Fazer Corpo Lea

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    FAZERCORPONADURAODOFAZERCORPO

    Fazer corpo na durao do fazer corpo1

    La Freitas Perez*

    I

    Fazer corpona durao pode ser tomado como uma espcie de frmulade apreenso das procisses, no geral, e em Portugal no particular. Duraoporque remete a uma hi[e]stria longa de sculos e de sculos2. Fazer corpoporque operar ligaes seu intento e feito fundamental3.

    Alm disso, como aplicada maussiana que sou, sigo o mestre que sempredizia ser a questo fundamental das cincias sociais entender a sociedade,e a sociedade aquilo que faz corpo. Sociedade, no plano institucional enormativo, corpo constitudo por regras e por prticas que s fazem sensose demandarem e gerarem emoes e sentimentos epifanizados nos corposde seus membros. Falo em fazer corpo tambm porque uma procisso um cortejo de corpos individuais, marchando corpo a corpo, criando umcorpo coletivo. Corpos em desle, constituindo um corpo processional.Um corpo constitudo de vrios corpos, que se ligam por sentimentos e poremoes comuns. Um corpo emocional, comunidade emocional em termosweberianos, dir-se-ia. Uma corporao: corpo/corao em ao. Corpo-r-ao/Cor-p-ao.

    Faz corpo tambm porque em se tratando de procisso do catolicismo,no se pode desconsiderar que esta religio, como bem nota Manuel Clemente(2006, p. 223), desde o seu comeo, se ligou corporizao (incarnao) da

    Palavra divina (Verbo, Logos) e ao sinal deste mesmo corpo oferecido portodos como alimento perptuo que assimila a si os que o recebem, fazendode todos eles um s corpo tambm.

    Corpo posto e reposto a cada rememorao do clebre trecho doEvangelho segundo So Joo:

    *Doutora em Antropologia Social e Etnologia pela cole des Hautes Etudes en SciencesSociales. Professora Associada do Departamento de Sociologia e Antropologia daFaculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG). Endereo:

    [email protected]

    A R T I G O

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    No princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verboera Deus. Ele estava no princpio com Deus. odas as coisas foramfeitas por intermdio Dele, e sem Ele nada do que foi feito se fez.E o Verbo se fez carne, e habitou entre ns, cheio de graa e de

    verdade, e vimos a Sua glria, como a glria do unignito do Pai(1, 1-14, grifos meus).

    Igualmente trecho de So Paulo na Primeira Carta aos Corntios:

    Eu recebi do Senhor o que tambm vos transmiti. O Senhor Jesusna noite em que era entregue, tomou o po e, tendo graas, partiu-oe disse: Isto o meu corpo, que para vs; fazei isso em memriade mim. Do mesmo modo, depois da ceia, tomou o clice disse:

    Este clice a nova Aliana no meu sangue; fazei isto sempreque o beberdes, em memria de mim. Porque, todas as vezes quecomerdes deste po e beberdes deste clice, anunciais a morte doSenhor, at que Ele venha(1 Cor 11, 23-24, grifos meus).

    Os apstolos esto a nos re-lembrar que quem adere ao Senhor, faz-seum corpo espiritual com Ele pela participao de um mesmo po eucarstico,mesmo po que faz de todos que o ingerem um s corpo, base da doutrina

    paulina da Igreja como Corpo de Cristo4.Eis o ncleo duro do fundamento, isto , o corpus mtico-mstico-

    ideolgico do cristianismo: um deus que se faz corpo (kenosis) e que d seucorpo em sacrifcio (ddiva oblativa de si) para a salvao da humanidade,para sua redeno5.

    II

    Um primeiro ponto que articula a durao em termos de diacronia e desincronia o calendrio, que pode ser denido como um corpusde ndices/marcadores que pontuam a durao na forma de sequncias ordenadas deunidades de durao, geralmente associadas a fenmenos e/ou acontecimentos,sobretudo de natureza festiva6.Pode-se, pois, dizer que o calendrio umadas formas de expresso e de veiculao do fazer corpo.

    O ano litrgico do catolicismo romano toma como unidade de durao avida de Cristo, tendo como ndices/marcadores fatos e episdios a ela ligados,

    desde sua encarnao no seio da Virgem Maria, passando pelo seu nascimento,sua paixo, sua morte, sua ressurreio, culminando com sua ascenso e coma vinda do Esprito Santo. Manuel J. Barros (2007, p. 53) diz mesmo que o

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    ano litrgico simplesmente a pessoa de Jesus Cristo e Seu mistrio celebradosacramentalmente como memria, presena, profecia. Seus dois eixosestruturantes so o Natal (festa xa) e a Pscoa (festa mvel, porque baseada nocalendrio lunar de origem judaica, de onde a Pscoa originria)7.

    A data da Pscoa foi xada no primeiro Conclio de Niceia (325), atofundante da Igreja como corpus institucional, como membresia formalmentearticulada, numa deciso polmica, que equalizava todas as correntes crists.Polmica tambm devido perigosa coincidncia com as festas pags doincio da primavera.

    Este calendrio divide-se em tempos/ciclos litrgicos a que correspondemfestas xas ou mveis, dependendo de estarem ou no relacionadas Pscoa. Os

    tempos/ciclos litrgicos so: Advento, Natal, Quaresma, Pscoa, Pentecostese tempo comum8. Uma variante pode ser: Advento, Natal, Quaresma, rduoPascal, Pscoa e empo Comum.

    Quero destacar o tempo/ciclo da Quaresma, onde se insere uma dasprocisses aqui analisadas. A procisso dos Passos faz parte dos tempos/ciclosda quaresma, mais especicamente ainda do rduo Pascal, constituindo ocomplexo de procisses da Semana Santa, dentro dele, compondo o que se

    denomina de ciclo da Paixo e Morte9

    . Compe o corpusdas chamadas festasdo Senhor, nas quais se incluem tambm o Natal, a Epifania, a Pscoa, oPentecostes e o Corpo de Deus.

    A Quaresma um perodo de converso, de penitncia, de jejum, deesmola e de orao, que prepara o advento da Pscoa, a Ressurreio doSenhor. Comea na quarta-feira de cinzas, terminando na Semana Santa,que, por sua vez, comea no domingo de Ramos (domingo que antecede odomingo de Pscoa, portanto, sete dias antes) e termina no rduo Pascal,os trs dias formados pela quinta-feira santa, na qual se comemora a ltimaceia de Jesus, pela sexta-feira santa, rememorao da paixo e morte de Cristoe pelo sbado santo da viglia pascal, vspera da Pscoa. O rduo Pascalcorresponde Paixo e Morte de Jesus, que o ncleo duro da hi[s]tria cristda salvao, logo, pilar fundamental do corpusmtico-mstico-ideolgico dacristandade ocidental.

    A procisso do Corpo de Deus celebrada no 60 dia aps a Pscoa,

    ou mais exatamente na quinta-feira que se segue ao domingo da Santssimarindade, que, por sua vez, o primeiro domingo a seguir oitava doPentecostes.

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    III

    As dramatizaes rituais que fazem os corpusde memria desse corpusreligioso se do de modo exemplar na procisso dos Passos e na Procisso do

    Corpo de Deus, eventos de hi[e]stria longa, que sumarizo, por uma questode economia textual, na sequncia.

    Em termos estritamente litrgicos, est em foco na procisso dos Passos aPaixo de Jesus, seu calvrio rumo crucicao, logo, a consumao fsica deseu corpo humanizado, notadamente seu ltimo encontro com a me, razopela qual tambm pode ser chamada de procisso do encontro. De acordocom Lima (2001, p. 259-260), as procisses dos Passos desenvolvem-se sobum fundo de dor e de sofrimento, tocando as pessoas a partir daquilo que

    na vida encerra maior densidade, abrindo a porta aceitao da morte comolugar de transformao da vida, constituindo uma espcie de catecismoambulante. Catecismo, logo, verbo feito coletivamente e em espao pblico,nas ruas da cidade.

    Na solenidade do Santssimo Corpo e Sangue de Deus, ou festa doCorpo de Deus, da qual a procisso um momento pois que fazem tambmparte dela a missa e a cerimnia de adorao do santssimo sacramento , est

    em foco o mistrio da eucaristia, uma vez que rememora a presena real doCristo no po consagrado, na sacrossanta hstia.

    A procisso dos Passos, em termos de dramatizao ritual, um cortejopblico de is, que revivem as etapas da Paixo de Cristo, distribudos naforma de sete passos que correspondem a alguns dos episdios do caminhodoloroso de Cristo entre o Pretrio e o Calvrio10. Liga-se a devoo aoSenhor dos Passos, que remonta Idade Mdia, especialmente aos cruzados

    que, tendo visitado os locais sagrados percorridos por Jesus a caminho domartrio, quiseram, quando de volta Europa, re-produzir espiritualmenteesse caminho sob a forma de dramas sacros, de procisses, de ciclos demeditao, ou estabelecendo capelas especiais nos templos (os passos).

    O cortejo variou ao longo dos tempos, mantendo, no entanto, algunselementos xos, como por exemplo, os andores do Senhor dos Passos ede Nossa Senhora das Dores, o estandarte com a sigla S. P. Q. R. (SenatusPopulus Que Romanus), a ala de anjos que transportam os instrumentos datortura, a Vernica, a Madalena, a cruz processional, as irmandades, com seusestandartes e suas opas caractersticos, as autoridades eclesiais.

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    A festa do Corpo de Deus , em termos de formatao ritual, muitomais complexa e elaborada do que a procisso dos Passos, dotada, comoreferem inmeros autores, de um dos mais belos ofcios litrgicos, de cujacomposio foi incumbido Santo oms de Aquino por Urbano VI, o Papa

    que a instituiu para toda a Igreja, em 1264, pela bula Transiturus, emboraj tivesse sido adotada pelo bispo de Lige em sua parquia, em 1230, sobforma de procisso eucarstica apenas dentro da igreja, ganhando as ruas em1247, j como festa da diocese.Foi conrmada por Clemente V, em 1311, noConclio de Viena. A conduo em cortejo pblico do Divino Sacramento,ou seja, a procisso eucarstica, foi determinada por Joo XXII, em 1316. uma festa de preceito, isto , de carter obrigatrio para os is. Articula-se

    em torno da adorao da sagrada eucaristia, conduzida em triunfal prstitopblico, sob o plio, depois de missa solene e de adorao do santssimosacramento. Em outros termos: a comunho eucarstica na ceia do Senhorpela transubstanciao do corpo e do sangue de Jesus na hstia consagrada11.

    Da perspectiva teolgica, a procisso dos Passos e a do Corpo de Deusepifanizam em praa pblica, e de modo coletivo, a passagem do transitrioe do efmero (a vida terrena da humanidade e o tempo cronolgico) aopermanente (a vida/pscoa eterna ao lado do Deus pai todo-poderoso e otempo kairtico), assim como a passagem da cidade dos homens cidadede Deus, favorecendo a experimentao do dom ablativo do amor e do seuencontro derradeiro.

    O complexo processional da Semana Santa em Portugal central, sejana longa durao da hi[e]stria do catolicismo romano, seja na hi[e]stria dePortugal. e no qual se encontra, como nota Antnio Cames Gouveia (2001,p. 71), uma maior densidade processional num tempo limitado de dias,

    tentando cobrir quase que teatralmente todo o acontecer do nal da vida deCristo em Jerusalm e com todas as variaes temporais e regionais, tendona procisso dos Passos, depois da do Corpus Christi, a de maior capacidadeevolvente das populaes.

    Das procisses dos Passos, a que marcou poca em Lisboa foi a doSenhor Jesus dos Passos da Graa, caracterizada como procisso ao mesmotempo aristocrtica e popular (SOARES, 1994, p. 781). Data de 1587,

    havendo duas verses para sua constituio. Uma delas diz que o culto quedeu origem procisso do Senhor dos Passos da Graa remonta a 1586,quando Lus Alvarez de Andrade, pintor de arte, ante a impossibilidade de

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    fundar, em So Roque, uma confraria em devoo Santa Cruz de Cristoobteve autorizao dos religiosos do Convento da Graa, para ali dar incio obra com que, decerto, h muito sonhava (COSA GARCEZ, 1963, p.45). A outra verso a de Frei Jos de Santo Antnio, que reclama para seu

    confrade Frei Domingos de Azevedo a instituio em 1584 da procisso noreino, trazida de Sevilha (Idem, ibidem). Garcez nota que no h dvida noque concerne inuncia de Sevilha, mas que subsistem dvidas quanto aoseu instituidor em Portugal (idem, p. 43). Ressalta ainda que iniciada comtanto fervor, a irmandade de Lus Alvarez foi, de ano a ano, tomando vulto,chegando ao nal do sculo XVII, como a procisso preferida dos habitantesda capital, no s pela qualidade dos seus irmos, como pelo esplendor do

    culto divino, nas palavras do padre Ernesto Sales, o grande historiador/cronista desta procisso (Idem, ibidem).

    Costa Garcez observa:

    (...) atravs dos tempos a procisso teve mais ou menos sempre omesmo aspecto. Apenas por muitos anos se conservou o hbito dena sua frente seguir enorme cortejo de penitentes que se agelavam,o que levou a irmandadea criar um recinto prprio para, recolhido

    o cortejo, se tratarem os penitentes, o qual cou conhecidopor casa da cura que, por sinal, bem bom dinheiro custou emmedicamentos e ligaduras (Idem, p. 49, grifos do autor).

    Sobre a popularidade e importncia dessa procisso, no sculo XIX, dizEga, uma das personagens de Os Maias, em meio a uma acalorada conversasobre um sarau potico: h duas coisas que necessrio ver em Lisboa... umaprocisso do Senhor dos Passos e um sarau potico! (EA DE QUEIRS,

    2000, p. 133).Portugal foi um dos primeiros pases a adotar a festa do Corpo de Deus,

    embora no haja concordncia em relao data (e ao soberano a institu-la).Encontrei trs referncias de reis que a teriam introduzido: D. Afonso III,em seus ltimos anos de reinado, mas sem procisso; D. Dinis, por volta dadcada de 1290; no reinado de D. Joo I h notcias de sua celebrao j soba forma processional. Seja como for, no h dvida de que se transformouem procisso real, com o rei em pessoa, segurando as varas do plio queconduzia a custdia com o santssimo sacramento nas mos do patriarca, ecom a presena de toda a corte. Sob a monarquia toma a dimenso de ato

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    ocial mais solene do ano; era a procisso das procisses, servindo de modelos demais, o que no de se estranhar, uma vez que festa exitosa; e este nitidamente o caso da procisso do Corpo de Deus: aquela que cadencia avida das gentes a ela afeitas. Diz Gouveia (2001, p. 70) que era modelar de

    todas as outras, tendo capacidade arquetpica. Um exemplo digno de nota a procisso que se fez, por ordem de D. Manuel I, em 1505, em honra deDuarte Pacheco, imitando o cerimonial usado na de Corpo de Deus.

    Variou substancialmente ao longo dos sculos, de acordo comconjunturas polticas sendo, muito provavelmente, a solenidade que maisregimentos e instrues rgias e camerrias ensejou , indicando os usos e oscostumes, os modos de vestir, as obrigaes de cada corporao de ofcio que

    dela participava com suas bandeiras e suas insgnias, alm da ornamentaoda cidade12.

    Mesmo com grandes variaes, um elemento permanente: o prstitopblico a mesclar admiravelmente o religioso e o secular, promovendo umainequvoca associao com a cidade, com o corpusurbano, de ntido acentocvico13. Com sua sagacidade nica, Jos Saramago (2010, p. 213) descreve,com mincia etnogrca exemplar, uma procisso do Corpo de Deus emLisboa e, l pelas tantas, diz: Anda o Corpo de Deus passeando-se na cidadede Lisboa.

    Uma particularidade portuguesa a presena no prstito, por ordemde D. Joo I, de So Jorge, que gura no cortejo pela primeira vez em 1387,vestido de ferro e montado a cavalo com seu imponente e numeroso estado14.O rei teria invocado o santo guerreiro na batalha da Aljubarrota, prometendoreedicar o castelo de Lisboa, sob sua invocao. A associao com o santo eratal que frequentemente era chamada de Procisso de So Jorge. No reinado de

    D. Joo II, se institui a bandeira/estandarte de So Jorge, composta pelos corpusde ofcios que trabalhavam com ferro e fogo, cujas corporaes e confrariasparticipavam da procisso, donde a associao da procisso aos os ofciosurbanos. Est documentada, por exemplo, a presena de 42 corporaes deofcio na procisso de 1538 (ARCHIVO PIORESCO, 1860, p. 110). Em1719, participaram do prstito 110 confrarias e 2.500 irmos do Santssimo(idem, p. 729). Foi a mais aparatosa procisso de Corpus Cristhique se fez

    em Portugal e talvez no mundo inteiro (DAMIO PEREZ, 1967, p. 562).Igualmente notvel a de 1582, feita em ao de graas pela vitria alcanadasobre a armada francesa (idem,p. 562). Outros destaques do prstito eram o

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    homem de ferro, que desempenhava o papel de alferes de So Jorge, trajandoarmadura e empunhando a bandeira real, e os pretos de So Jorge, quetocavam tambores, clarins e charamela.15

    rata-se, assim, de uma festa do poder e de poder, facilmente aproximvelna sua lgica de desle da viso corporativa da sociedade (GOUVEIA, 2001,p. 68). Poder que sai rua organizado em procisso, em corpo processional,como encenao integradora de uma comunidade, dando em exposio asua prpria estrutura num ritual anamntico de assimilao (LIMA, 2001,p. 254). Mas no era s da encenao dos poderes eclesiais, monrquico e civisque a festa se compunha. O povo l estava, com seus corpos em festa: danas,folguedos, momices, jogos, justas, cavalhadas, touradas, e at gigantones

    danando frente do plio. Uma grande festa profana, com ntidos arescarnavalescos e pagos, que muitas polmicas e proibies ensejou.

    Sobre a procisso do Corpo de Deus e o lugar de destaque que ocupouno cerimonial a sociedade de corte, diz Fernando Antnio Baptista Pereira:

    (...) as festas do calendrio litrgico e as festas do poder, bemcomo os festejos populares que muitas vezes as acompanham,como os jogos e as touradas, pontuam o quotidiano da cidade,

    dando sentido teatral ao seu espao urbano, ao mesmo tempo quereforam a ascenso da imagem da corte como instncia supremade deciso e, doravante, smbolo exclusivo do poder de governaros homens, s disputado pelo poder da igreja sobre as conscincias(PEREIRA, 1994, p. 349).

    O Corpo de Deus teve grande importncia no pas todo, mas no Portoe especialmente em Lisboa, que se revestiu de imponncia jamais igualada.

    H quem diga mesmo que a procisso mais antiga de Lisboa, a maisdeslumbrante, aparatosa, imponente e luxuosa de quantas procisses j sefez na cidade, nela tomando parte tudo o que havia de mais representativona sociedade do tempo (COSA FERREIRA, 1967, p. 1843). Seu picede esplendor o sculo XVIII, notadamente no reinado de D. Joo V, compompa e squito jamais vistos. William Beckford, que dela participou em 7de junho 1787, qualica-a como pomposo festival (BECKFORD, 2009,p. 53). A duquesa de Abrantes participou de uma, em 1805, e testemunha:

    sabido que o Corpo de Deus em Lisboa uma festa desconhecidaem qualquer outro pas. uma teoria pag; uma cerimnia

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    fabulosa, fantstica de riqueza e de prodgios. Assisti a ela quandoo prprio Rei conduzia a procisso, ajudado por monsenhorSo Jorge, montado num magnco cavalo (DUQUESA DE

    ABRANES, 2008, p. 41, 42).

    Diz ainda que nos dias da procisso do Corpo de Deus, na rua Augusta,na rua da Prata, na rua do Ouro, por onde passava o prstito ento, todo oluxo do Oriente a exibido (Idem, p. 24). Muito luzio de ouro, de prata, depedras preciosas e de seda.

    Festa de vultosos custos, sob a responsabilidade da cmara municipaldesde os ns do sculo XIV at comeos do sculo XIX. A cmara obrigavaos moradores a enfeitarem suas janelas com vistosas colchas. As ruas por

    onde passava o prstito eram varridas e cobertas de areia, junco e espadanas,costume que veio at o sculo XIX. Sobre a decorao da cidade para a festa,diz Beckford:

    (...) descobrimos casas, lojas e palcios, tudo transformado empavilhes e armado de alto a baixo de damasco vermelho, detapetes de variegas cores, de colchas de cetim e de cobertas de camafranjadas de ouro. Julguei-me no meio do acampamento do gro-

    mongol! (BECKFORD, 2009, p. 53).

    A festa do Corpo de Deus foi realizada regularmente at 1910, sendointerrompida com o advento da repblica, quando se evidenciou, como nopoderia deixar de ser, um enfraquecimento geral das procisses, que foramretomadas sob o regime salazarista, que deu curso a um amplo processode recuperao/reapropriao das procisses, sobretudo as dos Passos e doCorpo de Deus, como grandes momentos ldico-profanos, envolvidos

    em atmosfera religiosa crist que se quer denitria da essncia da nao(GOUVEIA, 2001, p. 71).

    IV

    O que feito dessas procisses, hoje? S posso dizer do pouco que vi, doque testemunhei.

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    Da procisso dos Passos, pompa e gravidade, solenidade solenssima,encontrei apenas na procisso dos Passos da Irmandade do Senhor dosPassos de Santos-o-Novo, realizada no recolhimento de Santos-o-Novo, quepertence s Comendadeiras de Santos, da ordem de Santiago da Espada.16

    Ritual pesadamente barroco, de magnicncia nobre, rico, mas feito quaseque em privado, num ambiente fechado e por um pequeno grupo de pessoas,alis como sempre o foi. Era [e ] a procisso das dalgas, que contava coma participao de D. Amlia, muito elegante com o seu vestido de veludopreto e a mantilha de rigor, acompanhava no passo lento da procisso o andordo Senhor dos Passos (IGNOUS, 1916, p. 61). Fez-me voltar aos temposdo Antigo Regime.

    Nas ruas da Alfama e da Baixa-Chiado, testemunhei tambm rituais,solenes, mas sem luxo e sem pompa, mesmo simples, mas nos quais sobressaaa annima e exuberante experincia de f, na viva participao dos is. Opice emocional, particularmente na Alfama, acontecia no momento doencontro dos andores, roxo do Senhor dos Passos e azul de Nossa Senhora dasDores que, relativamente a todo o percurso processional, breve, brevssimo,mas que parece ter a durao da eternidade, da eternidade transitria davida, mas pleno de fuso comunial, do fazer corpo17. O destaque litrgico,diferentemente do que acontecia no passado, reca no sobre o lho, massobre a me, a gura protetora e auxiliadora de Maria, com seu manto azul,seu leno branco, seu corao transpassado pela espada encravada em seupeito, mas em gesto de acolhimento e de abrigo de todos os lhos, que ramoscada um ali presentes e todos ns, num s corpo.18

    Seja no Mosteiro seja nas ruas da Alfama, h que se destacar que noexiste mais o cortejo de penitentes que tanta fama trouxe procisso na

    Lisboa de antanho, o que certamente contribui para a diminuio do peso daencenao de que j foi revestida.19

    Quanto procisso do Corpo de Deus, antes do mais, preciso dizer quede todas das que participei era, juntamente com a de Santo Antnio, a quemaior nmero de pessoas reuniu. Mas, diferentemente da dos Passos, em quehavia uma ntida mistura entre o cortejo propriamente dito e os participantes,a ponto de em vrios momentos no haver quase distino entre o corpus de

    participantes-ociantes e o de participantes-assistentes, na do Corpo de Deus,grades separavam o povo do cortejo processional. Impecvel organizao emuita presena policial em todo o trajeto rigorosamente delimitado pelas

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    grades, impediam os transbordamentos e as misturas corporais que se davamna procisso dos Passos. A presena de autoridades civis e eclesisticas incomensuravelmente maior na do Corpo de Deus do que na dos Passos, o quetalvez indique uma ntida continuidade hi[e]strica, embora as personagens

    sejam outras, mantendo o acento no corpus poltico da cidade. O cortejo noCorpo de Deus ainda hoje, imenso, requer um grande servio de ordem comhomens de escuta para coordenarem a montagem do cortejo, com a corretaposio dos corpusdeslantes, hierarquicamente distribudos. A procisso dosPassos e a Via Sacra parecem nmas e ntimas diante de tal gigantismo. Nolugar das corporaes de ofcio, extintas em 1834, as inmeras irmandadescom cruzes processionais e estandartes, a guarda nacional a cavalo, abrindo o

    cortejo, o clero em toda a sua hierarquia; o plio e o santssimo sacramento; oexrcito. Mas sem So Jorge. E sem colchas nas janelas, uma ou outra apenas,como um corpus estranho, sem ornamentao das ruas, ruas com seus corposnus.

    V

    Dessa rpida e francamente incompleta retrospectiva do corpushi[s]trico das procisses lisboetas, quero destacar que, em termos decaracterizao sociolgica, a procisso dos Passos uma procisso religiosa emsenso estrito; j a do Corpo de Deus, embora tambm o seja, como procissoeucarstica , no entretanto, revestida de carter de prstito cvico-religioso(SOARES, 1994), sendo uma procisso concelho-religiosa (GOUVEIA,2001). Em termos litrgicos, a do Corpo de Deus trata da presena de Jesussacramentado, do corpo de Deus epifanizado na eucaristia, logo do poderda presena divina transubstanciada. Na procisso dos Passos, pressupe-sea presena do Deus feito homem que se d em sacrifcio, que a caminho damorte encontra sua me, logo sobre o amor e sobre a doao (o outro nomedo amor).

    Nas procisses mencionadas, o corpo membresia da Igreja do Cristoque est em ao; a ligao entre a divindade e o seu povo que se opera.Seja no ciclo quaresma-pscoa, sob a forma do supremo sacrifcio do lho

    de Deus que se fez homem, que tem seu ltimo encontro com a me, antesda morte do corpo fsico, que precede seu renascimento como corpo divino,que vai encontrar o corpo do Pai, que no se materializa. Um encontro de

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    amor, que marca o advento do derradeiro encontro com o Pai celestial. Umcorpo que se entrega para libertar o corpo humano do pecado. Um corpoque se transmuta, pelo sacrifcio da morte fsica, em corpo divino, fundidona Santssima rindade (Pai, Filho e Esprito Santo). Seja no Corpo de Deus,

    tanto na condensao do corpo divino na eucaristia, que chama para umencontro/comunho ntimos para quem o recebe sob a forma do mistrioda hstia consagrada, quanto em sua modulao portuguesa, que estendeesse corpo mstico ao corpo da prpria cidade, da prpria nao, ensejandoa ligao entre o corpusreligioso e a corpus poltico da comunidade humana.Em ambas, um corpo mstico que apela para a comunho entre o humano e otranscendente, que em Portugal, apela igualmente, no caso do Corpo de Deus,

    para a comunho humana entre o povo e o poder secular. Vrios corpos emproduo e em mistura: o corpo humano e divino do Cristo, o corpo eclesialda Igreja, o corpo cristo da sociedade, o corpo social da cidade, o corpoindividual de cada el. Corpos que se fazem e refazem, a cada procisso, acada ano e na durao. Corpos msticos (logo, sagrados), a servio de ummito religioso (a Igreja) e poltico (a cidade, a nao), que se produzem e re-produzem coletiva e publicamente (logo, sociais), em reunio extraordinriae especialmente consagrada (logo, em festa), em desle pblico pela cidade,

    no corao da cidade. Logo, bela e bem de festa, religio e de cidade de quese trata e de fazer corpo na durao do fazer corpo.

    Notas

    1 Este texto uma verso reduzida e modicada de um outro Passos de uma pesquisa nos

    passos das procisses lisboetas publicado em 2010.2 Grafo propositadamente assim para ressaltar o double bindque o tropo histria comporta esolicita como fato e artefato, evento e acontecimento, real factual e reconstruo imaginriae discursiva, para enfatizar igualmente que hi[e]strias puxam h[is]trias numa rede semm de remisses e de disseminaes. Double bind[duplo vnculo], como j disse em outrolugar (PEREZ, 2011) um tropo proposto por Gregroy Betenson em 1956, que se refere existncia de injunes paradoxais [aporticas], dupla postulao. Uso-o em sua acepoderridiana, que remete ao senso mesmo da diferena e da indeterminao no que tange soluo e ao fechamento de uma questo de pensamento, em uma s palavra: indecidibilidade.

    3 A expresso em francs faire corps indica, devido homofonia entre corps (corpo) ecoeur(corao), um potente double bindentre corpo e sentimento, agentes fundamentais emse tratando de festa.

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    4 Comentando a noo de participao em Marcel Mauss, diz Catherine Backs-Clment:A participao no somente uma confuso. Ela supe um esforo para confundir e umesforo para juntar; existe desde a origem a vontade de ligar (1990, p. 63, traduo minhado original em francs).

    5 Por fora da Encarnao redentora, todo o gnero humano, unido a Cristo como suacabea (Col. 1, 15 e ss.), tem por destino formar um s corpo com Jesus Cristo. A Bbliafala do corpo de Cristo em trs sentidos diferentes: corpo individual de Jesus, nascido deMaria; seu corpo eucarstico, sacramental, dado em alimento aos apstolos na ltima ceia;com o mandato de perpetuar tal mistrio; realidade do corpo de Cristo como igreja, ou seja,todos aqueles que participam deste corpo eucarstico de Cristo tornam-se membros de umnico corpo de Cristo: a Igreja (LIBNIO, 1967, p. 1844).

    6 Jos da Silva Lima (2001, p. 251, 252) diz mesmo que a festa uma espcie de relgioda cultura, as marcas festivas constituindo, no caso de Portugal, o epicentro em tornodo qual a vida ganha nimo: o Natal, a Pscoa e o santo padroeiro. Festas, notadamentereligiosas, marcam os tempos fortes, os momentos culminantes, as alternncias de ritmo ede intensidade da vida coletiva, a periodicidade das passagens, para tanto bastando citar osclssicos Arnold Van Gennep, Emile Durkheim e Marcel Mauss. Pode-se mesmo dizer afesta ritma o prprio calendrio, os dias comuns no passando de mero intervalo entre umafesta e outra. Dito de outro modo: os grandes marcos do tempo so festas, mas so marcosparadoxais, pois so simultaneamente temporais e fuga para o extra-temporal.

    7 A Pscoa judaica, Pessach, celebrada na primeira lua cheia da primavera do hemisfrionorte, na noite de 14 para 15 de Nis. A Pscoa Crist, no primeiro domingo posterior primeira lua cheia, ou seja, no primeiro domingo aps a comemorao da Pscoa dos judeus.O domingo de Pscoa varia entre 22 de maro e 25 de abril. Segundo . Gonalinho, durantemuito tempo foi a nica festa propriamente dita, a primeira das solenidades. Associadaposteriormente ao Pentecostes, compe com o Natal e com a Epifania, introduzidas maistarde, os dois focos de uma grande elipse, em torno dos quais gravita todo o ano ou ciclolitrgico, com suas diversas festas, do Senhor e dos Anjos (GONALINHO, 1969, p. 695).Caracterizando o ciclo anual do calendrio e sua relao com as festividades, Joaquim Paisde Brito observa que aos dois dos eixos de estruturao do tempo, e mais concretamente docalendrio o ciclo solar e o ciclo lunar sobreps-se e articulou-se um processo discursivode grande impacto, investido ao longo de sculos de cristianizao e que contribuiu para o

    modelo geral que o calendrio hoje nos apresenta, num pas catlico como Portugal, e quese traduziu na marcao de dois ngulos ou conjuntos de personagens fundamentais noOcidente cristo: o Cristo e a Virgem, por um lado, e por outro, o conjunto dos apstolos,dos mrtires e dos santos. Nessa reconstruo do tempo, nem sequer foi possvel incorpor-los atravs de um discurso autnomo ou qualquer eixo de estruturao que se autonomizasse.Pelo contrrio, h uma ntima imbricao em torno do ciclo lunar e solar: no caso do Cristo,a Pscoa, juntamente com o Natal, compe um ciclo de longa preparao.

    8 A literatura etnogrca menciona trs grandes ciclos festivos em Portugal, embora comfortes variaes regionais, mas todos ligados sazonalidade: o natal (ciclo do inverno), a

    pscoa (ciclo da primavera) e os santos padroeiros (ciclo do vero).9 A Pscoa, juntamente com o Natal, compe um ciclo de longa preparao. De acordocom Lima (2001, p. 259), a Quaresma faz a longa introduo a esta sequncia festiva

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    centrada na Pscoa: quarenta dias de preparao, que hoje no pesam o mesmo sobre asgeraes, mas persistem como enquadramento hermenutico do ciclo pascal; cinco semanase mais a Semana Maior (a Santa) que, de forma discreta, apresentam os motivos e enredamas comunidades numa simblica religiosa de paixo, de sofrimento e de metamorfose eque constituem uma espcie de captulos propeduticos aos rituais prximos que a todos

    congregam.10 No sculo XVI, foram xados 14 momentos principais deste trajeto, embora o nmerotenha variado de 7 a 39, chamados de as estaes ou de os passos da paixo de Cristo aolongo da via sacra ou via crucis. So eles: 1) condenao morte; 2) Jesus carrega a cruz scostas; 3) primeira queda; 4) encontro com a me; 5) Simo Cireneu ajuda Jesus a carregar acruz; 6) Vernica limpa o rosto de Jesus; 7) segunda queda; 8) encontro com as mulheres deJerusalm; 9) terceira queda; 10) Jesus despojado de suas vestes; 11) pregao na cruz; 12)morte na cruz; 13) descida do corpo da cruz; 14) sepultamento.

    11 A doutrina paulina da Igreja-Corpo de Cristo (corpus Ecclesiae) teve, como nota J. B.Libnio, grande ressonncia na patrstica, como, por exemplo, em Sto. Agostinho, quechama tota Ecclesia corpus (Christi)plenum, universum(In Ps. 68, sermo 1, n. 11, em P.L., 36, 850. In Ps. 130, n. 1, em P. L., 37, 1704). O que est em tela a relao estreitaentre a Eucaristia e o corpo de Cristo-Igreja. Sem negar a presena real, Sto. Agostinho eoutros padres insistem na unio real dos is entre si em Cristo, como fruto da participaoeucarstica. Esta unio forma o corpo de Cristo a Igreja , do qual, contudo, o corpoeucarstico penhor e sinal. A unio dos is com o Corpo Mstico funda-se na visibilidadedo corpo social da Igreja e nos laos interiores das virtudes teologais, na inabitao do EspritoSanto e na Eucaristia (1976, p. 1845, 1846).

    12 Segundo a Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira, guravam no cortejo, alm dojuiz do povo, os procuradores da cidade, vereadores, magistrados, titulares e homens emulheres de todas as artes e ofcios com insgnias, estandartes e emblemas ou alegorias dassuas classes. Eram os horteles do Restelo, de Alvalade, da banda Sul do ejo, de Valverde ede Alcntara, com grandes carros gurando as suas hortas com as noras e picotas, canteirose alfombres; eram os almocreves, os moleiros, os padeiros, os da chanfana, que bailavam emrodas de dois mascarados, ngindo de rei e de imperador (p. 728). E depois vinham osteceles e os peliceiros com a sua insgnia, um gato monts, a que chamavam o gato o paul;e os oleiros, telheiros e vidreiros, entre os quais diabos bailavam; e os merceeiros, taberneiros

    e boticrios conduzindo um gigante monstruoso; os sapateiros escoltando um drago; osalfaiates com uma serpente; os carpinteiros e os calafates com uma nau; os pedreiros com umacatapulta, os armeiros com um sagitrio; e pescadores, moedeiros, corretores, mercadores,tabelies, etc., e muitos desses homens e algumas mulheres de Vialonga de Frielas bailavamem honra de Deus e louvor de So Jorge (p. 728-729). Ainda mais tarde apareceram nocortejo os carniceiros com um touro preso pelas hastes, e como compensao religiosa umSo Bartolomeu conduzido por teceles, um So Miguel pelos Latoeiros, um So Sebastiopelos siringueiros; uma Santa Clara pelos oleiros, e um So Joo pelos ourives. Nos temposde D. Joo II tambm guravam na procisso os reis magos e outras personagens (p. 729).

    13 No cartaz da procisso de 2010 a chamada era ilustrativa a este respeito: Cristo vivo nocorao da cidade celebrao do Corpo de Deus.

    14 Um episdio pitoresco relativo ao luxo e pompa de So Jorge assim relatado na Grande

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    Enciclopdia Portuguesa e Brasileira: As honrarias e pompas concedidas a S. Jorge foramsempre subindo, mas em 1610 uma lei o ia reduzindo apenas sua condio de general, ques de ferro devia vestir, e por pouco, ia perdendo a montada. Decretara-se um novo imposto,que zera baixar o preo das sedas, que ningum vestia, receando a gula aambarcadora dossndicos. Nessa altura, a irmandade de S. Jorge, aproveitando a baixa dos preos do precioso

    tecido, vestiu maravilhosamente o santo seu patrono, que largou a armadura, envergandoum roupo com agulhetas de ouro e tas e laos de cores berrantes. Mas a meio do caminhoos ociais da justia embargaram a passagem ao santo, proibindo tal pompa em nome da lei,e S. Jorge retrocedeu para o adro da igreja onde estava recolhido. O arcebispo D. Miguel deCastro combinou depois com o mordomo do santo que este, no ano seguinte, no aparecessea cavalo, mas num andor; porm, ao ser conduzido para a S, ainda montado, ao chegar emfrente da rua da Padaria, o cavalo parou e por mais que o chicoteassem, no queria andar.No domingo seguinte o mordomo, cmplice do arcebispo, foi ajoelhar diante do altar de S.Jorge a penitenciar-se da sua ideia, mas a lana despregou-se da mo do santo e foi cair sobre

    o penitente, que cou banhado em sangue. O fato foi tomado como castigo, e o arcebispo,tambm atemorizado, declarou que no seria alterado o aspecto do cortejo quanto formada apresentao de S. Jorge (p. 728).

    15 Os pretos de S. Jorge foram incorporados ao prstito por ordem de D. Joo I, depoisda tomada de Ceuta, para comemorar o grande feito. ratava-se de uma banda que, nassemanas anteriores procisso, ia de porta em porta dos edifcios pblicos e particulares,onde se encontravam ou residiam as pessoas que pelos seus cargos haviam de comparecerna procisso, manteve-se at princpios do sculo XX (GRANDE ENCICLOPDIAPORUGUESA E BRASILEIRA, p. 728).

    16 Neste mesmo prdio (o Mosteiro de Santos-o-Novo), se localiza a residncia universitriado ISCE-IUL onde morei durante minha estadia em Lisboa. Vale dizer que no meio demeu caminho parafraseando Carlos Drummond de Andrade, um dos maiores poetasbrasileiros no havia uma pedra, mas uma procisso. Antropologia em casa, sonhorecndito e inconfesso do antroplogo.

    17 Os santos nos andores, protagonizam um movimento ao interior das prprias coisas,dando ao tempo mais do que uma dimenso sagrada, um peso de eternidade. Um andor sempre o ex-libris de uma procisso (LIMA, 2001, p. 251-262). Lembro uma bela epungente associao entre andor e dor: an-dor. Andar com dor, andor dor, a dor do andor.

    Como diz o refro: andar com f eu vou, que a f no costuma falhar.18 O foco em Maria indicia uma interessante caracterstica do catolicismo portugus,notadamente em sua modulao popular, o acento mariano. Steffen Dix (2010, p. 22) dizque o culto mariano , de certa forma, o pilar mais importante do catolicismo portugus,devendo ser visto como um elemento fundamental da religio popular, conservando osrecursos maternais dentro de uma religio dominada por um omnipotente papado paternal.

    19 Remarca Lima: Hoje, as celebraes no tm o carter tremendo de outrora, j que paratal concorriam o lugar sombrio, a lngua latina, o canto gregoriano e o esquema clssico daoratria do pregador do sermo das sete palavras e do sermo do enterro; tudo ajudava aconstruir um fundo tremendo que pintava de mais negro o negro doloroso destes dias daPaixo (LIMA, 2001, p. 260).

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    Resumo

    O texto combina trabalho de campo e pesquisa bibliogrca, destacando ofazer corpo na durao como uma espcie de frmula de compreenso dasprocisses, no geral, e em Portugal no particular.

    Palavras-chave: festa, religio, cidade, Lisboa.

    Abstract

    Te text combine eldwork and literature research, highlighting the makingbody in the duration as a kind of formula for understanding the processions,in general, and in Portugal in particular

    Keywords: feast, religion, city, Lisbon.

    Recebido para publicao em julho/2013.Aceito em novembro/2013.