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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA
FERNANDA NOGUEIRA CAMPOS
Contribuies das Oficinas Teraputicas de Teatro na Reabilitao Psicossocial
de Usurios de um CAPS de Uberlndia-MG
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA FACULDADE DE PSICOLOGIA
2004
1
FERNANDA NOGUEIRA CAMPOS
CONTRIBUIES DAS OFICINAS TERAPUTICAS DE TEATRO NA
REABILITAO PSICOSSOCIAL DE USURIOS DE UM CAPS DE
UBERLNDIA-MG
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
graduao em Psicologia Aplicada da Faculdade de
Psicologia da Universidade Federal de Uberlndia, como
requisito parcial obteno do ttulo de mestre.
Eixo da intersubjetividade e cultura
Orientador: Professor Dr. Cludio Vital de Lima
Ferreira
UBERLNDIA-MG 2004
2
FICHA CATALOGRFICA
Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU - Setor de Catalogao e Classificao - mg / 03/05
Campos, Fernanda Nogueira, 1977- Contribuies das oficinas teraputicas de teatro na reabilita- o psicossocial de usurios de um CAPs de Uberlndia-MG / Fernanda Nogueira Campos. - Uberlndia, 2005. 146f. : il. Orientador: Cludio Vital de Lima Ferreira. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Uberln- dia, Programa de Ps-Graduao em Psicologia.
Inclui bibliografia. 1. Psicologia e teatro - Teses. 2. Psicoterapia de grupo -
Teses. 3. Sade mental - Teses. I. Ferreira, Cladio Vital de Lima. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de Ps-Gra- duao em Psicologia. III. Ttulo. CDU: 159.9:792 (043.3)
3
FERNANDA NOGUEIRA CAMPOS
Contribuies das Oficinas Teraputicas de Teatro na Reabilitao Psicossocial de Usurios de um CAPS de Uberlndia-MG
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
graduao em Psicologia Aplicada da Faculdade de
Psicologia da Universidade Federal de Uberlndia, como
requisito parcial obteno do ttulo de mestre.
Eixo temtico Psicologia da Intersubjetividade
Banca examinadora: Uberlndia, 02 de fevereiro de 2005.
________________________________________________________
Prof. Dr. Cludio Vital de Lima Ferreira
_________________________________________________________ Profa. Dra. Toyoko Saeki
___________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Lcia Castilho Romera
4
Aos meus filhos Joo Miguel e Jos Fernando por serem minha oficina da vida. A Joo Carlos pelo companheirismo nesta. E aos meus pais Evandro e Darcy, pelo estmulo e apoio.
5
Agradecimentos
Ao meu orientador Prof. Dr. Cludio Vital, pela liberdade e ateno no meu processo de trabalho, permitindo-me vos e aterrizagens.
A Profa. Dra. Maria Lcia Castilho Romera pela disponibilidade em apontar-me os melhores caminhos para o trajeto percorrido.
Secretaria de Mestrado da FAPSI-UFU, em especial `a Marineide, pela prestatividade exemplar.
Aos meus queridos estagirios Camila, Luciana, Z Alberto, Cristiane, Andra, Marcele e Moacir por serem construtores fiis de um trabalho srio com as oficinas, e por fazerem parte deste trabalho.
Aos profissionais do CAPS, em especial coordenadora Regina pela abertura amistosa ao trabalho e a psicloga Nara, pela receptividade e criatividade .
Ao Gestos: Grupo de Expresso , ou seja, aos participantes das OTTs, pois sem eles este trabalho no faria sentido.
A graa nascimento por ter embarcado comigo nesta nau.
Ao Grupo Trem Doido por ter contribudo com as apresentaes e divulgao do Gestos.
A Estao Cultura por ter oferecido seu excelente espao para as apresentaes.
Ao Prof. Dr. Lus Avelino e a Profa. Dra. Silvia Maria Cintra pelas contribuies e sugestes bibliogrficas.
A futura Dra Maria Paula Panncio Pinto pelo seu trabalho, suas palavras, sua amizade.
Aos amigos da clnica Oficina pela proximidade com minhas questes e estmulo constante, em especial a Aline Schwartz, pela pacincia e apoio fraterno.
Aos PORACAUSOS pela espontaneidade e pelas rupturas.
A todos os meus colegas de mestrado, em especial a Maristela e Shnaider, pela colaborao em discusses e trocas importantes em todos os mbitos.
Enfim, aos que estiveram prximos a mim durante este perodo to intenso de minha vida, meus amigos, meus mestres, minha famlia.
6
Nesta pedra algum sentou olhando o mar O mar no parou para ser olhado
Foi mar pra tudo quanto lado (PAULO LEMINSKI) RESUMO:
7
A palavra latina oficina tem entre seus significados o de ser lugar onde se exerce um ofcio ou onde se trabalham oficiais e aprendizes de alguma arte. Dentro da sade mental esta prtica toma novos sentidos, a oficina de teatro busca dar amplitude aos fazeres individuais criando um espao de expresso que entremeia todas as artes. Trata-se de uma atividade de convivncia peculiar, uma experincia aliada a recursos sadios que estimulam a catarse, a transformao e a autonomia oportunizando alternativas de reinterao alm de encorajar o participante a elaborar vivncias passadas. Este estudo discute dentro de sua interveno no CAPS-oeste de Uberlndia, as contribuies das oficinas teraputicas de teatro, analisando o discurso dos integrantes e a espontaneidade cnica de todos. O estudo contou com o mtodo interpretativo da psicanlise com contribuies trazidas tambm pela Anlise do Discurso. Conclui-se que as oficinas possibilitaram um espao de comunicao, de criao, de auto-descoberta e de auto-superao, um espao de constante produo de subjetividade.
Palavras-chave: Teatro - Sade Mental - Oficinas Teraputicas
8
ABSTRACT:
The latin word "officina" means a place where official people and apprenticees of some work of art produces some artifact. Inside of the mental health its practical leads for new directions, the theater workshop proposes creating an expression activities in a space that links all the arts - an unique activity of personal relations, an experience with healthy resources that stimulate the transformation, the autonomy giving alternatives of participants reintegration and also the encouraging to elaborate bad experiences in the past. This study shows the contributions of the theatre workshop in the CAPS-oeste of Uberlndia, among the analyses of the participants' discurses and criativity encenation. The theater workshop helps to create a space of communication, criation, self-discovering and self-superation, a space of subjectivity continnuous production.
Key words: theater Health Mental Therapeutic workshop
9
SUMRIO
1. INTRODUO: INTRODUZINDO, INTEGRANDO, INVENTANDO..10 1.1. Teoria dos Campos, Teatro do Oprimido e Teatro Teraputico............................................11 1.2. Oficina em Construo: o moto-contnuo........................................................22
1.3. Pensando sobre o Discurso e o Sujeito na Instituio Sade Mental................31 1.4. Reformar a casa: breve nota sobre a nova assistncia.....................................39 1.5. Uma experincia construda: a histria das possibilidades...................................................44
2. JUSTIFICATIVA..............................................................................................52 3. OBJETIVOS......................................................................................................53 4. METODOLOGIA: O OBJETO INVENTADO E INVENTIVO.................54
4.1. Pesquisa Qualitativa...........................................................................................54 4.2. Criao e introduo da OTT ...........................................................................55 4.3. As Oficinas teraputicas e as Oficinas Teraputicas de Teatro (OTT)...............57 4.4. Os sujeitos .........................................................................................................60 4.5. O mtodo............................................................................................................61 4.6. Instrumentos........................................................................................................63 4.7. A instituio .......................................................................................................63 4.8. Procedimentos e construo de dados.................................................................66 4.9. Retrospecto da construo do grupo...................................................................69 4.10. Cuidados ticos.................................................................................................71
4.11. Sobre a Infra-Estruturta.....................................................................................72 4.12. Recursos humanos e materiais...........................................................................73 5. RESULTADOS E DISCUSSO: A OFICINA EM CENA.............................74 5.1. A mosca e a sopa: quem se incomoda?................................................................74 5.2. Ns: as palavras e seus destinos .........................................................................85 5.3. GESTOS: Grupo de Expresso...........................................................................91 5.4. Desconstruo: o olhar e seus destinos................................................................94 5.5. O destino da diferena...........................................................................................103 5.6. De Improviso.........................................................................................................107 5.7. Interpelados: com a boca na botija.........................................................................113 5.8. Contribuies das oficinas: o moto-contnuo..................................................118 6. CONCLUSO.........................................................................................................127 CONSIDERAES FINAIS.....................................................................................130 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................132
APNDICES............................................................................................................................................137 Apndice A.............................................................................................................................................. 137 Apndice B...............................................................................................................................................139 Apndice C...............................................................................................................................................142 ANEXOS...................................................................................................................................................144 ANEXO I....................................................................................................................................................145
10
ANEXO II...................................................................................................................................................146
1. INTRODUO: INTRODUZINDO, INTEGRANDO, INVENTANDO
Introduzir uma dissertao no nada fcil, principalmente em um trabalho que para
ser redigido precisa transformar emoo e experincia subjetiva em arte, a arte em idias e
estas por sua vez em linguagem escrita clara. Minha opo foi a de iniciar da teoria (o lido e
escrito) para posteriormente apresentar-lhes a experincia (o vivido e sofrido). No caso deste
caminho parecer, em alguns momentos, confuso para o leitor, recorram como a mim, a este
poema de Paulo Leminski (1991):
nunca cometo o mesmo erro duas vezes
j cometo duas trs quatro cinco seis
at esse erro aprender que s o erro tem vez1
1 Poema Erra uma vez , extrado do livro La vie em close , de Paulo Leminski, So Paulo: Brasiliense, 1991. close (fragmentos) So Paulo: Brasiliense, 1991.
11
1.1. Teoria dos Campos, Teatro do Oprimido e Teatro Teraputico
A construo das oficinas teraputicas de teatro (OTTs) tem como alicerces trs
conhecimentos especficos: A Teoria dos Campos que se refere a releitura e rediscusso do
mtodo psicanaltico feita por Fbio Herrmann; O Teatro do Oprimido que se refere a um
teatro transformador das relaes de opresso individuais e grupais e tem como criador o
teatrlogo Augusto Boal; e o Teatro Teraputico que foi assim chamado o Teatro Espontneo
do pai do psicodrama, Moreno, e que no Brasil tem sido resgatado por autores como Moyss
Aguiar.
A grande ligao entre esses trs tericos, que todos dirigem o olhar para os seres
humanos e seus feitos, individualmente ou em grupo, e discutem com maestria a existncia de
todos no mundo quotidiano. Os autores citados so tambm adeptos da arte da interpretao,
cada qual a utiliza a seu modo, interpretar na psicanlise como forma de decifrao de
sentidos de um discurso fora do padro estabelecido; interpretar no Teatro do Oprimido as
idias e histrias atravs da linguagem dramtica; e interpretar no Teatro Espontneo, re-
significando de forma cnica as experincias do coletivo (as ltimas duas formas de
interpretao mencionadas se assemelham muito devido ao espao do teatro que lhes
conferido).
Teoria dos Campos
A Teoria dos Campos um resgate da psicanlise como mtodo ou seja, Herrmann
(1991) intenta combater a reduo da psicanlise sua teoria e sua tcnica psicoteraputica,
pois o mtodo psicanaltico nasceu com o destino de elucidar a psique humana, que se
12
manifesta na criao do sujeito e de sua realidade (pg.12). O autor neste sentido expande a
psicanlise, estendendo-a do consultrio, onde ficou enclausurada equivocadamente, ao
quotidiano (para tudo que humano pessoas, idias, construes, coisas, aes, etc.).
Diante da discusso do quotidiano, Herrmann (1999) fala do princpio do absurdo,
que o contrrio (ou avesso) de uma coisa, revelado aps ter seu limite ultrapassado. O
contrrio, ou seja, o absurdo constitui a humanidade e seu mundo (esse que produto do
desejo humano). O autor fala da semelhana da psicanlise com o princpio do absurdo, visto
que ela busca desvelar essas regras estranhas, que aparecem no avesso dos sintomas ou de
uma fala despropositada, e fazer assim com que o homem reconcilie com seu prprio absurdo.
Uma definio importante da Teoria dos Campos, que inova a viso de inconsciente
o inconsciente relativo. Este inconsciente, no se refere a tudo que no consciente, mas
aquilo que no consciente em uma dada relao e que pode aparecer atravs da ruptura de
um campo atravs da interpretao. O campo, define Herrmann (1991) como sendo um
sustentculo, um delimitador daquilo que dito, nas palavras do autor O campo tudo e
nada na relao: a ordem produtora de sentidos, mas no qualquer sentido em
particular... (pg 105).
Herrmann (1999) fala de campos que mantm relaes sociais, crenas de populaes
e que dirigem comportamentos e atitudes de muitos (como os campos do regime da
moralidade). Fala, sobretudo, daqueles campos que so dominantes na humanidade, e que
romp-los seria como tirar o tapete do mundo, ou desabar o cu sobre a terra, pois eles so
campos que parecem muito naturais para o homem.
Por ruptura de campo se entende o rompimento dos sentidos de alguma coisa que est
enquadrada pelo quotidiano (num campo), que uma vez interpretada, dando novos sentidos,
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possibilita a entrada em um novo campo mais atuante ( e creio que significativo) no momento.
(HERRMANN, 1999).
Esses campos so mltiplos e conseqentemente os inconscientes relativos tambm o
so. Herrmann afirma que o contrrio da interpretao o inconsciente, sem a decifrao
permanece a charada, ou melhor, nada aparece. Rompido um campo que sustentava uma
relao, atravs da decifrao ou interpretao, possvel fazer o desenho deste, evidenciando
suas regras constitutivas.
Como eu havia dito inicialmente, a retomada da psicanlise como mtodo, convida aos
psicanalistas a olharem sua realidade, que a representao da psique do real. Ou seja, o
solo de onde brotam os desejos humanos, ou pelo menos, o desejo que se mostra quando
tenta-se ir de encontro ao solo do real (seja analisando um indivduo, uma obra, uma
construo). Existem vrios campos do real, e Herrmann (1999) afirma que:
so conjuntos de regras muito estranhas, como as dos sonhos, ou as da psicopatologia. Prova disso que a grande maioria das idias malucas que nos ocorrem no so de inveno pessoal, so partilhadas com parcelas respeitveis da populao e vm em modas (pg 148)
Mas antes de nos gerar a sensao de total estranhamento, o autor nos lembra de uma
aliada, a rotina, que so regras que reduzem toda essa produo de nossa absurdez na boa
aparncia do mundo e do humano (pelo menos temos convico de uma realidade mais
plausvel), que permite o convvio de todos, mas o estranhamento ainda est presente (em
alguns mais em outros menos), porque o real est refletido na mais inocente interveno
humana (num jardim por exemplo).
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A Teoria dos Campos, no se resume, obviamente, a estes importantes conceitos que
tentei esclarecer sucintamente, mas voltarei em alguns momentos a falar desses e espero que o
leitor esteja familiarizado.
Teatro do Oprimido ou Arco ris do Desejo
Devido s experincias de Boal com suas oficinas de Teatro do Oprimido, surgiu a
necessidade de entender e expandir seu carter teraputico, criando assim o que chamou de
Arco ris do Desejo , onde as se pode ver suas cores, criar novas, recombin-las (BOAL,
1996). O autor fala que o ser vem a se tornar humano quando descobre o teatro, diz:
Ele inventa a pintura porque antes inventou o teatro: viu-se vendo. Aprendeu a ser espectador de si mesmo, embora continuando ator, continuando a atuar. E este espectador (Spect-Ator) sujeito e no apenas objeto porque atua sobre o ator ( o ator , pode gui-lo, modific-lo) (BOAL, 1996, pg 27).
Este homem de teatro agora pode fazer uso da arte como sua aliada no constante
autoconhecimento, e eu diria, no seu autodesbravamento2.
De acordo com Boal (1996), esta verso teraputica de Teatro do Oprimido, apresenta
um conjunto de exerccios, jogos e tcnicas teatrais que permitem sua execuo. Essas
tcnicas vo se amparar em trs hipteses de O tira na cabea (que trata-se de formas de
projeo e introjeo de idias e valores), so elas : a osmose, a metxis e a induo
analgica.
A osmose consiste no fenmeno a propagao de idias valores e gostos atravs da
seduo ou opresso, como por exemplo, minorias que tem preconceito com a prpria raa.
Este fenmeno pode ocorrer tambm no teatro burgus assim como ocorre geralmente nas
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telenovelas, onde o espectador permanece imvel (no aspecto de agente) s informaes que
lhe so perpassadas osmoticamente.
Fazendo uma interlocuo com Herrmann (1999), este autor diz sobre fenmenos
sociais, por exemplo a osmose, como sendo frutos de um regime de pensamento que ele
chamou de moralidade. No regime da moralidade, que existe em obedincia ao princpio do
absurdo, acontecem radicalismos como o processo autoritrio, onde a osmose pode ser vista
como mtodo de coero e dominao dentro deste processo. De acordo com Herrmann no
processo autoritrio no existe relao necessria entre o dito e o fato (1999, p.138). Neste
processo o uso da fala mantm e garante que os seus envolvidos se conformem com o a
moralidade autoritria vigente, sem question-la.
Herrmann (1999) aponta tambm, a escolha da verdade conveniente, os
acontecimentos esto desprovidos de verdades e lgicas e para estes, existem convices que
servem de disfarce das intenes da psique autoritria de se representar de alguma forma no
mundo.
A proposta do teatro do oprimido de romper com os campos que sustentam relaes
dentro destes regimes de pensamento autoritrio. Ele busca a subverso daquilo ao invs da
submisso. Subverso, ou um verso submerso, onde se mergulha para poder conhec-lo e
assim poder vir-lo do avesso (conhecer suas regras absurdas). Nas palavras de Boal
(1996), ningum pode ser reduzido condio de objeto absoluto. Assim, o opressor produz,
no oprimido, dois tipos de relao: a submisso e a subverso. Todo oprimido um
subversivo submisso (pg 55).
A segunda hiptese, a metxis, se refere a simpatia que deve ocorrer entre o oprimido
e a imagem teatral, visto que ela deve ser transubstanciada, ou seja, preciso uma
2 A palavra desbravar significa alm de tirar a braveza, preparar as terras para cultura.
16
identificao com a imagem projetada pelo oprimido para que se construa uma imagem cnica
esttica. De acordo com Boal (1996) se o oprimido artista for capaz de criar um mundo
autnomo de imagens de sua prpria realidade e de representar sua libertao na realidade
dessas imagens, poder extrapolar, em seguida, para sua prpria vida, tudo o que tiver
realizado na fico (pg 57). O psicodrama tambm apregoa a capacidade de transpor para a
realidade a habilidade em papis desenvolvidos no teatro.
Infelizmente, no concordo totalmente com a possibilidade de transposio da
atividade artstica para a realidade, mas concordo que no caso de um teatro pedaggico, em
que o indivduo est preparado para aprender com a situao dramtica, isso ocorre
naturalmente. Mas em um teatro que no se auto-intitula didtico, o que ocorre a
representao do real, ou seja, o teatro j uma realidade e por isso uma construo do
indivduo, do grupo, do conjunto. Sendo o teatro construo humana, e acredito que
riqussima e diferenciada permitindo uma mudana no aspecto da rotina, passvel de
observao e suas manifestaes devem ser levadas em considerao.
A terceira e ltima hiptese proposta por Boal (1996), a induo analgica, uma
forma de gerar em todos a simpatia por uma histria individual. Um indivduo expe a
imagem de sua opresso, por exemplo, e espect-atores montam imagens anlogas a sua,
associa-se aqui todas as possibilidades partir da histria individual.
partir das hipteses acima, que Boal vai trabalhar seu teatro, ele apresenta ento
vrios modos, que digamos ser a metodologia do processo para possibilitar seu projeto de
ruptura das opresses. Entre esses modos, posso citar alguns bastante utilizados nas OTTs,
so: o modo romper a opresso , onde solicitado ao artista que no vivencie a cena como
ela aconteceu, mas como poderia ter acontecido e como queria que ela poder ser no futuro; o
modo frum relmpago onde feita um improvisao e os atores devem tomar o lugar do
17
oprimido para dar novos rumos situao vivida; e o modo representando para surdos onde
a cena tem que ser expressivamente clara para que se faa ser entendida sem palavras
audveis.
Boal (1996) traa um caminho para o ator que vai das tcnicas prospectivas (de
desenvolvimento humano
buscando reintegrar corpo, psique e social), passa pelas
introspectivas (de cunho psicolgico- buscando as emoes), para enfim alcanar xito nas
tcnicas extrovertidas (exerccios e jogos que apresentam o ator hbil, um espetculo por
exemplo).
O teatro frum, uma especialidade de espetculo do teatro do oprimido, que consiste
na montagem cnica de um tema onde se pode identificar os aspectos de opresso. O pblico
aquecido com brincadeiras, com a apresentao, e tambm convidado a entrar em cena e
mudar a situao do oprimido. Cada cena refeita discutida entre todos os presentes.
Constata-se a semelhana com o Teatro Espontneo, que permite tambm uma resignificao
de conflitos, nas palavras de Aguiar (1988):
O teatro espontneo seria espao e a iniciativa que poderiam contribuir para se sair do impasse. Atravs da vivncia do teatro seriam desvelados os verdadeiros conflitos, seriam liberadas as emoes encarceradas, seriam implodidos os dolos dos preconceitos e das solues prontas que no esto funcionando, seria acionada a criatividade coletiva assim como a responsabilidade comunitria.(pg 25)
Outra modalidade do Teatro do Oprimido o teatro do invisvel, que consiste em criar
uma cena a partir do desejo de um protagonista, e improvis-la no local em que ela deveria
acontecer, sem que as pessoas presentes no local saibam que uma cena. Como exemplo do
teatro do invisvel, poderia citar o filme Os Idiotas , de Lars Von Trier, onde jovens se
comportam voluntariamente como deficientes mentais, e atuam tambm em ambientes
18
pblicos, subvertendo as relaes preconceituosas (e fica claro que a idia parte de um desejo
maior do lder-protagonista do grupo).
O Teatro do Oprimido em suma, um teatro individual e social, assim como o Teatro
Espontneo, de ambos eu fico com aquilo que chamo de Teatro da Subverso3, que um e o
outro, no entanto no procura explicar o humano atravs do teatro, mas olhar para o humano
artista em cena e da sim procurar conhec-lo, como quem analisa uma obra de arte. Neste
caminho fao o sentido contrrio do psicodrama, levo a psicologia (junto dela, a psicanlise)
para o teatro. A psicanlise assim vai ao teatro e se faz no palco, enquanto o psicodrama,
trouxe o teatro para a rea psicologia, passando a nomear e exemplificar conceitos sobre os
constitutivos das relaes sociais e do desenvolvimento do sujeito.
Teatro Teraputico
Particularmente o psicodrama me atrai, mas no me conquista. Atrai porque fala de
teatro, e teatro voltado para o cuidado de pessoas, e ainda inova buscando a subverso e a
espontaneidade como enriquecedoras do mundo psquico (grupal e individual). Deixa de me
conquistar porque necessita teorizar sobre a pessoa a partir de elementos do teatro, e acaba se
distanciando da essncia artstica do teatro e da complexidade do sujeito.
Assim as prticas e a idia de um teatro que transforma, so pertinentes dentro da
proposta do meu trabalho mas, de outras especificidades tericas (como a matriz de
identidade, tcnicas para psicoterapia bi-pessoal, tele, etc.), prefiro no tratar.
Voltando ao Teatro Teraputico, trata-se daquele teatro que se originou do trabalho
pioneiro de J. L.Moreno, do qual o Psicodrama e o Teatro Espontneo so matrizes. De
19
acordo com Aguiar (1991) o erro da evoluo deste teatro designado como teraputico foi
diferenci-lo em muitos aspectos do teatro tradicional, ignorando a natureza curativa do teatro
por si mesmo. O autor fala do percurso histrico da encenao, na tragdia, nos rituais
sagrados ou nos rituais de caa, enfim o poder inato de integrao do teatro com as
experincias profundas das realidades humanas.
Aguiar (1991) fala da catarse, e que o gozo e a descarga energtica, por ela
favorecido, no so validos como teraputicos a partir do momento que no levam o
indivduo a se questionar, reagir aos seus opressores, a mudar efetivamente alguma coisa em
sua vida. O autor est aqui falando da catarse aristotlica, ou seja, aquela em que a
identificao do pblico com as emoes trgicas (medo e culpa, por exemplo) do ator, leva a
platia purgao das mesmas emoes. No entanto, outras catarses j foram definidas,
Moreno nos traz a Catarse de Integrao e Boal a Catarse do Teatro do Oprimido.
A catarse de integrao consiste na existncia de um protagonista que fala por todo o
grupo (atores, diretor, autor, espectadores), e que se permite ser perpassado por estes ao
mesmo tempo em que, leva a estes a sua encenao, de forma a integrar-se com a
coletividade, permitindo um orgasmo em conjunto (AGUIAR, 1988). De forma similar a
catarse do teatro do oprimido, advm da integrao do pblico com as personagens, no
necessariamente com o protagonista, mas por quem falar em nome dele. Disse falar em nome
dele, pois de acordo com Boal (1996), o espectador sabe que o outro fala em seu nome, mas
no em seu lugar, pois se quiser pode entrar em cena, transpor, mudar, como tambm escolher
no encenar. O autor diz que esta catarse tem uma voz mais ativa, e cria um novo tipo de
espectador, um espect-ator. Vejo e ajo (1996, pg 19).
3 O nome que dou ao teatro que tenho tentado praticar, na sade mental e fora dela.
20
No teatro proposto por Aguiar (1988), a integrao com o todo se d devido a
existncia de um co-inconsciente, identificado por Moreno como um conjunto de experincias
subjetivas e caticas, que fazem fundo a parede do quotidiano, e que so patrimnio da
coletividade permitindo com que as experincias possam ser consideradas de todos.
Experincias passadas, por exemplo, so significativas quando estas so consideradas
um incidente crtico, ou seja, um ponto de interferncia que simboliza rodo o conjunto de
foras scio-afetivas que preside estruturao da identidade (AGUIAR, 1991, pg 21).
Identifico a interpretao no Teatro Teraputico quando Aguiar (1991) fala que todo
teatro a repetio de uma experincia, e que o evento catrtico possibilita a desalienao do
indivduo (ou dos indivduos) atravs da re-significao dramtica. Lembrei-me aqui de uma
experincia que ilustra esta idia. Certa vez em uma finalizao de uma oficina de teatro
propus um relaxamento, onde todos deitados e de olhos fechados deviam ouvir minhas
palavras e buscarem ressonncias em seu corpo. Falei algo parecido com morte e um
paciente com comportamento bastante regredido, devido a seqelas neurolgicas
conseqentes de um acidente, teve uma ressonncia interessante. O paciente comeou a se
lembrar de seu coma, e dizia no conseguir abrir os olhos , Me!!! , Eu no estou morto ,
e depois chorou por ter perdido parentes no mesmo acidente. Conduzi situao de forma a
criar uma cena de aconchego para quando abrisse os olhos. No sei ao certo se houve uma
mudana efetiva para o quadro clnico do paciente, mas houve uma mudana para a relao
que todo o grupo estabelecia com ele, ou seja, de uma relao ali--nada para outra mais
humana.
Mas no s de eventos passados vive o drama, Aguiar (1991) diz que O imaginrio
que se concretiza no contexto dramtico est sempre e necessariamente impregnado do co-
inconsciente... (pg 22). O drama vive da criatividade, a do protagonista ou do coletivo, a do
21
presente ou do passado, no importa a origem, o importante que fala de todos e por todos e
que pode ser transformadora.
22
1.2. Oficinas em Construo: o moto-contnuo
nunca sei ao certo
se sou um menino de dvidas
ou um homem de f
certezas o vento leva
s dvidas ficam de p4
Agora, para falar de oficinas preciso o tempo verbal presente, pois trata-se de uma idia
muito atual que vem se desenvolvendo nas atividades quotidianas. Atualmente o termo oficina
muito empregado e possvel afirmar que existe um modismo, afinal aplica-se oficina para
muitos ramos de atividade profissional e de formas diferentes. Conhecemos as oficinas de dana,
de arte, lugares com o nome oficina voltado para tratamentos ou para educao artstica, oficinas
em escolas bsicas, oficina mecnica, oficina como mini-curso prtico em congressos (os Work
Shops), entre outras possveis atribuies. O nome se popularizou e atualmente este o nome que
me permite dialogar com esta transdisciplinariedade que a prpria palavra apresenta.
De acordo com Tenrio (2001), as oficinas so atividades grupais com diferenciadas
produes e prticas que foram criadas no mbito da reforma psiquitrica. Venncio, Leal &
Delgado apud Tenrio, no I Congresso de Sade Mental do Estado do Rio de Janeiro em 1997,
trouxeram grande contribuio para se pensar as oficinas discriminando trs sentidos dados ao
termo:
(...) um grupo de trabalhos enfatiza como fundamental o fato de que a oficina seja um espao de criao, sobretudo artstica; um segundo grupo entende a oficina com espao
4 Poema de Paulo Leminski do livro o Ex-estranho , da editora Iluminuras, So Paulo, 1996.
23
de realizao de atividades manuais e/ou mecnicas cujo produto ou servio possa ser oferecido ao coletivo como objeto de troca material, sendo o objetivo a capacidade relacional dos sujeitos envolvidos, materializada no poder contratual de vender/trocar/publicar o produto de seu trabalho ou o prprio trabalho; um terceiro entende que o propsito da oficina produzir a interao entre pacientes, a sociabilidade e as relaes interpessoais. 131p. et seq.
Em seqncia no mesmo captulo, o autor salienta que essas trs vises do dispositivo
oficinas (que ele chama de oficina) so de extrema importncia no mbito do atendimento na
sade mental, pois o primeiro como espao de criao em si teraputico, o segundo permite a
valorao do produto, as trocas sociais, e a possibilidade de renda, e o ltimo visa o resgate social
e a cidadania. Ora, ao meu ver, interessante seria poder aliar todos esses sentidos e t-los como
objetivos em uma ao: aprender o ofcio; produz-lo, dar preo, mostrar, trocar; e dentro do grupo
compartilhar e ter uma identidade de sujeito criador.
As oficinas tornaram-se, em muitos fazeres o prprio ofcio, no um ofcio de onde se
espera gerar renda, mas o fazer em si de uma atividade de convivncia, prazerosa, peculiar, uma
vivncia teraputica aliada a recursos sadios que estimulam a catarse, a transformao e a
autonomia. Esta minha maneira de pensar coaduna com a de Tenrio (2001), pois especificamente
quando se refere s oficinas de teatro, ele diz que seu sentido est no prprio fazer, contando um
caso onde, em um exerccio de encenao do delrio da paciente, esta passou longo perodo sem o
sintoma, atribuindo o fato ao teatro. O mesmo autor ainda faz uma srie de diferenciaes notando
que cada oficina tem um carter diferenciado, ou seja, nica. Assim as oficinas de beleza, as de
bordado, as de literatura, as de culinria, todas acabam criando as prprias caractersticas, seus
objetivos, de acordo tambm com a necessidade institucional.
Neste mesmo caminho, Llis e Romera (1997) vieram a contribuir belamente com a
definio de oficinas, ao lembrarem que a vida o prprio ofcio, onde se constri, desconstri e
reconstri. Nas palavras das autoras:
24
Nossas Oficinas talvez sejam, simplesmente, novas maneiras de se tratar antigas questes. Tentamos reiventar o encontro e o desencontro entre uma lgica da razo e uma da desrazo, entre uma lgica do que se espera e uma lgica da prpria espera, entre uma lgica que deveria ser e uma daquilo que ou pode ser.(1997, p. 41)
Percebo aqui como iniciam o pargrafo Nossas Oficinas , em concordncia com minha
afirmao de que cada oficina uma construo de sua prtica por seus praticantes-participantes.
Sobretudo que se tenha dito, as oficinas (que me atrevo sempre a escrever no plural quando
se refere ao instrumento, ao dispositivo oficinas ) so uma idia de produo de um espao, do
espao da oficina (que no singular a idia concretizada, a atividade ou/e o espao do grupo em
si). Este espao subjetivo( oficinas que se instalam na realidade como oficina ) quando ligado
arte, como o caso das oficinas de teatro, gera uma possibilidade de expresso transformadora.
Oficina e Arte
A idia de arte e atividade como dispositivo inovador na sade mental, me leva a recordar
necessariamente do trabalho de Nise da Silveira no Centro Psiquitrico Nacional, chamado Pedro
II (atualmente Instituto Nise da Silveira) no Rio de Janeiro. Na Seo de Teraputica Ocupacional,
levava os internos ao encontro com as artes plsticas, como define a pioneira Nise (1980, p.21) a
prtica seria entendida num largo sentido, no visaria produo de utilidades para o hospital,
mas teria por meta encontrar atividades que servissem de meios individualizados de expresso .
Frayze-Pereira (2003) em um artigo onde discute a importncia do trabalho de Nise, falou
sobre o desenvolvimento da arte no perodo ps- guerra. Neste perodo, na Europa, se desenvolveu
uma arte gestual que reagia ao materialismo crescente e a arte formalista que caracterizava a
poca. A arte chamada informal era uma reao a essa esttica intelectualizada, geomtrica
25
advinda das tendncias cubistas. A arte informal tinha a proposta do acidente, da irreflexo, da arte
por acontecimento, por acaso, com suas formas livres, sensveis e improvisadas. Nas palavras do
autor:
Essa arte nova, contempornea, propunha um contato direto com o espectador seja no nvel das sensaes, seja no nvel das emoes. O gesto espontneo considerado a expresso do ser primordial{...}. (2003, p.201)
Neste caminho Frayze-Pereira (2003) trouxe a discusso artstica para a prtica de
Nise, sendo que seus pacientes tratavam-se de verdadeiros artistas espontneos, sem tcnicas,
sem geometria, racionalidade, criadores de obras belas e que no plano da arte no se
distinguiam dos ditos normais . O processo psquico da criao existe para todos os artistas
independente de sua psicopatologia.
Um dos objetivos das oficinas, e desta discusso, provocar a reflexo sobre quem
autoriza uma produo de ser chamada de arte ou de loucura; outro objetivo importante o de
incrementar a discusso sobre o improviso e a espontaneidade nas criaes artsticas.
Vale recordar que Arthur Bispo do Rosrio, que foi interno da Colnia Juliano
Moreira durante anos, onde veio a falecer, deixou sua obra de grande apreciao pelo pblico
contemporneo, e esta era endereada a Deus (o que dado como delrio). Bispo acreditava-
se o Messias que havia vindo a terra para apresentar a mesma aos Cus, sua crena patolgica
o levou a construir magnficas miniaturas, roupas, pans e assemblages que ao invs de
levadas a Deus teriam sido expostas (pois este o sentido da palavra exposio) em diversos
eventos nacionais e internacionais. Foi preciso um crtico para afirmar seu talento, sem isto,
seu trabalho nada mais seria hoje do que lixos e sucatas transformados, artesanato sem maior
valor. As palavras de Frayze-Pereira (2003), contemplam e finalizam a idia desenvolvida:
26
E muito resumidamente, pode-se dizer que na moldura de uma exposio legitimada pela cultura, a "expresso marginal" certamente ganha o selo de "obra de arte". O marginal, o louco, o psiquiatrizado torna-se artista e aos olhos do espectador "gnio". E isto significa que na contemporaneidade o confronto entre a loucura e a arte o de uma luta mortal. Como dizia Foucault (1972, p. 555): "o jogo entre elas de vida e de morte". Nesse sentido, uma obra como a de Arthur Bispo do Rosrio, por exemplo, ao ser posta sob os holofotes da publicidade numa exposio como a Bienal de Veneza, em 1995, sempre fica exposta aos riscos do silncio, riscos que dependem da maneira como os espectadores e crticos vierem a se posicionar diante dessa obra, da maneira como vierem a perceb-la e a interpret-la. Os reducionismos e as tomadas de partido estticos ou culturais so os sinais mais bvios de que os riscos de "condenao da loucura ao silncio" (Foucault), mesmo no campo da arte, ainda esto presentes. (pg.105)
Espera-se que a arte das oficinas seja legitimada sim, mas primeiro por seus prprios
produtores e se possvel posteriormente, pelos seus apreciadores especialistas.
No submeter a arte das oficinas, ou seja, os artistas, s exigncias de produo
capitalista da nossa atualidade, ou seja, o tempo de produo, os modismos, o destino das
obras, entre outras regras, compromisso dos profissionais que se propem a implantar este
dispositivo. De acordo com Rauter (2000), para trabalhar arte nas oficinas importante
questionar qual o lugar do trabalho e da arte na contemporaneidade, quais so as condies
de criao e produo do sujeito no quotidiano. A autora diz que para o animal humano
preciso uma constante recriao da tecido cultural, de construir mundos e cr que a
humanidade mostra uma deficincia atual na recriao desse tecido, ou seja, a experincia
subjetiva parece em extino.
As oficinas de arte ganham aqui o mrito de serem alm de teraputicas (como podem
ser tambm outras oficinas), serem um instrumento importante para a recriao do tecido
cultural, da subjetivao.
Outra qualidade j constatada das oficinas teraputicas de arte, o espao de
comunicao que elas favorecem. Frayze-Pereira (2003), fala que a arte destri a
comunicao comum entre pacientes psiquitricos e faz surgir uma nova comunicao.
27
Tenrio (2001), acrescenta no mesmo sentido, dizendo que se na psicanlise o atendimento
tradicional possibilita ao psictico a tomada da palavra, na oficina o sujeito se apropria de
uma outra linguagem.
A linguagem cnica se prontifica diante da possibilidade de comunicar, de forma
diferente, coisas que fogem da lgica racional (por exemplo, no teatro, possvel interpretar
a sensao de Alice
a do Pas das Maravilhas
crescendo e diminuindo de acordo com
aquilo que prova).
O corpo fsico e psquico do ator precisa estar preparado para viabilizar a linguagem
cnica.
Particularmente, o que busco a priori enquanto atriz ter habilidade para absorver e
discutir as sensaes e caractersticas psquicas de textos, idias, personagens, a fim de poder
lev-las a cabo, ou melhor, ao palco. Mas as questes que devem ser feitas no palco so as
mesmas feitas na cena da vida quotidiana, ou seja, o ator-humano deve saber um pouco de si,
para poder saber de sua personagem, e dela responder: quem ela, o que ela quer, e o que
querem dela?.
Concordo ento com Boal (1996) quando diz que, para fazer teatro, precisa-se
ressituar o ser humano em seu corpo, um corpo com cinco sentidos s vezes falidos por uma
deficincia causada pela atrofia. Os olhos imersos na rotina privam-se de olhar tudo o que
podem, os ouvidos ouvem o superficial, o olfato se restringe a fortes odores e resta pouco
para o tato que esquece as prprias roupas do corpo e as toma como pele.
No s para fazer teatro, certo, que a banalizao dos sentidos, das percepes, da
no criatividade no quotidiano tem que ser combatida, a vida precisa ser viva. O lazer, as
atividades artsticas, a anlise, podem ser agentes de mudana de uma aparncia de mesmice
repetitiva que lanam o sujeito num vazio sem trguas.
28
Falando em combate, Boal (1996) nos avisa que o ator quem vai toca do lobo
buscar o humano desconhecido para cima do palco. O ator neste caso o homem em trabalho
cnico, mas posso dizer que o ator o sujeito de suas aes no seu prprio cenrio. O ator
ento compreendido como o homem que est tentando responder s suas questes, olhando
para a estranheza no mundo e em si mesmo. Esse papel tambm do psicanalista, e a toca do
lobo nada mais que os inconscientes relativos.
Como o ator vai toca do lobo? Creio que pelas rupturas de campos, possibilitada
pela interpretao. Nesta empreitada, dispensado at o analista, o teatro e seu pblico so
possveis agentes de ruptura que favorecem o mergulho do ator.
O texto dramtico, o parceiro de cena, o diretor, podem ser possibilidades para que
esta ruptura ocorra. No caso de Boal, as possibilidades so muitas, o corpo do ator como
receptivo ao novo, criativo, o teatro disponibiliza o corpo para a metamorfose e o ator para o
novo.
Eis a metamorfose, que nas palavras de Aguiar (1988), chamada de transformao, pois o
teatro nos serve para reinventar expresses e para afirmar no a cura, e sim a abertura para a
exploso criativa, para o fluxo da vida. Trata-se de um incremento qualitativo, e em sua atuao
completa, de acordo com Martuscello (1993), o ator que interpreta obras de contedos
profundamente humanos e transgressores torna-se um produtor de catarse de suas prprias
emergncias interiores.
As emergncias mais visveis para pessoas em sofrimento psquico, so as de suportarem a
realidade e de serem suportados pela mesma. Rauter (2000) enfatiza o quanto o trabalho e a arte
devem funcionar como catalizadores da construo de territrios existenciais, ou seja, mundos
onde usurios da sade mental possam reconquistar ou conquistar seu cotidiano.
29
Sobre a utilizao de textos dramticos em oficinas de teatro, na proposta de Boal (1996)
existe uma sobrevalorizao da expresso teatral-corpo-cena frente a verbal-fala-escrita, a primeira
no exclui a segunda mas, agir com base no verbo, acaba por restringir muito em relao ao corpo
e seus sentidos.
No teatro proposto por Boal, a improvisao e a contextualizao sobrepem-se obra
teatral literria, mas este teatrlogo no desconsidera a fonte de riquezas psicolgicas de uma
grande obra, assim se exprime: As grandes obras teatrais penetram diretamente no nosso
inconsciente e com ela dialogam. Se DIPO REI nos fascina no porque estejamos interessados
em ns mesmos e DIPO fala de ns, fala por ns, fala em ns. (1996, p. 29)
Ainda assim os textos literrios podem ser fontes de estmulo a situaes catrticas e
at mesmo possurem cunho informativo de forma a somar no grupo de oficinas, no podendo
ser em nenhum momento subestimados.
A psicanlise pelo mesmo caminho valoriza e se encontra na produo literria, o que
Carmine Martuscello (1995) fez ao destrinchar a obra de Nelson Rodrigues e nos permitiu
repensar a importncia do texto dramtico. O autor escreveu em um belo pargrafo mais um
parecer sobre o poder catrtico, desta vez do texto teatral:
A acuidade da psicanlise aplicada ao teatro de Nelson Rodrigues nos d uma dimenso do poder de certos contedos mentais - como por exemplo, o Complexo de dipo - de influir na criao artstica e condicion-la, fazendo do artista um produtor catrtico de suas prprias urgncias interiores (1995, p. 43).
A proposta da arte enquanto subversiva (na literatura, no teatro, na pintura, onde quer que
esteja) est clara, ela um fato histrica e seus produtores esto cnscios disto, seria necessrio
para o universo da loucura tambm ampliar este espao de enriquecimento do real. A loucura
como fato histrico trouxe ganhos tamanhos para o mundo, embora o estranhamento ao louco se
30
diferenciou demasiadamente do estranhamento arte por seu estatuto de conscincia, aquela
mesma atribuda aos homens gregos.
O caminho da margem, no sentido marginal, ao centro ou seu inverso no o
importante, e sim que a loucura possa ainda ter caminhos para distribuir suas formas
grotescas, hbridas, esquisitas e seja aliada daqueles rebeldes, como foi de Artaud, que partem
da prpria estranheza para um reconhecimento e produo de uma existncia menos intil e
adormecida.
Por isso apostei no teatro para fortalecer o momento ps-asilar (que est prometido), o
mesmo Teatro que teria Touchard definido assim:
Sim, o teatro, eterno exorcista de demnios, que pacifica as paixes, que junta as solides; o teatro que _exatamente porque torna o real mais verdadeiro que o real_ faz de nossos mais vagos sonhos, de nossas mais difusas aspiraes, de nossas mais inconscientes necessidades, no mais testemunhos de impotncia ou de fugas estreis, mas um trampolim para uma humanidade mais lcida e mais violentamente vida de sua prpria realizao.(1970, p. 168)
Um teatro que acontece no palco das oficinas, no div da psicanlise, e onde mais
houver espao para o mergulho.
E ento, agora que o leitor sabe o que pode ser a idia de Oficinas , est preparado para
construir a sua (idia e oficina)?
31
1.3.Pensando sobre o Discurso e o Sujeito na Instituio Sade Mental
o barro
toma a forma
que voc quiser
voc nem sabe
estar fazendo apenas
o que o barro quer5
Na trajetria deste captulo tive como intento esboar a idia de sujeito na Anlise do
Discurso (AD), bem como fazer algumas correlaes com a psicanlise e psicopatologia, a fim de
responder necessidade metodolgica de buscar um novo modo de olhar o sujeito-cliente e a
instituio. Conclu ainda que h muito a ser discutido da relao da instituio psiquitrica, do
sujeito louco atravs da AD, e que esta discusso acontece na anlise propriamente dita de
algum elemento discursivo que possa contribuir enfim com a interlocuo destas idias. Na
dissertao porm, meu objeto foi outro, no discurso dos sujeitos me atentei mais aos
deslocamentos do discurso e relao com a OTT.
Minha necessidade em conhecer meu objeto de uma forma bastante contextualizada, pois
se trata de um objeto complexo por suas relaes com o cuidado psquico, poltico e social de
humanos, me fez identificar na psicanlise e na AD a possibilidade de um mtodo que gestasse
meu desejo.
A aliana destes mtodos, me possibilitou movimentar no sentido de romper modelos
preexistentes da compreenso do sujeito e das formas mais tradicionais de analisar os contedos da
pesquisa.
5 Poema de Paulo Leminski extrado do livro Caprichos&Relaxos , Crculo do livro, So Paulo, 1987.
32
Encontrei no caminho da psicanlise em concordncia com a proposta da Teoria dos
Campos, a possibilidade de olhar o sujeito e seu mundo, complexos e estranhos devido a
multiplicidade de campos que se tornaram possveis, e onde a interpretao tem papel fundamental
para sua compreenso. No cruzamento da via aberta pela anlise do discurso, me deparei com a
possibilidade de situar scio-historicamente este mundo humano atravs da linguagem, e
especificamente de sua produo. Conhecendo no discurso o lugar do teatro, da doena, da
instituio e enfim o lugar que possibilitou o discurso analisado.
Neste amplo campo pareceu-me ser imprescindvel considerar tudo o que envolve o
Ser Humano, como sua constituio orgnica, scio-cultural, sua estrutura psicolgica, a
educao da qual faz parte, as instituies as quais pertence, sua histria, suas relaes de
produo, a condio econmico-poltica na qual se insere, enfim onde tudo isto se simboliza,
na linguagem. Para no me tornar extensa ou prolixa fiz recortes nas entrevistas, nos fatos,
focando as repeties de palavras, as contraditoriedades, a apario do desejo, a palavra
teatro e/ou oficina , e as falas nas quais o sujeito desaparecia e a polifonia aparecia.
Para a operacionalizao e compreenso da anlise do discurso (AD) movimento
iniciado por Pcheux na Frana no fim dos anos 60, foi preciso o estudo e a interpenetrao
de trs movimentos das cincias sociais que configuram a AD: a Lingstica, a Psicanlise e o
Marxismo.
Amaral (2003) situou a AD nas propostas de Puchex, encontrando-a em trs regies
do conhecimento j mencionadas: a) na Lingstica
com a problematizao do corte
saussuriano - teoria lingstica; b) no Materialismo Histrico
por meio da releitura
althusseriana de Marx - teoria da sociedade; c) na Psicanlise
por meio da releitura
lacaniana de Freud - teoria do inconsciente.
33
O inconsciente psicanaltico de suma importncia na compreenso da AD, pois
permite a insero da idia de falha, o que coloca a interpretao num campo novo
desconhecido, e que s pode ser viabilizado pela no obviedade e no sujeio da narrativa ao
seu produtor.
Pude compreender que para a anlise de um discurso preciso que eu compreenda a
linguagem em sua amplitude de expresses, escrita, falada, incorporada (PANNCIO-
PINTO, 2003). O discurso das pessoas dentro da instituio pode ser visto em todos os seus
modos e eles podem nos contar o que este sujeito quer e o que esta instituio quer, o que este
sujeito traz do cotidiano, o que traz da instituio e o que esta conta atravs deste sujeito. O
enunciador de um discurso no necessariamente seu locutor, este segundo o transmite, pois
perpassado pelo primeiro.
Quando penso em uma instituio psiquitrica onde a noo de sujeito diferenciada
devido ao entendimento dos diagnsticos psicopatolgicos a produo da linguagem tende a
se apresentar com maior freqncia em forma de sintomas do que fora da instituio.
Observei que existe uma tendncia a se ler tudo como sintoma dentro da instituio
psiquitrica, um desenho, um grito, um sono, um silncio, uma expresso do louco . A
psicanlise se debrua sobre o sintoma para ouvi-lo, a psiquiatria tende a se debruar sobre
ele para abaf-lo. Encontrei aqui uma coincidncia quase triste, a medicina tem como smbolo
tradicional de figurino um estetoscpio envolto no pescoo, serve para auscultar os
batimentos cardacos, o Corao do paciente no tem sido sinnimo de medicina, e sim
aquele inteligente aparelhinho a tiracolo. A contradio da clnica aparece, pois o instrumento
no pode ser confundido com o objetivo, ou seja, para se escutar um humano preciso dois
humanos.
34
H tempos, a relao mdico-coisa, coisa-paciente, vem aumentando uma ciso do
sujeito com seu tratamento, com seu problema. A queixa parece assim um mal externo, que
no faz parte da histria do indivduo que sofre. Em sntese, tentei caminhar para a afirmao
de que olho para o sintoma, para a palavra, e para a arte como linguagem do sujeito com o
qual me relaciono, e que um cuidado integral (com outros profissionais se possvel), tambm
se torna necessrio.
Retornando ao assunto deste captulo, quanto ao discurso do psictico, achei
necessrio lembrar que a ele no dado o estatuto de sujeito. O ego no apropriado no
digere o real e o devolve deformado realidade, como em um vmito no processado, em
forma de alucinaes e delrios. Isso se d exatamente devido a uma dificuldade do indivduo
de representar a coisa-imagem de forma simblica, ou seja, atravs da linguagem.
Mas ousei questionar e aqui os convido a pensar comigo, que se o sujeito neurtico
est desprovido do domnio de seu discurso devido s interpelaes que sofre do inconsciente,
das ideologias, e da prpria estrutura da sua lngua, o psictico, o qual no considerado
sujeito da linguagem, no estar menos desprovido desta que o anterior. Mas fiquei certa de
que por enquanto, no posso afirmar nada, trata-se de uma hiptese futura, na qual devo me
aprofundar em outros estudos, pois h muito que se falar e se compreender sobre ser sujeito.
Nas palavras Herrmann (1999) quando disse que o chamado louco foi aquele colocado
numa instituio, ele foi descoberto, enquanto os demais continuam a rodar com o manicmio
redondo, encontrei identificao com meus pensamentos j desenvolvidos.
Deleuze apud Lins (1999) discutiu a idia de assujeitamento dentro da perspectiva da
produo de sentidos, onde este existe sombra do no-sentido. Este, no deveria ser tomado
por absurdo, e sim apenas como a falta de sentido, a falha da significao, assim, este filsofo
analisou textos literrios reconhecendo em seus no-sentidos o que chamou linhas-de-fuga,
35
onde existem subjetivaes que escapam ao que est institudo como inteligvel e que
possibilita aos que entram em contato com uma obra, a experimentao deste, e seu caminhar
entre o sentido e o no-sentido. Penso assim, que o no sentido produzido pelo psictico, em
uma obra de arte, por exemplo, possibilita caminhar no seu universo de no-sentidos, entrar
em um campo do inteligvel, das regras claramente absurdas.
O homem se desconhece, essa a marca de uma das feridas da humanidade, pois
descentraliza o homem como centro do universo (imagem e semelhana de Deus). O
inconsciente descoberto e conseqentemente o Ser Humano fica impotente, pois a no-razo
o surpreende (at no corpo).
O trabalho clnico se desvela neste instante como um possvel produtor de novos
sintomas, o sintoma da interpretao, ou melhor, do encontro com a evidncia que assim
emergiu devido ao debruar do analista sobre seu "paciente
no evidente" no entanto, mais
uma vez, esta evidncia interpretada se faz no campo da linguagem que est ideologicamente
determinada sendo mais substancial para a anlise o processo de produo deste fenmeno
de evidenciao . (PANNCIO-PINTO, 2003).
Entendi que seria um retrocesso diferenciar os psicticos dos ditos normais quanto ao
discurso. O olhar sobre o discurso do louco parte de um lugar chamado normal , um normal que
por si s ganhou autonomia para dar seu julgamento sobre a razo do outro.
Outra discusso relevante sobre a polifonia no psictico, neste parece ser mais acentuada
e aparente que nos demais. As vozes do discurso psictico so concretas e no ocorrem por meios
simblicos como falas irnicas ou as aspas de um texto. Aparecem como falas de vrios outros que
compem claramente um discurso fragmentado.
O sujeito psictico no ocupa um outro lugar para falar, como se sua fala muitas
vezes desorganizada e fantasiosa precisasse do psiquiatra para que o legitime como seu
36
discurso, na verdade o discurso do psictico est condenado ao encarceramento do
diagnstico mdico. Embora o psictico mostre que no precisa do outro para afirmar a
verdade do seu discurso e parece no se preocupar com o estranhamento que algumas
palavras causam, quase sempre o Outro que determina sua fala. De acordo com Lacan apud
Novaes (2000) a fala do psictico no possui filiao simblica nem discursiva. Na psicose
no haveria assim uma forma de organizar a linguagem atravs da ligao entre as
significaes possveis da palavra, a palavra do psictico a coisa, concreta. A palavra
concreta sem pai nem me leva a afirmar que falta na constituio deste sujeito chamado
doente a palavra anterior (da funo paterna), ou seja, uma palavra que permita a ruptura
com a relao de assujeitamento, sendo ainda objeto de gozo na relao com o outro (da
funo materna). Assim, o sujeito no est inscrito em um discurso, mas estes o perpassam.
Alguns estudiosos afirmam que o indivduo institucionalizado um ventrloquo do
discurso da instituio, o que uma hiptese bastante aceita quando se leva em considerao
a funo da instituio que acaba por reafirmar a existncia daquilo que ela mesma combate,
no caso dos manicmios e clnicas acabam por reforar a loucura neste trabalho.
Independentemente da psicopatologia, a AD francesa discute a crise da unicidade do
sujeito falante, pois este sujeito ganha um estatuto heterogneo em funo das intervenes
dos outros discursos, sejam elas reais ou imaginadas. Para se delimitar ento um campo do
discurso necessrio considerar a interao com outros. (GUIRADO, 1995).
Guirado (1995) escreveu sobre a ironia, a imitao, e at mesmo sobre sua prprias
aspas, para constatao do carter heterogneo do discurso. A ironia seria uma forma de
marcar um distanciamento entre o locutor e as palavras, um dito do enunciador que seria
insustentvel, e fica entre um dito assumido e o um no assumido. A imitao pode assumir o
carter de subverso ou de captao, o falante escondido atrs do locutor de um gnero
37
determinado pode captar e usufruir do seu poder ou destru-lo. No caso das aspas, a autora
discute que sua utilizao uma suspenso no sentido corrente do texto e que serve como ao
locutor para dialogar com fantasia que faz da aceitao ou no-aceitao do seu destinatrio
pelo seu dito.
Os sentidos das palavras, e o aparecimento do sujeito da linguagem, discutidos neste
captulo gerou indagaes diversas, caracterizando assim uma cincia que ao invs da
verdade, e da busca de uma exatido nas repostas, busca o no-dito e o no-sabido que
amplia-se infinitamente. Essa a cincia-arte que faz a psicanlise, como disse Herrmann
(1991) sobre o mtodo psicanaltico.
Voltando a questo do sujeito, segundo Bakthin (1995) o sujeito no est pronto este
incompleto e est numa busca eterna de completude inconclusa, o que se assemelha bastante a
idia de falta da psicanlise lacaniana. Com efeito, impossvel uma formao individual sem
alteridade, pois o outro6 delimita e constri o espao de atuao do sujeito no mundo. No entanto,
o outro constitui o sujeito ideologicamente e proporciona-lhe o acabamento. Para Bakhtin ser
homem construir a prpria existncia a partir das condies scio-econmicas de uma sociedade.
S se identifica um indivduo como sujeito quando este torna-se membro de um grupo social, de
uma classe social, ou seja algo a que todos esto legados, e s assim nasce para a histria, para sua
realidade e para a possibilidade de produo na cultura em que se insere. Nascer no basta para O
Ser Humano, ser histrico, todo o reino animal nasce e possui um encaminhamento diferenciado
da humanidade. Enfim para esta raa sobrevivente e sobressalente preciso um segundo
nascimento: Portanto, necessrio, um segundo nascimento, um nascimento social. No se nasce
organismo biolgico abstrato, mas campons ou aristocrata, proletrio ou burgus (...)
(BAKHTIN, 1995, p. 96)
38
Dessa forma, a ligao do homem vida e cultura se d por meio da realidade social e
histrica. Nessa perspectiva, Bakhtin concebe a conscincia como um fato scio-ideolgico.
Guirado (1995) discute a psicanlise junto a esta noo do discurso do sujeito
historicamente e ideologicamente determinado, atentando analistas para as possveis
violncias que a clientela acolhida nos divs vem sofrendo ao longo da trajetria da prtica. A
analista chama de traduo simultnea a prtica do trabalho analtico que busca na fala do
outro, os sentidos que fazem parte do prprio discurso (do analista). A autora afirma que o
discurso o terreno onde se do os aspectos da vida social e poltica e ao contrrio. De acordo
com Foucault apud Guirado (1995), nota-se muito claramente que as condies de produo
do discurso so intrnsecas ao prprio discurso; no esto alhures, alm ou aqum dele; na
prpria estrutura da formao discursiva que se pode apreender suas intenes e os termos de
seu engendramento.
Conclu neste captulo ainda, que h muito que ser discutido da relao da instituio
psiquitrica, do sujeito louco e a AD, e que esta discusso acontece na anlise propriamente dita
de algum elemento discursivo que possa contribuir enfim transformar a idia em produo
cientfica.
6
39
1.4. Reformar a casa: breve nota sobre a nova assistncia
Qual era sua profisso?
_Aprendiz de calafate
E o que voc gostaria de ser?
_Gostaria de ser livre 7
A reforma psiquitrica que se iniciou de fato no Brasil, com uma minoria de adeptos entre
a dcada de 70 e 80, obteve ganhos (criao de rgos fiscalizadores, da Conferncia de sade,
ONGs envolvidas, incentivo ao trabalho, incentivo para o retorno ao lar, criao de servios
substitutivos ao manicmio como os CAPS, retirada de leitos de interao, etc), que esto longe
de efetivarem uma assistncia eficaz e no-asilar, porque o asilo persiste no discurso da populao
e na prtica de alguns profissionais, alm de irregularidades ainda no sanadas (como as clnicas
particulares). No entanto j possvel haver crtica s instituies asilares em todos os mbitos
sociais, inclusive na legislao da sade mental (DELGADO, 2001).
Pedro Gabriel Delgado (2001) convida em seu artigo para o livro Cidadania e Loucura
organizado por Tundis e Costa, os profissionais da sade para uma reflexo sobre a necessidade do
tratamento multidisciplinar ao da sade mental no Brasil. Prope assim, que seja tirado o poder
absoluto sobre um tema to singelo e to abrangente das mos de uma classe psi que se v como
detentora do saber.
Neste caminho ento onde todos possuem voz, Delgado (2001) prope ser discutido o
mundo ps-asilar e os processos de desinstitucionalizao que se vem desejando aos pacientes
crnicos. Para tal refaz o trajeto que favorece ao leitor conhecer os motivos das internaes no
7 Entrevista minha com Rubens Jacinto que consta no libreto No levante vo agora , 2002.
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Brasil ao que tudo leva a crer ter ntida ligao com o lucro que este favorecia s instituies
privadas e aos governantes.
A poltica do momento histrico, a questo do relacionamento da sociedade, bem como
outras variveis fazem da internao um fator exclusivo dos fenmenos sociais mais do que da sua
real ligao com as psicoses e neuroses da populao.
A doena mental estatisticamente parecia nas dcadas de 60 e 70 mais comum entre os
pobres e os imigrantes, o que se pode fazer crer que fatores econmicos e adaptacionais, ou seja,
presses s quais os indivduos estariam expostos, favoreciam os distrbios. Muitas vezes o
distrbio aparecia como forma de garantia de subsistncia, afinal a instituio promete alimento,
moradia e uma reabilitao para o mercado e convvio social.
A to sonhada e defendida reabilitao pode incorrer muitas vezes no erro de significar a
normatizao dos indivduos, ou seja o treino para que o sujeito torne-se hbil para o meio social.
Tenrio (2001) destaca este sentido da reabilitao falando das exigncias polticas que
contradizem tudo quilo que a instituio psiquitrica havia at ento imprimido sobre os seus
pupilos (tutelados de uma instituio total), de forma a tornar-se uma nova forma de agresso
aos mesmos.
O que se sabe a princpio que o manicmio e as prticas psiquitricas que se propuseram
a olhar para o sujeito louco , serviram mais para sua cronificao e isolamento, do que para o
alvio de sofrimento. Evitar que estas prticas continuem no cenrio da sade mental, ainda no
opinio unnime, mas tem adeptos e ganhos no campo da prtica bem como nos campos poltico e
judicirio.
Delgado indica duas questes administrativas necessrias para deter-se o fluxo de
internaes:
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1-necessidade de do sistema ambulatorial, conferindo-lhe alta resolutividade nos casos graves e no impedimento das diversas foras psicolgicas e sociais que levam internao; 2- ampliao dos recursos intermedirios entre o leito hospitalar e o ambulatrio, como os hospitais-dia, hospitais-noite, penses protegidas . No entanto estes aparatos administrativos acabam por substituir o asilo, dando apenas prosseguimento ao falido modelo psiquitrico. A desinstitucionalizao ainda complexa, para que torne-se vivel preciso um acolhimento completo no de uma instituio mas de toda a rede social (2001, p. 174).
Fernando Tenrio (2001) disserta com fundamento sobre o que as prticas clnicas na
psiquiatria teriam a oferecer para este novo momento e quem o atual sujeito louco, o do ps-
asilo. O autor lembra este sujeito da ds-razo , ou seja o louco, que desde as formulaes
cartesianas do sc XVII e iluministas do sc XVIII v-se como constrangedor da ordem natural
por no incluir-se na hegemonia da razo, tem anulada sua cidadania e ganha o estatuto negativo
sua forma de subjetivao. Aps as revolues americana e francesa o estatuto da loucura
enquanto objeto da psiquiatria passou a fundamentar a excluso social, no entanto, preservando a
condio de cidados j que defendia-se uma universalidade neste sentido. A clnica psiquitrica
vem ento contribuir para a excluso do portador da ds-razo, ora veja que suas origens histricas
no so nada menos que o controle e isolamento do incmodo social.
Tenrio encontra na psicanlise a clnica possvel, enquanto a psiquiatria estava a negativar
o sujeito, Freud e Lacan lanam psicose um olhar que o enxerga, no como um sem razo, mas
em sua singularidade. O valor dado pela psicanlise ao discurso psictico, sua alucinaes e
delrios, evidncia de que a clnica psicanaltica relaciona-se de forma mais humana com a
loucura e dispe-se realmente de trat-la alterando totalmente o conceito de cura. A cura passa da
modelao externa - os normais corrigem os doentes - para uma remodelao interna ou seja, a
doena cura o doente. Ora se Freud afirmou que o delrio a cura, exemplificando com o caso
Schreber a construo de uma subjetividade menos sfrega, no existem motivos para fadar o
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delrio acusao severa de irracionalidade e assujeitar seu portador. Tenrio esclarece a
diferenciao do trabalho psicanaltico da psiquiatria tradicional nas seguintes palavras:
A indicao de Freud, portanto, de que o sujeito deve ser buscado , e no em sua correo em prol de uma percepo correta da realidade... Nesse sentido o avano de Freud frente a Pinel foi o de indicar que a cura no est na correo da loucura pela razo ou pela realidade, mas na prpria construo delirante. Se para Pinel o delrio era o negativo do sujeito, para Freud o sujeito deve ser buscado justamente ali, em sua loucura (2001, p. 82).
Retomei o sentido da reforma psiquitrica e busquei assim finalizar esta modesta
introduo da nica reforma a qual este projeto pde aderir, que a reforma da casa, a casa sade,
a casa razo, a casa corpo, a casa sociedade, no uma reforma pequena como de uma casa que se
pinta para disfarar a velhice, ou que se muda os mveis mantendo a mesma estrutura slida .
Em defesa daquela reforma que incomoda os moradores, onde trabalhadores de diversas
procedncias, funes e segmentos, quebram os tijolos e refazem as grandes estruturas
transformando o espao fechado no apenas em espao aberto enquanto portas mas interiormente
aberto, para que sempre ventilem o ar e as novas idias, os conhecimentos tcnicos, as
experincias, as vivencias e os delrios diversos.
Caso a reforma psiquitrica tenha em muitos momentos caminhado no sentido de re-frma,
na inteno de formatar os doentes, como se faz com disquetes, anulando sua singularidade para
depois imprimir uma srie de atitudes aceitveis ou uma srie de comportamentos padronizados,
atualmente so diversas as crticas essa tendncia de encaixar tudo numa normalidade almejada.
preciso ento a denncia, no a rgos administrativos ou qualquer outra instancia, mas uma
denncia artstica, poltica, cientfica, e interna que permite ao profissional da sade mental tomar
nota sempre que possvel das intenes da prtica na qual se insere.
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Pude dizer em suma que enquanto armas de ruptura dos cimentos que petrificam as
paredes da casa, a psicanlise e a arte so fundamentais para a subverso e denncia de prticas
infelizes e normatizadoras no mbito da reforma. E por que no tambm no mbito da vida
cotidiana de todos ns?
Aguardando a resposta dos leitores, pensei em no radicalizar afirmando serem as duas,
arte e psicanlise, as nicas sadas para um mundo mais sensvel, mas os pedi para que fossem
criativos e espontneos trazendo propostas e rompendo com os velhos e falidos padres de
existncia.
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1.5. Uma experincia construda: a histria das possibilidades
Quando era criana eu no tinha pecado no (...)
No matei, no roubei, no devo, no temo.
J fui bailarino. Era valsa que a gente danava.
Mas foi proibido, negado8
Minha histria com as oficinas teraputicas de teatro (OTT) comeou em Uberlndia,
em 1998, no Ambulatrio de Sade Mental de Uberlndia. No incio, ministrava a oficina
baseada na minha experincia de atriz, e estudiosa do teatro, assim como fazia junto aos
meus alunos em cursos de teatro, pensando sempre no recurso aprendido nas artes cnicas.
No havia uma preocupao de minha parte com os aspectos teraputicos da oficina. No
entanto uma colega de trabalho que me acompanhava na atividade, sempre abria um espao
para a escuta e observao dos aspectos importantes do grupo, o que me fazia crer na
importncia de exercer dois papis ali: de artista e de psicloga.
As oficinas eram semanais e permaneci seis meses na coordenao, crescendo junto com
os participantes e descobrindo diariamente o poder criador do teatro. Foi quando comecei a
pesquisar A Catarse do Ator: textos dramticos, teorias e tcnicas teatrais que a favorecem 9,
acreditando naquele momento, ser a catarse o fator de maior relevncia nas oficinas de teatro.
Hoje sei que a catarse o fenmeno mais prazeroso proporcionado pelo pice da
identificao do artista com sua obra, mas no o principal. O processo de trabalho, mesmo
quando no to prazeroso tambm transformador, a catarse por outro lado, possibilita
mudanas e confrontos imediatos. Pude concluir tambm, que tcnicas distintas podem levar a
8 Frase de Rubens Jacinto Ferreira no libreto No levante vo agora , xerocopiado no IMAS-JM, RJ, 2002.
9 Ttulo de meu trabalho de iniciao cientfico
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nveis similares de descarga psquica bem como tcnicas e textos similares podem levar a
descargas de energia diferenciadas, e a descarga mais visvel e imediata ocorre a nvel
somtico, ou seja, no corpo que a purgao aparece, retomando assim o antigo termo clnico
da catarse cunhada pela medicina10 (CAMPOS, 1999).
Aps esta pesquisa fiquei um perodo de dois anos sem trabalhar com as OTTs pude
novamente experienci-las, com uma clientela diferente, no to jovem e disposta como daqueles
que conheci no Ambulatrio. Essa experincia aconteceu na ex-Colnia Juliano Moreira, uma
imensa fazenda em Jacarepagu na cidade do Rio de Janeiro que foi aberta como hospital
psiquitrico em 1923.
O hospital, que hoje, veio a se tornar o atual Instituto Municipal de Assistncia Sade
Juliano Moreira, esteve submerso na histria psiquitrica do nosso pas.
Lembro-me que antes que eu propusesse uma oficina de teatro no NUV, outros
profissionais com mais tempo na instituio trabalhavam com oficinas semanais de convivncia,
alm de prticas de jardinagem, jogos, audio de msica e do almoo orientado que ocorria
mensalmente com o propsito de possibilitar aos moradores da casa oito abandonarem a velha
quentinha (marmitex padro). A inteno do almoo orientado era de que os moradores aderissem
alimentao convencional, escolhendo e servindo eles mesmos, utilizando talheres metlicos e
no os de plstico. Nestes momentos o diferente mostrava suas diversas formas, mas ainda no era
lugar de liberdade, de expressividade, pois algumas vezes, os profissionais caiam na didatizao da
vida e pareciam ser verdadeiros sustentadores da sociedade.
Minha inteno com a implantao das OTTs, era fazer o inverso da proposta anterior, no
levar o que havia sido desaprendido (como pegar no garfo) para aquele espao, mas valorizar o
10 Catarse medicina era a purgao dos males trazendo cura de uma doena.
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desejo dos pacientes, o que sabiam, o que eram. Outro objetivo era criar um envolvimento entre os
pacientes-moradores e os profissionais que quisessem participar das OTTs.
A primeira oficina11 contava com seis participantes que mesmo sem entenderem que
espao o teatro lhes conferia alguns se dispuseram a falar de suas histrias e suas preferncias.
Neste primeiro momento a relao entre os participantes era tmida e procuravam atentar-se
somente a mim, que era coordenadora do grupo. Seus corpos pareciam sem expresso quando em
atividades motoras, mas o elemento msica favoreceu todo o aparecimento de um grupo que tinha
corpo, voz e histria, um novo campo.
Um dos moradores comeou a relembrar cantores de seus ureos tempos como Adoniran
Barbosa, Cartola, Noel Rosa, Nelson Gonalves entre outros. Com a voz e o corpo relembrava a
Lapa carioca e sua malandragem. O espao fsico do NUV que antes se mostrava frio mostrava um
calor agora reaquecido com uma simples memria. A msica, o elemento mgico propiciou o
rompimento do campo da estereotipia e o contato daqueles pacientes desintegrados com outras
lgicas existentes em si mesmos. Essas lgicas continham aspectos das relaes e prticas
institucionais psiquitricas, que reforavam para os pacientes dogmas tais como: loucura se
medica; no possuem razo; no so sujeitos do desejo; no se interessam pelo mundo; esto
alheios realidade; fazem oficinas para que o tempo deles passem indolormente (se que sentem
dor); no criam nada de novo; so uma vitrine de sintomas; so um corpo de estudos para a
medicina; as atividades manuais e repetitivas so ideais; esto mais prximos dos animais; so
preguiosos; incapazes; vazios; esto desmemoriados; no possuem histria de vida subjetiva;
entre outras regras possveis e absurdas da relao entre a psiquiatria e a loucura.
11 11 Quando me refiro a OTT no singular,, falo do espao em acontecimento, que posso chamar tambm de encontro ou de ensaio. Quando me refiro a oficinas no plural, falo da idia, do dispositivo grupal em si, ou do plural da atividade oficina .
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Os demais integrantes correspondiam menos entusiasmados, mas acompanhavam refres e
criavam seus movimentos sobre a msica, o que findou na apresentao de Os malandros uma
performance em um sarau de poesias, desenhos e msicas. Neste espao o microfone tornou-se o
veculo surpreendente de expresso dos moradores que participavam do evento. De acordo com
Llis e Romera (1997), a lembrana de msicas que foram importantes em determinada etapa da
vida podem ajudar na reestruturao psquica trazendo contedos inconscientes que se apresentam
atravs dela.
Na ocasio da montagem de Os malandros , o desejo dos participantes se escancarou, era
como se gritassem Temos voz , Temos meios! , Temos histrias! . O diretor do Ncleo,
surpreso com o resultado do trabalho, chegou a mim e disse que havia mudado totalmente seu
conceito em relao ao morador. Disse que o achava arrogante e incomodava-se com a forma que
liderava a casa e dirigia os colegas que moravam com ele. Mas que no teatro viu a possibilidade
daquele usurio direcionar seu autoritarismo para seus prprios anseios, ele foi lder do grupo, lder
na msica, lder no impacto contra a rotina. Para o diretor do NUV, ao invs de representar
ameaa, de incitar disputa de poderes, a msica trouxe a possibilidade de comunicao e respeito
mtuo. Evidencia-se, uma ruptura do campo que sustentava sua relao com o morador que
interpretava o grande malandro, a ruptura do campo da disputa.
Nas oficinas eu procurava respeitar e despertar o desejo do grupo, sendo que alguns dias,
quando estavam mais quietos ou desinteressados, o grupo no acontecia, e eu no cobrava a
participao deles. Por outro lado, o espao do desejo deixou com que novas coisas surgissem,
entre elas sugestes de passeios, lembranas de experincias vividas, de estrias e histrias que
foram de alguma forma veiculadas pela arte e transformadas pelo grupo. O que fiz, dentro das
possibilidades, foi viabilizar a expresso e a concretizao (quando possveis) dos desejos destes
pacientes: juntos fomos ao cinema do shopping algumas vezes, passamos um tarde na praia,
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escrevemos algumas histrias, encenamos, brincamos e sobretudo, compartilhamos nossos
mundos.
Num segundo momento, foquei com este grupo o trabalho com tcnicas sugeridas pelo
teatrlogo Augusto Boal, os resultados discutidos a seguir justificam a escolha deste mesmo
teatrlogo para as oficinas do CAPS de Uberlndia.
Na Colnia Juliano Moreira, fatos como furtos, doenas, brigas, explorao entre
pacientes, abuso, ou outras ocorrncias que geravam burburinho e conflito entre os
moradores, eram trabalhados, e discutidas as solues atravs do teatro frum, onde a
situao-problema era refeita e apresentada teatralmente ao grupo e os que tivessem alguma
idia de soluo para o conflito deviam interpret-la na personagem escolhida. Entre as cenas
vivenciadas posso citar duas que se destacaram: uma delas era a cena do eletrochoque na qual
havia o mdico (que aplicava o choque), o enfermeiro (que levava e segurava o paciente) e o
eletrocutado (paciente que recebia o tratamento ).
A euforia das cenas refazia a lentido e o silncio da casa, a sala onde ocorriam as
reunies, tornava-se um palco de lembranas, raivas e risadas. Cada um expunha sua opinio
sobre o choque . No dia da cena do choque participaram oito moradores e todos estes
haviam vivido a cena real do eletrochoque. Lcio12, aos seus 64 anos de idade, e 44 anos de
internao, disse que o choque era bom e quando refazia a cena ele fugia da cadeira. Outros
interpretavam uma espera submissa hora do choque e nem sequer se moviam na cadeira.
A ausncia de conceitos prprios formados a respeito do eletrochoque dos usurios
possibilitava a introjeo de discursos externos como, por exemplo, o da psiquiatria, onde se
pregava que o eletrochoque era indolor e necessrio. Durante muito tempo a aplicao do
eletrochoque loucura foi palavra de ordem, ou seja, a expresso em linguagem no mundo do
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processo autoritrio, definido por Herrmann ( 1997) como a ambio da moralidade de impor seus
sentidos fixos sobre todos os seres do mundo. E a verdade conveniente de que tratava-se de uma
terapia ( e realmente se trata, mas com uso muito restrito), possibilitou o uso descomedido da
terapia como forma de tortura e punio.
O morador Jonas escolheu ser o mdico que aplicaria o choque e expressou seu
prazer quando o ator-morador que interpretava o paciente se contorceu mostrando-se frgil
perante a eletroconvulsoterapia. Minha impresso imediata era que tomar o lugar do poder, o
lugar do outro opressor prazeroso para algum que estava to subjugado opresso. Num
segundo momento, uma outra impresso, de mdico e louco todo mundo tem um pouco ,
pois em uma cena de clara tortura eu no poderia realmente diferenciar um (o louco) de outro
(o mdico).
Fora dos campos das impresses se iniciaram as indagaes : No seria mesmo
naquele lugar (de torturador) que eles (pacientes) deveriam estar? Pelo menos aos meus
olhos? Pois de que outro lugar eu estava falando, do lugar de cuidador, do lugar exercido pela
medicina, do lugar do aplicador de eletrochoques? Ser normal ento, ser tambm, o
aplicador de eletrochoques. Quando ramos das expresses do torturador era mais intenso e
at mais dolorido do que quando ramos da personagem do paciente. Parecia que um misto
de vergonha pelo uso de choques como tratamento, raiva e respeito se fundiam numa
ilgica risiva. O lugar do eletrocutado sempre o mesmo, e na representao era um espao
menos estranho que o outro, o do eletrocutador.
Cena a cena o eletrochoque foi contado a leigos como eu e outros tcnicos jovens da
equipe multidisciplinar que atendia os moradores da casa 8 e que no conheciam
pessoalmente essa terapia. Os atores detalhavam a cena, lembrando do horrio do
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eletrochoque, da lista de nomes de quem receberia o tratamento, e assim por diante.
Consideravam importante terem seus nomes completos na lista do eletrochoque, assim, aquele
processo de assujeitamento no era irremedivel, ainda tinham um nome na lista, uma
inscrio para quem em poucos minutos estaria calmo e controlado , como todos os demais.
Outra cena proposta foi a do furto de cigarros, especialmente a ocorrida entre os
sujeitos que cognominarei Scrates e Matias. Scrates era constantemente roubado por
Matias, da casa vizinha. Matias passava constantemente por perodos de extrema agitao e
agressividade e nestes perodos ameaava e roubava os mais fracos. Scrates cria-se um fraco,
suas caractersticas infantilizadas atraam pessoas como Matias. O cigarro era smbolo de
prazer e poder dentro da Colnia. Matias ento, constantemente pedia cigarro a Scrates que
podia dizer sim ou no, mas teria sempre seu cigarro tomado. Encenamos esta situao, no
por desejo de Scrates, e sim por necessidade dos tcnicos que se indignavam com a
submisso do paciente. Scrates participou da cena e pde nela negar o cigarro rudemente ou
escond-lo, outros moradores se interessaram em mostrar outras solues, cada um a seu
modo livrava-se dos pedidos e agresses de Matias. Interessante momento, mas novamente,
um momento didtico13.
De acordo com Rauter (2000), as oficinas teraputicas tm como objetivo produzir
novas conexes entre produo desejante (uma produo criativa, prazeirosa), trabalho e arte.
Esta autora problematizou as oficinas teraputicas e j no ttulo de seu artigo leva o leitor a se
perguntar Oficinas para qu? , a pergunta que deve um profissional sempre ter em mente no
grupo. O relato da autora deixou claro o quanto o desejo do tcnico que reprodutor de um
quotidiano normal , no permite a possibilidade de uma produo desejante do cliente.
13 Termo meu para definir a necessidade de ensinar para normatizar, partir de um discurso ancorado nas regras.
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Assim exigncias institucionais e dos tcnicos, conhecidos como os detentores do saber,
confunde-se com as necessidades dos moradores. Para criar um espao real nas oficinas preciso
olhar por fora da lente institucional, a lente tem seu foco, o fora tem amplitude e no bvio. A
lente que escolho para este olhar a psicanlise, pois enquanto mtodo interpretativo subversiva.
Ou seja, ela mergulha no verso, no que est submerso, ela permite o novo, o esdrxulo e estranho,
alis, no vive sem o estranho. Po