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NARRATIVAS DAORIGEM HISTRICADOS DIREITOS
HUMANOS NOSMANUAIS DEDIREITOFERNANDO SEFFNER
FABIANE SIMIONI
RENAN BULSING DOS SANTOS
CAROLINA NUNES DOS SANTOS
MILENE BOBSIN
OUTROS TEMAS
http://dx.doi.org/10.1590/198053142866
Os dados coletados para
a elaborao deste artigoresultam do Projeto de
Pesquisa Sentenas deconflitualidades de gneroe sexualidade: uma anlise
das fontes, dos argumentosjurdicos e da formao
curricular dos operadoresdo direito no Rio Grande
do Sul, que tem comoinvestigador principal o
Prof. Dr. Fernando Seffner,do Programa de
Ps-Graduao emEducao da Universidade
Federal do Rio Grande
do Sul UFRGS. Oprojeto financiado pelo
Conselho Nacional deDesenvolvimento Cientfico
e Tecnolgico CNPq ,Chamada n. 32/2012,
Processo n. 404827/2012-8.
RESUMOTomando como corpus de anlise manuais sobre direitos humanos citados nabibliografia dos programas de disciplinas dos cursos de Direito do Estado do Rio
Grande do Sul, apresentamos trs marcas frequentes no modo de narrar a histria
dos direitos humanos ali presentes: o estatuto da fonte histrica, a noo de
evoluo histrica e a pretenso de neutralidade. Estamos apoiados na afirmativa
de que o modo de contar a histria dos direitos humanos traz implicaes diretas
na definio do que sejam esses direitos. A narrativa histrica estabelece conexes
possveis entre direitos humanos e determinados temas (por exemplo, direito de
famlia), ao mesmo tempo em que dificulta ou impossibilita conexes dos direitos
humanos com outros temas (por exemplo, direito empresarial).
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NARRATIVES ON THE HISTORIC ORIGINSOF HUMAN RIGHTS IN LAW MANUALS
ABSTRACT
Based on the human rights manuals cited in the bibliography of the Law program
syllabi of the state of Rio Grande do Sul as the corpusof analysis, we present threecharacteristics frequently found in the recounting of the history of human rights:
the statute of the historic source, the notion of historic evolution and the claim
to neutrality. We are supported by the statement that the mode of recounting
the history of human rights has direct implication in the definition of what these
rights are. On the one hand, the historic narrative establishes possible connections
between human rights and specific themes ( for example, family law). On the other
hand, it inhibits or prevents connections between human rights and other themes
(for example, business law).
HUMAN RIGHT HIGHER EDUCATION HISTORIOGRAPHY
NARRATIVAS DEL ORIGEN HISTRICODE LOS DERECHOS HUMANOS EN
LOS MANUALES DE DERECHORESUMEN
Tomando como corpus de anlisis manuales sobre derechos humanos citados
en la bibliografa de los programas de disciplinas de los cursos de Derecho del
Estado de Rio Grande del Sur, presentamos tres marcas frecuentes en el modo de
narrar la historia de los derechos humanos all presentes: el estatuto de la fuente
histrica, la nocin de evolucin histrica y la pretensin de neutralidad. Estamos
apoyados en la afirmacin de que el modo de contar la historia de los derechos
humanos trae implicaciones directas en la definicin de lo que sean esos derechos.
La narrativa histrica establece conexiones posibles entre derechos humanos
y determinados temas (por ejemplo, derecho de familia), al mismo tiempo que
dificulta o imposibilita conexiones de los derechos humanos con otros temas (por
ejemplo, derecho empresarial).
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NARRATIVA, HISTORIOGRAFIA EEDUCAO EM DIREITOS HUMANOS
ESTE TEXTO FRUTO DO CRUZAMENTO DE PREOCUPAES ORIUNDAS DE TRS REAS
DO CONHECIMENTO:o Direito, a Histria e a Educao.1Vale narrar como
chegamos sua proposio. Inicialmente, o projeto de pesquisa que d
suporte a esta investigao se centrava na busca dos temas do gnero e
da sexualidade nos currculos de graduao em Direito do estado do Rio
Grande do Sul. Nossa hiptese, que logo se confirmou na anlise de um
corpuscomposto por currculos de cursos de Direito no estado, era de
que esses temas estariam prioritariamente inseridos nas disciplinas que
versam sobre direitos humanos, ou em sees sobre direitos humanosno programa de algumas outras disciplinas, como direito de famlia (ao
se abordarem tpicos como casamento e filiao, por exemplo). A anli-
se desses programas, bem como a leitura das referncias bibliogrficas
a indicadas, levou-nos a um percurso maior do que o esperado na avalia-
o dos modos de ensinar direitos humanos. Sendo assim, deixamos de
lado, por ora, as preocupaes com os temas do gnero e da sexualidade,
e nos defrontamos com o grande tema dos direitos humanos. Mas no
perdemos de vista um dos objetivos do atual projeto de pesquisa: inves-
tigar possveis nexos entre o ensino de direitos humanos nas carreirasjurdicas e a produo de demandas e sentenas nos tribunais gachos
em que a resoluo de conflitos no mbito do gnero e da sexualidade
aponta para o arcabouo terico dos direitos humanos.
1Esses trs vocbulos
designam tanto substantivoprprio quanto substantivo
comum. Optamos por
graf-los com inicialmaiscula apenas quando
os utilizamos enquanto reado conhecimento; e com
inicial minscula quando otermo estiver sendo usado
em seu sentido comum.
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Este texto, ento, se ocupa da educao em direitos humanos.
Preocupa-se em analisar os programas das disciplinas e a bibliografia
que compem esses cursos. Tanto nos programas como na quase totali-
dade dos manuais investigados, recortamos um tpico sempre presente:
o ensino de direitos humanos comporta sempre largos captulos dedica-
dos histria dos direitos humanos pelo mundo e atravs dos tempos. aqui que o texto se encontra com a historiografia e mesmo com o
campo da teoria da Histria: as estratgias de que se lana mo para con-
tar a histria de algo trazem profundas implicaes na definio desse
algo. A narrativa da histria dos direitos humanos incorpora importante
dimenso pedaggica; pois, ao traar o percurso histrico dos direitos
humanos, em boa parte j se define o que so os direitos humanos e
o que eles podem vir a ser em nossa sociedade. Ao traar a origem e o
desenvolvimento histrico de algo, de modo bem claro damos os
principais contornos do que esse algo. Por exemplo, ao se servir decategorias como nossa sociedade, podemos narrar processos particu-
lares a certos povos e culturas, mas que se tornam globais e universais,
impondo-se a outros povos e pases que no tiveram a sorte de ter um
protagonismo no campo dos direitos humanos. Dessa forma, por vezes,
mesmo plenos de boas intenes, aqueles que narram a histria dos
direitos humanos esto legitimando a imposio de marcas particulares
de uma cultura sobre outras. O que se afirma universal , em matria
de direitos humanos, a perspectiva hegemnica na disputa, aquela que
venceu e se estabeleceu como a verdade histrica.
Lembrando a preocupao inicial do projeto de pesquisa que deu
origem a este texto, a estreita vinculao de gnero e sexualidade aos
direitos humanos, acionada nas demandas judiciais e nas sentenas para
resoluo de conflitos referentes a esses temas, fica sujeita em parte a
essa forma de narrar a histria dos direitos humanos. E aqui o tema
do nosso texto se aproxima da rea da educao, completando o trip
que anunciamos de incio, pois implica lidar com o modo de dispor os
contedos de direitos humanos nos currculos dos cursos de Direito.A todo momento, em nossa pesquisa, defrontamo-nos com essa carto-
grafia que mostra os lugares onde os direitos humanos aparecem nos
currculos (por exemplo, quando se fala dos direitos de famlia e dos
direitos individuais, ou quando se fala do direito internacional e dos
tratados internacionais) e os lugares onde os direitos humanos no apa-
recem nos currculos dos cursos de Direito (por exemplo, quando se fala
do direito econmico, do direito empresarial ou do direito tributrio2).
Esse jogo de mostrar e esconder tem evidentes implicaes pedaggicas,
e nos leva noo de currculo, central em Educao. O currculo podeser entendido como um percurso ofertado aos estudantes, que lhes apre-
senta a pertinncia de alguns temas e conexes (direitos humanos tem a
ver com a luta feminista pela equidade de gnero, ou direitos humanos
2Os programas dos cursosde Direito analisadosno promovem umaaproximao dos direitoshumanos s questesdo mundo empresarial.Por outro lado, um
acompanhamento dasmdias nos mostraque esta conexo ativamente produzidaem outros ambientes,como se pode ver emValor Econmico(2014).
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tem a ver com a luta contra o racismo e outras formas de intolerncia)
e a ausncia ou pobreza de conexes possveis (direitos humanos no
tm a ver com as regras do comrcio internacional, direitos humanos
no tem a ver com o lucro das empresas, direitos humanos no tem a
ver com situaes de desigualdade social entre os contratantes). Dessa
forma, assumimos que a ignorncia no um subproduto da falta de co-nhecimento, mas algo ativamente produzido pelos desenhos curricula-
res, em particular por conta desse jogo em que determinadas conexes
so produzidas, e outras, escondidas ou secundarizadas, fornecendo o
campo do conhecimento possvel.
Em nossa compreenso, o Direito se apresenta como um produ-
to social, em estreita conexo com as relaes de poder existentes a cada
momento histrico na sociedade, e no como um dado a priori, confor-
me discutido por Bourdieu (2009). A cincia jurdica no um sistema
fechado e autnomo cujo desenvolvimento possa ser compreendido porsua dinmica e racionalidades prprias. O postulado de uma autonomia
absoluta de pensamento e de ao para o Direito funda-se na atualizao
reiterada da teoria pura de Kelsen (2009[1934]), que afirma um corpo
doutrinrio e de regras completamente independente dos constrangi-
mentos e das presses sociais, sendo o Direito fundamento de si prprio.
Em sentido diverso, consideramos que o Direito no goza dostatusde ser
indiferente histria. As prticas do Direito esto implicadas em cada
momento histrico com os mecanismos disciplinares e normalizadores,
o que no elimina a possibilidade de se produzir uma construo jur-
dica como exerccio de prticas no normalizadoras (FONSECA, 2012,
p. 35). De acordo com Kant de Lima (2008, p. 13), o mundo do direito se
constitui em domnio afirmado como esfera parte das relaes sociais,
onde s penetram aqueles fatos que, de acordo com critrios formula-
dos internamente, so considerados jurdicos. Observa Bourdieu (2010)
que o campo do direito, por suas prticas e discursos, universaliza de-
terminadas representaes da normalidade ao canonizar determinadas
prticas. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que normaliza, exclui ou-tras possibilidades dissidentes, no conformadas s regras. Essa univer-
salizao no se d somente quando as conflitualidades so atravessadas
pelo sistema de justia, em processos judiciais, mas tambm quando
exercido o monoplio do direito de dizer a verdade, segundo uma
determinada compreenso peculiar aos seus agentes e tericos, que se
movem no terreno das certezas e dos valores absolutos, segundo a pr-
pria tradio do saber jurdico no Brasil (KANT DE LIMA, 2008, p. 13).
Feita essa introduo, apresentamos o modo de organizar o tex-
to. No prximo item, desenhamos os traos essenciais do modo peloqual foram coletados os manuais que compem o corpusem anlise. A
seguir, tomando por base esses manuais de referncia sobre os direi-
tos humanos, presentes na bibliografia dos programas dos cursos de
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graduao em Direito, expusemos o panorama geral de como, nesses
livros se conta a histria dos direitos humanos. A partir desse painel de
informaes, apresentamos trs marcas frequentes no modo de narrar
a histria dos direitos humanos: o estatuto da fonte histrica, a noo
de evoluo histrica e a pretenso de neutralidade. Ao final, explicita-
mos algumas consideraes, ainda marcadas pela provisoriedade, dadaa enorme dimenso do campo de pesquisa.
A HISTRIA DOS DIREITOS HUMANOS NOSPROGRAMAS DE ENSINO: COLETA DE DADOSO corpusdeste projeto de pesquisa, parte do qual apresentado a seguir,
compe as referncias bibliogrficas dos programas de ensino das dis-
ciplinas de direitos humanos, ou das sees de direitos humanos em
programas de outras disciplinas dos cursos de Direito do estado do RioGrande do Sul. A esse conjunto de obras, foram acrescidas leituras indi-
cadas em ctedras de direitos humanos, em clnicas de direitos huma-
nos ou em projetos de direitos humanos mantidos pelas universidades
ou instituies isoladas que ofertam cursos de Direito no estado. Foi
possvel tambm encontrar indicaes de autores e obras do campo dos
direitos humanos nos projetos pedaggicos de alguns cursos de Direito,
e at mesmo em textos de apresentao dos cursos, disponveis em geral
nos sitesdas instituies. Por fim, alguns manuais de direitos humanos
foram coletados em programas de disciplinas ou cursos ofertados nas
faculdades de direito sobre temas de direitos sexuais e de direitos repro-
dutivos. Esse esforo de coleta e sistematizao das informaes ainda
est em andamento, e o que oferecemos abaixo uma prvia do que j
foi analisado, visando a abrir o debate sobre o tema e crtica dos cole-
gas inseridos neste campo de estudos.
No estado do Rio Grande do Sul, territrio a que se restringiu
esta pesquisa, foram localizados 47 cursos de graduao em Direito. Se,
por um lado, conseguimos localizar todos, no foi possvel obter o mes-mo nvel de informao sobre todos. Alguns disponibilizam programas
completos das disciplinas em sua pgina virtual, outros disponibilizam
uma quantidade menor de informaes. Lanamos mo de outros recur-
sos para obter os dados, mas ficamos longe de atingir a totalidade das
informaes para o conjunto dos cursos. O corpuscoletado resultado
de informaes centradas nos maiores cursos de Direito, localizados nas
principais universidades e nas maiores cidades do estado. Renunciamos,
dessa forma, a qualquer pretenso de representatividade quantitativa
ou geogrfica na escolha dos dados que compuseram nossa amostra. Oque nos anima na direo de pensar que o texto traz um grau consider-
vel de representatividade da realidade que se pretendeu abarcar que,
a despeito do grande nmero de cursos de graduaes em Direito no
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estado, no se verifica uma proporcional diversidade curricular. H uma
evidente homogeneizao dos currculos, e a esses tivemos acesso com-
pleto3. Grande parte dos cursos apresenta um desenho curricular muito
semelhante, e com alunos sujeitos a um mesmo critrio em termos de
avaliao final: o exame de admisso como advogado pela Ordem dos
Advogados do Brasil OAB e o Exame Nacional de Desempenho deEstudantes Enade. Como em quaisquer outros ramos do conhecimen-
to, no Direito tambm existem mecanismos de padronizao do campo.
A diversidade curricular, pensada a partir das demandas concretas de
uma determinada parcela marginalizada com uma representao po-
ltica dbil da sociedade, poderia ser um mecanismo produtivo para
a promoo de um contraponto ao efeito da apriorizao da teoria e
da prtica do Direito, em particular no campo dos direitos humanos. O
efeito da apriorizao do Direito, como reflete Bourdieu (2010, p. 215),
se expressa atravs de um trabalho contnuo de racionalizao, fazendoparecer que o sistema de normas jurdicas se impe de igual forma, in-
dependentemente das relaes de fora que o Direito produz e tambm
das quais produto, atravs de uma retrica da impessoalidade e da
neutralidade.
O processo de busca explicitado nos permitiu construir uma
listagem de livros, em geral manuais, indicados para leitura nos cur-
sos de Direito que se ocupam dos direitos humanos, e tais manuais
foram, ento, analisados (BARRETO, 2012; ISIDORO, 2013; MACIEL,
2012; MORAES, 2011; OLIVEIRA, 2012; SARMENTO, 2011; SILVA, 2013).
Evitamos incorrer no risco intrnseco aleatoriedade de consultarmos
obras que no costumam ser muito lidas. Vale lembrar que nosso foco
analisar as estratgias que os autores lanam mo para contar a hist-
ria dos direitos humanos, mas nem todos os livros so exclusivamente
dedicados histria dos direitos humanos: temos manuais de direitos
humanos em que alguns captulos so dedicados a contar essa histria,
temos livros que enfocam especificamente a histria dos direitos huma-
nos e temos livros abrangentes, incluindo manuais de preparao paraos exames da OAB (chamados em geral de Exames da Ordem), com cap-
tulos sobre direitos humanos e, neles, conjuntos de informaes sobre
a histria dos direitos humanos. Em todas essas obras, garimpamos as
informaes e as referncias acerca da histria dos direitos humanos, e
analisamos as estratgias narrativas adotadas pelos autores.
Com base em tais critrios, buscamos a seo de referncias bi-
bliogrficas para conferir quais autores tm sido os mais citados pelos
operadores jurdicos que tm escrito sobre direitos humanos. Os prin-
cipais autores nacionais so Fbio Konder Comparato e Flvia Piovesan.Dos estrangeiros, os principais nomes so Boaventura de Sousa Santos e
Norberto Bobbio. Entre a produo acadmica nacional, a obraAfirmao
histrica dos Direitos Humanos, de Fbio Konder Comparato (2005), desponta
3Foi possvel localizar o
sitede todos os cursos deDireito do estado do RioGrande do Sul. Nos sites,
via de regra, apresenta-se a estrutura curriculardo curso, detalhando asdisciplinas. Para alguns
cursos, possvel conhecero programa das disciplinas
tambm pela web, assimcomo as referncias
bibliogrficas. Em muitoscasos, solicitamos via e-mail
o programa, que nos foienviado pela secretariaacadmica. tambm
possvel identificar aspectosdo projeto pedaggico
do curso, saber sobre as
atividades realizadas elocalizar grupos de pesquisa
ou de discusso sobredireitos humanos utilizando
mecanismos de buscados sitesdas instituies.
Em muitos casos, estodisponveis os nomes e
linkspara o currculo daPlataforma Lattes dos
docentes, sendo entopossvel saber se aquelesque lecionam disciplinasde direitos humanos tm
produo bibliogrficasobre o tema, o que foi
encontrado apenas de modoresidual nesta pesquisa. A
coleta de dados apresentouento um perfil bastante
irregular, ao sabor do modocomo cada instituio se
apresenta pela web.
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como uma das mais citadas. Embora consideradas obras clssicas no cam-
po dos direitos humanos, elas dividem o cenrio com uma grande quan-
tidade de manuais, que foram os livros por ns analisados, de forte
presena nas bibliografias. Nossa linha de corte considera que os autores
acima citados so pesquisadores nacionais ou estrangeiros do cam-
po dos direitos humanos, e os autores de manuais esto envolvidos napopularizao do conhecimento cientfico, oferecendo aos leitores uma
sistematizao til e objetiva para quem cursa as disciplinas ou se pre-
para para concursos na rea. Estamos aqui apoiados em grande nmero
de pesquisas na rea da Educao em que se problematizam os efeitos de
testes, exames e avaliaes de grande impacto como so os Exames da
Ordem e o Enade sobre os programas de ensino de cursos de graduao.
O fenmeno pode ser observado atentando para o fato de que as insti-
tuies de ensino e os prprios professores buscam conhecer a estrutura
dos exames, e inserir em seus planos de ensino estratgias pedaggicas,leituras e provas que permitam aos alunos uma preparao adequada ao
sucesso nas avaliaes de grande impacto (SCARAMUCCI, 2004; CERRI,
2004, BURLAMAQUI, 2008). Dessa forma, o currculo desenvolvido pelos
cursos de graduao ganha ares de currculo de cursos preparatrios, o
que em parte explica o uso de manuais na formao inicial.
Em nosso percurso de anlise no prximo item, algumas pergun-
tas serviro de guia: a) a que autores da rea da Histria os juristas recor-
rem? b) quais perspectivas tericas so utilizadas na narrao histricado surgimento e desenvolvimento das instituies de direitos humanos?
c) a escolha de obras histricas para fundamentar a histria dos direitos
humanos se d a partir de argumentao sobre a anlise de um amplo
corpus, ou os autores no explicitam os motivos que os levaram a prefe-
rir esta ou aquela fonte histrica ou obra de referncia? d) a histria
tomada como sendo nica, ou se opera com a ideia de muitas histrias
possveis, muitos passados possveis? e) adota-se o paradigma da histria
universal? f) a narrativa da histria dos direitos humanos vista como
a nica possvel, ou se admitem outras narrativas possveis, fruto deoutras fontes e de outras tradies tericas e histricas? g) a narrativa
histrica dos direitos humanos admite que possa ser incompleta, ou se
pretende desde sempre completa e j definida?
TRS MARCAS RECORRENTES NO MODO DENARRAR A HISTRIA DOS DIREITOS HUMANOSPara desenvolver a anlise que segue, selecionamos, do grande nmero
de obras coletadas, sete manuais que continham sees ou captulos vol-tados para cronologia, histria ou histrico dos direitos humanos. Eles
foram, ento, lidos, e serviram de suporte para anlise. Tomamos livros
com boa frequncia nos programas de ensino de direitos humanos dos
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cursos de graduao. Com isso, a amostra apresenta certa homogenei-dade, no recebendo nenhum autor uma distino maior do que outro,embora reconheamos que essa afirmao de homogeneidade ainda ca-rece de maior apoio estatstico. A anlise do corpuspermitiu identificartrs marcas recorrentes na escrita dos textos que contam a histria dos
direitos humanos, todas dizendo respeito ao uso da Histria pelos auto-res. Organizamos a exposio a partir dessas marcas.
O ESTATUTO DA FONTE HISTRICA: O USO DA BBLIA EDE TEXTOS DE AUTORES RELIGIOSOS COMO DOCUMENTO
Uma das principais marcas da escrita do texto histrico a utili-zao de fontes. De modo bastante particular a partir da chamada Escolados Anais,4o conceito de fonte histrica experimentou modificaes ex-pressivas. Duas dessas modificaes so relevantes ao pensar a histriados direitos humanos. A primeira delas que o documento escrito foidestronado de seu papel primordial, e passou a conviver ao lado de ima-gens, filmes, estaturia, memria oral, obras de arte, fragmentos liter-rios, vestgios arqueolgicos etc. (PEREIRA; SEFFNER, 2008). A segundamodificao diz respeito possibilidade de criticar, lanar hipteses eat mesmo duvidar do teor do documento histrico, que perde seu car-ter de ilustrao ou testemunho:
A partir da perspectiva dos novos historiadores (LE GOFF, 2005)5
e, sobretudo, em funo da contribuio de Michel Foucault(1987),6o documento se torna monumento, ou seja, ele rastro
deixado pelo passado, construdo intencionalmente pelos homens
e pelas circunstncias histricas das geraes anteriores. O docu-
mento no mais a encarnao da verdade, nem mesmo pode ser
considerado simplesmente verdadeiro ou falso. O ofcio do his-
toriador deixa de ser o de cotejar o documento para verificar sua
veracidade, e passa a ser o de marcar as condies polticas da
sua produo. O documento/monumento um engenho poltico,
um instrumento do poder e, ao mesmo tempo, uma manifesta-o dele. Os documentos so monumentos que as geraes ante-
riores deixaram. Eles so construes a partir de onde os homens
procuraram imprimir uma imagem de si mesmos para as geraes
futuras. (PEREIRA; SEFFNER, 2008, p. 112-113)
O uso da Bblia como fonte para traar a origem dos direitoshumanos no interior dos manuais analisados recorrente, e se confi-gura como problemtico por ser um recurso a verdades apresentadas
como incontestveis. No h uma crtica ao documento, revelando umacompreenso j ultrapassada entre os historiadores. Afirmaes acercado contedo da Bblia, ou afirmaes acerca do Cristianismo tomandocomo base a Bblia so feitas e tomadas como verdades histricas, jamais
4De modo sucinto, a Escola
dos Anais designa ummovimento de cunho
historiogrfico, ao qualesto associados nomes
como Marc Bloch e FernandBraudel, dentre outros,
combinando elementosde Histria, Geografiae Cincias Sociais na
produo do conhecimento.
5LE GOFF, Jacques.A
Histria Nova. So Paulo:
Martins Fontes, 2005.
6FOUCAULT, Michel.Aarqueologia do saber.
Rio de Janeiro: ForenseUniversitria, 1987.
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acompanhadas por alguma problematizao ou pela discusso de que
os documentos so uma produo dos antigos que assim buscavam im-
primir uma imagem de si mesmos para as geraes futuras, como se
verifica no excerto Com o Cristianismo, o Direito deixa de ser uma
ddiva do rei, ou do Estado, para ser um imperativo da dignidade do ser
humano (SILVA; SOBREIRA, 2013, p. 177). O carter sagrado do texto b-blico, atribudo pelas religies judaico-crists, que assim o consideram,
confere-lhe um feitio divino, impedindo a sua discusso o que no
deveria ocorrer com fontes propriamente histricas, que podem, a qual-
quer tempo, ser confrontadas com novas provas em sentido diferente
ou at contrrio ao que elas j significaram. As informaes referencia-
das da Bblia, utilizadas para construir a narrativa histrica dos direitos
humanos, no so tomadas nos sete manuais analisados como ponto
inicial do debate, elas so apresentadas como ilustrao de uma verdade
intrnseca ao documento, e, por extenso, vinculadas ao cristianismo:
Como ressaltado por Afonso Arinos de Mello Franco, no se pode
separar o reconhecimento dos direitos individuais da verdadeira
democracia. Com efeito, a idia democrtica no pode ser desvin-
culada de suas origens crists e dos princpios que o Cristianismo
legou cultura poltica humana: o valor transcendente da criatura,
a limitao do poder pelo Direito e a limitao do Estado pela jus-
tia. Sem respeito pessoa humana no h justia e sem justia
no h Direito (Curso de direito constitucional brasileiro. Rio de
Janeiro: Forense, 1958, v. I, p. 188). (MORAES, 2011, p. 3)
O problema do uso da Bblia se repete quando so citados o
Cdigo de Hamurabi, as falas de So Toms de Aquino, excertos de ar-
tigos do direito romano antigo, a Declarao dos Direitos do Bom Povo
da Virgnia, a Magna Carta de Joo Sem Terra, textos e proclamas da
Revoluo Francesa, ou a simples organizao do homem na vida em
sociedade. Se na Bblia est proclamado o valor da igualdade entre os ho-mens, essa afirmao no problematizada nem contextualizada, no
se marcam as condies polticas e histricas da produo dessa afirma-
o, ela tomada ao p da letra, e imediatamente apresentada como
suposta origem dos direitos humanos, que tambm falam em igualdade
entre os seres humanos:
Se formos pensar bem, os direitos humanos surgem com a pr-
pria organizao da sociedade. A doutrina aponta, por exemplo,
o Cdigo de Hamurbi como a primeira compilao de direitos
humanos, isso por volta de 1790 a.C. Outro marco histrico apon-
tado por alguns a Magna Carta, do rei Joo Sem Terra, de 1215,
cujo ponto positivo era a limitao dos poderes do rei. Existem
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trs grandes movimentos sociais que merecem destaque em nos-
sa evoluo: a Declarao de Direitos (Bill of Rights), de 1689; a
Declarao de Independncia dos EUA, em 1776; e a Revoluo
Francesa, com a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado,
em 1789. (ISIDORO, 2013, p. 20)
A comparao entre elementos de diferentes perodos histri-
cos no tarefa proibida na anlise histrica, mas deve ser cercada de
cuidados. Na citao acima, a afirmao de que os direitos humanos
surgem com a prpria organizao da sociedade faz o autor incorrer
em anacronismo, operao de anlise histrica em que se atribui a de-
terminado perodo histrico valores surgidos em outra poca. No pos-
svel acreditar que a mera organizao dos indivduos para a vida em so-
ciedade em tempos muito recuados tenha implicado o surgimento dos
direitos humanos. Mas o uso da Bblia apresenta outro problema igual-mente grave para a construo da narrativa histrica. O statusda Bblia
como fonte histrica implica tambm apresentar a Histria cincia (ou a
Histria como narrativa mestra da vida) como um saber revelado, com
ar proftico, sujeito a uma manifestao progressiva no seio da histria
humana, algo que, claramente, vem de fora da histria, de um tempo
que existe desde sempre, que no o tempo histrico. Com isso, algu-
mas verdades so apresentadas como produto mais da revelao de algo
intrnseco humanidade do que propriamente resultado de conjuneshistricas e polticas. Isso fica claro, por exemplo, no trecho a seguir:
Para S. Toms de Aquino (1225 - 1274), grande filsofo cristo, o
homem seria um composto de substncia espiritual e corporal.
Seus ensinamentos fizeram ganhar fora o ideal do princpio da
igualdade essencial entre todos os seres humanos, sendo exata-
mente essa igualdade de essncia da pessoa humana que forma
o ncleo do conceito universal de direitos humanos. Esses direitos
resultam da prpria natureza humana, no sendo meras criaespolticas. (MACIEL, 2012, p. 322)7
As afirmaes acerca da natureza humana no so analisadas
como produto de conjunturas histricas, culturais e polticas. O autor,
apoiado na afirmao de S. Toms de Aquino, remete para fora da his-
tria humana a criao da suposta essncia dos direitos humanos, en-
raizados numa tambm suposta natureza humana, que existiria desde
sempre. A citao de excertos de pensadores cristos e de excertos da
Bblia levam a concluir que, ao fim e ao cabo, os direitos humanos te-riam sido criados no seio de uma determinada f religiosa, no por acaso
aquela que melhor representa o Ocidente, o cristianismo. A principal
operao histrica que deixa de ser feita a aquela de no investigar
7O livro Formao
humanstica em Direitotem como coordenador
Jos Fbio Rodrigues
Maciel (2012) e abrigacaptulos de outros autores.
Mas o captulo sobredireitos humanos de
autoria do coordenador,e apenas ele foi utilizado
em nossa anlise.
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outras gramticas da dignidade humana, presentes em outras socieda-des, em particular no Oriente, ou mesmo no Ocidente ainda no desco-berto pelos europeus, e posteriormente colonizado por estes. Tal modode organizar a narrativa histrica dos direitos humanos, profundamente
vinculado Bblia e ao cristianismo no se encontra apenas nos manuais
em anlise:
A justificativa religiosa da preeminncia do ser humano no mundo
surgiu com a afirmao da f monotesta. A grande contribuio
do povo da Bblia humanidade, uma das maiores, alis, de toda
a Histria, foi a idia da criao do mundo por um Deus nico e
transcendente. Os deuses antigos, de certa forma, faziam parte do
mundo, como super-homens, com as mesmas paixes e defeitos
do ser humano. Iahweh, muito ao contrrio, como criador de tudo
o que existe, anterior e superior ao mundo. Diante dessa trans-cendncia divina, os dias do homem, disse o salmista, so como
a relva; ele floresce como a flor do campo, roa-lhe um vento e j
desaparece, e ningum mais reconhece o seu lugar (Salmo 103).
(COMPARATO, 2005, p. 1-2)
Ainda quanto aos problemas pelo uso da Bblia, e pelo modocomo os documentos histricos so tomados, vale salientar novamentea pouca problematizao feita em torno das afirmativas, que so apre-
sentadas como claras e transparentes, no admitindo outras possibili-dades de interpretao. o caso quando os autores afirmam ter sido ocristianismo pioneiro em postular a igualdade humana. Como exemplo,cite-se: O cristianismo foi a primeira doutrina a defender a igualdadeentre as pessoas humanas, sem qualquer distino (SARMENTO, 2011,p. 14) e O Cristianismo trouxe como aporte de suas ideias os princ-pios da dignidade intrnseca do ser humano, o princpio da fraternidadehumana e o princpio da igualdade essencial de todos por sua origemcomum (SILVA; SOBREIRA, 2013, p. 177). A despeito da fcil acolhidaentre os juristas, essa afirmao no consenso entre os historiadores,ou pelo menos no sem algumas ponderaes:
Comparado com a maioria das outras religies, o cristianismo era
simptico s mulheres. Considerava que suas almas fossem iguais
s dos homens aos olhos de Deus e julgava que a natureza hu-
mana s se completava em ambos os sexos. Entretanto, desde os
primeiros tempos os cristos partilharam o ponto de vista de seus
contemporneos segundo o qual, na vida cotidiana e no casamen-
to, as mulheres deveriam ficar rigorosamente sujeitas aos homens.
(BURNS, 1989, p. 186)
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Pelo modo como os juristas narram, tem-se a impresso anacrni-
ca de a ideia moderna de igualdade de direitos ter-se disseminado desde
(e em conjunto) com a difuso da religio crist:
Posteriormente, a forte concepo religiosa trazida pelo
Cristianismo, com a mensagem de igualdade de todos os homens,independentemente de origem, raa, sexo ou credo, influenciou
diretamente a consagrao dos direitos fundamentais, enquanto
necessrios dignidade da pessoa humana. (MORAES, 2011, p. 6)
Ao incluir raa, sexo e credo na pregao da igualdade entre os
homens proclamada pelo cristianismo, o autor claramente parece es-
quecer que homem e mulher no so iguais perante a doutrina crist,
no desfrutam dos mesmos horizontes na vida.8Esse um tema muito
sensvel, por exemplo, no seio da igreja catlica romana at os dias dehoje, longe de estar resolvido. Vale dizer que o que o autor chama de
sexo no texto em verdade seria mais bem definido pelo conceito de
gnero, pois envolve as diferenas entre masculino e feminino.9 Mas
se tomarmos ao p da letra a palavra sexo, e pensarmos nas diferentes
orientaes sexuais, mais claramente ainda veremos que a doutrina cris-
t, em praticamente toda a sua diversidade (luteranos, anglicanos, pen-
tecostais, neopentecostais, catlicos romanos, calvinistas), opera com o
postulado da heteronormatividade, no admitindo patamar de igualda-
de para outras orientaes sexuais e conjugalidades da decorrentes. Ao
tratar da raa, o autor igualmente parece esquecer que a igreja catlica
romana, por exemplo, passou sculos sem considerar os negros como
tendo o mesmo patamar de igualdade dos brancos. Vale dizer que a des-
coberta do Brasil se d dentro do marco da expanso portuguesa, ani-
mada por um esprito cruzadstico e de conquista. Dessa forma, mesmo
com numerosas advertncias para que os escravos fossem bem tratados
e no fossem alvo de abusos dos senhores, a instituio da escravido
no foi questionada.10E quanto igualdade em termos de credo, no casodo Ocidente, apenas aps o processo de secularizao e o advento da
laicidade do Estado, com a progressiva separao entre o pertencimento
territorial (feudo ou estado nao) e a pertena religiosa, na maioria das
democracias, a igreja catlica romana tolerou a convivncia entre pessoas
de diferentes credos na mesma sociedade.11Nosso objetivo aqui no
atacar os dogmas cristos ou aqueles da igreja catlica romana, mas
mostrar que no possvel construir as conexes entre pensamento
cristo e origens dos direitos humanos sem problematizar esses aspec-
tos. Em Sarmento (2011), a afirmao peca pela excessiva generalizao,deixando de problematizar o longo processo de conquista de direitos
envolvendo dimenses de raa, classe, cor da pele, gnero, sexualidade,
nacionalidade, pertencimento religioso etc.
8Estamos nos referindotanto s expectativas
diferenciadas de gneropropostas pela doutrinacrist (atribuies tidas
como prprias do homemdiferentes daquelas prprias
da mulher), como tambmao fato de a hierarquia
poltica catlica romanapermanecer desde sempre
restrita aos homens (osacramento da ordem, oexerccio do sacerdcio,
no est disponvel smulheres). Em algumas
confisses religiosas crists,tal como alguns credos
luteranos, a mulher podealcanar graus hierrquicos
mais elevados, mas soconquistas recentes.
9A esse respeito,
complementa Burns: [...]o cristianismo reforoua concepo antiga de
que a principal funo damulher na terra era servir
de me. Recomendava-sea homens e mulheres queno sentissem prazer nemsequer no coito conjugal,
mas que o praticassem to-somente com o propsito
de gerar filhos. As mulheresseriam salvas pela sua
maternidade (I Timoteo 2,15). [...] Esperava-se quequase todas as mulheresse tornassem esposas emes submissas. Como
esposas, no deveriam tervida prpria, nem haviacogitao de educ-las
ou mesmo alfabetiz-las(BURNS, 1989, p. 186-187).
10Verificamos isso em
diversas fontes, como o caso das Constituies
Primeiras do Arcebispadoda Bahia, bem como naBula Romanus Pontifex,
que autorizava a escravidode todos os no cristos,
muitos deles negros.
11A poltica oficial anterior
seguia o esprito da BulaNicet ad Capiendos (1231),
instituidora da SantaInquisio, cujo objetivo era
investigar e punir prticascontrrias ao projeto de
humanidade crist.
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Em resumo, na amostra de sete manuais analisados, as refern-
cias ao cristianismo no so tratadas como fontes histricas passveis de
crtica, elas desfrutam de um patamar de verdade mais elevado. O uso
desses excertos dialoga muito bem com a noo de doutrina, termo que
em geral designa o conjunto de saberes jurdicos sobre um tema, no
caso, os direitos humanos. A Bblia um livro histrico, e de fato podeser utilizada como fonte documental para a compreenso de aspectos
sobre a vida na antiguidade. Porm tal s pode ser feito se a Bblia for
lida e cotejada com outras obras, e acompanhada da explicitao de um
referencial terico que qualifique a noo de documento monumento.
Paralelo a isso, h a importncia do cristianismo enquanto um movi-
mento que, para alm dos seus aspectos religiosos, est profundamente
atrelado ideia de civilizao. As conexes entre a dominao colonial
e a evangelizao (converso de pessoas especialmente para a doutrina
crist, e para a religio catlica romana de forma predominante no casodo continente latino-americano) so estreitas, como apontam as rela-
es ntimas entre as antigas metrpoles e igrejas crists.
Por fim, vale ressaltar que a Bblia aparece dispersa ao longo
dos sete manuais analisados, na forma de epgrafes, que abrem diversos
captulos sobre diferentes temas. Para a questo que aqui nos interessa,
a narrativa histrica dos direitos humanos, encontramos nos captulos
a ela dedicada, dentre muitas outras: Exerce o Senhor a Justia, e a to-
dos os oprimidos restitui o Direito (Salmo 102:6) (OLIVEIRA, 2012) e Oque v com bons olhos ser abenoado, porque d do seu po ao pobre
(Provrbios 22.9) (BARRETO, 2012).
A NOO DE EVOLUO NA HISTRIA
A ideia de que as coisas evoluem (no sentido de que melho-
ram com o tempo, o novo substituindo o velho, e o novo entendido
como necessariamente melhor do que o velho, por ser mais aprimo-
rado ou simplesmente por ser novo) um postulado modernista, for-
temente vinculado noo de progresso. Essa noo de evoluo estmuitas vezes em sintonia com elementos da teoria evolucionista de
Darwin, especialmente com certa noo de que os que sobrevivem so
supostamente os melhores (STRAUSS; WAIZBORT, 2008). Pensado a
partir desses elementos, o Cdigo de Hamurbi sempre ser pior que os
cdigos civis subsequentes no tempo, estar sempre em atraso. Serviu
de germe para algo melhor, e essa foi sua funo. Isso leva a pensar que
a funo de alguns artefatos histricos (no caso, esses cdigos antigos,
de sociedades que no existem mais) servir para auxiliar na formao
de algo ento inacabado, os direitos humanos. Por vezes, ao contar ahistria da evoluo dos direitos humanos, o texto ocupa o espao de
algo que seria mais til, que seria mostrar a quem vem servindo, como
vem funcionando hoje em dia, como se legitimam os direitos humanos.
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Esse postulado orienta fortemente a narrativa histrica dos direitos
humanos nos livros analisados. Ao mostrar valores e ideias antigas, de c-
digos de outras pocas, tudo parece servir para que se conclua que o atual
patamar dos direitos humanos avanado, pois se v de onde viemos, de
como as coisas eram precrias, e onde estamos agora. A noo de evoluo
anda de braos dados com o anacronismo, pois se identificamos os direitoshumanos, j em sua essncia, em algum perodo recuado da histria, e o
comparamos com os direitos humanos que temos nos dias de hoje, fica fcil
estabelecer um olhar de que tivemos uma progressiva melhoria daquilo
que, em essncia, j estava dado desde o incio. Basta um exame dos ttulos
e subttulos dos sumrios dos livros para que essa noo fique destacada:
Captulo IX. Direitos humanos Item 1.6 A evoluo dos direitos
humanos a partir de 1945 (MACIEL, 2012, p. 325)
4. Evoluo Histrica dos Direitos Humanos fundamentais
(MORAES, 2011, p. 6)
5. Evoluo Histrica dos Direitos Humanos fundamentais na
Constituio Brasileira (MORAES, 2011, p. 13)
7. Direito internacional dos direitos humanos: conceito, finalidade e
evoluo histrica. (MORAES, 2011, p. 17)
Captulo 1: Direitos Humanos fundamentais: Evoluo Histrica
(SARMENTO, 2011 p. 13)
1. Teoria Geral
1.5 Evoluo Histrica (ISIDORO, 2013, p. 19)
Cap. 2: Breve evoluo dos direitos humanos (OLIVEIRA, 2012, p. 21)
A narrativa histrica serve para identificar, na contemporanei-
dade, pases, sociedades e regimes polticos que esto situados ainda
no tempo do atraso, que no chegaram aos limiares do contempor-
neo, e que necessitam ento ser trazidos ao patamar mais elevado dos
direitos humanos. Esse corte em geral acompanhado pela hierarqui-
zao Ocidente-Oriente. So os pases do Oriente que esto em dbito
com os direitos humanos, e so os pases do Ocidente que fornecem o
horizonte para onde se deve migrar em termos de direitos humanos.
Concentramo-nos aqui em um dos livros da amostra, para verificar omodo como esse argumento traado, e nos permitimos citar diver-
sos excertos do mesmo autor, uma vez que esta estratgia se repete de
modo muito semelhante nos sete manuais analisados:
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Contudo, foi o Direito romano que estabeleceu um complexo
mecanismo de interditos visando tutelar os direitos individuais
em relao aos arbtrios estatais. A Lei das Doze Tbuas pode
ser considerada a origem dos textos escritos consagradores da
liberdade, da propriedade e da proteo dos direitos do cidado.
(MORAES, 2011, p. 6)
O forte desenvolvimento das declaraes de direitos humanos
fundamentais deu-se, porm, a partir do terceiro quarto de sculo
XVIII at meados do sculo XX. (MORAES, 2011, p. 7)
Posteriormente, e com idntica importncia, na evoluo dos direi-
tos humanos encontramos a participao da revoluo dos Estados
Unidos da Amrica, onde podemos citar os histricos documen-
tos: Declarao de Direitos de Virgnia, de 16-6-1776; Declarao deIndependncia dos Estados Unidos da Amrica, 4-7-1776; Constituio
dos Estados Unidos da Amrica, de 17-9-1787. (MORAES, 2011, p. 8)
A evoluo histrica da proteo aos direitos humanos fundamen-
tais em diplomas internacionais relativamente recente, iniciando-se
sem importantes vinculaes de carter-vinculativo, para posterior-
mente assumirem a forma de tratados internacionais, no intuito de
obrigarem os pases signatrios ao cumprimento de suas normas.
(MORAES, 2011, p.17)
A Declarao Universal dos Direitos Humanos reafirmou a crena
dos povos das Naes Unidas nos direitos humanos fundamentais,
na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de di-
reitos do homem e da mulher, visando promoo do progresso
social e melhoria das condies de vida em uma ampla liberdade.
(MORAES, 2011, p. 17)
A trajetria sempre a mesma. Partindo de uma ou duas socie-dades especficas (Grcia ou Roma antigas), ou de uma religio (o cristia-nismo), os direitos humanos rapidamente se tornam internacionais. Osmarcos histricos dessa evoluo tambm no variam e no so proble-matizados, e os principais documentos aparecem nos excertos acima.Para alem do uso abusivo da noo de evoluo, a lgica dessa evoluo: algo nasce na antiguidade greco-romana, toma o rumo do Ocidente(Europa e Estados Unidos da Amrica), onde se aperfeioa e chega emsua forma global, ou universal, e depois vai cumprir sua tarefa civiliza-tria junto s sociedades pobres e atrasadas do terceiro mundo, leia-se
sia, frica e Amrica Latina.
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A PRETENSO DE NEUTRALIDADE
A pretenso de um texto neutro, ditado a partir de um local fora
da histria, de onde se assiste ao desenvolvimento da histria humana e
se pronunciam as verdades sobre esse processo, uma das marcas fortes
da narrativa histrica dos direitos humanos, em estreita conexo com
as duas marcas j apresentadas. Ela conseguida pelo uso de diversasestratgias. A primeira delas o apagamento das marcas que identi-
ficam o autor e suas conexes com o relato apresentado. No se faz
esforo algum para situar a posio do autor da obra (homem, branco,
provavelmente cristo ou catlico, ocidental, moderno, dotado de certa
concepo de razo) em relao histria que est sendo narrada (ela
prpria uma histria dos homens, brancos, cristos ou catlicos, ociden-
tais, modernos, dotados de certa concepo de razo). Nesse sentido, a
histria da humanidade tomada como nica, um relato singular, no
se admitindo a possibilidade de outras histrias, e muito menos proble-matizando o modo como essa narrativa singular construda, e depois
universalizada, tornando-se sinnimo de histria da humanidade. Ficam
tambm ausentes dos manuais analisados os conflitos entre centro e
periferia, dominantes e dominados, escravos e homens livres, ociden-
tais e orientais, que acompanham na modernidade a narrativa de uma
histria global, ditada pelo ritmo do ocidente, mas plena de tenses e lo-
calismos. Os manuais analisados se valem de uma historiografia clssica
dos direitos humanos. No encontramos referncias a outras narrativashistricas dos direitos humanos nos livros analisados, como aquelas que
utilizam o materialismo histrico dialtico (TRINDADE, 2011). A tomada
de posio em favor de uma histria nica colabora para que o texto dos
manuais analisados expresse uma concepo do Direito como um cam-
po no determinado ou fracamente influenciado pela lgica poltica
de cada momento histrico:
As prticas e os discursos jurdicos so, com efeito, produto do
funcionamento de um campo cuja lgica especfica est dupla-mente determinada: por um lado, pelas relaes de fora espec-
ficas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de
concorrncia ou, mais precisamente, os conflitos de competncia
que nele tem lugar e, por outro lado, pela lgica interna das obras
jurdicas que delimitam em cada momento o espao dos poss-
veis e, deste modo, o universo das solues propriamente jurdicas.
(BOURDIEU, 2010, p. 211)
Ao operar com essa noo de dupla determinao, Bourdieu bus-ca evitar dois riscos que ele identifica como frequentes. Por um lado,
perceber as produes no campo do Direito como reflexo direto de si-
tuaes polticas e lutas de poder externas ao campo, o que conduziria
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a pensar o que foi codificado como direito como mera expresso, em
linguagem jurdica, do resultado das lutas sociais a cada momento. Por
outro lado, busca evitar a noo to cara aos juristas de que o corpo
de doutrina cresce e se desenvolve de modo independente e autnomo
das lutas sociais, fruto da reflexo minuciosa de um corpo especializado
de indivduos que operam num territrio livre de contingncias. Estasegunda noo casa muito bem com uma reiterada afirmao de que
os juzes gozam de autonomia para decidir, independentes de presses
sociais, de forma a dar, a cada caso, a melhor soluo, do ponto de vista
do direito e da doutrina, o que , nessa tica, quer dizer o mesmo que
dar a melhor soluo do ponto de vista da justia.
Nos textos analisados, isso se explicita de outra forma bastan-
te curiosa: o uso reiterado que fazem os juristas autores desses livros
das obras de outros juristas, autores de livros tambm sobre os direitos
humanos. Assim, a histria dos direitos humanos se narra quase sem acitao de historiadores. Os historiadores que aparecem citados se res-
tringem aos cones da Histria, e que nunca se debruaram sobre o cam-
po do Direito, e cuja existncia se perde nos confins da histria, sendo
mesmo anterior constituio desta como disciplina, como Herdoto
e Xenofonte, ou Fustel de Coulanges e Toynbee. Ocupam um espao
importante na narrativa histrica dos direitos humanos nas obras anali-
sadas em nosso corpusos contratualistas do Iluminismo, que se ocupam
de temas histricos enquanto abordam temas polticos amplos, como
Hobbes, Locke e Rosseau. Curiosamente, ou estamos entre os gregos, ou
entre franceses e ingleses. Mais curioso ainda: restringem-se a autores
que se ocuparam da histria da humanidade, das grandes civilizaes,
grandes olhares sobre a humanidade desde as suas origens, mas nada
aplicado ao campo do Direito especificamente. No problematizaram
propriamente as prticas de justia, mas propuseram sistemas de re-
gulao dos principais conflitos essenciais para a transio do Antigo
Regime para a Modernidade (conflitos de famlia, propriedade, Estado)
com base em princpios de justia organizados para esse fim especfico.Portanto, so princpios de justia no universais, mas que so narrados
nos textos de direitos humanos como sendo universais. O uso desses
autores traz outras vantagens: eles parecem estar acima de qualquer
suspeita, pois desfrutam de um statusconsolidado para a inaugurao
do campo da Histria, e eles do ao texto um ar de erudio. Por outro
lado, esse recurso deixa claro que os autores que contam a histria dos
direitos humanos no se debruaram sobre a produo historiogrfi-
ca sobre o campo jurdico dos ltimos anos. Seria como se, ao fazer a
anlise sociolgica de um objeto especfico (por exemplo, o Direito), osautores citassem apenas Auguste Comte. Sem embargo da importn-
cia histrica do autor, considerado de forma consensuada o fundador
da Sociologia, seu uso como fonte estrita para a anlise dos problemas
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sociais contemporneos levaria a pensar que depois dele no se avanou
mais nada nesse campo do conhecimento, e que suas teorias e ideias,
fundadoras do campo, so as nicas necessrias para pensar os proble-
mas sociolgicos atuais.
Uma anlise no campo da Histria, para perceber quem so
os historiadores que se dedicam a temas de Histria e Direito, revelade imediato uma robusta produo. Se ficarmos nos grandes nomes,
destacamos Pierre Vilar, que, entre outras iniciativas, analisa o Direito
como um produto social histrico, na passagem do antigo regime para
a consolidao do sistema capitalista, enfatizando que o campo se deli-
mita e se firma pelos de cima para manter privilgios (VILAR, 2006).
Os encontros anuais de historiadores brasileiros apresentam grupos de
trabalho j consolidados que enfocam a histria do Direito, e inclusi-
ve a histria dos direitos humanos.12Dentre as universidades que pos-
suem grupos de pesquisa organizados em departamentos ou programasde ps-graduao acerca de Histria e Direito, citamos a Universidade
Federal da Paraba UFPB , com destaque para os trabalhos de Carlos
Andr Macdo Cavalcanti (2001, 2005) e Giuseppe Tosi (2000, 2005);
Universidade Federal de Gois UFG , com destaque para os traba-
lhos de Ricardo Barbosa de Lima (LIMA; PINHEIRO, 2012) e Jeanne Silva
(2006); e Universidade Federal Fluminense UFF , com destaque para o
trabalho de Gizlene Neder (2012). H um interesse das reas de Histria,
Sociologia e Filosofia na pesquisa da narrativa histrica do Direito, e
muitas vezes especificamente na narrativa histrica dos direitos hu-
manos. So pesquisas contemporneas que se valem de um referencial
terico prprio do campo da Histria ou das humanidades, e que so
desconhecidas no corpusque analisamos.13
A Histria no percebida como um campo que se aplicou nas
ltimas dcadas ao estudo de objetos especficos, ela tratada simples-
mente como a histria, confundindo por vezes a cincia Histria e a
histria como narrativa da existncia dos povos. Ou seja, os autores dos
livros que compem o corpusque analisamos no reconhecem a exis-tncia de empreendimentos especficos no campo da Histria, como
a histria da educao, a histria dos sistemas econmicos, a histria
cultural, a histria das mentalidades, a histria da sexualidade, a his-
tria da vida privada, a micro-histria, e muito menos aquela que aqui
interessaria, a histria dos sistemas jurdicos, a histria da justia, a
histria dos sistemas de pensamento envolvidos na produo do saber
jurdico. A histria parece emprestar nestes relatos um ar de solidez aos
argumentos mostrados em seguida. Ela no serve para interrogar o que
vai ser mostrado, mas sim para situar o campo do Direito, ou o ramoespecfico da publicao (direito do trabalho, direito constitucional, di-
reito comercial, direito civil) num patamar de solidez por ter histria,
e histria longa, e iniciada nos perodos mais clssicos, como a Grcia,
12
Apenas para citar, noSimpsio Nacional de
Histria, organizado pelaAssociao Nacional deHistria ANPUH em
julho de 2013, encontramos,entre outros, um simpsio
temtico intituladoHistria, Direito e Memria
(ANPUH, 2014).
13Uma fonte importante de
apresentao de pesquisasacerca da histria dosdireitos humanos so
os encontros e anais daAssociao Nacional de
Direitos Humanos, Pesquisae Ps-Graduao (ANDHEP,
s.d.). No repositrio digitaldos encontros, localizamos
grande nmero de trabalhos,em geral abrigados noGT 01 Teoria e Histriados Direitos Humanos,
de presena regular noseventos. No mbito do
projeto de pesquisa quedeu origem ao presente
artigo, estamos no momentoinvestigando artigos e
pesquisas sobre histriados direitos humanos nos
anais dos encontros daANDHEP e da ANPUH, j
referida em nota acima. Osdados colhidos vo compora escrita de futuros artigos.
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e a Europa das monarquias. Utilizar apenas grandes nomes da Histria
(todos j falecidos h muito tempo, e que se dedicaram mais aos grandes
contornos da histria da humanidade do que a problemas especficos),
e ao mesmo tempo citar outros juristas (autores do prprio campo do
Direito), confere aos textos certo ar de estamos entre amigos, evitando
polmicas com a narrativa histrica, e deixando de reconhecer poten-ciais interlocutores que discordem ou que na atualidade problematizem
o campo do Direito.
Uma estratgia recorrente para que o texto se apresente dotado
de uma suposta neutralidade construir suas ideias de uma perspectiva
continuamente nomeada como universal. Esse universal nada mais
do que um particular, o Ocidente branco catlico, alado condio de
universal e de paradigma.
De uma maneira geral, os direitos humanos apresentam as se-
guintes caractersticas: historicidade; universalidade; relatividade;
irrenunciabilidade; inalienabilidade; imprescritibilidade; unidade e
indivisibilidade. (BARRETO, 2012, p. 2)
Os direitos humanos possuem as seguintes caractersticas:
a) declarados os direitos humanos so produtos da ordem jurdica
supraestatal, cabendo aos Estados declar-los em seus textos
constitucionais; b) abstratos so direitos inerentes a todos os
seres humanos, independente de nacionalidade, raa, religio, sexo
etc.; c) imprescritveis so direitos que mantm a sua eficcia
indefinidamente, pois esto indissociavelmente ligados a dignidade
da pessoa humana; d) inalienveis no podem ser transferidos a
ttulo gratuito ou oneroso a terceiros, sob pena de descaracterizar
a prpria condio humana; e) universais todos os seres humanos
que vivem na Terra so titulares de direitos humanos. (SARMENTO,
2011, p. 13)
Junto com a marca da neutralidade nos textos, vem a pretenso
consensual. O texto fala de todos (brancos, negros, pardos, amarelos, jo-
vens, velhos, ocidentais, orientais, indgenas, pobres, ricos, heterossexuais,
homossexuais, homens, mulheres, cristos, catlicos, afros, protestan-
tes, luteranos, pentecostais, ateus), e enuncia verdades que servem para
todos (novamente, servem para voc, quer seja voc branco, negro, par-
do, amarelo, jovem, velho, ocidental, oriental, etc.). Essa estratgia
possvel porque lida com a noo de uma essncia do Direito, imune
desde sempre a presses polticas, conforme j demonstramos. Para fa-lar de todos, temos o uso recorrente de expresses como o humano, a
humanidade, por vezes o cidado. Mas indisfarvel que a norma hu-
mana pautada pelo masculino, restando mulher ou ao feminino, o
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espao do outro. Isso porque o campo jurdico tambm produto cultu-
ral de uma ordem androcntrica, onde o masculino tomado como me-
dida de todas as coisas, no necessita de justificao, neutro, no tem
necessidade de se enunciar em discursos que visem sua autolegitimao
(BOURDIEU, 2002). tambm indisfarvel que se fala do homem bran-
co, europeu, catlico, restando aos demais uma adequao a esse mode-lo. Com essa artilharia disposta, fica fcil concluir que o alvo das normas
estatais repressivas e punitivas so os no brancos, os no europeus, os
no heterossexuais, os no cristos ou catlicos. Por fim, um elemento
que colabora no sentido de estabelecer uma pretenso de neutralidade
e consenso rechear a escrita com variaes da expresso na verdade.
Elas implicam considerar que o que est sendo apresentado no fruto
de uma pesquisa cientfica, portanto algo que possa ser contradito, mas
a apresentao de uma verdade, que no deve ser contradita. No so
dados de um estudo, mesmo que seja um estudo sobre outros autores,mas a enunciao de um caminho histrico que a verdade per se.
CONSOLIDANDO ALGUMAS HIPTESESRetomamos nosso objetivo principal neste texto: tratar das marcas presen-
tes no modo como est narrada a trajetria histrica dos direitos humanos
em algumas obras analisadas, de maior frequncia como leitura nos cursos
de Direito do Rio Grande do Sul. Estamos apoiados na afirmativa de que o
modo de contar a histria de alguma coisa traz implicaes diretas na sua
definio. A narrativa histrica estabelece um conjunto de conexes pos-
sveis, ao mesmo tempo em que dificulta ou impossibilita outras. O modo
como est contada a histria dos direitos humanos nos livros analisados
conduz a pensar em um objeto que se apresenta como universal, mas em
verdade diz mais respeito histria do Ocidente, e, dentro do Ocidente, a
um conjunto de territrios e tempos muito preciso, a saber, Grcia Antiga,
Imprio Romano, Inglaterra, Frana, e Estados Unidos. Os direitos humanos
se constituem assim como um patrimnio universal, a partir da extensopara outros pases daquilo que diz respeito mais diretamente histria de
alguns pases. Com isso, no estamos defendendo nenhuma posio con-
trria existncia dos direitos humanos ou a validade desse instrumento
na luta por um mundo mais justo. Mas no podemos deixar de indicar que
o uso dos direitos humanos, tal como se apresenta, carrega em si certa
pretenso imperialista. Alguns pases so produtores de direitos humanos,
outros so os locais onde esse conjunto de princpios deve ser aplicado. A
narrativa da trajetria histrica dos direitos humanos nas obras analisadas
nos alinha a essa afirmativa de Boaventura de Sousa Santos:
A hegemonia dos direitos humanos como linguagem de dignidade
humana hoje incontestvel. No entanto, esta hegemonia convive
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com uma realidade perturbadora. A grande maioria da populao
mundial no sujeito de direitos humanos. objeto de discursos
de direitos humanos. Deve, pois, comear por perguntar-se se os
direitos humanos servem eficazmente luta dos excludos, dos ex-
plorados e dos discriminados ou se, pelo contrrio, a tornam mais
difcil. (SANTOS, 2013, p. 15)
E, conforme anunciamos no incio deste texto, os contornos que
os direitos humanos assumem nos currculos dos cursos de Direito nos
permitem afirmar que uma disciplina que interessa a poucas pessoas,
diz respeito posio do Brasil em tratados internacionais, e internamen-
te diz respeito s reivindicaes de algumas minorias. Verifica-se tambm
na estratgia narrativa um empobrecimento, quando no uma negao,
do contedo poltico das prticas de justia. Ou seja, nega-se que algumas
decises foram tomadas levando em conta certos enfrentamentos de po-der, e se busca apresentar a deciso como fruto de um desenvolvimento
interno do campo. Isso traz outra consequncia grave para a abordagem
dos direitos humanos nos cursos de Direito. Eles so apresentados sem
conexo com outras gramticas relativas dignidade humana, presen-
tes em outros povos ou pases que no aqueles centrais j citados diver-
sas vezes, os produtores da concepo hegemnica de direitos humanos.
Operamos com a ideia de que vrias narrativas histricas so possveis,
fruto de escolhas intencionadas de fontes e teorias. A narrativa feita nosmanuais analisados opera com a noo de uma histria nica, universal
ou mundial, tal como os antigos livros de histria geral. No estamos,
com isso, afirmando haver alguma m inteno por parte dos autores ao
deixarem determinadas correntes histricas de fora; estamos apenas afir-
mando que isso ocorre, e nos propusemos aqui a verificar que perdas se
produzem quando se opta por narrar apenas uma Histria sem o devido
reconhecimento da incompletude de tal narrativa. Com isso, novamente
concordamos com Boaventura de Sousa Santos:
A busca de uma concepo contra-hegemnica dos direitos
humanos deve comear por uma hermenutica de suspeita em
relao aos direitos humanos tal como so convencionalmente
entendidos e defendidos, isso , em relao s concepes dos
direitos humanos mais diretamente vinculadas matriz liberal e
ocidental destes. (SANTOS, 2013, p. 16)
Embora em geral intitulados, tanto os livros quanto os captulos,
como sendo de direitos humanos, nota-se certa labilidade no conceito,que oscila entre direitos humanos, direitos do cidado, direitos humanos
fundamentais, eventualmente direitos sociais. Ao falar da raa huma-
na, ou do humano, de modo bastante evidente os textos se referem ao
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homem, branco, europeu, urbano, heterossexual, catlico, jovem. Dessa
forma, muitas outras manifestaes do humano ficam de fora, ou so
mostradas como tendo que migrar para o paradigma dos direitos huma-
nos. Isso tambm ajuda a invisibilizar grupos minoritrios do ponto de
vista da distribuio do poder, como mulheres, negros, homossexuais,
orientais, porque s os cnones europeus so citados como cultura gerale acionados para contar a histria dos direitos humanos. Na geopoltica
narrativa, os direitos humanos foram criados por alguns povos, euro-
peus e norte-americanos, e devem ser aplicados a outros povos, aqueles
que vivem na Amrica Latina, na frica e na sia, ou queles que vivem
em solo europeu e norte americano, mas so grupos minoritrios. Essa
caracterstica parece ter vrias causas. A primeira delas que os textos e
livros revelam pobreza na abordagem da categoria do sujeito, afirman-
do a todo momento atributos como dignidade do homem e dignidade
humana, sem problematizar esse conceito. Tambm colabora para isso ouso frequente de expresses genricas como bens culturais universais,
patrimnio literrio universal, patrimnio da humanidade. Ao se
investigar de que obras se compem esses coletivos ditos como univer-
sais, em geral ficamos com a citao de autores europeus. Dentre os eu-
ropeus, tanto obras em latim, da tradio crist, quanto obras polticas
francesas e inglesas, com pequena presena de autores alemes. Essa
amostra apresentada como algo universal. A confuso entre direitos
do homem, direitos humanos, direitos do cidado, representa uma ten-so que acompanha de longa data o campo dos direitos humanos:
[...] a declarao da revoluo francesa dos direitos do homem
ambivalente ao falar de direitos do homem e do cidado. Estas
duas palavras no esto l por acaso. Desde o incio, os direitos hu-
manos cultivam a ambiguidade de criar pertena em duas grandes
coletividades. Uma a coletividade supostamente mais inclusiva,
a humanidade, da os direitos humanos. A outra uma coletivida-
de mais restrita, a coletividade dos cidados de um determinadoEstado. Esta tenso tem desde ento assombrado os direitos hu-
manos. (SANTOS, 2013, p. 21)
Situados como estamos em uma sociedade de origem colonial,
defendemos a construo de uma viso dos direitos humanos que incor-
pore as experincias produzidas neste lado de c, e no tome apenas as
produes da metrpole para construir a noo dita universal de direitos
humanos. Afirmamos, em concordncia com Santos (2013), que o campo
dos direitos humanos tem contradies internas, e que no ser apresen-tando uma histria nica dele que vamos superar essa situao. Ao con-
trrio, ser assumindo que direitos humanos podem significar muitas
coisas, em diferentes contextos histricos, que poderemos construir um
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dilogo em que esse instrumento seja reconhecido como tendo uma
potente fora de emancipao. A narrativa e os modos de ensino dos
direitos humanos precisam assumir essa diretriz nos cursos de Direito, o
que implica, entre outras providncias, servir-se das produes tericas
e analticas de Histria e de Educao para estruturar currculos sobre
o tema.
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FERNANDO SEFFNER
Professor do Programa de Ps-Graduao em Educao e coordenador doGrupo de Estudos em Educao e Relaes de Gnero da Universidade Federaldo Rio Grande do Sul UFRGS
FABIANE SIMIONI
Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS e bolsista Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de NvelSuperior [email protected]
RENAN BULSING DOS SANTOS
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria UFSM ; mestre
em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected]
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CAROLINA NUNES DOS SANTOS
Graduada em Cincias Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande doSul UFRGS ; integrante do Ncleo de Antropologia e Cidadania NACi doDepartamento de Antropologia Social e do Grupo de Estudos em AntropologiaCrtica [email protected]
MILENE BOBSIN
Graduada em Histria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected]