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Feliz aniversário, querida estranha

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Numa segunda-feira de extremo calor, em que todos esqueceram de seu aniversário, nada poderia ser mais tedioso para Sara que comparecer a uma sessão de terapia.Mas as coisas tomam rumo diferente quando ela testemunha um assalto e é trancada com outro refém, um jornalista bem mais velho que ela, no depósito de um edifício comercial.Confinada num espaço minúsculo com um desconhecido, é que Sara, ironicamente, enfrentará de verdade seus piores medos pela primeira vez. E aí, então, tudo vira de cabeça para baixo.Tatiana Busto Garcia trabalha com o rico universo dos jovens urbanos. Seus conflitos e expectativas são confrontados em um texto de diálogos cheio de referências bem captadas pela escritora, o que resulta em grande empatia com o público leitor, permitindo que o livro seja trabalhado em salas de aula e em grupos de leitura.

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TATIANA BUSTO GARCIA

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© Tatiana Busto Garcia, 2011

CapaTatiana Busto Garcia

Foto da capaLigia GBrosch

Preparação de textoMargô Negro

RevisãoMilfolhas Produção Editorial Ltda.

Projeto Gráfico (miolo)Eveline Albuquerque

ImpressãoBartira Gráfica e Editora S/A

Todos os direitos reservados.Direitos mundiais em língua portuguesa cedidos à

SÁ EDITORATel./Fax: (11) 5051-9085 / 5052-9112

E-mail: [email protected]

Garcia, Tatiana BustoFeliz aniversário, querida estranha / Tat ianaBusto Garcia. – São Paulo : Sá Editora, 2011.

ISBN 978-85-88193-68-0

1. Literatura brasileira 2. Romance I. Título

CDU – 869.0(81)

Catalogação na fonte

Projeto realizado com o apoio do Governo de São Paulo, Secretaria de Estadoda Cultura, Programa de Ação Cultural 2010.

Apoio

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Aos meus pais.

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Fim de tarde. Caminho sobre a areia da praiatentando alcançar o mar, que parece fugir de mim.Apresso meus passos para tocá-lo, mas ele é maisrápido. Começo a correr, e o meu movimento pro-voca ondas enormes que quebram à minha frente.Exausta, paro e olho para o horizonte. Meus pés es-tão cobertos pela água. Sinto uma alegria imensa.De repente, ouço vozes. São duas meninas de mãosdadas que parecem rir de mim. Elas cantarolam:“Não sabe nadar, não sabe nadar, não sabe nadar!”.Olho então para o céu e me dou conta de que estousubmersa, a muitos metros de profundidade. A luzdo sol brilha com intensidade sobre a imensa ca-mada de água. Tento nadar em direção à superfí-cie, tenho uma sensação muito real de afogamento.Entro em desespero. E é nesse ponto que sempreacordo.

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São Paulo.Segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011.Hoje faço dezessete anos.

“Pegou o cheque?”Ela pergunta só pra me irritar. É óbvio que eu

peguei o cheque, ela me viu guardando na cartei-ra. Não respondo, não posso mais falar com ela.Minha sanidade depende disso.

“Eu passo pra te pegar às quatro. E vê se nãoapronta nada.”

“Porque eu tenho que chegar uma hora antesda consulta?”

“Porque esse é o horário que eu posso te tra-zer... tenho uma aula de pilates em quinze minu-tos. Vai, desce, tem um cara buzinando atrás demim!”

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Quando estou prestes a bater a porta, mais umlembrete:

“Sara, preciso conversar com você na hora dojantar, vê se não vai arranjar nada. Tô pensando empintar as paredes dos quartos, peguei umas amos-tras de cores e quero que você veja, tá?”

Ao bater a porta do carro, recebo o mesmo sor-riso de adeus, sorriso irritante e emborrachado dosapo japonês pendurado no retrovisor. O que eufiz pra merecer uma mãe kawaii – infantilizada,fofucha e colorida?

Hoje faço dezessete anos e este parece ser o diamais insignificante da minha vida.

***

“Boa tarde, por acaso a senhora já possui cadas-tro em nosso sistema?” (Elaine, eu já falei que teodeio? Que odeio você e esse seu esmalte impecável?)

“Já. Por acaso, eu venho aqui toda semana hápelo menos dois anos.”

Talvez seja necessário acrescentar que, há al-guns meses, eu a surpreendi choramingando de-trás do balcão, enquanto falava ao celular com onamorado bronco e mulherengo.

Elaine não poderia se importar menos com ofato de eu vir aqui toda segunda-feira, com o mes-mo uniforme do colégio e com a mesma mochilaxadrez com o bolso de fora sujo de tinta azul dacaneta, Elaine não se importa com nada além de

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suas unhas, Elaine gosta de tirar fotos com seu ce-lular e depois enviar para as amigas, usa creme cor-poral com cheiro de fruta e baunilha, seu mini-poodle tem um perfil no Orkut, toda semanacompra uma revista nova de dietas e, no últimosábado de cada mês, toma duas conduções até oshopping para pagar a fatura do seu cartão Mari-sa. Elaine, você não sabe nada da vida.

“Pode subir. Décimo segundo andar, conjuntoduzentos e vinte e sete, terceiro elevador à sua es-querda, bloco B.” (Elaine, eu já te disse que venhoaqui toda semana?)

O conjunto duzentos e vinte e sete, décimo se-gundo andar, bloco B, abriga duas clínicas odon-tológicas, uma de estética, um centro de reiki-mas-sagem-yoga-vodu ou sei lá o quê, um “institutonipo-brasileiro de hipnose” e uma máquina tritu-radora de gente, vulgarmente chamada de clínicade psicanálise. No total, são seis salas, uma recep-cionista loira-vulgar, oito (aspas) profissionais (fe-cha aspas) e três poltronas desconfortáveis. Se cadasala atende a uma pessoa por vez, eles deveriam ofe-recer, no mínimo, seis poltronas na sala de espera.E, levando em conta que cada pessoa traz consigoum “anexo” (o parceiro para a terapia de casal, amãe pra segurar a mão do rapaz durante a hipnose,a vizinha desocupada pra bater papo e encher a salacom voz estridente), seria então necessário dobraroutra vez o número de poltronas. De qualquer for-ma, a sala parece cheia demais para mim hoje.

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“Oi Sara! Chegou mais cedo? O paciente dascatorze horas acabou de entrar na sala da douto-ra... Você vai ter que esperar um pouquinho...” (Mô-nica, a secretária. Elaine e ela seriam grandes ami-gas. Poderiam sair juntas pra bater perna no Brás edepois se entupiriam de minipães de queijo comrequeijão – dois reais a dúzia, numa estação daCPTM. Um dia, quem sabe eu as apresente.)

Esperar. É incrível, parece que não faço outracoisa na vida. Todos os dias apodreço no pontoesperando um maldito ônibus lotado, espero umamensagem no Facebook, espero que minha mãenão entre no quarto e me acorde com aquele bom-dia artificial, espero que o vizinho pare de xingarsua mulher à noite para que eu possa dormir, queo colégio termine logo, que eu pare de ter cravosna testa, espero fazer dezoito anos para poder terum carro, espero que alguma coisa de verdadeaconteça, ou que tudo isso pare de acontecer. E,enquanto espero, não sei se vivo. Minha vida é umaeterna sala de espera sem revistas para folhear.

“Não tem problema. Vou esperar lá embaixo.”Observo novamente a sala antes de sair. Uma

criança catarrenta me olha fixamente. Eu mostroa língua. Ela chora. Eu sorrio.

A pele do ascensorista repete o cinza fosco dasparedes do elevador e eu mal percebo aquele ho-mem magro e reumático esquecido ali há doze anos.

“Térreo.”

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***

“Térreo, senhorita.”No interior do edifício Palazzo di Nero há um

pequeno e bucólico pátio ajardinado, onde os sa-biás cantam na alvorada e namoram ao entarde-cer. Hipérboles à parte, estamos falando de um es-paço de cimento de dois metros quadrados, comum banco de madeira semipodre no centro e algu-mas plantas murchas ao redor. Eu já conheço bemo recinto, seu usual cheiro de esgoto, café e cigarro.Aqui, as poltronas estão sempre disponíveis.

Penso em apanhar um cigarro no fundo da mo-chila. Na verdade, não sou fumante e nem tenhoplanos de sê-lo, mas aquela caixa de Camel ao ladoda cama da minha mãe provocou algo em mim,não sei explicar... Ao mesmo tempo que senti umaenorme repulsa (não do cigarro, mas da minhamãe, por ter começado a fumar aos quarenta e doisanos), fiquei tentada a carregá-la comigo para ummomento especial. E agora eu me pergunto: “Será

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este um momento especial?” e algo dentro de mimresponde: “Não, este é mais um momento de mer-da nessa sua existência vazia.”

Minha mãe nunca fumou porque achava vul-gar. Nada de questões de saúde ou preocupaçãocom o hálito cinzento, não. Ela simplesmenteachava que fumar era equivalente a usar uma cal-cinha fio dental vermelha debaixo de uma calçabranca. E, de repente, aos quarenta e dois anos,após alguns desentendimentos com meu pai, vi-dros de calmante, flacidez e excesso de horas li-vres, ela decide fumar. Acho que quer se sentirmais jovem, sensual, sei lá. Daí montou um com-bo: consultas com médico ortomolecular (seja láo que isso signifique), aulas de pilates, cura prâni-ca e cigarro. Principalmente no trânsito. É ridícu-lo, se um carrão encosta ao lado, ela baixa um pou-co o vidro, aumenta o volume da Sade, que estátocando no rádio, e acende um cigarro, bem “ca-sual”. Ah, sim, mas como ela não quer ficar feden-do a esgoto depois, sempre anda com um vidri-nho de Victoria’s Secret na bolsa pra passar nasmãos após dispensar a bituca.

OK, talvez eu esteja passando uma ideia umpouco distorcida da minha mãe. Sim, ela faz tudoisso, mas não é consciente, não acho que ela quei-ra sair com outros caras. É muito moralista praisso. Acho que é só carência mesmo.

O faxineiro passa por aqui dando vassouradas atorto e a direito. Ele não percebe, seus movimentos

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são automáticos, mas eu sim: sua vassoura toca ochão e nada mais, não há nada a varrer, nem umafolhinha, um chiclete, um papel sujo, nada, seu tra-balho consiste simplesmente em espalhar a poeirapelo ar para que ela não se acostume muito ao chão.Em que será que ele pensa ao reproduzir os mes-mos movimentos todos os dias, minuto após mi-nuto? Pode estar cantarolando mentalmente a letrade um pagode, repassando as contas do mês, pen-sando nas coxas da mulher que se espremeu contraele no metrô, tudo isso junto ou talvez nada disso.Talvez esteja planejando um sequestro ou lembran-do a sua casa de infância, quem sabe não está psico-grafando mentalmente um romance espírita? Dequalquer forma, não consigo enxergar muito alémdo tédio que ele carrega no rosto e nas mãos. “Quan-do terminar o cigarro, vou jogar a bituca no chão paratornar seu trabalho mais emocionante”, penso.

Busco o cigarro e encontro os costumeiros ha-bitantes do fundo da minha mochila: duas Bics semtampa, embalagens de chiclete, um gloss resseca-do, um elástico de cabelo, alguns papéis amassa-dos, uma borracha suja, um botton dos Ramonescom o alfinete quebrado, uma pinça e um remé-dio pra enjoo. Ou seja, eu não deveria me admirarse tirasse dali um cigarro todo amarrotado e, even-tualmente, com riscos de caneta. Tá, não me ad-mirei, mas fiquei puta, mais pelo fato de não terum puto de um isqueiro, do que pelo cigarro amas-sado e rabiscado.

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Pelo vidro que separa o pátio fétido da recep-ção do edifício, vejo um casal entrar. A mulher deveter seus trinta e cinco anos. Encontra-se em está-gio avançado de gravidez. Seus cabelos ruivos melevam a crer que ela se chama Virgínia. O homemestá por volta dos quarenta, traje casual, calça debrim clara e camisa polo verde-musgo, deve ter ti-rado o dia de folga para acompanhar o último ul-trassom de Virgínia. No próximo encontro com opequeno Guilherme, este estará coberto por lágri-mas, sangue e suor. Talvez Virgínia não ame aque-le homem, mas, afinal, sua hora estava passando eseu sonho de ser mãe tornava-se cada vez mais dis-tante. “Ele me deu um filho e eu darei a ele o meucarinho”, pensaria Virgínia no alto de sua pieguice.

Se eu tivesse cabelos vermelhos, teria planosmais audaciosos, para mim e para o mundo. Vir-gínia é um desperdício.

***

Não vejo a hora deste dia terminar. Sendo oti-mista, deve estar uns quarenta e cinco graus à som-bra, juro. Porque eu não nasci na Escandinávia?Minha mãe seria uma mulher loura e pálida, denome Frederikke ou Hedvig, que não me acordariacom um cretino Bom dia, minha gatinha. Hedvigseria uma mulher austera, que me daria um des-pertador para que eu acordasse sozinha para ir à es-cola. E, caso eu perdesse a hora, o problema seria

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inteiramente meu, pois ela estaria preocupada de-mais com outras coisas a caminho de seu escritórionum arranha-céu no centro de Helsinque. Os fin-landeses e os noruegueses, sim, são felizes. Eu souapenas um pedaço de carne sendo cozida no bafode poluição e calor desta cidade de terceiro mundo.

***

Reviro um pouco mais a mochila e, por fim,desisto de encontrar o isqueiro. Pra ser sincera,acho que nunca carreguei um isqueiro comigo.Esse comportamento foi reflexo de uma crençaque eu tinha quando era criança, de que cigarros eisqueiros andam sempre juntos. Talvez por culpada dona Edna Batistelli, orientadora pedagógica daescola onde estudei até a segunda série. Mulher deperfume amadeirado, brinco de pérola, cabelo cha-nel louro tingido, sobrancelha escura e marcante.No pulso, relógio dourado de pulseira fina, daque-les com brilhantes nos múltiplos de cinco. Juntocom a agenda de capa floral, carregava elegante-mente um porta-cigarro-e-isqueiro de couro mar-

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rom imitando pele de cobra. Daí alguém pode pen-sar, “ah, mas a orientadora pedagógica de um jar-dim da infância não deveria andar no meio dos alu-nos com um maço de cigarro, é um péssimoexemplo”. E é aí que está o engano. Aquela mulherera um ótimo exemplo de tudo o que eu não que-ria ser, logo, trataria de ficar longe de qualquer coisaque pudesse me levar a ser como ela, e isso inclui,obviamente, cigarros.

Bem, mas uma vez que não tenho absoluta-mente mais nada pra fazer neste momento, dedi-carei essa longa hora que tenho pela frente a umoutro vício, talvez mais destrutivo do que o cigar-ro: o de pensar.

Meu pai é um cara legal pra caralho. Fala pou-co, é do tipo observador. E uma vez ele me disseque eu ficava muito “bonitinha” quando pensava.Porra, pai, bonitinha? E, afinal, a gente não fica pen-sando o tempo todo? Mas daí ele me explicou umacoisa que eu nunca tinha reparado sobre mim: queeu me sento pra pensar, como se fosse um exercí-cio. Segundo ele, nesses momentos, eu franzo a tes-ta (tenho certeza de que no futuro terei um vincoprofundo entre as sobrancelhas), aperto os lábios,fico com o olhar vidrado no nada e cutuco as unhasda mão esquerda com os dedos da mão direita. É,pai, devo ficar muito “bonitinha” mesmo...Anyway, preciso pensar sobre o que posso pensaragora. Parece que tem tanta coisa que eu queropensar, mas, ao mesmo tempo, não tem nada. A

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relação problemática com minha mãe? Não, mui-to óbvio. As viagens que infelizmente nunca voufazer na vida? Todas as roupas que eu quis com-prar este ano e que ninguém me deu dinheiro? Odia em que meu pai saiu de casa? O dia em que elevoltou? Os foras que tomei nos últimos meses?2009 e 2010: todos os festivais de música que meuspais me proibiram de ir antes de eu comprar umRG falso? O que há de errado comigo? Que tipode pessoa desprezível sou eu para que a minha pró-pria mãe esqueça meu aniversário?

(Som de trombetas) – “O aniversário.” Esse lan-ce do aniversário não é nenhum big deal. Eu achouma merda fazer aniversário. Tudo bem, é legal pen-sar que falta só um ano para fazer dezoito, alcançar aminha liberdade plena e sepultar de vez no passadoaquilo que chamam de infância. Mas o dia em si éum lixo. Especialmente se ninguém, além de você,lembra dele. Que coisa idiota, eu queria tanto nãoachar que esse é um dia especial em que todas as pes-soas deveriam pensar em mim... Mas não, simples-mente não consigo. Acho que já assisti a muita tele-visão na vida, não tem como voltar atrás. Bem, massejamos justos, nem todo mundo esqueceu meu ani-versário: Teca, a gorda alegre que senta lá na frente,lembrou porque é o mesmo dia do aniversário doPinky, o peixe beta dela; a VIVO também lembrou,mas não ligou, só mandou um SMS e aproveitou pratentar me empurrar mais um pacote de torpedos...Estou esquecendo de alguém? Ah, sim, o veteriná-

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rio da minha gata também ligou logo cedo dando osparabéns... para ela. “Ah, desculpe, é seu o aniversá-rio? A secretária deve ter invertido as datas na ficha,achei que já fossem os dez aninhos da Moqueca... Es-tava ligando pra dizer que ela ganhou uma dose devermífugo. Bem, parabéns de qualquer forma!” Ain-da me resta o Facebook (God save Mark Zucker-berg). Mas só vou conseguir entrar à noite, quandovoltar pra casa. Se tiver uma única mensagem, já vousoltar rojões e me sentir a pessoa mais popular domundo. Ana Laura? Não, a egoísta da minha irmãnão consegue enxergar muito além do próprio um-bigo. Não deve nem lembrar que eu existo.

Bem, eu não estaria sendo justa se não menci-onasse o Tatá. Talvez ele seja meu único conforto.Há dois dias ele não aparece no colégio, mas eutenho certeza de que ele se lembrou do meu ani-versário, sei que está pensando em mim. Não, elenão é meu “namoradinho” nem nada do gênero,aliás, cada dia mais eu acredito que o Tatá é asse-xuado. Ele deve estar pensando em mim, e não por-que eu seja alguém especial, mas só porque sou aúnica pessoa que fala com ele no colégio. De dezdias letivos, ele falta sete. Tá, exagero, ele deve fal-tar uns cinco dias por mês. Sempre doente, sem-pre com alergias bizarras, doenças respiratórias,infecções, tonturas, fraquezas e por aí vai. Eu seique pode parecer algo grave e triste, mas não é bemassim. Ele simplesmente é do tipo que odeia o co-légio e curte uma doença. Pior: é filho único. Ou

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seja, quando ele fica em casa, doente, a tia Valériaentope ele de mimos. E não pense que ele fica nacama convalescendo e tomando sopa de aipo semsal, nada disso. Fica vendo filmes, tuitando, bai-xando música, vendo merdas pra comprar nogeek.com, lendo resenha de tênis recém-lançado(sneakerfreaker!), assistindo a videologs, esse tipode coisa. Acho que quando ele fica de saco cheio,resolve que já está melhor pra voltar às aulas. TiaValéria ainda pergunta: “Tem certeza, meu amor?Você ainda está tão abatidinho... Vai que pega al-guma bactéria no colégio?” Doente é ela, juro. Nãotrabalha, não faz porra nenhuma da vida, nem omarido aguentou. Ela vive de rendas do pai e pre-fere ter o filho doente em casa do que sadio na rua.Vai entender. O perfume dela é tão doce que eutenho que prender a respiração quando ela mebeija. O Tatá é um santo. Aliás, foi ele quem meapresentou Radiohead. Aliás, foi ele quem meapresentou os B-sides mais incríveis que eu já ouvi.O Tatá acredita que tem uma missão na vida: meevangelizar no mundo da boa música. E esse é umdos principais motivos para eu aguentar todas asesquisitices dele. Ou você acha que é normal a pes-soa higienizar os fones de ouvido com álcool geltoda vez que vai colocá-los na orelha? Comprarum enroladinho de queijo e presunto e jogar foratoda a massa só pra comer o recheio? Organizar ascamisetas de banda por ordem alfabética no ar-mário? Dar ao cachorro o nome de “Euclides”? Às

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vezes eu me pergunto se não é justamente por issoque somos amigos. Eu sei que muitas pessoas sógostam do recheio do salgado, mas não jogam oresto fora por medo de parecerem esquisitas, pormedo de chamarem a atenção. E essas pessoas vãopassar o resto de suas vidas se obrigando a engoliressa massa que odeiam para poder desfrutar do re-cheio sem que alguém olhe para elas com estra-nheza. Vão adotar maneiras e falas que vão contrasua própria natureza só para não se destacarem namultidão. E isso me dá repulsa.

Mas como foi que eu cheguei aqui? Ah, sim, oaniversário. Checo o celular. Nenhuma mensagem.Droga de aniversário. Por que eu simplesmentenão consigo não ligar pra isso? Odeio admitir ta-manha futilidade, até pra mim mesma. Quero umchocolate. Olho novamente para o celular. Aindafaltam quarenta e cinco minutos para a consulta.

O ar aqui está tão parado que eu me sinto pre-sa dentro de uma fotografia.

“Você tem um isqueiro?”, indaga uma voz atrásde mim.

Eu viro e me deparo com um homem de unsquarenta anos, alto, magrelo, pele queimada de sol,camiseta branca surrada, brinco de argola e umamochila nas costas.

“Não, eu não fumo”, respondo com um cigar-ro amassado e rabiscado entre as mãos.