FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    1/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    694

    CADERNOSDE

    PESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.

    2014

    NARRATIVAS DAORIGEM HISTRICADOS DIREITOS

    HUMANOS NOSMANUAIS DEDIREITOFERNANDO SEFFNER

    FABIANE SIMIONI

    RENAN BULSING DOS SANTOS

    CAROLINA NUNES DOS SANTOS

    MILENE BOBSIN

    OUTROS TEMAS

    http://dx.doi.org/10.1590/198053142866

    Os dados coletados para

    a elaborao deste artigoresultam do Projeto de

    Pesquisa Sentenas deconflitualidades de gneroe sexualidade: uma anlise

    das fontes, dos argumentosjurdicos e da formao

    curricular dos operadoresdo direito no Rio Grande

    do Sul, que tem comoinvestigador principal o

    Prof. Dr. Fernando Seffner,do Programa de

    Ps-Graduao emEducao da Universidade

    Federal do Rio Grande

    do Sul UFRGS. Oprojeto financiado pelo

    Conselho Nacional deDesenvolvimento Cientfico

    e Tecnolgico CNPq ,Chamada n. 32/2012,

    Processo n. 404827/2012-8.

    RESUMOTomando como corpus de anlise manuais sobre direitos humanos citados nabibliografia dos programas de disciplinas dos cursos de Direito do Estado do Rio

    Grande do Sul, apresentamos trs marcas frequentes no modo de narrar a histria

    dos direitos humanos ali presentes: o estatuto da fonte histrica, a noo de

    evoluo histrica e a pretenso de neutralidade. Estamos apoiados na afirmativa

    de que o modo de contar a histria dos direitos humanos traz implicaes diretas

    na definio do que sejam esses direitos. A narrativa histrica estabelece conexes

    possveis entre direitos humanos e determinados temas (por exemplo, direito de

    famlia), ao mesmo tempo em que dificulta ou impossibilita conexes dos direitos

    humanos com outros temas (por exemplo, direito empresarial).

    DIREITOS HUMANOS ENSINO SUPERIOR HISTORIOGRAFIA

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    2/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-719jul./set.2014

    695

    NARRATIVES ON THE HISTORIC ORIGINSOF HUMAN RIGHTS IN LAW MANUALS

    ABSTRACT

    Based on the human rights manuals cited in the bibliography of the Law program

    syllabi of the state of Rio Grande do Sul as the corpusof analysis, we present threecharacteristics frequently found in the recounting of the history of human rights:

    the statute of the historic source, the notion of historic evolution and the claim

    to neutrality. We are supported by the statement that the mode of recounting

    the history of human rights has direct implication in the definition of what these

    rights are. On the one hand, the historic narrative establishes possible connections

    between human rights and specific themes ( for example, family law). On the other

    hand, it inhibits or prevents connections between human rights and other themes

    (for example, business law).

    HUMAN RIGHT HIGHER EDUCATION HISTORIOGRAPHY

    NARRATIVAS DEL ORIGEN HISTRICODE LOS DERECHOS HUMANOS EN

    LOS MANUALES DE DERECHORESUMEN

    Tomando como corpus de anlisis manuales sobre derechos humanos citados

    en la bibliografa de los programas de disciplinas de los cursos de Derecho del

    Estado de Rio Grande del Sur, presentamos tres marcas frecuentes en el modo de

    narrar la historia de los derechos humanos all presentes: el estatuto de la fuente

    histrica, la nocin de evolucin histrica y la pretensin de neutralidad. Estamos

    apoyados en la afirmacin de que el modo de contar la historia de los derechos

    humanos trae implicaciones directas en la definicin de lo que sean esos derechos.

    La narrativa histrica establece conexiones posibles entre derechos humanos

    y determinados temas (por ejemplo, derecho de familia), al mismo tiempo que

    dificulta o imposibilita conexiones de los derechos humanos con otros temas (por

    ejemplo, derecho empresarial).

    DERECHOS HUMANOS ENSENANZA SUPERIOR HISTORIOGRAFA

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    3/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    696

    CADERNOSDE

    PESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.2014

    NARRATIVA, HISTORIOGRAFIA EEDUCAO EM DIREITOS HUMANOS

    ESTE TEXTO FRUTO DO CRUZAMENTO DE PREOCUPAES ORIUNDAS DE TRS REAS

    DO CONHECIMENTO:o Direito, a Histria e a Educao.1Vale narrar como

    chegamos sua proposio. Inicialmente, o projeto de pesquisa que d

    suporte a esta investigao se centrava na busca dos temas do gnero e

    da sexualidade nos currculos de graduao em Direito do estado do Rio

    Grande do Sul. Nossa hiptese, que logo se confirmou na anlise de um

    corpuscomposto por currculos de cursos de Direito no estado, era de

    que esses temas estariam prioritariamente inseridos nas disciplinas que

    versam sobre direitos humanos, ou em sees sobre direitos humanosno programa de algumas outras disciplinas, como direito de famlia (ao

    se abordarem tpicos como casamento e filiao, por exemplo). A anli-

    se desses programas, bem como a leitura das referncias bibliogrficas

    a indicadas, levou-nos a um percurso maior do que o esperado na avalia-

    o dos modos de ensinar direitos humanos. Sendo assim, deixamos de

    lado, por ora, as preocupaes com os temas do gnero e da sexualidade,

    e nos defrontamos com o grande tema dos direitos humanos. Mas no

    perdemos de vista um dos objetivos do atual projeto de pesquisa: inves-

    tigar possveis nexos entre o ensino de direitos humanos nas carreirasjurdicas e a produo de demandas e sentenas nos tribunais gachos

    em que a resoluo de conflitos no mbito do gnero e da sexualidade

    aponta para o arcabouo terico dos direitos humanos.

    1Esses trs vocbulos

    designam tanto substantivoprprio quanto substantivo

    comum. Optamos por

    graf-los com inicialmaiscula apenas quando

    os utilizamos enquanto reado conhecimento; e com

    inicial minscula quando otermo estiver sendo usado

    em seu sentido comum.

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    4/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-

    719jul./set.2014

    697

    Este texto, ento, se ocupa da educao em direitos humanos.

    Preocupa-se em analisar os programas das disciplinas e a bibliografia

    que compem esses cursos. Tanto nos programas como na quase totali-

    dade dos manuais investigados, recortamos um tpico sempre presente:

    o ensino de direitos humanos comporta sempre largos captulos dedica-

    dos histria dos direitos humanos pelo mundo e atravs dos tempos. aqui que o texto se encontra com a historiografia e mesmo com o

    campo da teoria da Histria: as estratgias de que se lana mo para con-

    tar a histria de algo trazem profundas implicaes na definio desse

    algo. A narrativa da histria dos direitos humanos incorpora importante

    dimenso pedaggica; pois, ao traar o percurso histrico dos direitos

    humanos, em boa parte j se define o que so os direitos humanos e

    o que eles podem vir a ser em nossa sociedade. Ao traar a origem e o

    desenvolvimento histrico de algo, de modo bem claro damos os

    principais contornos do que esse algo. Por exemplo, ao se servir decategorias como nossa sociedade, podemos narrar processos particu-

    lares a certos povos e culturas, mas que se tornam globais e universais,

    impondo-se a outros povos e pases que no tiveram a sorte de ter um

    protagonismo no campo dos direitos humanos. Dessa forma, por vezes,

    mesmo plenos de boas intenes, aqueles que narram a histria dos

    direitos humanos esto legitimando a imposio de marcas particulares

    de uma cultura sobre outras. O que se afirma universal , em matria

    de direitos humanos, a perspectiva hegemnica na disputa, aquela que

    venceu e se estabeleceu como a verdade histrica.

    Lembrando a preocupao inicial do projeto de pesquisa que deu

    origem a este texto, a estreita vinculao de gnero e sexualidade aos

    direitos humanos, acionada nas demandas judiciais e nas sentenas para

    resoluo de conflitos referentes a esses temas, fica sujeita em parte a

    essa forma de narrar a histria dos direitos humanos. E aqui o tema

    do nosso texto se aproxima da rea da educao, completando o trip

    que anunciamos de incio, pois implica lidar com o modo de dispor os

    contedos de direitos humanos nos currculos dos cursos de Direito.A todo momento, em nossa pesquisa, defrontamo-nos com essa carto-

    grafia que mostra os lugares onde os direitos humanos aparecem nos

    currculos (por exemplo, quando se fala dos direitos de famlia e dos

    direitos individuais, ou quando se fala do direito internacional e dos

    tratados internacionais) e os lugares onde os direitos humanos no apa-

    recem nos currculos dos cursos de Direito (por exemplo, quando se fala

    do direito econmico, do direito empresarial ou do direito tributrio2).

    Esse jogo de mostrar e esconder tem evidentes implicaes pedaggicas,

    e nos leva noo de currculo, central em Educao. O currculo podeser entendido como um percurso ofertado aos estudantes, que lhes apre-

    senta a pertinncia de alguns temas e conexes (direitos humanos tem a

    ver com a luta feminista pela equidade de gnero, ou direitos humanos

    2Os programas dos cursosde Direito analisadosno promovem umaaproximao dos direitoshumanos s questesdo mundo empresarial.Por outro lado, um

    acompanhamento dasmdias nos mostraque esta conexo ativamente produzidaem outros ambientes,como se pode ver emValor Econmico(2014).

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    5/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    698

    CADERNOSDE

    PESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.2014

    tem a ver com a luta contra o racismo e outras formas de intolerncia)

    e a ausncia ou pobreza de conexes possveis (direitos humanos no

    tm a ver com as regras do comrcio internacional, direitos humanos

    no tem a ver com o lucro das empresas, direitos humanos no tem a

    ver com situaes de desigualdade social entre os contratantes). Dessa

    forma, assumimos que a ignorncia no um subproduto da falta de co-nhecimento, mas algo ativamente produzido pelos desenhos curricula-

    res, em particular por conta desse jogo em que determinadas conexes

    so produzidas, e outras, escondidas ou secundarizadas, fornecendo o

    campo do conhecimento possvel.

    Em nossa compreenso, o Direito se apresenta como um produ-

    to social, em estreita conexo com as relaes de poder existentes a cada

    momento histrico na sociedade, e no como um dado a priori, confor-

    me discutido por Bourdieu (2009). A cincia jurdica no um sistema

    fechado e autnomo cujo desenvolvimento possa ser compreendido porsua dinmica e racionalidades prprias. O postulado de uma autonomia

    absoluta de pensamento e de ao para o Direito funda-se na atualizao

    reiterada da teoria pura de Kelsen (2009[1934]), que afirma um corpo

    doutrinrio e de regras completamente independente dos constrangi-

    mentos e das presses sociais, sendo o Direito fundamento de si prprio.

    Em sentido diverso, consideramos que o Direito no goza dostatusde ser

    indiferente histria. As prticas do Direito esto implicadas em cada

    momento histrico com os mecanismos disciplinares e normalizadores,

    o que no elimina a possibilidade de se produzir uma construo jur-

    dica como exerccio de prticas no normalizadoras (FONSECA, 2012,

    p. 35). De acordo com Kant de Lima (2008, p. 13), o mundo do direito se

    constitui em domnio afirmado como esfera parte das relaes sociais,

    onde s penetram aqueles fatos que, de acordo com critrios formula-

    dos internamente, so considerados jurdicos. Observa Bourdieu (2010)

    que o campo do direito, por suas prticas e discursos, universaliza de-

    terminadas representaes da normalidade ao canonizar determinadas

    prticas. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que normaliza, exclui ou-tras possibilidades dissidentes, no conformadas s regras. Essa univer-

    salizao no se d somente quando as conflitualidades so atravessadas

    pelo sistema de justia, em processos judiciais, mas tambm quando

    exercido o monoplio do direito de dizer a verdade, segundo uma

    determinada compreenso peculiar aos seus agentes e tericos, que se

    movem no terreno das certezas e dos valores absolutos, segundo a pr-

    pria tradio do saber jurdico no Brasil (KANT DE LIMA, 2008, p. 13).

    Feita essa introduo, apresentamos o modo de organizar o tex-

    to. No prximo item, desenhamos os traos essenciais do modo peloqual foram coletados os manuais que compem o corpusem anlise. A

    seguir, tomando por base esses manuais de referncia sobre os direi-

    tos humanos, presentes na bibliografia dos programas dos cursos de

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    6/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-719jul./set.2014

    699

    graduao em Direito, expusemos o panorama geral de como, nesses

    livros se conta a histria dos direitos humanos. A partir desse painel de

    informaes, apresentamos trs marcas frequentes no modo de narrar

    a histria dos direitos humanos: o estatuto da fonte histrica, a noo

    de evoluo histrica e a pretenso de neutralidade. Ao final, explicita-

    mos algumas consideraes, ainda marcadas pela provisoriedade, dadaa enorme dimenso do campo de pesquisa.

    A HISTRIA DOS DIREITOS HUMANOS NOSPROGRAMAS DE ENSINO: COLETA DE DADOSO corpusdeste projeto de pesquisa, parte do qual apresentado a seguir,

    compe as referncias bibliogrficas dos programas de ensino das dis-

    ciplinas de direitos humanos, ou das sees de direitos humanos em

    programas de outras disciplinas dos cursos de Direito do estado do RioGrande do Sul. A esse conjunto de obras, foram acrescidas leituras indi-

    cadas em ctedras de direitos humanos, em clnicas de direitos huma-

    nos ou em projetos de direitos humanos mantidos pelas universidades

    ou instituies isoladas que ofertam cursos de Direito no estado. Foi

    possvel tambm encontrar indicaes de autores e obras do campo dos

    direitos humanos nos projetos pedaggicos de alguns cursos de Direito,

    e at mesmo em textos de apresentao dos cursos, disponveis em geral

    nos sitesdas instituies. Por fim, alguns manuais de direitos humanos

    foram coletados em programas de disciplinas ou cursos ofertados nas

    faculdades de direito sobre temas de direitos sexuais e de direitos repro-

    dutivos. Esse esforo de coleta e sistematizao das informaes ainda

    est em andamento, e o que oferecemos abaixo uma prvia do que j

    foi analisado, visando a abrir o debate sobre o tema e crtica dos cole-

    gas inseridos neste campo de estudos.

    No estado do Rio Grande do Sul, territrio a que se restringiu

    esta pesquisa, foram localizados 47 cursos de graduao em Direito. Se,

    por um lado, conseguimos localizar todos, no foi possvel obter o mes-mo nvel de informao sobre todos. Alguns disponibilizam programas

    completos das disciplinas em sua pgina virtual, outros disponibilizam

    uma quantidade menor de informaes. Lanamos mo de outros recur-

    sos para obter os dados, mas ficamos longe de atingir a totalidade das

    informaes para o conjunto dos cursos. O corpuscoletado resultado

    de informaes centradas nos maiores cursos de Direito, localizados nas

    principais universidades e nas maiores cidades do estado. Renunciamos,

    dessa forma, a qualquer pretenso de representatividade quantitativa

    ou geogrfica na escolha dos dados que compuseram nossa amostra. Oque nos anima na direo de pensar que o texto traz um grau consider-

    vel de representatividade da realidade que se pretendeu abarcar que,

    a despeito do grande nmero de cursos de graduaes em Direito no

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    7/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    700

    CADERNOSDE

    PESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.2014

    estado, no se verifica uma proporcional diversidade curricular. H uma

    evidente homogeneizao dos currculos, e a esses tivemos acesso com-

    pleto3. Grande parte dos cursos apresenta um desenho curricular muito

    semelhante, e com alunos sujeitos a um mesmo critrio em termos de

    avaliao final: o exame de admisso como advogado pela Ordem dos

    Advogados do Brasil OAB e o Exame Nacional de Desempenho deEstudantes Enade. Como em quaisquer outros ramos do conhecimen-

    to, no Direito tambm existem mecanismos de padronizao do campo.

    A diversidade curricular, pensada a partir das demandas concretas de

    uma determinada parcela marginalizada com uma representao po-

    ltica dbil da sociedade, poderia ser um mecanismo produtivo para

    a promoo de um contraponto ao efeito da apriorizao da teoria e

    da prtica do Direito, em particular no campo dos direitos humanos. O

    efeito da apriorizao do Direito, como reflete Bourdieu (2010, p. 215),

    se expressa atravs de um trabalho contnuo de racionalizao, fazendoparecer que o sistema de normas jurdicas se impe de igual forma, in-

    dependentemente das relaes de fora que o Direito produz e tambm

    das quais produto, atravs de uma retrica da impessoalidade e da

    neutralidade.

    O processo de busca explicitado nos permitiu construir uma

    listagem de livros, em geral manuais, indicados para leitura nos cur-

    sos de Direito que se ocupam dos direitos humanos, e tais manuais

    foram, ento, analisados (BARRETO, 2012; ISIDORO, 2013; MACIEL,

    2012; MORAES, 2011; OLIVEIRA, 2012; SARMENTO, 2011; SILVA, 2013).

    Evitamos incorrer no risco intrnseco aleatoriedade de consultarmos

    obras que no costumam ser muito lidas. Vale lembrar que nosso foco

    analisar as estratgias que os autores lanam mo para contar a hist-

    ria dos direitos humanos, mas nem todos os livros so exclusivamente

    dedicados histria dos direitos humanos: temos manuais de direitos

    humanos em que alguns captulos so dedicados a contar essa histria,

    temos livros que enfocam especificamente a histria dos direitos huma-

    nos e temos livros abrangentes, incluindo manuais de preparao paraos exames da OAB (chamados em geral de Exames da Ordem), com cap-

    tulos sobre direitos humanos e, neles, conjuntos de informaes sobre

    a histria dos direitos humanos. Em todas essas obras, garimpamos as

    informaes e as referncias acerca da histria dos direitos humanos, e

    analisamos as estratgias narrativas adotadas pelos autores.

    Com base em tais critrios, buscamos a seo de referncias bi-

    bliogrficas para conferir quais autores tm sido os mais citados pelos

    operadores jurdicos que tm escrito sobre direitos humanos. Os prin-

    cipais autores nacionais so Fbio Konder Comparato e Flvia Piovesan.Dos estrangeiros, os principais nomes so Boaventura de Sousa Santos e

    Norberto Bobbio. Entre a produo acadmica nacional, a obraAfirmao

    histrica dos Direitos Humanos, de Fbio Konder Comparato (2005), desponta

    3Foi possvel localizar o

    sitede todos os cursos deDireito do estado do RioGrande do Sul. Nos sites,

    via de regra, apresenta-se a estrutura curriculardo curso, detalhando asdisciplinas. Para alguns

    cursos, possvel conhecero programa das disciplinas

    tambm pela web, assimcomo as referncias

    bibliogrficas. Em muitoscasos, solicitamos via e-mail

    o programa, que nos foienviado pela secretariaacadmica. tambm

    possvel identificar aspectosdo projeto pedaggico

    do curso, saber sobre as

    atividades realizadas elocalizar grupos de pesquisa

    ou de discusso sobredireitos humanos utilizando

    mecanismos de buscados sitesdas instituies.

    Em muitos casos, estodisponveis os nomes e

    linkspara o currculo daPlataforma Lattes dos

    docentes, sendo entopossvel saber se aquelesque lecionam disciplinasde direitos humanos tm

    produo bibliogrficasobre o tema, o que foi

    encontrado apenas de modoresidual nesta pesquisa. A

    coleta de dados apresentouento um perfil bastante

    irregular, ao sabor do modocomo cada instituio se

    apresenta pela web.

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    8/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-719jul./set.2014

    701

    como uma das mais citadas. Embora consideradas obras clssicas no cam-

    po dos direitos humanos, elas dividem o cenrio com uma grande quan-

    tidade de manuais, que foram os livros por ns analisados, de forte

    presena nas bibliografias. Nossa linha de corte considera que os autores

    acima citados so pesquisadores nacionais ou estrangeiros do cam-

    po dos direitos humanos, e os autores de manuais esto envolvidos napopularizao do conhecimento cientfico, oferecendo aos leitores uma

    sistematizao til e objetiva para quem cursa as disciplinas ou se pre-

    para para concursos na rea. Estamos aqui apoiados em grande nmero

    de pesquisas na rea da Educao em que se problematizam os efeitos de

    testes, exames e avaliaes de grande impacto como so os Exames da

    Ordem e o Enade sobre os programas de ensino de cursos de graduao.

    O fenmeno pode ser observado atentando para o fato de que as insti-

    tuies de ensino e os prprios professores buscam conhecer a estrutura

    dos exames, e inserir em seus planos de ensino estratgias pedaggicas,leituras e provas que permitam aos alunos uma preparao adequada ao

    sucesso nas avaliaes de grande impacto (SCARAMUCCI, 2004; CERRI,

    2004, BURLAMAQUI, 2008). Dessa forma, o currculo desenvolvido pelos

    cursos de graduao ganha ares de currculo de cursos preparatrios, o

    que em parte explica o uso de manuais na formao inicial.

    Em nosso percurso de anlise no prximo item, algumas pergun-

    tas serviro de guia: a) a que autores da rea da Histria os juristas recor-

    rem? b) quais perspectivas tericas so utilizadas na narrao histricado surgimento e desenvolvimento das instituies de direitos humanos?

    c) a escolha de obras histricas para fundamentar a histria dos direitos

    humanos se d a partir de argumentao sobre a anlise de um amplo

    corpus, ou os autores no explicitam os motivos que os levaram a prefe-

    rir esta ou aquela fonte histrica ou obra de referncia? d) a histria

    tomada como sendo nica, ou se opera com a ideia de muitas histrias

    possveis, muitos passados possveis? e) adota-se o paradigma da histria

    universal? f) a narrativa da histria dos direitos humanos vista como

    a nica possvel, ou se admitem outras narrativas possveis, fruto deoutras fontes e de outras tradies tericas e histricas? g) a narrativa

    histrica dos direitos humanos admite que possa ser incompleta, ou se

    pretende desde sempre completa e j definida?

    TRS MARCAS RECORRENTES NO MODO DENARRAR A HISTRIA DOS DIREITOS HUMANOSPara desenvolver a anlise que segue, selecionamos, do grande nmero

    de obras coletadas, sete manuais que continham sees ou captulos vol-tados para cronologia, histria ou histrico dos direitos humanos. Eles

    foram, ento, lidos, e serviram de suporte para anlise. Tomamos livros

    com boa frequncia nos programas de ensino de direitos humanos dos

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    9/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    702

    CADERNOSDE

    PESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.

    2014

    cursos de graduao. Com isso, a amostra apresenta certa homogenei-dade, no recebendo nenhum autor uma distino maior do que outro,embora reconheamos que essa afirmao de homogeneidade ainda ca-rece de maior apoio estatstico. A anlise do corpuspermitiu identificartrs marcas recorrentes na escrita dos textos que contam a histria dos

    direitos humanos, todas dizendo respeito ao uso da Histria pelos auto-res. Organizamos a exposio a partir dessas marcas.

    O ESTATUTO DA FONTE HISTRICA: O USO DA BBLIA EDE TEXTOS DE AUTORES RELIGIOSOS COMO DOCUMENTO

    Uma das principais marcas da escrita do texto histrico a utili-zao de fontes. De modo bastante particular a partir da chamada Escolados Anais,4o conceito de fonte histrica experimentou modificaes ex-pressivas. Duas dessas modificaes so relevantes ao pensar a histriados direitos humanos. A primeira delas que o documento escrito foidestronado de seu papel primordial, e passou a conviver ao lado de ima-gens, filmes, estaturia, memria oral, obras de arte, fragmentos liter-rios, vestgios arqueolgicos etc. (PEREIRA; SEFFNER, 2008). A segundamodificao diz respeito possibilidade de criticar, lanar hipteses eat mesmo duvidar do teor do documento histrico, que perde seu car-ter de ilustrao ou testemunho:

    A partir da perspectiva dos novos historiadores (LE GOFF, 2005)5

    e, sobretudo, em funo da contribuio de Michel Foucault(1987),6o documento se torna monumento, ou seja, ele rastro

    deixado pelo passado, construdo intencionalmente pelos homens

    e pelas circunstncias histricas das geraes anteriores. O docu-

    mento no mais a encarnao da verdade, nem mesmo pode ser

    considerado simplesmente verdadeiro ou falso. O ofcio do his-

    toriador deixa de ser o de cotejar o documento para verificar sua

    veracidade, e passa a ser o de marcar as condies polticas da

    sua produo. O documento/monumento um engenho poltico,

    um instrumento do poder e, ao mesmo tempo, uma manifesta-o dele. Os documentos so monumentos que as geraes ante-

    riores deixaram. Eles so construes a partir de onde os homens

    procuraram imprimir uma imagem de si mesmos para as geraes

    futuras. (PEREIRA; SEFFNER, 2008, p. 112-113)

    O uso da Bblia como fonte para traar a origem dos direitoshumanos no interior dos manuais analisados recorrente, e se confi-gura como problemtico por ser um recurso a verdades apresentadas

    como incontestveis. No h uma crtica ao documento, revelando umacompreenso j ultrapassada entre os historiadores. Afirmaes acercado contedo da Bblia, ou afirmaes acerca do Cristianismo tomandocomo base a Bblia so feitas e tomadas como verdades histricas, jamais

    4De modo sucinto, a Escola

    dos Anais designa ummovimento de cunho

    historiogrfico, ao qualesto associados nomes

    como Marc Bloch e FernandBraudel, dentre outros,

    combinando elementosde Histria, Geografiae Cincias Sociais na

    produo do conhecimento.

    5LE GOFF, Jacques.A

    Histria Nova. So Paulo:

    Martins Fontes, 2005.

    6FOUCAULT, Michel.Aarqueologia do saber.

    Rio de Janeiro: ForenseUniversitria, 1987.

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    10/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-719jul./set.2014

    703

    acompanhadas por alguma problematizao ou pela discusso de que

    os documentos so uma produo dos antigos que assim buscavam im-

    primir uma imagem de si mesmos para as geraes futuras, como se

    verifica no excerto Com o Cristianismo, o Direito deixa de ser uma

    ddiva do rei, ou do Estado, para ser um imperativo da dignidade do ser

    humano (SILVA; SOBREIRA, 2013, p. 177). O carter sagrado do texto b-blico, atribudo pelas religies judaico-crists, que assim o consideram,

    confere-lhe um feitio divino, impedindo a sua discusso o que no

    deveria ocorrer com fontes propriamente histricas, que podem, a qual-

    quer tempo, ser confrontadas com novas provas em sentido diferente

    ou at contrrio ao que elas j significaram. As informaes referencia-

    das da Bblia, utilizadas para construir a narrativa histrica dos direitos

    humanos, no so tomadas nos sete manuais analisados como ponto

    inicial do debate, elas so apresentadas como ilustrao de uma verdade

    intrnseca ao documento, e, por extenso, vinculadas ao cristianismo:

    Como ressaltado por Afonso Arinos de Mello Franco, no se pode

    separar o reconhecimento dos direitos individuais da verdadeira

    democracia. Com efeito, a idia democrtica no pode ser desvin-

    culada de suas origens crists e dos princpios que o Cristianismo

    legou cultura poltica humana: o valor transcendente da criatura,

    a limitao do poder pelo Direito e a limitao do Estado pela jus-

    tia. Sem respeito pessoa humana no h justia e sem justia

    no h Direito (Curso de direito constitucional brasileiro. Rio de

    Janeiro: Forense, 1958, v. I, p. 188). (MORAES, 2011, p. 3)

    O problema do uso da Bblia se repete quando so citados o

    Cdigo de Hamurabi, as falas de So Toms de Aquino, excertos de ar-

    tigos do direito romano antigo, a Declarao dos Direitos do Bom Povo

    da Virgnia, a Magna Carta de Joo Sem Terra, textos e proclamas da

    Revoluo Francesa, ou a simples organizao do homem na vida em

    sociedade. Se na Bblia est proclamado o valor da igualdade entre os ho-mens, essa afirmao no problematizada nem contextualizada, no

    se marcam as condies polticas e histricas da produo dessa afirma-

    o, ela tomada ao p da letra, e imediatamente apresentada como

    suposta origem dos direitos humanos, que tambm falam em igualdade

    entre os seres humanos:

    Se formos pensar bem, os direitos humanos surgem com a pr-

    pria organizao da sociedade. A doutrina aponta, por exemplo,

    o Cdigo de Hamurbi como a primeira compilao de direitos

    humanos, isso por volta de 1790 a.C. Outro marco histrico apon-

    tado por alguns a Magna Carta, do rei Joo Sem Terra, de 1215,

    cujo ponto positivo era a limitao dos poderes do rei. Existem

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    11/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    704

    CADERNOSDE

    PESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.2014

    trs grandes movimentos sociais que merecem destaque em nos-

    sa evoluo: a Declarao de Direitos (Bill of Rights), de 1689; a

    Declarao de Independncia dos EUA, em 1776; e a Revoluo

    Francesa, com a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado,

    em 1789. (ISIDORO, 2013, p. 20)

    A comparao entre elementos de diferentes perodos histri-

    cos no tarefa proibida na anlise histrica, mas deve ser cercada de

    cuidados. Na citao acima, a afirmao de que os direitos humanos

    surgem com a prpria organizao da sociedade faz o autor incorrer

    em anacronismo, operao de anlise histrica em que se atribui a de-

    terminado perodo histrico valores surgidos em outra poca. No pos-

    svel acreditar que a mera organizao dos indivduos para a vida em so-

    ciedade em tempos muito recuados tenha implicado o surgimento dos

    direitos humanos. Mas o uso da Bblia apresenta outro problema igual-mente grave para a construo da narrativa histrica. O statusda Bblia

    como fonte histrica implica tambm apresentar a Histria cincia (ou a

    Histria como narrativa mestra da vida) como um saber revelado, com

    ar proftico, sujeito a uma manifestao progressiva no seio da histria

    humana, algo que, claramente, vem de fora da histria, de um tempo

    que existe desde sempre, que no o tempo histrico. Com isso, algu-

    mas verdades so apresentadas como produto mais da revelao de algo

    intrnseco humanidade do que propriamente resultado de conjuneshistricas e polticas. Isso fica claro, por exemplo, no trecho a seguir:

    Para S. Toms de Aquino (1225 - 1274), grande filsofo cristo, o

    homem seria um composto de substncia espiritual e corporal.

    Seus ensinamentos fizeram ganhar fora o ideal do princpio da

    igualdade essencial entre todos os seres humanos, sendo exata-

    mente essa igualdade de essncia da pessoa humana que forma

    o ncleo do conceito universal de direitos humanos. Esses direitos

    resultam da prpria natureza humana, no sendo meras criaespolticas. (MACIEL, 2012, p. 322)7

    As afirmaes acerca da natureza humana no so analisadas

    como produto de conjunturas histricas, culturais e polticas. O autor,

    apoiado na afirmao de S. Toms de Aquino, remete para fora da his-

    tria humana a criao da suposta essncia dos direitos humanos, en-

    raizados numa tambm suposta natureza humana, que existiria desde

    sempre. A citao de excertos de pensadores cristos e de excertos da

    Bblia levam a concluir que, ao fim e ao cabo, os direitos humanos te-riam sido criados no seio de uma determinada f religiosa, no por acaso

    aquela que melhor representa o Ocidente, o cristianismo. A principal

    operao histrica que deixa de ser feita a aquela de no investigar

    7O livro Formao

    humanstica em Direitotem como coordenador

    Jos Fbio Rodrigues

    Maciel (2012) e abrigacaptulos de outros autores.

    Mas o captulo sobredireitos humanos de

    autoria do coordenador,e apenas ele foi utilizado

    em nossa anlise.

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    12/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-719jul./set.2014

    705

    outras gramticas da dignidade humana, presentes em outras socieda-des, em particular no Oriente, ou mesmo no Ocidente ainda no desco-berto pelos europeus, e posteriormente colonizado por estes. Tal modode organizar a narrativa histrica dos direitos humanos, profundamente

    vinculado Bblia e ao cristianismo no se encontra apenas nos manuais

    em anlise:

    A justificativa religiosa da preeminncia do ser humano no mundo

    surgiu com a afirmao da f monotesta. A grande contribuio

    do povo da Bblia humanidade, uma das maiores, alis, de toda

    a Histria, foi a idia da criao do mundo por um Deus nico e

    transcendente. Os deuses antigos, de certa forma, faziam parte do

    mundo, como super-homens, com as mesmas paixes e defeitos

    do ser humano. Iahweh, muito ao contrrio, como criador de tudo

    o que existe, anterior e superior ao mundo. Diante dessa trans-cendncia divina, os dias do homem, disse o salmista, so como

    a relva; ele floresce como a flor do campo, roa-lhe um vento e j

    desaparece, e ningum mais reconhece o seu lugar (Salmo 103).

    (COMPARATO, 2005, p. 1-2)

    Ainda quanto aos problemas pelo uso da Bblia, e pelo modocomo os documentos histricos so tomados, vale salientar novamentea pouca problematizao feita em torno das afirmativas, que so apre-

    sentadas como claras e transparentes, no admitindo outras possibili-dades de interpretao. o caso quando os autores afirmam ter sido ocristianismo pioneiro em postular a igualdade humana. Como exemplo,cite-se: O cristianismo foi a primeira doutrina a defender a igualdadeentre as pessoas humanas, sem qualquer distino (SARMENTO, 2011,p. 14) e O Cristianismo trouxe como aporte de suas ideias os princ-pios da dignidade intrnseca do ser humano, o princpio da fraternidadehumana e o princpio da igualdade essencial de todos por sua origemcomum (SILVA; SOBREIRA, 2013, p. 177). A despeito da fcil acolhidaentre os juristas, essa afirmao no consenso entre os historiadores,ou pelo menos no sem algumas ponderaes:

    Comparado com a maioria das outras religies, o cristianismo era

    simptico s mulheres. Considerava que suas almas fossem iguais

    s dos homens aos olhos de Deus e julgava que a natureza hu-

    mana s se completava em ambos os sexos. Entretanto, desde os

    primeiros tempos os cristos partilharam o ponto de vista de seus

    contemporneos segundo o qual, na vida cotidiana e no casamen-

    to, as mulheres deveriam ficar rigorosamente sujeitas aos homens.

    (BURNS, 1989, p. 186)

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    13/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    706

    CADERNOSDE

    PESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.2014

    Pelo modo como os juristas narram, tem-se a impresso anacrni-

    ca de a ideia moderna de igualdade de direitos ter-se disseminado desde

    (e em conjunto) com a difuso da religio crist:

    Posteriormente, a forte concepo religiosa trazida pelo

    Cristianismo, com a mensagem de igualdade de todos os homens,independentemente de origem, raa, sexo ou credo, influenciou

    diretamente a consagrao dos direitos fundamentais, enquanto

    necessrios dignidade da pessoa humana. (MORAES, 2011, p. 6)

    Ao incluir raa, sexo e credo na pregao da igualdade entre os

    homens proclamada pelo cristianismo, o autor claramente parece es-

    quecer que homem e mulher no so iguais perante a doutrina crist,

    no desfrutam dos mesmos horizontes na vida.8Esse um tema muito

    sensvel, por exemplo, no seio da igreja catlica romana at os dias dehoje, longe de estar resolvido. Vale dizer que o que o autor chama de

    sexo no texto em verdade seria mais bem definido pelo conceito de

    gnero, pois envolve as diferenas entre masculino e feminino.9 Mas

    se tomarmos ao p da letra a palavra sexo, e pensarmos nas diferentes

    orientaes sexuais, mais claramente ainda veremos que a doutrina cris-

    t, em praticamente toda a sua diversidade (luteranos, anglicanos, pen-

    tecostais, neopentecostais, catlicos romanos, calvinistas), opera com o

    postulado da heteronormatividade, no admitindo patamar de igualda-

    de para outras orientaes sexuais e conjugalidades da decorrentes. Ao

    tratar da raa, o autor igualmente parece esquecer que a igreja catlica

    romana, por exemplo, passou sculos sem considerar os negros como

    tendo o mesmo patamar de igualdade dos brancos. Vale dizer que a des-

    coberta do Brasil se d dentro do marco da expanso portuguesa, ani-

    mada por um esprito cruzadstico e de conquista. Dessa forma, mesmo

    com numerosas advertncias para que os escravos fossem bem tratados

    e no fossem alvo de abusos dos senhores, a instituio da escravido

    no foi questionada.10E quanto igualdade em termos de credo, no casodo Ocidente, apenas aps o processo de secularizao e o advento da

    laicidade do Estado, com a progressiva separao entre o pertencimento

    territorial (feudo ou estado nao) e a pertena religiosa, na maioria das

    democracias, a igreja catlica romana tolerou a convivncia entre pessoas

    de diferentes credos na mesma sociedade.11Nosso objetivo aqui no

    atacar os dogmas cristos ou aqueles da igreja catlica romana, mas

    mostrar que no possvel construir as conexes entre pensamento

    cristo e origens dos direitos humanos sem problematizar esses aspec-

    tos. Em Sarmento (2011), a afirmao peca pela excessiva generalizao,deixando de problematizar o longo processo de conquista de direitos

    envolvendo dimenses de raa, classe, cor da pele, gnero, sexualidade,

    nacionalidade, pertencimento religioso etc.

    8Estamos nos referindotanto s expectativas

    diferenciadas de gneropropostas pela doutrinacrist (atribuies tidas

    como prprias do homemdiferentes daquelas prprias

    da mulher), como tambmao fato de a hierarquia

    poltica catlica romanapermanecer desde sempre

    restrita aos homens (osacramento da ordem, oexerccio do sacerdcio,

    no est disponvel smulheres). Em algumas

    confisses religiosas crists,tal como alguns credos

    luteranos, a mulher podealcanar graus hierrquicos

    mais elevados, mas soconquistas recentes.

    9A esse respeito,

    complementa Burns: [...]o cristianismo reforoua concepo antiga de

    que a principal funo damulher na terra era servir

    de me. Recomendava-sea homens e mulheres queno sentissem prazer nemsequer no coito conjugal,

    mas que o praticassem to-somente com o propsito

    de gerar filhos. As mulheresseriam salvas pela sua

    maternidade (I Timoteo 2,15). [...] Esperava-se quequase todas as mulheresse tornassem esposas emes submissas. Como

    esposas, no deveriam tervida prpria, nem haviacogitao de educ-las

    ou mesmo alfabetiz-las(BURNS, 1989, p. 186-187).

    10Verificamos isso em

    diversas fontes, como o caso das Constituies

    Primeiras do Arcebispadoda Bahia, bem como naBula Romanus Pontifex,

    que autorizava a escravidode todos os no cristos,

    muitos deles negros.

    11A poltica oficial anterior

    seguia o esprito da BulaNicet ad Capiendos (1231),

    instituidora da SantaInquisio, cujo objetivo era

    investigar e punir prticascontrrias ao projeto de

    humanidade crist.

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    14/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-

    719jul./set.2014

    707

    Em resumo, na amostra de sete manuais analisados, as refern-

    cias ao cristianismo no so tratadas como fontes histricas passveis de

    crtica, elas desfrutam de um patamar de verdade mais elevado. O uso

    desses excertos dialoga muito bem com a noo de doutrina, termo que

    em geral designa o conjunto de saberes jurdicos sobre um tema, no

    caso, os direitos humanos. A Bblia um livro histrico, e de fato podeser utilizada como fonte documental para a compreenso de aspectos

    sobre a vida na antiguidade. Porm tal s pode ser feito se a Bblia for

    lida e cotejada com outras obras, e acompanhada da explicitao de um

    referencial terico que qualifique a noo de documento monumento.

    Paralelo a isso, h a importncia do cristianismo enquanto um movi-

    mento que, para alm dos seus aspectos religiosos, est profundamente

    atrelado ideia de civilizao. As conexes entre a dominao colonial

    e a evangelizao (converso de pessoas especialmente para a doutrina

    crist, e para a religio catlica romana de forma predominante no casodo continente latino-americano) so estreitas, como apontam as rela-

    es ntimas entre as antigas metrpoles e igrejas crists.

    Por fim, vale ressaltar que a Bblia aparece dispersa ao longo

    dos sete manuais analisados, na forma de epgrafes, que abrem diversos

    captulos sobre diferentes temas. Para a questo que aqui nos interessa,

    a narrativa histrica dos direitos humanos, encontramos nos captulos

    a ela dedicada, dentre muitas outras: Exerce o Senhor a Justia, e a to-

    dos os oprimidos restitui o Direito (Salmo 102:6) (OLIVEIRA, 2012) e Oque v com bons olhos ser abenoado, porque d do seu po ao pobre

    (Provrbios 22.9) (BARRETO, 2012).

    A NOO DE EVOLUO NA HISTRIA

    A ideia de que as coisas evoluem (no sentido de que melho-

    ram com o tempo, o novo substituindo o velho, e o novo entendido

    como necessariamente melhor do que o velho, por ser mais aprimo-

    rado ou simplesmente por ser novo) um postulado modernista, for-

    temente vinculado noo de progresso. Essa noo de evoluo estmuitas vezes em sintonia com elementos da teoria evolucionista de

    Darwin, especialmente com certa noo de que os que sobrevivem so

    supostamente os melhores (STRAUSS; WAIZBORT, 2008). Pensado a

    partir desses elementos, o Cdigo de Hamurbi sempre ser pior que os

    cdigos civis subsequentes no tempo, estar sempre em atraso. Serviu

    de germe para algo melhor, e essa foi sua funo. Isso leva a pensar que

    a funo de alguns artefatos histricos (no caso, esses cdigos antigos,

    de sociedades que no existem mais) servir para auxiliar na formao

    de algo ento inacabado, os direitos humanos. Por vezes, ao contar ahistria da evoluo dos direitos humanos, o texto ocupa o espao de

    algo que seria mais til, que seria mostrar a quem vem servindo, como

    vem funcionando hoje em dia, como se legitimam os direitos humanos.

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    15/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    708

    CADERNOSDE

    PESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.2014

    Esse postulado orienta fortemente a narrativa histrica dos direitos

    humanos nos livros analisados. Ao mostrar valores e ideias antigas, de c-

    digos de outras pocas, tudo parece servir para que se conclua que o atual

    patamar dos direitos humanos avanado, pois se v de onde viemos, de

    como as coisas eram precrias, e onde estamos agora. A noo de evoluo

    anda de braos dados com o anacronismo, pois se identificamos os direitoshumanos, j em sua essncia, em algum perodo recuado da histria, e o

    comparamos com os direitos humanos que temos nos dias de hoje, fica fcil

    estabelecer um olhar de que tivemos uma progressiva melhoria daquilo

    que, em essncia, j estava dado desde o incio. Basta um exame dos ttulos

    e subttulos dos sumrios dos livros para que essa noo fique destacada:

    Captulo IX. Direitos humanos Item 1.6 A evoluo dos direitos

    humanos a partir de 1945 (MACIEL, 2012, p. 325)

    4. Evoluo Histrica dos Direitos Humanos fundamentais

    (MORAES, 2011, p. 6)

    5. Evoluo Histrica dos Direitos Humanos fundamentais na

    Constituio Brasileira (MORAES, 2011, p. 13)

    7. Direito internacional dos direitos humanos: conceito, finalidade e

    evoluo histrica. (MORAES, 2011, p. 17)

    Captulo 1: Direitos Humanos fundamentais: Evoluo Histrica

    (SARMENTO, 2011 p. 13)

    1. Teoria Geral

    1.5 Evoluo Histrica (ISIDORO, 2013, p. 19)

    Cap. 2: Breve evoluo dos direitos humanos (OLIVEIRA, 2012, p. 21)

    A narrativa histrica serve para identificar, na contemporanei-

    dade, pases, sociedades e regimes polticos que esto situados ainda

    no tempo do atraso, que no chegaram aos limiares do contempor-

    neo, e que necessitam ento ser trazidos ao patamar mais elevado dos

    direitos humanos. Esse corte em geral acompanhado pela hierarqui-

    zao Ocidente-Oriente. So os pases do Oriente que esto em dbito

    com os direitos humanos, e so os pases do Ocidente que fornecem o

    horizonte para onde se deve migrar em termos de direitos humanos.

    Concentramo-nos aqui em um dos livros da amostra, para verificar omodo como esse argumento traado, e nos permitimos citar diver-

    sos excertos do mesmo autor, uma vez que esta estratgia se repete de

    modo muito semelhante nos sete manuais analisados:

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    16/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-719jul./set.2014

    709

    Contudo, foi o Direito romano que estabeleceu um complexo

    mecanismo de interditos visando tutelar os direitos individuais

    em relao aos arbtrios estatais. A Lei das Doze Tbuas pode

    ser considerada a origem dos textos escritos consagradores da

    liberdade, da propriedade e da proteo dos direitos do cidado.

    (MORAES, 2011, p. 6)

    O forte desenvolvimento das declaraes de direitos humanos

    fundamentais deu-se, porm, a partir do terceiro quarto de sculo

    XVIII at meados do sculo XX. (MORAES, 2011, p. 7)

    Posteriormente, e com idntica importncia, na evoluo dos direi-

    tos humanos encontramos a participao da revoluo dos Estados

    Unidos da Amrica, onde podemos citar os histricos documen-

    tos: Declarao de Direitos de Virgnia, de 16-6-1776; Declarao deIndependncia dos Estados Unidos da Amrica, 4-7-1776; Constituio

    dos Estados Unidos da Amrica, de 17-9-1787. (MORAES, 2011, p. 8)

    A evoluo histrica da proteo aos direitos humanos fundamen-

    tais em diplomas internacionais relativamente recente, iniciando-se

    sem importantes vinculaes de carter-vinculativo, para posterior-

    mente assumirem a forma de tratados internacionais, no intuito de

    obrigarem os pases signatrios ao cumprimento de suas normas.

    (MORAES, 2011, p.17)

    A Declarao Universal dos Direitos Humanos reafirmou a crena

    dos povos das Naes Unidas nos direitos humanos fundamentais,

    na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de di-

    reitos do homem e da mulher, visando promoo do progresso

    social e melhoria das condies de vida em uma ampla liberdade.

    (MORAES, 2011, p. 17)

    A trajetria sempre a mesma. Partindo de uma ou duas socie-dades especficas (Grcia ou Roma antigas), ou de uma religio (o cristia-nismo), os direitos humanos rapidamente se tornam internacionais. Osmarcos histricos dessa evoluo tambm no variam e no so proble-matizados, e os principais documentos aparecem nos excertos acima.Para alem do uso abusivo da noo de evoluo, a lgica dessa evoluo: algo nasce na antiguidade greco-romana, toma o rumo do Ocidente(Europa e Estados Unidos da Amrica), onde se aperfeioa e chega emsua forma global, ou universal, e depois vai cumprir sua tarefa civiliza-tria junto s sociedades pobres e atrasadas do terceiro mundo, leia-se

    sia, frica e Amrica Latina.

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    17/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    710

    CADERNOSDE

    PESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.2014

    A PRETENSO DE NEUTRALIDADE

    A pretenso de um texto neutro, ditado a partir de um local fora

    da histria, de onde se assiste ao desenvolvimento da histria humana e

    se pronunciam as verdades sobre esse processo, uma das marcas fortes

    da narrativa histrica dos direitos humanos, em estreita conexo com

    as duas marcas j apresentadas. Ela conseguida pelo uso de diversasestratgias. A primeira delas o apagamento das marcas que identi-

    ficam o autor e suas conexes com o relato apresentado. No se faz

    esforo algum para situar a posio do autor da obra (homem, branco,

    provavelmente cristo ou catlico, ocidental, moderno, dotado de certa

    concepo de razo) em relao histria que est sendo narrada (ela

    prpria uma histria dos homens, brancos, cristos ou catlicos, ociden-

    tais, modernos, dotados de certa concepo de razo). Nesse sentido, a

    histria da humanidade tomada como nica, um relato singular, no

    se admitindo a possibilidade de outras histrias, e muito menos proble-matizando o modo como essa narrativa singular construda, e depois

    universalizada, tornando-se sinnimo de histria da humanidade. Ficam

    tambm ausentes dos manuais analisados os conflitos entre centro e

    periferia, dominantes e dominados, escravos e homens livres, ociden-

    tais e orientais, que acompanham na modernidade a narrativa de uma

    histria global, ditada pelo ritmo do ocidente, mas plena de tenses e lo-

    calismos. Os manuais analisados se valem de uma historiografia clssica

    dos direitos humanos. No encontramos referncias a outras narrativashistricas dos direitos humanos nos livros analisados, como aquelas que

    utilizam o materialismo histrico dialtico (TRINDADE, 2011). A tomada

    de posio em favor de uma histria nica colabora para que o texto dos

    manuais analisados expresse uma concepo do Direito como um cam-

    po no determinado ou fracamente influenciado pela lgica poltica

    de cada momento histrico:

    As prticas e os discursos jurdicos so, com efeito, produto do

    funcionamento de um campo cuja lgica especfica est dupla-mente determinada: por um lado, pelas relaes de fora espec-

    ficas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de

    concorrncia ou, mais precisamente, os conflitos de competncia

    que nele tem lugar e, por outro lado, pela lgica interna das obras

    jurdicas que delimitam em cada momento o espao dos poss-

    veis e, deste modo, o universo das solues propriamente jurdicas.

    (BOURDIEU, 2010, p. 211)

    Ao operar com essa noo de dupla determinao, Bourdieu bus-ca evitar dois riscos que ele identifica como frequentes. Por um lado,

    perceber as produes no campo do Direito como reflexo direto de si-

    tuaes polticas e lutas de poder externas ao campo, o que conduziria

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    18/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694

    -719jul./set.2014

    711

    a pensar o que foi codificado como direito como mera expresso, em

    linguagem jurdica, do resultado das lutas sociais a cada momento. Por

    outro lado, busca evitar a noo to cara aos juristas de que o corpo

    de doutrina cresce e se desenvolve de modo independente e autnomo

    das lutas sociais, fruto da reflexo minuciosa de um corpo especializado

    de indivduos que operam num territrio livre de contingncias. Estasegunda noo casa muito bem com uma reiterada afirmao de que

    os juzes gozam de autonomia para decidir, independentes de presses

    sociais, de forma a dar, a cada caso, a melhor soluo, do ponto de vista

    do direito e da doutrina, o que , nessa tica, quer dizer o mesmo que

    dar a melhor soluo do ponto de vista da justia.

    Nos textos analisados, isso se explicita de outra forma bastan-

    te curiosa: o uso reiterado que fazem os juristas autores desses livros

    das obras de outros juristas, autores de livros tambm sobre os direitos

    humanos. Assim, a histria dos direitos humanos se narra quase sem acitao de historiadores. Os historiadores que aparecem citados se res-

    tringem aos cones da Histria, e que nunca se debruaram sobre o cam-

    po do Direito, e cuja existncia se perde nos confins da histria, sendo

    mesmo anterior constituio desta como disciplina, como Herdoto

    e Xenofonte, ou Fustel de Coulanges e Toynbee. Ocupam um espao

    importante na narrativa histrica dos direitos humanos nas obras anali-

    sadas em nosso corpusos contratualistas do Iluminismo, que se ocupam

    de temas histricos enquanto abordam temas polticos amplos, como

    Hobbes, Locke e Rosseau. Curiosamente, ou estamos entre os gregos, ou

    entre franceses e ingleses. Mais curioso ainda: restringem-se a autores

    que se ocuparam da histria da humanidade, das grandes civilizaes,

    grandes olhares sobre a humanidade desde as suas origens, mas nada

    aplicado ao campo do Direito especificamente. No problematizaram

    propriamente as prticas de justia, mas propuseram sistemas de re-

    gulao dos principais conflitos essenciais para a transio do Antigo

    Regime para a Modernidade (conflitos de famlia, propriedade, Estado)

    com base em princpios de justia organizados para esse fim especfico.Portanto, so princpios de justia no universais, mas que so narrados

    nos textos de direitos humanos como sendo universais. O uso desses

    autores traz outras vantagens: eles parecem estar acima de qualquer

    suspeita, pois desfrutam de um statusconsolidado para a inaugurao

    do campo da Histria, e eles do ao texto um ar de erudio. Por outro

    lado, esse recurso deixa claro que os autores que contam a histria dos

    direitos humanos no se debruaram sobre a produo historiogrfi-

    ca sobre o campo jurdico dos ltimos anos. Seria como se, ao fazer a

    anlise sociolgica de um objeto especfico (por exemplo, o Direito), osautores citassem apenas Auguste Comte. Sem embargo da importn-

    cia histrica do autor, considerado de forma consensuada o fundador

    da Sociologia, seu uso como fonte estrita para a anlise dos problemas

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    19/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    712

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.2014

    sociais contemporneos levaria a pensar que depois dele no se avanou

    mais nada nesse campo do conhecimento, e que suas teorias e ideias,

    fundadoras do campo, so as nicas necessrias para pensar os proble-

    mas sociolgicos atuais.

    Uma anlise no campo da Histria, para perceber quem so

    os historiadores que se dedicam a temas de Histria e Direito, revelade imediato uma robusta produo. Se ficarmos nos grandes nomes,

    destacamos Pierre Vilar, que, entre outras iniciativas, analisa o Direito

    como um produto social histrico, na passagem do antigo regime para

    a consolidao do sistema capitalista, enfatizando que o campo se deli-

    mita e se firma pelos de cima para manter privilgios (VILAR, 2006).

    Os encontros anuais de historiadores brasileiros apresentam grupos de

    trabalho j consolidados que enfocam a histria do Direito, e inclusi-

    ve a histria dos direitos humanos.12Dentre as universidades que pos-

    suem grupos de pesquisa organizados em departamentos ou programasde ps-graduao acerca de Histria e Direito, citamos a Universidade

    Federal da Paraba UFPB , com destaque para os trabalhos de Carlos

    Andr Macdo Cavalcanti (2001, 2005) e Giuseppe Tosi (2000, 2005);

    Universidade Federal de Gois UFG , com destaque para os traba-

    lhos de Ricardo Barbosa de Lima (LIMA; PINHEIRO, 2012) e Jeanne Silva

    (2006); e Universidade Federal Fluminense UFF , com destaque para o

    trabalho de Gizlene Neder (2012). H um interesse das reas de Histria,

    Sociologia e Filosofia na pesquisa da narrativa histrica do Direito, e

    muitas vezes especificamente na narrativa histrica dos direitos hu-

    manos. So pesquisas contemporneas que se valem de um referencial

    terico prprio do campo da Histria ou das humanidades, e que so

    desconhecidas no corpusque analisamos.13

    A Histria no percebida como um campo que se aplicou nas

    ltimas dcadas ao estudo de objetos especficos, ela tratada simples-

    mente como a histria, confundindo por vezes a cincia Histria e a

    histria como narrativa da existncia dos povos. Ou seja, os autores dos

    livros que compem o corpusque analisamos no reconhecem a exis-tncia de empreendimentos especficos no campo da Histria, como

    a histria da educao, a histria dos sistemas econmicos, a histria

    cultural, a histria das mentalidades, a histria da sexualidade, a his-

    tria da vida privada, a micro-histria, e muito menos aquela que aqui

    interessaria, a histria dos sistemas jurdicos, a histria da justia, a

    histria dos sistemas de pensamento envolvidos na produo do saber

    jurdico. A histria parece emprestar nestes relatos um ar de solidez aos

    argumentos mostrados em seguida. Ela no serve para interrogar o que

    vai ser mostrado, mas sim para situar o campo do Direito, ou o ramoespecfico da publicao (direito do trabalho, direito constitucional, di-

    reito comercial, direito civil) num patamar de solidez por ter histria,

    e histria longa, e iniciada nos perodos mais clssicos, como a Grcia,

    12

    Apenas para citar, noSimpsio Nacional de

    Histria, organizado pelaAssociao Nacional deHistria ANPUH em

    julho de 2013, encontramos,entre outros, um simpsio

    temtico intituladoHistria, Direito e Memria

    (ANPUH, 2014).

    13Uma fonte importante de

    apresentao de pesquisasacerca da histria dosdireitos humanos so

    os encontros e anais daAssociao Nacional de

    Direitos Humanos, Pesquisae Ps-Graduao (ANDHEP,

    s.d.). No repositrio digitaldos encontros, localizamos

    grande nmero de trabalhos,em geral abrigados noGT 01 Teoria e Histriados Direitos Humanos,

    de presena regular noseventos. No mbito do

    projeto de pesquisa quedeu origem ao presente

    artigo, estamos no momentoinvestigando artigos e

    pesquisas sobre histriados direitos humanos nos

    anais dos encontros daANDHEP e da ANPUH, j

    referida em nota acima. Osdados colhidos vo compora escrita de futuros artigos.

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    20/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-719jul./set.2014

    713

    e a Europa das monarquias. Utilizar apenas grandes nomes da Histria

    (todos j falecidos h muito tempo, e que se dedicaram mais aos grandes

    contornos da histria da humanidade do que a problemas especficos),

    e ao mesmo tempo citar outros juristas (autores do prprio campo do

    Direito), confere aos textos certo ar de estamos entre amigos, evitando

    polmicas com a narrativa histrica, e deixando de reconhecer poten-ciais interlocutores que discordem ou que na atualidade problematizem

    o campo do Direito.

    Uma estratgia recorrente para que o texto se apresente dotado

    de uma suposta neutralidade construir suas ideias de uma perspectiva

    continuamente nomeada como universal. Esse universal nada mais

    do que um particular, o Ocidente branco catlico, alado condio de

    universal e de paradigma.

    De uma maneira geral, os direitos humanos apresentam as se-

    guintes caractersticas: historicidade; universalidade; relatividade;

    irrenunciabilidade; inalienabilidade; imprescritibilidade; unidade e

    indivisibilidade. (BARRETO, 2012, p. 2)

    Os direitos humanos possuem as seguintes caractersticas:

    a) declarados os direitos humanos so produtos da ordem jurdica

    supraestatal, cabendo aos Estados declar-los em seus textos

    constitucionais; b) abstratos so direitos inerentes a todos os

    seres humanos, independente de nacionalidade, raa, religio, sexo

    etc.; c) imprescritveis so direitos que mantm a sua eficcia

    indefinidamente, pois esto indissociavelmente ligados a dignidade

    da pessoa humana; d) inalienveis no podem ser transferidos a

    ttulo gratuito ou oneroso a terceiros, sob pena de descaracterizar

    a prpria condio humana; e) universais todos os seres humanos

    que vivem na Terra so titulares de direitos humanos. (SARMENTO,

    2011, p. 13)

    Junto com a marca da neutralidade nos textos, vem a pretenso

    consensual. O texto fala de todos (brancos, negros, pardos, amarelos, jo-

    vens, velhos, ocidentais, orientais, indgenas, pobres, ricos, heterossexuais,

    homossexuais, homens, mulheres, cristos, catlicos, afros, protestan-

    tes, luteranos, pentecostais, ateus), e enuncia verdades que servem para

    todos (novamente, servem para voc, quer seja voc branco, negro, par-

    do, amarelo, jovem, velho, ocidental, oriental, etc.). Essa estratgia

    possvel porque lida com a noo de uma essncia do Direito, imune

    desde sempre a presses polticas, conforme j demonstramos. Para fa-lar de todos, temos o uso recorrente de expresses como o humano, a

    humanidade, por vezes o cidado. Mas indisfarvel que a norma hu-

    mana pautada pelo masculino, restando mulher ou ao feminino, o

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    21/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    714

    CADERNOSDE

    PESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.2014

    espao do outro. Isso porque o campo jurdico tambm produto cultu-

    ral de uma ordem androcntrica, onde o masculino tomado como me-

    dida de todas as coisas, no necessita de justificao, neutro, no tem

    necessidade de se enunciar em discursos que visem sua autolegitimao

    (BOURDIEU, 2002). tambm indisfarvel que se fala do homem bran-

    co, europeu, catlico, restando aos demais uma adequao a esse mode-lo. Com essa artilharia disposta, fica fcil concluir que o alvo das normas

    estatais repressivas e punitivas so os no brancos, os no europeus, os

    no heterossexuais, os no cristos ou catlicos. Por fim, um elemento

    que colabora no sentido de estabelecer uma pretenso de neutralidade

    e consenso rechear a escrita com variaes da expresso na verdade.

    Elas implicam considerar que o que est sendo apresentado no fruto

    de uma pesquisa cientfica, portanto algo que possa ser contradito, mas

    a apresentao de uma verdade, que no deve ser contradita. No so

    dados de um estudo, mesmo que seja um estudo sobre outros autores,mas a enunciao de um caminho histrico que a verdade per se.

    CONSOLIDANDO ALGUMAS HIPTESESRetomamos nosso objetivo principal neste texto: tratar das marcas presen-

    tes no modo como est narrada a trajetria histrica dos direitos humanos

    em algumas obras analisadas, de maior frequncia como leitura nos cursos

    de Direito do Rio Grande do Sul. Estamos apoiados na afirmativa de que o

    modo de contar a histria de alguma coisa traz implicaes diretas na sua

    definio. A narrativa histrica estabelece um conjunto de conexes pos-

    sveis, ao mesmo tempo em que dificulta ou impossibilita outras. O modo

    como est contada a histria dos direitos humanos nos livros analisados

    conduz a pensar em um objeto que se apresenta como universal, mas em

    verdade diz mais respeito histria do Ocidente, e, dentro do Ocidente, a

    um conjunto de territrios e tempos muito preciso, a saber, Grcia Antiga,

    Imprio Romano, Inglaterra, Frana, e Estados Unidos. Os direitos humanos

    se constituem assim como um patrimnio universal, a partir da extensopara outros pases daquilo que diz respeito mais diretamente histria de

    alguns pases. Com isso, no estamos defendendo nenhuma posio con-

    trria existncia dos direitos humanos ou a validade desse instrumento

    na luta por um mundo mais justo. Mas no podemos deixar de indicar que

    o uso dos direitos humanos, tal como se apresenta, carrega em si certa

    pretenso imperialista. Alguns pases so produtores de direitos humanos,

    outros so os locais onde esse conjunto de princpios deve ser aplicado. A

    narrativa da trajetria histrica dos direitos humanos nas obras analisadas

    nos alinha a essa afirmativa de Boaventura de Sousa Santos:

    A hegemonia dos direitos humanos como linguagem de dignidade

    humana hoje incontestvel. No entanto, esta hegemonia convive

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    22/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-719jul./set.2014

    715

    com uma realidade perturbadora. A grande maioria da populao

    mundial no sujeito de direitos humanos. objeto de discursos

    de direitos humanos. Deve, pois, comear por perguntar-se se os

    direitos humanos servem eficazmente luta dos excludos, dos ex-

    plorados e dos discriminados ou se, pelo contrrio, a tornam mais

    difcil. (SANTOS, 2013, p. 15)

    E, conforme anunciamos no incio deste texto, os contornos que

    os direitos humanos assumem nos currculos dos cursos de Direito nos

    permitem afirmar que uma disciplina que interessa a poucas pessoas,

    diz respeito posio do Brasil em tratados internacionais, e internamen-

    te diz respeito s reivindicaes de algumas minorias. Verifica-se tambm

    na estratgia narrativa um empobrecimento, quando no uma negao,

    do contedo poltico das prticas de justia. Ou seja, nega-se que algumas

    decises foram tomadas levando em conta certos enfrentamentos de po-der, e se busca apresentar a deciso como fruto de um desenvolvimento

    interno do campo. Isso traz outra consequncia grave para a abordagem

    dos direitos humanos nos cursos de Direito. Eles so apresentados sem

    conexo com outras gramticas relativas dignidade humana, presen-

    tes em outros povos ou pases que no aqueles centrais j citados diver-

    sas vezes, os produtores da concepo hegemnica de direitos humanos.

    Operamos com a ideia de que vrias narrativas histricas so possveis,

    fruto de escolhas intencionadas de fontes e teorias. A narrativa feita nosmanuais analisados opera com a noo de uma histria nica, universal

    ou mundial, tal como os antigos livros de histria geral. No estamos,

    com isso, afirmando haver alguma m inteno por parte dos autores ao

    deixarem determinadas correntes histricas de fora; estamos apenas afir-

    mando que isso ocorre, e nos propusemos aqui a verificar que perdas se

    produzem quando se opta por narrar apenas uma Histria sem o devido

    reconhecimento da incompletude de tal narrativa. Com isso, novamente

    concordamos com Boaventura de Sousa Santos:

    A busca de uma concepo contra-hegemnica dos direitos

    humanos deve comear por uma hermenutica de suspeita em

    relao aos direitos humanos tal como so convencionalmente

    entendidos e defendidos, isso , em relao s concepes dos

    direitos humanos mais diretamente vinculadas matriz liberal e

    ocidental destes. (SANTOS, 2013, p. 16)

    Embora em geral intitulados, tanto os livros quanto os captulos,

    como sendo de direitos humanos, nota-se certa labilidade no conceito,que oscila entre direitos humanos, direitos do cidado, direitos humanos

    fundamentais, eventualmente direitos sociais. Ao falar da raa huma-

    na, ou do humano, de modo bastante evidente os textos se referem ao

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    23/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    716

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.2014

    homem, branco, europeu, urbano, heterossexual, catlico, jovem. Dessa

    forma, muitas outras manifestaes do humano ficam de fora, ou so

    mostradas como tendo que migrar para o paradigma dos direitos huma-

    nos. Isso tambm ajuda a invisibilizar grupos minoritrios do ponto de

    vista da distribuio do poder, como mulheres, negros, homossexuais,

    orientais, porque s os cnones europeus so citados como cultura gerale acionados para contar a histria dos direitos humanos. Na geopoltica

    narrativa, os direitos humanos foram criados por alguns povos, euro-

    peus e norte-americanos, e devem ser aplicados a outros povos, aqueles

    que vivem na Amrica Latina, na frica e na sia, ou queles que vivem

    em solo europeu e norte americano, mas so grupos minoritrios. Essa

    caracterstica parece ter vrias causas. A primeira delas que os textos e

    livros revelam pobreza na abordagem da categoria do sujeito, afirman-

    do a todo momento atributos como dignidade do homem e dignidade

    humana, sem problematizar esse conceito. Tambm colabora para isso ouso frequente de expresses genricas como bens culturais universais,

    patrimnio literrio universal, patrimnio da humanidade. Ao se

    investigar de que obras se compem esses coletivos ditos como univer-

    sais, em geral ficamos com a citao de autores europeus. Dentre os eu-

    ropeus, tanto obras em latim, da tradio crist, quanto obras polticas

    francesas e inglesas, com pequena presena de autores alemes. Essa

    amostra apresentada como algo universal. A confuso entre direitos

    do homem, direitos humanos, direitos do cidado, representa uma ten-so que acompanha de longa data o campo dos direitos humanos:

    [...] a declarao da revoluo francesa dos direitos do homem

    ambivalente ao falar de direitos do homem e do cidado. Estas

    duas palavras no esto l por acaso. Desde o incio, os direitos hu-

    manos cultivam a ambiguidade de criar pertena em duas grandes

    coletividades. Uma a coletividade supostamente mais inclusiva,

    a humanidade, da os direitos humanos. A outra uma coletivida-

    de mais restrita, a coletividade dos cidados de um determinadoEstado. Esta tenso tem desde ento assombrado os direitos hu-

    manos. (SANTOS, 2013, p. 21)

    Situados como estamos em uma sociedade de origem colonial,

    defendemos a construo de uma viso dos direitos humanos que incor-

    pore as experincias produzidas neste lado de c, e no tome apenas as

    produes da metrpole para construir a noo dita universal de direitos

    humanos. Afirmamos, em concordncia com Santos (2013), que o campo

    dos direitos humanos tem contradies internas, e que no ser apresen-tando uma histria nica dele que vamos superar essa situao. Ao con-

    trrio, ser assumindo que direitos humanos podem significar muitas

    coisas, em diferentes contextos histricos, que poderemos construir um

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    24/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-719jul./set.2014

    717

    dilogo em que esse instrumento seja reconhecido como tendo uma

    potente fora de emancipao. A narrativa e os modos de ensino dos

    direitos humanos precisam assumir essa diretriz nos cursos de Direito, o

    que implica, entre outras providncias, servir-se das produes tericas

    e analticas de Histria e de Educao para estruturar currculos sobre

    o tema.

    REFERNCIAS

    ASSOCIAO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, PESQUISA E PS-GRADUAO.AssociaoNacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Ps-Graduao. S.l.: Andhep, s.d. Disponvel em: . Acesso em: 28 set. 2014.

    ASSOCIAO NACIONAL DE HISTRIA. Histria, direito e memria. In: SIMPSIO NACIONALDE HISTRIA, 27., 2013, Natal. Anais... Natal: Associao Nacional de Histria, 2013. Disponvelem: . Acesso em: 5 fev. 2014.

    BARRETO, Rafael.Direitos humanos: 1 fase. Niteri: Impetus, 2012. (Coleo OAB, v.12).

    BOURDIEU, Pierre.A dominao masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

    ______. O poder simblico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

    BURLAMAQUI, Marco Guilherme Bravo. Avaliao e qualidade na educao superior:tendncias na literatura e algumas implicaes para o sistema de avaliao brasileiro.Estudosem Avaliao Educacional, So Paulo, v. 19, n. 39, p. 133-154, 2008.

    BURNS, Edward McNall.Histria da civilizao ocidental. Rio de Janeiro: Globo, 1989. v. 1: dohomem das cavernas s naves espaciais.

    CAVALCANTI, Carlos Andr. Histria social dos direitos humanos: desmitologizao,imaginrio e tipo ideal. In: ZENAIDE, M. de N. T.; DIAS, L. L. (Org.).Formao em direitos humanosna universidade. Joo Pessoa: Editora Universitria, 2001. p. 29-34.

    ______. Histria moderna dos direitos humanos: uma noo em construo. In: TOSI, G. (Org.).Direitos humanos: histria, teoria e prtica. Joo Pessoa: Editora Universitria, 2005. p. 47-74

    CERRI, Lus Fernando. Saberes histricos diante da avaliao do ensino: notas sobre oscontedos de histria nas provas do Exame Nacional do Ensino Mdio Enem.Revista Brasileirade Histria, So Paulo, v. 24, n. 48, p. 213-231, 2004.

    COMPARATO, Fbio Konder.Afirmao histrica dos direitos humanos. So Paulo: Saraiva, 2005.

    FONSECA, Mrcio Alves da.Michel Foucault e o Direito. So Paulo: Saraiva, 2012.

    ISIDORO, Frederico Afonso. Como se preparar para o Exame de Ordem Direitos Humanos eDireitos Humanos Fundamentais. So Paulo: Mtodo, 2013.

    KANT DE LIMA, Roberto. Saber jurdico e direito diferena no Brasil: questes de teoria emtodo em uma perspectiva comparada. In: ______. Ensaios de antropologia e de direito. Rio de

    Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 89-126.

    KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. So Paulo: Martins Fontes, 2009[1934].

    LIMA, Ricardo Barbosa; PINHEIRO, Douglas Antonio Rocha. (Org.).Educao em Direitos Humanos.Goinia: UFG, 2012.

    MACIEL, Jos Fbio Rodrigues. (Coord.).Formao humanstica em Direito. So Paulo: Saraiva, 2012.

    MORAES, Alexandre de.Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral. So Paulo: Atlas, 2011.

    NEDER, Gizlene. A recepo do constitucionalismo moderno em portugal e a escrita dahistria do direito.Passagens: Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica, Niteri, v. 4,p. 510-533, 2012.

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    25/26

    NARRATIV

    ASDAO

    RIGEMH

    ISTRICAD

    OSDIREITOSHUMAN

    OSNOSMANUAISDEDIREITO

    718

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.4

    4n.1

    53p.6

    94-719jul./set.

    2014

    OLIVEIRA, Erival da Silva.Direito Constitucional Direitos Humanos. 3 ed. rev. e atual. So Paulo:Revista dos Tribunais, 2012.

    PEREIRA, Nilton Mullet; SEFFNER, Fernando. O que pode o ensino de histria? Sobre o uso defontes na sala de aula. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, p. 113-128, 2008.

    SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. So Paulo: Cortez, 2013.

    SARMENTO, George.Direitos humanos: liberdades polticas, aes constitucionais, recepo dostratados internacionais. So Paulo: Saraiva, 2011. (Coleo Curso & Concurso).

    SCARAMUCCI, Matilde Virginia Ricardi. Efeito retroativo da avaliao no ensino/aprendizagemde lnguas: o estado da arte. Trabalhos em Lingustica Aplicada, Campinas, v. 43, n. 2, p. 203-226,

    jul./dez. 2004.

    SILVA, Carlos Afonso Gonalves da; SOBREIRA, Fbio Tavares. (Coord.).Direito Constitucional eDireitos Humanos. So Paulo: Saraiva, 2013. (Coleo preparatria para concurso de delegadode polcia).

    SILVA, Jeanne. A relao da cincia histrica e do direito: Implicaes e distanciamentosna formulao dos conceitos de Verdade, Poltica e Justia. Cadernos de Pesquisa do CDHIS,

    Uberlndia, v. 1, n. 33, p. 95-105, 2006.

    STRAUSS, Andr; WAIZBORT, Ricardo. Sob o signo de Darwin? Sobre o mau uso de umaquimera.Revista Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, v. 23, n. 68, p. 125-134, out. 2008.

    TOSI, Giuseppe. Algumas questes acerca da histria dos direitos humanos. Contemporaneidadee Educao, Salvador, v. V, n. 8, p. 35-55, 2000.

    TOSI, Guiseppe (Org.).Direitos humanos: historia, teoria e pratica. Joao Pessoa: EditoraUniversitaria UFPB, 2005.

    TRINDADE, Jos Damio de Lima. Histria social dos direitos humanos. So Paulo: Peirpolis, 2011.

    VALOR ECONMICO. Regras de direitos humanos para empresas. So Paulo, 21 jul. 2014.Disponvel em: . Acesso em: 24 jul. 2014.VILAR, Pierre. Histria do direito, histria total.Projeto Histria, So Paulo, n. 33, p. 19-44,dez. 2006. Disponvel em: .

    Acesso em: 5 fev. 2014.

    FERNANDO SEFFNER

    Professor do Programa de Ps-Graduao em Educao e coordenador doGrupo de Estudos em Educao e Relaes de Gnero da Universidade Federaldo Rio Grande do Sul UFRGS

    [email protected]

    FABIANE SIMIONI

    Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS e bolsista Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de NvelSuperior [email protected]

    RENAN BULSING DOS SANTOS

    Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria UFSM ; mestre

    em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected]

  • 7/23/2019 FCC Cadernos Pesquisa Historia Direitos Humanos Themis 2015-Libre

    26/26

    FernandoSeffner,FabianeSim

    ioni,RenanBulsingdosSantos,CarolinaNunesdosSantoseMileneBobsin

    CADERNOSDEPESQUISA

    v.44n.153p.694-719jul./set.2014

    CAROLINA NUNES DOS SANTOS

    Graduada em Cincias Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande doSul UFRGS ; integrante do Ncleo de Antropologia e Cidadania NACi doDepartamento de Antropologia Social e do Grupo de Estudos em AntropologiaCrtica [email protected]

    MILENE BOBSIN

    Graduada em Histria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected]