróquia, sobre a qual recaíram acusações de irregularidades que acabaram por levar à anulação do pleito. A esta atuação ativa de Trein no primeiro pleito municipal contrasta o seu suposto desaparecimento da política municipal no período subsequente. A pergunta que então passamos a fazer é: o que explica o desaparecimento de Francisco Trein da vida política local? Em busca de respostas, interessamo-nos por mais

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aspectos da vida deste imigrante e de sua família. As informações colhidas levaram-nos a questionar o desaparecimento de Trein da vida política de São Sebastião do Caí. A análise dos laços familiares estabelecidos pelos membros da família Trein revelou que Francisco Trein não abriu mão de participar da política local. Entretanto, não o fez diretamente, mas sim através de familiares, de modo que não foram somente interesses econômicos que parecem ter motivado as uniões matrimoniais na família de Francisco Pedro Trein, mas também interesses políticos.

Como podemos perceber, a família Trein firmou importantes relações políticas através da estratégia matrimonial familiar. Dos 10 filhos de Francisco Pedro Trein, oito se casaram com membros de outras famílias de prestígio que ocuparam cargos na Câmara Municipal de São Sebastião do Caí, como demonstra o Diagrama 2.8

Diagrama 2 – Relações matrimoniais da família Trein com base no critério políticoFontes: AHMBM: SÃO JOSÉ DO HORTÊNCIO (1879); SANTANA DO RIO DOS SINOS (1878); SÃO

SEBASTIÃO DO CAÍ (1890); APERS: Inventários de NOLL (1899), RITTER (1889), SCHMIDT (1890), SCHMIDT (1885), TREIN (1899), TREIN (1878) e ZIRBES (1915).

8 Entendemos que a presença na Câmara Municipal se constituía em meio de expressão do prestígio que dado indivíduo possuía ante os demais membros da sociedade. O poder simbólico de que nos fala Bourdieu, ou seja, o poder que dissimula a violência que é intrínseca a toda forma de poder (BOURDIEU, 1990: 194), é o poder da representação, ou seja, o poder que dado indivíduo – mandante ou representante – possui para falar e agir em nome de uma coletividade – mandatários ou representados (BOURDIEU, 1990: 189). No artigo A delegação e o fetichismo político (1990) Pierre Bourdieu aborda a ilusão que se instala quando o poder do mandatário, do representando ou porta-voz é considerado pelos representados e por si próprio como causa sui, ou seja, quando não é mais possível identificar o lugar de onde emana o poder na relação circular entre representantes e representados, quando não é mais possível saber se o grupo existe porque existe o representante ou se o representante existe em função da coletividade que representa. Segundo o sociólogo francês, “em aparência o grupo faz o homem que fala em seu lugar, em seu nome – este é o pensamento em termos de delegação –, ao passo que na realidade é quase tão verdadeiro dizer que é o porta-voz quem faz o grupo. É porque o representante existe, porque representa (ação simbólica), que o grupo representado, simbolizado, existe e faz existir, em retorno, seu representante como representante de um grupo” (BOURDIEU, 1990: 189, grifos do autor).

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Três dos filhos de Francisco Trein – Felipe Carlos Trein, Christiano Jacob Trein e João Jacob Trein – como já apontamos, casaram-se com filhas de Henrique Ritter. Estas eram não somente filhas de um grande comerciante de São José do Hortêncio como também irmãs de Henrique Ritter Filho, vereador em São Sebastião do Caí no período 1887-1890. Já Catarina Ritter, esposa de Frederico Guilherme Trein, era tia do mesmo Henrique Ritter Filho. Francisco Trein Filho, por sua vez, casou-se com Margarida Zirbes, filha do vereador Guilherme Zirbes (formação camarária 1881-1882), ao passo que Júlio Trein, contraiu matrimônio, em primeiras núpcias, com Maria Cristina Schmidt, filha de João Jacob Schimdt Filho, vereador em São Sebastião do Caí nos períodos 1877-1880 e 1881-1882. Outro filho do vereador Schmidt, João Jacob Schmidt Filho casou-se com Maria Mathilda Trein. Ainda entre os filhos do patriarca Trein, foi Frederico Trein quem contraiu matrimônio com Carolina Noll, sobrinha do vereador Pedro Noll, que exerceu o cargo, no período imperial, na composição camarária dos anos 1883-1886 e, no período republicano, em 1896-1900.

Não estamos supondo aqui, através do estudo de caso da família Trein, que as relações entre os integrantes da família Trein eram relações características de uma família patriarcal, no sentido de que as relações eram pautadas em uma “submissão constante e necessária de todos os membros a um chefe com poderes senhoriais” (HAMEISTER, 2006: 41). Consideramos, antes, que esta foi uma estratégia utilizada pela família Trein dentro de um contexto possível, no sentido de uma racionalidade limitada tal qual Levi a caracteriza (LEVI, 2000). Lembremos, por exemplo, que, como elite, tais famílias muito provavelmente frequentavam os mesmos locais de sociabilidade, mantinham relações mais próximas, o que aumentavam as chances de união entre si, união esta que, possivelmente, lhes pareceu vantajosa. Além do mais, não se deve desconsiderar o importante papel que a família assumiu para os imigrantes. Para Cacilda Machado, o ato de imigrar conferiu à família o importante papel de mediadora das relações do indivíduo com o meio social (MACHADO, 1997). Assim, torna-se mais compreensível o sentido da estratégia matrimonial dos Trein, enquanto uma estratégia familiar e não individual.

É inegável, através do caso analisado neste artigo que, para as famílias envolvidas nas uniões matrimoniais, o casamento constituía-se na consolidação de alianças e solidariedades que permeavam o campo econômico, político e social. Neste mesmo sentido, Mary Del Priore observa que, no século XIX,

Apesar dos espaços de encontros se terem multiplicado, embora jovens pudessem se conhecer, trocar emoções e mesmo “namorar” – palavra que não tinha, na época, o mesmo sentido que lhe emprestamos mais tarde –, os motivos do casamento continuavam a passar longe do coração. [...], nas classes média e alta rígidos códigos barravam a espontaneidade dos gestos (DEL PRIORI, 2005: 156).

Isto, no entanto, não significa afirmar que todos os casamentos eram arranjos baseados em uma racionalidade que buscava auferir sempre as maiores vantagens possíveis. Marcos Witt bem observou que “Todavia, as famílias não eram exclusivamente manipuladas por interesses materiais” (WITT, 2008: 85), existindo a possibilidade de uniões virem a ser realizadas puramente por sentimentos afetivos.

Ainda é possível perceber, ao analisamos as famílias com as quais os Trein teceram alianças matrimoniais, que todas eram famílias de origem germânica. O próprio Francisco Pedro Trein casou-se com Catarina Kessler, também imigrante. Seus filhos uniram-se matrimonialmente com Ritter, Schmidt, Horn, Zirbes e Noll. Tal constatação leva-nos a pensar que existia uma preferência, no caso da família Trein, por casamentos com famílias de imigrantes teutos. Este dado corrobora o que Cacilda Machado já observou para o caso dos laços matrimoniais dos Strobel, família estabelecida em Curitiba (PR) desde 1854. A partir do estudo de caso da família Strobel, Machado analisa as formas de sociabilidade

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postas em prática por imigrantes alemães luteranos e seus descendentes, atentando para as estratégias matrimoniais e o perfil profissional dos membros desta família, demonstrando que, de uma geração a outra, a sociabilidade foi essencial para alterar a tendência das escolhas de cônjuges. Assim, se para a primeira geração dos Strobel, Machado observa que foram os vínculos profissionais os viabilizadores de uma endogamia étnica absoluta, na segunda geração estes vínculos deixam de ter tanto peso e a manutenção da endogamia étnica passa a ser sustentada pela “ampliação da rede de relações sociais, via parentesco, vizinhança e laços de amizade”, decorrentes do fato de que, diferentemente do que ocorreu com a primeira geração, estes já se encontravam estabelecidos no novo país e integrados a um meio urbano. Mas é necessário destacar que, mesmo diante dos diferentes condicionantes determinantes para definir o padrão de união matrimonial observada para cada geração, Cacilda Machado destaca a predominância dos casamentos dentro da mesma procedência. Segundo a autora, até 1939, “as porcentagens relativas aos casamentos intra-étnicos eram sempre superiores a 80%” (MACHADO, 1997).

Para o caso de São Sebastião do Caí é importante ressaltar, porém, que esta endogamia não foi um recurso utilizado somente por imigrantes germânicos e seus descendentes, mas também por luso-brasileiros. É o caso, por exemplo, da família Guimarães em São Sebastião do Caí. Todas as uniões matrimoniais firmadas pelos filhos de Antônio José de Silva Guimarães Júnior se deram com membros de famílias luso-brasileiras: Cardoso, Nogueira e Souza.

Considerações finais

Através da análise dos vínculos matrimoniais da família Trein identificamos algumas tendências de união matrimonial possíveis para as famílias de elite. O casamento dentro de um mesmo grupo profissional e de origem, bem como no interior de um mesmo círculo de famílias com acesso ao poder parece ter sido predominante. Assim, a motivação das uniões matrimoniais não se limitou apenas a aspectos econômicos, sendo fundamentais os ganhos sociais e políticos que destas poderiam derivar.

A partir das discussões propostas sobre o conceito de família aplicável ao século XIX no Brasil e da análise das alianças matrimoniais da família Trein percebe-se que, para a elite caiense, o casamento constituía um empreendimento familiar mais do que uma conquista individual. E, neste sentido, representava a porta acesso para o controle do meio político, econômico e social no qual a família estava inserida.

FONTES DOCUMENTAIS

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