Fernanda Noia Da Costa Lino

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  • 7/25/2019 Fernanda Noia Da Costa Lino

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    FERNANDA NOIA DA COSTA LINO

    A PRESERVAO DO PATRIMNIO CULTURALURBANO: FUNDAMENTOS, AGENTES E PRTICAS

    URBANSTICAS

    Tese apresentada Faculdade de Direito daUniversidade de So Paulo como requisitoparcial para a obteno do ttulo de Doutoraem Direito do Estado, sob orientao doProfessor Doutor Fernando Dias Menezes deAlmeida.

    So Paulo2010

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    Banca Examinadora

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    AGRADECIMENTOS

    Minha imensa gratido ao Professor Fernando Dias Menezes de Almeida, porter me apoiado e me motivado, continuada e irrestritamente, neste programa dedoutorado e em muitos outros trabalhos, ao longo dos ltimos 8 anos.

    Meu reconhecimento tambm ao Professor Nestor Goulart Reis Filho, que emmais de uma oportunidade me recebeu pronta e solicitamente na Faculdade deArquitetura e Urbanismo da USP, dedicando horas do seu tempo para me ofertar suaspreciosas lies, assim como para sugerir textos engrandecedores, norteando-me commaestria neste multifacetado tema.

    Agradeo a este Professor, assim como ao Professor Luis Virglio Afonso daSilva pelas recomendaes feitas por ocasio do meu exame de qualificao, as quaisforam decisivas para uma melhor delimitao e um direcionamento adequado destetrabalho. Desde j assumo toda e qualquer responsabilidade pelo no aproveitamento

    a contento dessas recomendaes recebidas.

    Ao Ricardo, pela sua afetuosa presena e pelo apoio incondicional duranteesse perodo de reflexo e escrita. Aos meus pais, Nemias e Blandina, pela prazerosaacolhida e por todo o incentivo recebido, desde pequena, para continuar sempreseguindo.

    Por fim, pelo carinho e pelo auxlio que todos eles me dedicaram enquanto eu

    elaborava este trabalho, agradeo s minhas irms Paula Regina da Cruz Noia eLuciana da Cruz Noia, ao meu cunhado Jaime Meira do Nascimento Jr. e aos amigosAna Sylvia de Faria Almeida Prado, Matthieu Iochum, Natasha Schmidt CacciaSalinas, Carolina Theodoro da Silva Mota, Maria Paula Bertran e Ana CarolinaModinger.

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    Para Ricardo

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    SUMRIO

    RESUMO .............................................................................................................................. vi ABSTRACT......................................................................................................................... vii RSUM ............................................................................................................................ viii LISTA DE ABREVIATURAS ............................................................................................. ix

    Introduo .............................................................................................................................. 1 Captulo 1 OS FINS: POR QUE PRESERVAR O PATRIMNIO CULTURAL? ......... 6

    1.1. Antecedentes normativos da preservao no mundo ocidental .................................. 7

    1.2. Fundamentos da preservao em documentos internacionais .................................. 12 Captulo 2 O QUE PRESERVAR? ................................................................................. 23 2.1. A noo de patrimnio cultural nos documentos internacionais .............................. 23 2.2. A concepo jurdica de patrimnio cultural segundo a Constituio Federal de1988 ................................................................................................................................. 30

    Captulo 3 OS MEIOS: QUEM PRESERVA O PATRIMNIO CULTURALURBANO? ..... ..................................................................................................................... 39

    3.1. Organizaes Internacionais ..................................................................................... 44 3.2. Competncias Constitucionais .................................................................................. 48 3.3. Ao dos trs Poderes ............................................................................................... 67

    3.3.1. O Decreto-lei n 25/37 enquanto lei geral de preservao do patrimnio cultural..................................................................................................................................... 69 3.3.2. Atuao do Poder Executivo .............................................................................. 77 3.3.3. Controle jurisdicional ........................................................................................ 84

    3.4. Colaborao da comunidade ..................................................................................... 90 Captulo 4 OS MEIOS: COMO POSSVEL PRESERVAR O PATRIMNIOCULTURAL URBANO? .................................................................................................... 97

    4.1. A Proteo Internacional do Patrimnio Cultural da Humanidade ........................ 101 4.2. Mecanismos tradicionais: o tombamento e a desapropriao ............................. 110 4.3. O Estudo Prvio de Impacto de Vizinhana e a tutela da paisagem cultural ...... 127 4.4. Transferncia do direito de construir .................................................................. 138 4.5. Os planos urbansticos......................................................................................... 146

    Consideraes Finais ......................................................................................................... 159 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 167 ANEXOS ........................................................................................................................... 182

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    RESUMO

    O presente trabalho trata da preservao do patrimnio cultural urbano

    desempenhada pelo Estado mediante o exerccio da atividade urbanstica. Maisespecificamente, analisa os fundamentos, assim como os agentes e as prticasadmitidos no ordenamento jurdico brasileiro para que se alcance esta finalidadeltima de conservar, s presentes e futuras geraes, determinados valores culturaiscontidos nas cidades.

    A expresso patrimnio cultural urbanofoi adotada neste trabalho comoabrangente tanto dos monumentos e conjuntos histricos e arquitetnicosisoladamente considerados cujos valores culturais so mais facilmente identificadosnas suas estruturas fsicas, materiais , quanto do prprio ambiente construdo ehumanizado das cidades (composto por parques, praas e outros espaos, semprequando utilizados em prticas culturais e manifestaes sociais), o qual carrega em sivalores de natureza marcadamente imaterial, relevantes pela capacidade deproporcionarem bem-estar e qualidade de vida aos habitantes da cidade.

    Como ponto de partida dessa abordagem, so mencionados sumariamentealguns antecedentes normativos reveladores de que preocupaes oficiais com a tutelade bens culturais existiam desde a Antiguidade. Em seguida, feita uma anliseevolutiva dos fundamentos dessa preservao, assim como das noes de patrimniocultural adotados em alguns dos principais documentos internacionais que tratamsobre o tema. Tambm so analisadas as inovaes trazidas pela Constituio Federalde 1988 tanto para a concepo jurdica de patrimnio cultural, quanto para adisciplina urbanstica.

    Tambm dedicada ateno aprofundada aos sujeitos que, de acordo com oordenamento jurdico ptrio, esto incumbidos de ou legitimados a atuar napreservao do patrimnio cultural urbano. Por fim, so especialmente investigadosos principais instrumentos urbansticos disponveis consecuo dessa tarefa,sugerindo, com o devido embasamento, que a preservao do patrimnio culturalurbano deve ser conduzida de maneira planejada, dispensando-se uma viso

    urbanstica s questes relacionadas quela.

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    ABSTRACT

    The present study deals with the preservation of cultural heritage provided bythe State through the exercise of urbanistic activity. More specifically, it analyzes thefoundation, agents and practices admitted by Brazilian legal system to reach the goalof preserving, to present and future generations, certain cultural values existing in thecities.

    The expressionurban cultural heritage was adopted in this study ascomprehensive of historical and architectural monuments and aggregations taken inan isolated manner - whose cultural values are most easily identified in their physicaland material structures as well as of the built and humanized environment of cities(made up of parks, squares and other spaces used in practices and social events),which carries cultural values of immaterial nature, relevant for the ability to providewelfare and quality of life for city residents.

    As a starting point of this approach, it is briefly mentioned some legislativehistory pointing out that official concerns with the protection of cultural heritageexisted since Antiquity. Next, this work examines the evolutionary reasons given forconservation, as well as the notions of cultural heritage adopted by the maininternational documents that deal with the issue. It also analyzes the innovationsmade by the Brazilian Federal Constitution for both the legal concept of cultural

    heritage and for urban discipline.

    Deep attention is also devoted to the agents that, according to the Brazilianlegal system, are in charge of acting on the preservation of urban cultural heritage oreven legitimated to do so. Finally, it also investigates the main urbanistic instrumentsavailable to achieve this task, suggesting with proper foundation, that the preservationof urban cultural heritage should be conducted in a planned manner, dispensing anurbanistic view to related issues.

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    RSUM

    La prsente thse traite de la prservation du patrimoine culturel entrepris parlEtat travers lexercice de lactivit urbanistique. Plus spcifiquement, examine lesfondements, les agents et pratiques existant dans lordonnancement juridiquebrsilien qui permettent datteindre lobjectif de conserver, pour les gnrationsprsentes et futures, certains valeurs culturels contenues dans les villes.

    Lexpression patrimoine culturel urbain utilise dans cette thse englobe aussibien les monuments et ensembles historiques et architecturaux envisags sparment -

    dont la valeur culturelle est plus facilement identifie de par leur structure physique,matriel , que l'environnement bti et amnags des villes (composs de parcs,places et autres espaces, quand ils sont utiliss lors de pratiques culturelles etmanifestations sociales), qui contiennent intrinsquement des valeurs culturelles denature fondamentalement immatrielle, aptes procurer une certaine qualit de vieaux habitants de la ville.

    Comme point de dpart de cette approche certaines normes anciennes sont

    sommairement mentionn, rvlant quil existait depuis lAntiquit desproccupations officielles concernant la tutelle des biens culturels. Ensuite, il estprocd une analyse volutive des raisons de cette conservation, ainsi que desnotions de patrimoine culturel utilises dans les principaux documents internationauxrelatifs ce thme. Sont aussi analyses les innovations apportes par la ConstitutionFdrale de 1988 tant sur la concepcin juridique de patrimoine culturel que sur ladiscipline urbanistique.

    Il est aussi question des sujets qui, conformment lordonnancement juridique national, il incombe de ou qui sont appels agir pour la conservationdu patrimoine culturel urbain brsilien. Enfin, ont aussi examins particulirement lesprincipaux instruments urbanistiques disponibles pour accomplir cette tche, ce quisuggre, avec fondement, que la prservation du patrimoine culturel urbain soitconduite d'une manire planifie, dispensant une vison urbanistique aux questionsconcernes ce sujet.

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    AIA Avaliao de Impacte Ambiental

    CONDEPACC Conselho de Defesa do Patrimnio Cultural de CampinasCONDEPHAAT Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Arqueolgico,

    Artstico e Turstico do Estado de So PauloCONPRESP Conselho Municipal de Preservao do Patrimnio Histrico,

    Cultural e Ambiental da Cidade de So PauloDIA Declarao de Impacte AmbientalDPHA Diviso de Patrimnio Histrico e Artstico do Estado da GuanabaraDphan Departamento do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    EIA Estudo Prvio de Impacto AmbientalEIV Estudo Prvio de Impacto de VizinhanaFCC Fundao Catarinense de CulturaFPACBA Fundao do Patrimnio Artstico e Cultural da BahiaFUNDARPE Fundao do Patrimnio Histrico e Artstico de PernambucoICCROM Centro Internacional de Estudos para a Conservao e o Restauro de

    Bens CulturaisICOMOS International Council on Monuments and Sites (Conselho

    Internacional dos Monumentos e dos Stios)IEPHA Instituto Estadual do Patrimnio Histrico e Artstico do Estado deMinas Gerais

    IPHAE Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico do Estado do RioGrande do Sul

    IPHAN Instituto de Patrimnio Histrico e Artstico NacionalIPTU Imposto Predial de Propriedade Territorial UrbanaMES Ministrio da Educao e SadeOEA Organizao dos Estados AmericanosONU Organizao das Naes UnidasRIVI Relatrio de Impacto de VizinhanaSPHAN Servio de Patrimnio Histrico e Artstico NacionalSudene Superintendncia de Desenvolvimento do NordesteTDR Transfer of Development RightsUIP Unidades de Interesse de PreservaoUNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura

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    Introduo

    O surgimento das cidades, na Antiguidade, oferece a percepo de quedeterminadas necessidades dos indivduos (tais como a segurana e odesenvolvimento de atividades comerciais) somente ou muito mais facilmente sesatisfazem quando estes se dispem a viver em coletividade. Declinam, assim, cadaum desses indivduos, de parte dos seus interesses pessoais e renem-se em prol dasatisfao de outra parcela de interesses, comuns a toda a coletividade.

    Por outro lado, o ambiente urbano acaba exercendo influncia fundamentalsobre o modo de vida dos seus habitantes. Por exemplo, as densidades demogrficas,as formas de organizao scio-espaciais, a quantidade de equipamentos disponveis garantia do exerccio dos mais diversos direitos difusos, tais como sade, habitao,transporte e lazer, so todos fatores que, de algum modo e em algum grau,influenciam o bem-estar e a qualidade de vida dos habitantes.

    Em termos urbansticos, para que uma cidade1 proporcione satisfatoriamenteestas duas ltimas situaes, importante que ela seja planejada de tal forma queoferea espaos e equipamentos adequados habitao, ao trabalho, circulao e aolazer, assim como meios propcios ao exerccio pleno da cidadania, esta somentealcanada mediante a garantia aos indivduos de perfeita percepo de si prprioscomo partes essenciais e fazedoras do meio em que vivem.

    Assim, importante que o ambiente urbano proporcione a integrao entre oshabitantes, estimule as relaes sociais, promova o crescimento e o desenvolvimento

    Jos Afonso da Silva ressalta a dificuldade de fixao do conceito decidade e destaca inmeras concepespossveis desta. Neste pargrafo da Introduo, a expressocidade tomada no exatamente na suaconcepo jurdico-poltica brasileira (como sendo restritamente oncleo urbano, sede do governomunicipal), mas numa noo mais ampliada, demogrfica e quantitativa, correspondente a um

    aglomerado urbano com dimenses e densidade populacional considervel e determinado dehabitantes.

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    da educao e da cultura. Satisfeitas essas condies, entende-se que a cidade tercumprido ao menos parte de sua funo social2.

    Nesse contexto que se revela a importncia da preservao do patrimniocultural no ambiente urbano, tanto para garantia de bem-estar e qualidade de vida aosseus habitantes, como para o prprio desenvolvimento das cidades, pois permite oresguardo de uma memria s comunidades formadoras da sociedade e, com isso, apercepo, por parte desses indivduos, tanto de suas prprias identidades, quanto desua importncia para o meio em que vivem e vice-versa.

    No presente trabalho, a expresso patrimnio cultural urbano tomada no

    sentido de compreender a globalidade dos bens culturais edificados presentes noambiente urbano. Abriga no somente os monumentos e conjuntos histricos earquitetnicos tomados isoladamente cujos valores culturais revelam-se maisevidentemente nas suas prprias estruturas fsicas, materiais , quanto o prprioambiente construdo e humanizado das cidades (composto por parques, praas, eoutros espaos), o qual, na medida em que utilizado por seus habitantes pararealizao de prticas culturais e manifestaes sociais, adquire relevncia simblica

    para estes.

    Este patrimnio cultural, to importante vida nas cidades, no deveprescindir de reflexes por parte do Poder Pblico quando da elaborao de polticaspblicas, tampouco ser relegado quando do planejamento urbano, sob o risco de nose exercer adequadamente a funo social da cidade. Nesse contexto, a chamadagesto democrtica da cidade, consagrada pela Lei n. 10.257/01, revela-sefundamental para o conhecimento e a satisfao dos reais interesses culturais dasociedade.

    Em matria de patrimnio cultural, o Municpio - enquanto ente da Federaoque mais prximo est dos anseios e das manifestaes dos seus indivduos podecontribuir sobremaneira para o sucesso e a legitimidade da preservao de valoresculturais contidos no ambiente urbano, estando apto a perceber, inclusive com a

    2 A Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) refere-se s funes sociais da cidade como um dos objetivos a seremalcanados pela poltica urbana (art. 2).

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    participao de suas comunidades, os valores referenciais a estas, ou seja, aquelesvalores que meream ser mantidos na memria urbana. So diversos os instrumentos jurdicos urbansticos disponveis ao Municpio para alcanar esse fim, devendo

    empreg-los de maneira razovel e proporcional, conforme o tipo de bem e o modo detutela que se almeja dispensar.

    Mas como condio para que sejam eficazes e tenham satisfatria durao notempo, indispensvel tambm que as aes municipais de conservao e promoodo patrimnio cultural urbano no sejam pensadas de maneira isolada, mas sim nocontexto espacial da cidade, a demandar uma gesto ordenada das vrias funessociais desta. Portanto, devem guardar estrita consonncia com a poltica maior dedesenvolvimento desenhada para a cidade. Por exemplo, definindo-se oaproveitamento de edificaes j existentes na cidade e dotadas de algumasignificao cultural para novos usos3.

    Por outro lado, qualquer programa municipal de preservao do patrimniocultural local deve estar igualmente em perfeita sintonia com as diretrizes nacionais eregionais que se estabelecerem no plano da preservao do patrimnio cultural

    brasileiro, assim como com as diretrizes gerais traadas pela Unio para odesenvolvimento urbano das cidades4. Com efeito, a cooperao entre Municpios,Estados federados respectivos e Unio diretriz constitucional em matria depreservao do patrimnio cultural urbano.

    o que se depreende da leitura sistematizada dos dispositivos constitucionaisaplicveis matria, a indicar, nesse tema, a adoo pela Constituio de 1988 deum sistema deracionalidade decisria em que as normas e decises em matriaurbanstica [...] tm sua validade condicionada ao respeito de normas e decises demaior abrangncia5.

    3 o que defende Nestor Goulart Reis Filho, entendendo ser prefervel econmica e culturalmente o ajustedessas edificaes a novos usos na cidade. Desenvolvimento urbano e uma nova poltica de conservao, p.38.4 Hoje expressas na Lei n. 10.257/01.5 Cf. Carlos Ari Sundfeld. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. In Estatuto da Cidade:Comentrios Lei Federal 10.257/2001, p. 50. Grifos do autor.

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    Em 1988, foi dedicado pela primeira vez tratamento constitucionalsistematizado questo urbana. No se limitou a Constituio Federal a atribuircompetncia legislativa explcita Unio para editar normas gerais de direito

    urbanstico e competncia suplementar aos estados e municpios, o que por si s jseria algo inovador, posto que expressivo de uma compreenso do direito urbansticotranscendente dos limites e interesses estritamente locais.

    Mais que isso, a Constituio trouxe finalmente para o plano constitucional aquesto da poltica espacial da cidade6, a ensejar, nos trs mbitos federativos, aesestatais coordenadas de ordenao e planejamento do desenvolvimento urbanonacional, com vistas a garantir s cidades brasileiras o exerccio pleno de suasfunes sociais e o bem-estar dos seus habitantes (art. 182,caput e pargrafos). Aomesmo tempo, a Constituio de 1988 tambm dispensou tratamento inovador aotema da preservao do patrimnio cultural.

    notvel o entrelaamento entre esses dois temas no plano constitucional, medida que ambos se projetam para o alcance de um bem-estar social e dodesenvolvimento nacional equilibrado e, para tanto, servem-se de competncias

    materiais e legislativas concorrentes que sinalizam a importncia do planejamento eda coordenao nacional.

    A presente tese parte de uma constatao fundamental de que, do ponto devista jurdico, a preservao do patrimnio cultural urbano somente faz sentido seeste for tomado numa viso de conjunto, ou seja, numa viso ambiental do universopatrimonial. De efeito, de acordo com as orientaes jurdicas contemporneasatinentes matria, o tratamento pontual e isolado de bens culturais, no se faz maisadequado para garantia da projeo do patrimnio cultural urbano s geraespresentes e futuras.

    Feita essa constatao inicial, sustenta-se, no presente trabalho, que, para apreservao ambiental do patrimnio cultural urbano, faz-se necessria a adequada

    6 Uma proposta de Lei Nacional de Reforma Urbana vinha sendo pensada no Governo desde 1977. O temachegou ao Congresso Nacional para discusso somente em 1983, sob a forma do Projeto de Lei n 775/1983.

    Aps ter enfrentado sucessivas resistncias sua aprovao, por alegada presena de inconstitucionalidadeno seu teor, o Projeto acabou tendo sua essncia reproduzida na Constituio de 1988.

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    articulao das competncias dos entes constitucionalmente incumbidos dessa tarefa,assim como a aplicao dos instrumentos urbansticos mais apropriados para a tutelaalmejada, considerado cada caso.

    Aquela constatao inicial encontra-se desenvolvida preliminarmente nosCaptulos 1 e 2. O Captulo 1 dedica ateno especialmente aos fundamentos jurdicos da preservao que ao longo do tempo foram reproduzidos nas principaisnormas internacionais atinentes ao tema. J o Captulo 2 aborda a evoluo daconcepo jurdica de patrimnio cultural no plano normativo internacional, assimcomo analisa a concepo adotada pela Constituio de 1988. O Captulo 3 propeanlise pormenorizada dos agentes incumbidos de agir com vistas preservao dopatrimnio cultural urbano no Brasil, mais especificamente verificando o modo comocoordenadas as suas competncias. Tambm se verificam os modos como assegurada juridicamente a participao social nos processos de formao e tutela dessepatrimnio. Por fim, o Captulo 4 traz uma exposio pormenorizada dosinstrumentos urbansticos hoje disponveis no ordenamento jurdico ptrio para essesfins de preservao do patrimnio cultural urbano, propondo a gesto planejada dopatrimnio cultural urbano, integrada com os demais planos de desenvolvimento eordenao urbana.

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    Captulo 1 OS FINS: POR QUE PRESERVAR O PATRIMNIOCULTURAL?

    Cada cidade tem a sua fisionomia, a sua feio,como as pessoas tm um conjunto de traos com osquais se constri a sua identidade, o seu carter. Mas a fisionomia se transforma com o tempo.

    Nestor Goulart Reis Filho7

    Neste primeiro Captulo, proceder-se- inicialmente a um breve relatohistrico-evolutivo de normas de carter notadamente protecionista editadas nomundo ocidental. O objetivo principal demonstrar que, desde a civilizao romanaantiga, sempre existiram preocupaes oficiais com a conservao de bensconsiderados culturalmente relevantes, presentes em ncleos urbanos. Isso, em quepese se reconhea no somente que o alcance dessas preocupaes oficiais e ahabitualidade com que elas se manifestaram variaram consideravelmente ao longo dostempos, como tambm que as razes que as impulsionaram sofreram mudanassignificativas at que se chegasse ao estgio atual de consagrao do patrimniocultural como um direito difuso garantido pela maioria das Constituies nacionais

    contemporneas s presentes e futuras geraes.

    Em seguida, ainda neste Captulo, sero especialmente analisados osfundamentos expostos nas principais cartas e normas internacionais que tratam sobreo tema, justificadores das recomendaes internacionais dirigidas aos Estadosnacionais, no sentido de que estes protejam seus respectivos patrimnios culturais.

    7 So Paulo e outras cidades, p. 17.

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    A opo de se utilizar as cartas e normas internacionais, neste e no prximoCaptulos, como materiais de anlise dos fundamentos e do objeto da ao estatalpreservacionista deve-se necessidade de estabelecer-se um corte ao presente estudo,

    assim como ao fato daquelas refletirem as principais questes doutrinrias econceituais debatidas por especialistas do mundo todo sobre o tema, enfatizando, nasltimas dcadas, a importncia de um olhar para o patrimnio cultural urbano em suaglobalidade.

    Ademais, sabido que as atuaes, no Brasil, dos rgos responsveis pelotombamento, conservao e restaurao de bens arquitetnicos foram e ainda hoje sonorteadas, na prtica, pelas determinaes emanadas dessas cartas patrimoniaisinternacionais.8

    1.1. Antecedentes normativos da preservao no mundo ocidental

    Desde a Antiguidade, registra-se a existncia de normas voltadas preservaode patrimnios construdos. O alcance, os fundamentos e os parmetros dessaproteo, no entanto, que variaram conforme o tempo e o espao considerados.

    Assim, em aproximadamente 44 d. C., j vigorava na cidade de Herculano, naatual Itlia, um Decreto que obrigava os indivduos que demolissem uma edificaocom fins especulativos a pagarem s autoridades valor equivalente ao dobro do preode compra do imvel. Tambm na poca romana, no ano de 389, um dito dos

    imperadores Valentiniano, Teodsio e Arcdio proibia acrscimos modernos quedesfigurassem ornamentos exteriores de edificaes privadas e vedava a danificaode construes histricas de cidades importantes por razes de cobia ou nsia delucro9.

    8 Carlos Alberto Cerqueira Lemos, Apresentao, InPatrimnio: Atualizando o debate, Victor Hugo Moriet alli, p. 13.9 Miguel Brito Correia, Enquadramento Histrico das Normas Internacionais, In Flavio Lopes; MiguelBrito Correia (org.),Patrimnio Arquitectnico e Arqueolgico: Cartas, Recomendaes e Convenes, p.13.

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    No obstante estes exemplos, de se destacar que normas de feiesmarcadamente preservacionistas ainda eram raras e de alcance muito restrito nessetempo, vislumbrando-se semelhante situao na Idade Mdia10.

    A partir do Renascimento, assiste-se a um expressivo aumento no nmero denormas de proteo publicadas na Europa.

    Somente na regio da Itlia, nos sculos XV e XVI, registra-se a produo dediversas bulas papais que tinham por objeto a restaurao e a conservao deequipamentos urbanos e de monumentos11. Tambm foram publicados inmerosoutros atos, por diferentes Papas, cujas disposies proibiam a pilhagem de achados

    arqueolgicos, a extrao de partes de monumentos para emprego em construonova, assim como a exportao de antiguidades12. Na regio da Toscana, a Lei de 30de maio de 1571 continha igualmente um vis claramente protecionista.13

    Fora da pennsula itlica - porm ainda no mbito da Europa - so citadascomo normas que trataram pioneiramente da tutela de bens culturais: aProclamationagaynst breakynd or defacing of monuments, publicada em 19 de setembro de 1560pela Rainha Isabel I da Inglaterra, em reao forte onda de destruies de igrejas eoutros cones das ordens religiosas recm abolidas; e o Decreto sobre Monumentos Antigos, publicado em 28 de novembro de 1666 pelo Rei Carlos XI da Sucia, que

    10 Miguel Brito Correia,op. Cit., p. 13. Sobre normas de proteo do patrimnio construdo na Idade Mdia,cf. Ferdinand Adolf Gregorovius, History of the City of Rome in the Middle Ages, 1967. Cf. tambm CevatErder,Our Cultural Heritage: From Consciousness to Conservation, Museums and Monuments Series XX, p.103.11 Como exemplos, vale citar a Bula do Papa Martinho VEtsi in cunctarum orbis,de 30 de maro de 1425,que restabeleceu a funo demagistri viarum, responsvel pela reparao de ruas, pontes, portas, muros,edifcios; a Bula do Papa Pio IICum alman nostram urbem, de 28 de abril de 1462, contra a destruio demonumentos da Antiguidade; e a Bula do Papa Sisto IVQuum provvida, 25 de abril de 1574.12 A ved ao da exportao de antiguidades foi objeto especfico do Decreto do Papa Urbano VIII, de 5 deoutubro de 1624. Franoise Choay lembra caber aos Papas, nesse perodo, a tarefa de preservao e que adilapidao de monumentos, assim como a apropriao privada de antiguidades clssicas eram muito comunse haveriam de crescer com o florescimento do comrcio de objetos artsticos. A alegoria do patrimnio, p.53-59.13

    Miguel Brito Correia tambm noticia uma sequncia de atos normativos protecionistas publicados nessamesma regio em 1646, em 1717, em 1726, em 1733 e em 1750.Op. Cit , p. 13-14.

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    diversamente da lei inglesa, refletia to somente o empenho deste monarca de veraprofundado o conhecimento da Histria deste pas14.

    Por ocasio da Revoluo Francesa, uma srie de princpios norteadores depolticas de salvaguarda ganhou foras com vistas a rechaar as graves ameaas dedestruio de monumentos da histria, da arte e da cincia, os quais, ento recmreavidos do clero15 e da Coroa pela Nao, passaram a ser vistos como integrantesdo patrimnio nacional francs.

    A este patrimnio fora reconhecido valor cultural e educativo, impondo-se atoda a Nao o dever de sua conservao integral16. As ameaas a este patrimnio

    derivavam especialmente da perda brutal das destinaes originais dos bens que ointegravam - em razo da transferncia de titularidade destes17 -, assim como dafora da destruio ideolgica de que parte deles tornara-se alvo a partir de 179218.

    14 Miguel Brito Correia , Op. Cit., p. 14.15 A colocao dos bens do clero disposio da Nao foi um dos primeiros atos produzidos pelaConstituinte, em 2 de outubro de 1789.16 Miguel Brito Correia,Op. Cit., p. 14.17 [...] antes de qualquer deciso sobre sua destinao futura, estes [bens que passam a compor o patrimnioda nao] so protegidos e postos fora de circulao em carter provisrio, [...]. [...] Mas o problemafundamental a necessidade de decidir, em regime de urgncia e de forma que resguarde o interesse coletivo,sobre a destinao dos objetos heterogneos que se tornaram patrimnios da nao. Franoise Choay, Aalegoria do patrimnio, p. 100. Esta mesma autora prossegue analisando, mais adiante, que: Os bensimveis, conventos, igrejas, castelos, residncias particulares ensejavam outros problemas [diferentes dosverificados para os bens mveis], em outra escala, e as comisses revolucionrias encarregadas de suaconservao mostravam-se ainda mais despreparadas para isso do que no caso dos depsitos. Do estrito pontode vista da manuteno, elas no dispunham de infra-estruturas tcnicas e financeiras que lhes permitissemsubstituir, nessa funo, os antigos proprietrios eclesisticos, reais ou feudais. Mas, principalmente, era-lhesnecessrio inventar novos usos para os edifcios que haviam perdido sua destinao original reutilizaocujos problemas podemos imaginar, comparando-se queles com os quais, apesar de uma longa experincia,

    ainda hoje nos deparamos. Exemplo: o que se podia fazer com uma igreja? Anex-la para o culto do SerSupremo? Essa soluo no teve mais sucesso que a tentativa, no fim da Antiguidade, de converso dostemplos pagos em igrejas crists. Seu estilo neoclssico, de acordo com os ideais da Revoluo, fez que aigreja Sainte-Genevive se tornasse, a partir da proposta de Quatremre de Quincy, o Panteon francs.Kersaint props, sem sucesso, planos detalhados para a transformao da Madeleine em sede da AssembliaNacional. Brquigny sugeriu que se utilizassem, de forma sistemtica, as igrejas desativadas como museus.Mas as catedrais e as igrejas que, em muitos casos, haviam perdido seus telhados foram antes convertidas emdepsitos de munio, de salitre ou de sal e, dependendo do caso, tambm em mercados, enquanto osconventos e abadias eram transformados em prises, como Fontevrault, ou em casernas.Op. Cit , p. 104-105.18 Franoise Choay relata que esse processo destruidor suscitara uma reao de defesa imediata, porparte do Estado revolucionrio, cujos procedimentos inserem-se no que a autora designou comoconservao secundria ou reacional, que se ope conservao primria ou preventiva, relativas medidas tomadas desde o incio da Revoluo para a proteo ordinria do patrimnionacionalizado. A conservao reacional, verificada na Frana a partir de 1792, seria comparvel que foi provocada pelo vandalismo dos reformados na Inglaterra. Contudo, na Frana em revoluo, a

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    As instncias revolucionrias, por meio de seus decretos e instrues,instituram uma srie de procedimentos auxiliares conservao desse patrimnionacional tais como a classificao das diferentes categorias de bens culturais,

    mveis e imveis; o inventrio sistemtico desses bens; o levantamento do estado deconservao de cada um deles; etc antecipando, por assim dizer, o aparelho jurdicoe tcnico de conservao de monumentos histricos que viria a ser desenvolvido maisaprofundadamente na Frana na dcada de 1830, por Vitet, Mrime e pela primeiraComission des Monuments Historiques19.

    Progressivamente, ao longo do sculo XIX e no incio do sculo XX, a maioriados pases europeus foi criando seus sistemas normativos prprios de preservao,assim como estruturando rgos oficiais para esses fins.20

    Maria Ceclia Londres Fonseca, interpretando a prpria noo de patrimnio e reflexamente a sua poltica de preservao como inseridas em um projeto maisamplo de construo de uma identidade nacional, enumera algumas funessimblicas exercidas por esse patrimnio preservado, em favor do processo deconsolidao dos Estados-naes modernos:

    1. reforar a noo de cidadania, na medida em que so identificados, noespao pblico, bens que no so de exclusiva posse privada, maspropriedade de todos os cidados, a serem utilizados em nome dointeresse pblico. Nesse caso, o Estado atua como guardio e gestordesses bens;

    2. ao partir da identificao, nos limites do Estado nacional, de bensrepresentativos da nao demarcando-a assim no tempo e no espao anoo de patrimnio contribui para objetivar, tornar visvel e real, essaentidade ideal que a nao, simbolizada tambm por obras criadasexpressamente com essa finalidade (bandeiras, hinos, calendrio,alegorias e mesmo obras de artistas plsticos, como David). A

    postura da reao assume outra dimenso e outro significado, poltico. Ela agora no visa apenas conservao das igrejas medievais, mas, em sua riqueza e diversidade, totalidade do patrimnionacional.Op. Cit , p. 97.19 Franoise Choay,Op. Cit., p.95.20

    Para um rico levantamento das normas nacionais instituidoras de sistemas e rgos oficiais de preservaodo patrimnio cultural em diversos pases europeus, cf. Miguel Brito Correia,Op. Cit , p. 14-15.

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    necessidade de proteger esse patrimnio comum refora a coesonacional;

    3. os bens patrimoniais, caracterizados desde o incio por suaheterogeneidade, funcionam como documentos, como provas materiais das verses oficiais da histria nacional, que constri o mito de origem danao e uma verso da ocupao do territrio, visando a legitimar o poderatual;

    4. A conservao desses bens onerosa, complexa e frequentementecontrria a outros interesses, pblicos e privados - justificada por seualcance pedaggico, a servio da instruo dos cidados.21.

    Ainda segundo esta autora, a preservao como atividade sistemtica s setornou possvel [...] porque ao interesse cultural se acrescentaram um interessepoltico e uma justificativa ideolgica.22

    Na Amrica, a presena monumental da civilizao pr-colombianaimpulsionou o Mxico a publicar pioneiramente uma legislao patrimonial j em1827, contando este pas com uma Junta de Antiguidades desde 1808. Os EstadosUnidos publicaram seu Antiquities Actem 1906. J no Brasil, a sistematizao damatria alcanou o nvel legal nacional somente em 1937, como se ver no Captulo 3deste trabalho.

    Ao mesmo tempo em que essas inovaes normativas ocorriam, especialmentenos Estados nacionais europeus, tambm as atividades prticas de restauro demonumentos foram desenvolvidas nesses diferentes pases. Foi a partir dasexperincias acumuladas com esses restauros que diversas correntes tericas de

    interveno em monumentos foram sendo definidas, influenciando decisivamente ocontedo de alguns documentos internacionais a partir da dcada de 1930.

    Tambm, de um modo geral, so perceptveis nos textos das principais normasinternacionais atinentes matria mudanas significativas nos fundamentos e nos

    21 O patrimnio em processo: trajetria da poltica federal de preservao no Brasil, p. 59-60.22 Op. Cit., p. 60.

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    meios nacionais de salvaguarda do patrimnio cultural, assim como na prpriaconcepo desse patrimnio.

    A seguir, ser dado enfoque aos diferentes fundamentos dos quais alguns dosprincipais documentos internacionais atinentes ao tema lanaram mo para justificar anecessidade de preservao nacional e mesmo internacional do patrimnio cultural.

    1.2. Fundamentos da preservao em documentos internacionais

    A produo de documentos internacionais versando especificamente sobre apreservao do patrimnio cultural atividade recente na Histria universal. Entrefins do sculo XIX e incio do sculo XX, verificam-se as primeiras refernciasnormativas internacionais proteo de monumentos e edificaes via de regramotivadas pelas ameaas decorrentes de conflitos armados -, assim como osprimeiros textos tcnicos internacionais de conservao e restauro.23

    Um dos documentos mais antigos a mencionar explicitamente preocupaescom a conservao de bens culturais foi a Declarao de Bruxelas, de 27 de agostode 1874, dedicada a reger as condutas dos Estados em tempos de guerra. EstaDeclarao no chegou a entrar em vigor, mas em seu texto j se consignava a nodestruio ou apropriao de estabelecimentos dedicados instruo, s artes e scincias, bem como de monumentos histricos e obras de arte, quando da ocupaode territrios de Estados inimigos por autoridades militares.24

    Em 29 de julho de 1899, por ocasio da concluso dos trabalhos da primeiraConferncia Internacional de Haia25 e sob influncia desta Declarao, restou

    23 Cf. Miguel Brito Correia,Op. Cit., p. 13-21.24 Art. 8. Les biens des communes, ceux des tablissements consacrs aux cultes, la charit et l'instruction, aux arts et aux sciences, mme appartenant l'Etat, seront traits comme la proprit prive.Toute saisie, destruction ou dgradation intentionnelle de semblables tablissements, de monumentshistoriques, d'oeuvres d'art ou de science, doit tre poursuivie par les autorits comptentes. Disponvel emhttp://www.icrc.org/dih.nsf/FULL/135?OpenDocument. Acesso em 15 jan. 2010.

    Esta primeiraConferncia Internacional de Haia foi realizada no perodo de 18 de maio a 29 de julho de1899 e resultou na produo de trs Convenes e trs Declaraes, a saber: I. Conveno para a regulao

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    convencionado que, nos casos de cercos e bombardeamentos, deveriam ser adotadastodas as medidas necessrias para poupar o mximo quanto possvel edifciosdedicados religio, arte, cincia, assistncia, monumentos histricos, hospitais

    e abrigos de doentes e feridos desde que, no entanto, eles no estivessem sendoutilizados para fins militares. Tambm se convencionou que estes edifcios especiaisdeveriam ser identificados com sinais visveis e distintivos26.

    Em 18 de outubro de 1907, na II Conferncia Internacional de Haia, asConvenes assinadas em 1899 foram revistas e ampliadas, especialmente paraincluir disposies aplicveis aos casos de guerra naval27. Nessa reviso, manteve-semesma recomendao comentada acima, atinente conservao de monumentoshistricos e de edifcios voltados religio, arte, cincia, etc, acrescendo-seespecificaes de tamanho, forma e cores do sinal distintivo a ser colocado nessesedifcios especiais, com vistas a proteg-los tambm de ataques navais28.

    Aproximadamente nessa mesma poca, as concluses a que chegaram centenasde participantes do 6 Congresso Internacional de Arquitetos - realizado em Madri,em abril de 1904, para tratar de variados temas de arquitetura , ofereceram

    elementos bastante elucidativos das preocupaes de especialistas de diversasnacionalidades com que os Estados garantissem, tambm em tempos de paz, a

    pacfica dos conflitos internacionais; II. Conveno relativa s leis e aos costumes da guerra terrestre; III.Conveno para a adaptao guerra martima dos princpios da Conveno de Genebra de 22 de agosto de1864; IV.1. Declarao concernente proibio de lanamento de projteis e de explosivos do alto de bales;IV.2. Declarao relativa proibio do emprego de de projteis que tenham por intuito nico emitir gasesasfixiantes ou deletrios; e IV.3. Declarao referente proibio de emprego de balas que se introduzemfacilmente no corpo humano. 26

    Cf. Conveo relativa s leis e aos costumes da guerra terrestre (Conveno II, de 1899), cujo artigo 27dispe o seguinte: In sieges and bombardments all necessary steps should be taken to spare as far as possibleedifices devoted to religion, art, science, and charity, hospitals, and places where the sick and wounded arecollected, provided they are not used at the same time for military purposes. The besieged should indicatethese buildings or places by some particular and visible signs, which should previously be notified to theassailants. Disponvel em: http://avalon.law.yale.edu/19th_century/hague02.asp. Acesso em: 15 jan. 2010.27 Elas passaram a totalizar doze Convenes.28 Art. 5 . In bombardments by naval forces all the necessary measures must be taken by the commander tospare as far as possible sacred edifices, buildings used for artistic, scientific, or charitable purposes, historicmonuments, hospitals, and places where the sick or wounded are collected, on the understanding that they arenot used at the same time for military purposes. It is the duty of the inhabitants to indicate such monuments,edifices, or places by visible signs, which shall consist of large, stiff rectangular panels divided diagonally

    into two coloured triangular portions, the upper portion black, the lower portion white. Disponvel emhttp://avalon.law.yale.edu/20th_century/hague09.asp. Acesso em: 15 jan. 2010.

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    adequada salvaguarda dos monumentos histricos e arquitetnicos contidos em seusterritrios:

    1. H logar para distinguir duas especies de monumentos: osmonumentos pertencentes a um perodo de civilisao, servindo ausos que j no existem e jamais existiro, e os monumentos quecontinuam a ser utilizados para o fim para que foram construdos, oupara outros.

    2. Os monumentos mortos, devem smente ser conservadosconsolidando as partes indispensaveis para evitar que caiam emruinas; porque a importncia dum monumento reside no seu valorhistorico e technico, valor que desapparece com o monumento.

    3. Os monumentos vivos, devem restaurar-se para que possamcontinuar a servir, porque em Architectura, a utilidade uma dasbases da belleza.

    [...]

    6. Promover-se- em todos os paizes, onde ainda no existam, acreao de Sociedades de defeza para os monumentos historicos eartisticos; nas naes onde existam, provocar[sic] o seudesenvolvimento, podendo agruparem-se por um esforo commum ecollaborarem no estabelecimento do inventrio geral das riquezasnacionaes e locaes.29

    O primeiro documento internacional dedicado exclusivamente ao patrimniofoi produzido somente 27 anos mais tarde, em 1931. Tratava-se daCarta de Atenassobre o restauro de monumentos, derivada das concluses gerais da ConfernciaInternacional sobre a Proteo e a Conservao de Monumentos de Arte e deHistria30, realizada em Atenas, de 21 a 30 de outubro de 1931.

    A Carta de Atenas, utilizando-se dos conceitos de algumas correntes tericasde interveno em monumentos, discutiu uma srie de aspectos que traduziam,

    29 (grifamos). Trecho transcrito de Miguel Brito Correia,Op. Cit., p. 16.30 Esta Conferncia fora organizada peloServio Internacional de Museus - organismo autnomo criado em1926, no seio do Instituto Internacional de Cooperao Intelectual, que era o rgo tcnico de uma dasComisses da Sociedade das Naes -, e teria influenciado a criao daComisso Internacional dos

    Monumentos Histricos, considerada por muitos como precursora do atualConselho Internacional dos Monumentos e dos Stios ICOMOS .

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    naquele tempo, as principais preocupaes dos tcnicos de conservao e restauro debens culturais31.

    As concluses gerais dessa Conferncia ofertaram um conjunto de relevantesprincpios aplicveis s atividades tcnicas de conservao e restauro, os quais, peloineditismo com que estabelecidos no plano internacional, merecem aqui meno,ainda que de forma resumida:

    - Os restauros, quando inevitveis, devero respeitar a obra histricae artstica do passado, sem excluir estilos de qualquer poca;

    - A utilizao dos monumentos deve respeitar o seu carter histrico

    ou artstico [a fim de assegurar a sua longevidade];- O interesse da coletividade sobrepe-se ao interesse privado. Deveter-se em conta o sacrifcio acrescido, exigido aos proprietrios, natica da preservao do bem comum;

    - O carter e a fisionomia das cidades devem ser respeitados [quandoda construo de edifcios], sobretudo nas proximidades dosmonumentos;

    - aceite o emprego judicioso de materiais e tcnicas modernos,para a consolidao de edifcios antigos;

    - Nas condies da vida moderna, os monumentos esto cada vezmais ameaados pelos agentes atmosfricos, pelo que necessria acolaborao dos especialistas: fsicos, qumicos e bilogos;

    - O emprego de materiais modernos na conservao de uma runadeve ser sempre passvel de reconhecimento (no sentido de evitarmimetismos);

    - Quando se mostrar impossvel a conservao de runas postas adescoberto por escavaes, aconselhvel enterr-las de novo, paraevitar a degradao;

    - A conservao dos monumentos exige uma cooperao intelectualuniversal e dever constituir um objetivo educacional para a juventude;

    - A proteo e conservao dos monumentos exigem normas jurdicas adaptadas a cada pas.32

    31 Hoje, outras doutrinas se desenvolveram e outras preocupaes se somaram ao tema, como se ver adiante.

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    O trecho destacado acima fornece indcios de que, nessa poca, a principalameaa aos monumentos - em tempos de paz era notadamente os agentes naturaisatmosfricos.

    Essas concluses gerais deram origem Resoluo sobre a conservao demonumentos histricos e de obras de arte, aprovada pela Sociedade das Naes em10 de outubro de 1932. Era, ento, a primeira vez que uma norma jurdica de umaorganizao internacional abordava a questo do patrimnio e reconhecia a suaimportncia para a humanidade.33

    De um modo geral, na dcada de 1930, ainda eram expressivas as

    preocupaes internacionais com a proteo do patrimnio cultural contra os perigosque a guerra lhe representava. A esse respeito dispuseram oPacto de Washington (ouPacto de Roerich), assinado em 1935 por 21 naes americanas, e o Anteprojeto deConveno internacional para a proteo dos monumentos e obras de arte em tempode guerra (1936), que no chegou a ter aprovao, por conta da ecloso da 2 GuerraMundial, mas que juntamente com aquelePacto, influenciaram decisivamente apublicao pela UNESCO, em 1954, daConveno para a proteo de bens culturais

    em caso de conflito armado (tambm conhecida comoConveno de Haia de 1954).

    A Conveno de Haia de 1954 derivou da terrvel experincia da 2 GuerraMundial, tendo reconhecido, em seu texto, o efeito devastador dos novosinstrumentos blicos sobre os bens culturais, assim como a necessidade de seorganizar medidas efetivas de salvaguarda desses bens em tempos de paz34.

    32 (grifamos). Flavio Lopes, Evoluo do pensamento contemporneo atravs da leitura de normasinternacionais, In Flavio Lopes; Miguel Brito Correia (org.),Patrimnio Arquitectnico e Arqueolgico:Cartas, Recomendaes e Convenes, p.26-27.33 A Carta de Atenas a respeito da qual doravante se discorreu no deve ser confundida com aCartade Atenas sobre o Urbanismo Moderno, de 1933. Conforme relata Miguel Brito Correia, aCarta de Atenas sobre o urbanismo moderno foi publicada nos Annales Techniques (rgo oficial da Cmara Tcnicada Grcia, sediada em Atenas) n 44-45-46, de Novembro de 1933, e somente em 1943 publicada em livropelo grupo CIAM-Frana, de que Le Corbusier era um dos expoentes.Op. Cit ., p. 22, nota 19. Esta Cartaexprime a construo da ideologia Modernista sobre o urbanismo. A partir dos anos 70, todo o movimentomoderno revisto.34

    Flavio Lopes,op. Cit, p. 29. Cf. Prembulo da Conveno de Haia de 1954. Disponvel emhttp://portal.unesco.org/publicacoes/docinternacionais/doccultura. Acesso em 12 jul. 2009.

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    Nesta Conveno, restaram consolidadas as ideias-chaves de que:a) os danosocasionados aos bens culturais pertencentes a qualquer povo constituem um prejuzoao patrimnio cultural de toda a humanidade, dado que cada povo traz a sua prpria

    contribuio para a cultura mundial; e de queb) a conservao do patrimniocultural apresenta uma grande importncia para todos os povos do mundo, sendoconveniente que este patrimnio tenha uma proteo internacional35.

    Reforava-se aqui, portanto, a necessidade de se estabelecerem, nos nveisnacional e internacional, medidas de preservao de bens culturais de longo prazo,voltadas para os tempos de paz, com especial fundamento na importncia desses benspara a cultura mundial.

    Esta justificativa de preservao do patrimnio em razo da relevncia destepara a cultura de toda a humanidade verificada pela primeira vez na Resoluo daSociedade das Naes de 1932 e reiterada nessa Conveno de Haia, de 1954 -continuou fortemente presente no pensamento da comunidade internacional.36

    Assim, naConferncia de Washington, realizada em 1965 pela UNESCO, foirecomendada a criao de umtrust para o patrimnio mundial. E em novembro de1972, foi aprovada por este mesmo organismo aConveno para a proteo do patrimnio mundial, cultural e natural, cujo alto ndice de adeso quaseconsensual, posto que mais de 175 dos 189 Estados membros da UNESCO assinaramessa Conveno - demonstra a importncia atribuda pelas naes a esse patrimniouniversal. EstaConveno da UNESCO de 1972 ser analisada em detalhes noCaptulo 4 deste trabalho.

    Depois da 2 Guerra Mundial, os problemas da industrializao e daurbanizao em massa passaram a repercutir mais intensamente nas cidades. A ao

    35 (traduzimos). Cf. Prembulo da Conveno de Haia de 1954. Disponvel emhttp://portal.unesco.org/publicacoes/docinternacionais/doccultura. Acesso em 12 jul. 2009.36 Conforme observa Fernando Fernandes da Silva, Vrios so os interesses comuns da humanidadeem torno da proteo dos bens culturais: a necessidade de preservar e transmitir s futuras geraesinformaes a respeito de experincias acumuladas ao longo dos sculos sobre comportamentohumano, regimes polticos e econmicos, indispensveis para a compreenso de fenmenos queafetam a humanidade no presente e no futuro; a utilizao dos bens culturais como fonte de deleite elazer; a necessidade de o homem manter-se ligado aos seus antepassados ou apegar-se a tradies que

    o remontem a pocas de engrandecimento espiritual ou material da humanidade. As cidadesbrasileiras e o patrimnio cultural da humanidade, p. 54.

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    destruidora de bens culturais tornou-se muito mais vigorosa no meio urbano do queno meio rural. Nesse cenrio, em que os agentes atmosfricos j no representavammais a principal ameaa a esses bens, despertaram-se as conscincias para a

    importncia do ambiente37 e para a necessidade de formulao de aespreservacionistas voltadas soluo dos problemas de gesto patrimonialpresenciados especificamente no meio urbano.

    A Carta de Veneza, resultante do II Congresso de Arquitetos e Tcnicos deMonumentos Histricos, realizado em maio de 196438, j acenava que o monumento inseparvel da histria de que testemunho e do lugar em que est localizado39 eque a conservao de monumentos sempre favorecida pela sua destinao a umafuno til sociedade, que garantir a constncia em sua manuteno40.

    Com essas assertivas, aCarta de Veneza lanava as bases para odesenvolvimento posterior, pela comunidade internacional, de duas ideias hojemarcantes em matria de preservao:

    Uma primeira, de que os bens culturais imveis presentes no ambiente urbanono devem ser vistos de maneira isolada, mas sim como inseridos num contexto, ouseja, como parte inerente ao ambiente em que se situam. E uma segunda, de que essesbens, na maioria dos casos, podem ter uma funo diversa da originalmenteconcebida, com vistas a conciliar os interesses de conservao aos anseios dedesenvolvimento econmico e social.

    Nesse contexto de acelerado crescimento da populao nas cidades, FlvioLopes observa que

    37 Fernando Alves Correia,O plano urbanstico e o princpio da legalidade, p. 75.38 A Carta de Veneza, tambm intituladaCarta internacional sobre a conservao e o restauro demonumentos e stios, considerada por muitos especialistas como o mais importante documento doutrinrio etcnico at ento elaborado, mantendo uma atualidade notvel e servindo, ainda hoje, como base restanteproduo normativa do ICOMOS.39 O monumento concebido pela Carta de Veneza tanto como criao arquitetnica isolada, quanto comoconjunto urbano ou rural que d testemunho a uma civilizao particular.40 Arts. 4 e 5 daCarta de Veneza, 1964. Essa Carta assumiu especial relevncia matria em razo da

    noo mais ampliada demonumento histrico adotada em seu texto, que ser comentada oportunamente noCaptulo 2 deste trabalho.

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    [...] o visvel fracasso de grande parte das intervenes urbansticasque suportaram o crescimento acelerado das cidades, despontou umnovo sentido de exigncia e uma nova esperana: a revitalizao doscentros urbanos antigos, com a reutilizao do patrimnio edificadoexistente, e a manuteno da ambincia social dos bairroshistricos.41

    Entre as diversas normas internacionais dispondo sobre estas matrias,destacam-se a Recomendao sobre a salvaguarda dos conjuntos histricos e da sua funo na vida contempornea (ou Recomendao de Nairobi), aprovada pelaUNESCO em 1976; e aCarta internacional sobre a salvaguarda das cidadeshistricas e reas urbanas histricas(ou Carta de Washington), publicada peloICOMOS em 1987.

    Na Recomendao de Nairobi, foi ressaltada a importncia dos conjuntoshistricos ou tradicionais para a sociedade, tendo em vista que eles

    [...] fazem parte do ambiente cotidiano dos seres humanos em todosos pases; constituem a presena viva do passado que lhes deu forma;

    asseguram ao quadro da vida a variedade necessria para responder diversidade da sociedade e, por isso adquirem um valor e umadimenso humana suplementares;

    [...] constituem atravs das idades os testemunhos mais tangveis dariqueza e da diversidade das criaes culturais, religiosas e sociaisda humanidade [...];

    [...] adquirem uma importncia vital para cada ser humano e para asnaes que neles encontram a expresso de sua cultura e, ao mesmo

    tempo, um dos fundamentos de sua identidade.42

    Tambm se reconheceu a rapidez das transformaes econmicas e sociais,entendendo-se que a crescente universalidade das tcnicas construtivas e das formasarquitetnicas apresentam o risco de uniformizao dos povoamentos humanos nomundo inteiro. Em razo desse risco, este documento sugeriu a promoo da

    41 Op. Cit., p. 30.42 Recomendao de Nairobi. UNESCO, 1976, Consideraes Iniciais.

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    salvaguarda dos conjuntos histricos para evitar a descaracterizao ambiental, assimcomo para desenvolver os valores culturais e sociais peculiares de cada nao43.

    Como modo de garantia efetiva dessa salvaguarda, recomendou a urgenteadoo, por todos os Estados, de uma poltica global e ativa de proteo e derevitalizao dos conjuntos histricos ou tradicionais e de sua ambincia, como partedo planejamento nacional, regional ou local, de forma a orientar a ordenao e oplanejamento fsico-territorial em todos os nveis.44

    Por sua vez, aCarta de Washington, publicada pelo ICOMOS em 1987,considerou osconjuntos urbanos como a expresso material da diversidade das

    sociedades ao longo da histria. E, em que pese essa importncia dos conjuntosurbanos, eles estariam sendo gravemente ameaados pela degradao, deteriorao edestruio provocadas por um tipo de urbanizao caracterstico da era industrial,afetando universalmente todas as sociedades.45

    Reconheceu-se que essa situao por vezes dramtica e, com vistas a refrearessas potenciais alteraes do carter cultural, social e econmico desses conjuntosurbanos com perdas irreversveis para a sociedade-, foram sugeridas neste documentointernacional medidas concretas de atuao estatal, nomeadamente a figura do planode salvaguarda46. Este deveria integrar-se numa poltica coerente dedesenvolvimento econmico e social e ser tomado em considerao em todos osnveis de planejamento territorial e do urbanismo47.

    43 Cf. Flvio Lopes,op. Cit ., p. 30-31. Cf. tambm item II.6 dessa Recomendao (Princpios Gerais).

    Disponvel em www.iphan.gov.br. Acesso em 12 jul. 2009.44 Assim, dispe essa Recomendao a esse respeito: III Poltica nacional, regional e local: Em cadaEstado membro deveria se formular, nas condies peculiares a cada um em matria de distribuio depoderes, uma poltica nacional, regional e local a fim de que sejam adotadas medidas jurdicas, tcnicas,econmicas e sociais pelas autoridades nacionais, regionais e locais para salvaguardar os conjuntos histricosou tradicionais e sua ambincia e adapt-los s exigncias da vida contempornea. Essa poltica deveriainfluenciar o planejamento nacional, regional e local e orientar a ordenao urbana e rural e o planejamentofsico-territorial em todos os nveis. As aes resultantes desse planejamento deveriam se integrar formulao dos objetivos e programas, distribuio das funes e execuo das operaes. Dever-se-iabuscar a colaborao dos indivduos e das associaes privadas para aplicao da poltica de salvaguarda.45 Carta de Washington. ICOMOS, 1987, Prembulo e Definio.46 Flvio Lopes,op. Cit ., p. 31.47 Carta de Washington, ICOMOS, 1987, Princpios e Objetivos, artigo 1.

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    Estas duas ltimas normas internacionais exprimem um grande avano tericoem matria de preservao do patrimnio arquitetnico, consistente no abandono dosprincpios da proteo atomizada de monumentos isolados para se passar a

    compreender todo o tecido urbano.

    Essa importncia do planejamento como instrumento de conservao erenovao dos centros urbanos antigos tambm encontrou acolhida na Declarao de Amsterd e na Carta Europeia do Patrimnio Arquitetnico, ambas publicadas peloConselho da Europa, em 1975. De acordo com estaCarta,

    O patrimnio arquitetnico d testemunho da presena da histria ede sua importncia em nossa vida.

    A encarnao do passado no patrimnio arquitetnico constitui umambiente indispensvel ao equilbrio e ao desenvolvimento dohomem.

    Os homens do nosso tempo, em presena de uma civilizao quemuda de feio e cujos perigos so to manifestos quanto os bonsresultados, se apercebem instintivamente do valor desse patrimnio.

    uma parte essencial da memria dos homens de hoje em dia e seno for possvel transmiti-la s geraes futuras na sua riquezaautntica e em sua diversidade, a humanidade seria amputada de umaparte da conscincia de sua prpria continuidade.

    O patrimnio arquitetnico um capital espiritual, cultural,econmico e social cujos valores so insubstituveis.

    Cada gerao d uma interpretao diferente ao passado e dele extrainovas ideias.48

    Reconheceu-se tambm, nessaCarta, que somente mediante agestointegrada dos bens patrimoniais, com a concertao de esforos entre todos osintervenientes nos processos de ordenao do territrio e a disponibilizao dos meios

    48 Extrado da verso da Carta do Patrimnio Arquitetnico Europeu disponvel em www.iphan.gov.br.Acesso em 12 jul. 2009.

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    adequados, possvel alcanar resultados satisfatrios49. Esclareceu-se, nessaocasio, que aconservao integrada

    - Deve constituir uma das primeiras metas dos projetos deplanejamento urbano e regional;

    - Atinge-se atravs da aplicao conjugada de tcnicas adequadas derestauro e da escolha correta de funes apropriadas; e

    - Carece de suporte legal, administrativo, financeiro e tcnico.50

    No obstante todo esse desenvolvimento terico quanto aos fundamentos a justificarem as aes preservacionistas nacionais e internacionais do patrimniocultural, assim como quanto aos meios de assim faz-lo, na prtica, ainda seobservam muitos conflitos de interesses, assim como outros impasses implementao dessas ideias, que necessitam ser superados.

    49 Flvio Lopes,op. Cit ., p. 32-33.50 Idem, Ibidem, p. 32-33.

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    Captulo 2 O QUE PRESERVAR?

    For many years, only major monuments were protected and restored and then withoutreference to their surroundings. More recentlyit was realised that, if the surroundings areimpaired, even those monuments can losemuch of their character. Today it is recognizedthat entire groups of buildings, even if they donot include any example of outstanding merit,may have an atmosphere that gives them the

    quality of works of art, welding different periods and styles into a harmonious whole.These groups should also be preserved.

    Carta do Patrimnio Arquitetnico Europeu51

    2.1. A noo de patrimnio cultural nos documentos internacionais

    J se comentou que, de um modo geral, os conceitos e doutrinas internacionaisenvolvendo a matria de preservao do patrimnio arquitetnico sofreram mudanassignificativas ao longo dos tempos. Por exemplo, durante o sculo XX, assistiu-se aum alargamento gradativo da noo de patrimnio cultural veiculada nas Cartas,Convenes, Resolues e Recomendaes publicadas por entidades internacionais

    como a UNESCO, o ICOMOS, o Conselho da Europa, etc.

    De incio, a preocupao manifestada nesses documentos centrava-sebasicamente nos monumentos isolados, dotados de importncia excepcional -notadamente histrica e arquitetnica. AsConvenes de Haia de 1899 e 1907 e aCarta de Atenas de 1931 so bastante elucidativas dessa ateno voltada a este tipoespecfico de bem cultural.

    Conselho da Europa, 1975.

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    Grosso modo, prevaleciam as preocupaes com a conservao dessesmonumentos, em detrimento de tudo quanto estivesse no seu entorno e que pudesseofuscar a sua suntuosidade.

    Mesmo quando se recomendou, no texto daCarta de Atenas, o respeito aocarter e fisionomia da vizinhana dos monumentos antigos52, restava claro ali que aimportncia dada ambincia devia-se ao interesse de se conferir maior destaque aestes, funcionando aquela, portanto, como elemento acessrio, adjetivo dosmonumentos, e no exatamente como patrimnio cultural, isto , como o prprioobjeto da preservao.

    Na Conveno de Haia de 1954, estabeleceu-se pela primeira vez no nvelnormativo internacional uma definio para bens culturais, ainda restrita aouniverso material. Assim, disps seu artigo 1 que

    Para os fins da presente Conveno, so considerados como bensculturais, qualquer que seja sua origem e seu proprietrio:

    a) Os bens, mveis ou imveis, que tenham uma grande importncia para opatrimnio cultural dos povos, tais como os monumentos de arquitetura,de arte ou de histria, religiosos ou seculares, os campos arqueolgicos,os grupos de construes que por seu conjunto ofeream um grandeinteresse histrico ou artstico, as obras de arte, manuscritos, livros eoutros objetos de interesse histrico, artstico ou arqueolgico, assimcomo as colees cientficas e as colees importantes de livros, dearquivos ou de reprodues dos bens antes definidos;

    b) Os edifcios cuja destinao pricipal e efetiva seja conservar ou expor osbens culturais mveis definidos na alneaa), tais como os museus, asgrandes bibliotecas, os depsitos de arquivos, assim ocmo os refgiosdestinados a proteger em caso de conflito armado os bens culturaismveis definidos na alneaa);

    52 Cf. item III das Concluses Gerais da Carta de Atenas. Flavio Lopes; Miguel Brito Correia (org.),Patrimnio Arquitectnico e Arqueolgico: Cartas, Recomendaes e Convenes, p. 44.

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    c) Os centros que contenham um nmero considervel de bens culturaisdefinidos na alnea a) e b), que se denominaro centros monumentais.53

    Foi com o advento daCarta de Veneza, em 1964, que restou consagrada umaconcepo mais ampliada de monumento, que passou a abranger

    a criao arquitetnica isolada, bem como o stio, rural ou urbano, queconstitua testemunho de uma civilizao particular, de uma evoluosignificativa ou de um acontecimento histrico. Esta noo aplica-se nos s grandes criaes mas tambm s obras modestas do passado queadquiriram, com a passagem do tempo, um significado cultural.54

    Esta Carta no somente anunciou um novo modo de viso contextual dopatrimnio na medida em que admitiu hipteses de tratamento no isolado domonumento -, como tambm consolidou-se, ela prpria, como um marco nasubstituio do critrio da excepcionalidade pelo da referencialidade dos bensintegrantes do patrimnio cultural.

    Tomado o conjunto de normas internacionais sobre preservao de bensculturais produzidas contempornea e posteriormente Carta de Veneza, perceptvel o modo como o pensamento sobre o tema evoluiu gradativamente nosentido de incorporar novos conceitos e critrios, baseados em outras reas doconhecimento, como a antropologia e a sociologia. A ponto de hoje, a expresso patrimnio cultural revelar uma concepo extremamente ampla, incorporadora dediferentes categorias de bens e mais aproximada da cultura popular e das

    manifestaes cotidianas dos indivduos do que a aquela concepo recorrente noincio do sculo XX.

    Exemplo emblemtico desse alargamento da noo de patrimnio ofornecido pela Declarao do Mxico - publicada pelo ICOMOS em 1985, como

    53 (traduzimos). Disponvel em: http://portal.unesco.org/publicacoes/docinternacionais/doccultura. Acesso em20 jul. 2009.54 (grifamos). Art. 1 daCarta de Veneza. Extrado de verso em portugus coletada em Flavio Lopes;

    Miguel Brito Correia (org.),Patrimnio Arquitectnico e Arqueolgico: Cartas, Recomendaes eConvenes, p. 103-108.

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    resultado da Conferncia Mundial sobre as Polticas Culturais -, em que restoureconhecido que

    o patrimnio cultural de um povo compreende as obras de seusartistas, arquitetos, msicos, escritores e sbios, assim como ascriaes annimas surgidas da alma popular e o conjunto de valoresque do sentido vida. Ou seja, as obras materiais e no materiaisque expressam a criatividade desse povo: a lngua, os ritos, ascrenas, os lugares e os monumentos histricos, a cultura, as obrasde arte e os arquivos e bibliotecas.55

    Por outro lado, essa realidade atual de ampliao do contedo do patrimniocultural impe grandes desafios aos Estados no tocante ao cumprimento das tarefas deseleo oficial dos bens sujeitos tutela especial e de definio dos modos maisapropriados de gesto para cada caso, dada a escassez de recursos humanos efinanceiros para dar conta de um repertrio cada vez mais vasto e diversificado.

    No campo especfico do patrimnio cultural urbano, so diversos os textosinternacionais que vm enriquecendo o seu contedo, podendo ser aqui citados, numaordem razoavelmente evolutiva:

    a) A Recomendao da UNESCO sobre a salvaguarda da beleza e do carterdas paisagens e dos stios, que j em 1962 ressaltara a importncia cientfica eesttica dos stios e paisagens, bem como o carter fundamental destes nas condiesde vida das populaes.

    b) A Carta do Patrimnio Arquitetnico Europeu, do Conselho da Europa, 1975,que oferece e consolida uma concepo dinmica e abrangente de patrimnioarquitetnico, da qual nos valemos, nesta tese, para firmar nossa prpria concepode patrimnio cultural urbano. De acordo com esta Carta, o patrimnio arquitetnicoeuropeu constitudo no somente pelos monumentos que lhe so mais importantes, mastambm pelos conjuntos de construes mais modestas de suas cidades antigas e aldeias

    55 Isabelle Cury (org.),Cartas Patrimoniais, p. 314-315.

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    tradicionais inseridas nas suas envolventes naturais ou construdas pelo homem. Nostermos desta Carta:

    Durante muitos anos s se protegeram e restauraram os monumentosmais importantes e sem levar em conta a ambincia destes. Maisrecentemente, percebeu-se que se a ambincia estiver debilitada,mesmo aqueles monumentos podero perder muito do seu carter.

    Hoje reconhece-se que grupos inteiros de edifcios, mesmo nocontendo nenhum valor excepcional, podem criar uma atmosfera quelhes atribui a qualidade de obras de arte, unindo diferentes perodose estilos em um harmonioso conjunto. Esses grupos de edifcios

    tambm devem ser preservados.

    c) A j comentada Recomendao sobre a salvaguarda dos conjuntoshistricos e da sua funo na vida contempornea,(ou simplesmente Recomendaode Nairobi), aprovada pela UNESCO em 1976, que tratou de definir como conjuntoshistricos ou tradicionais os assentamentos humanos cuja coeso e cujo valor sorelevantes do ponto de vista cultural. E como ambincia desses conjuntos histricos

    ou tradicionais, entendeu ser o quadro natural ou construdo que influi na percepoesttica ou dinmica desses conjuntos, ou a eles se vincula de maneira imediata noespao, ou por laos sociais, econmicos ou culturais56.

    d) ACarta de Florena sobre a salvaguarda dos jardins histricos, elaboradapelo ICOMOS em 1981, a qual, reconhecendo o valor cultural e a particular naturezadestes jardins como composio arquitetnica cujo material essencialmentevegetal, e portanto vivo, perecvel e renovvel , aconselhou que eles fossemtutelados mediante o tratamento integrado dos planos de salvaguarda com os de usodo solo e de ordenao do territrio.

    e) A Resoluo 813 sobre a arquitetura contempornea, adotada h mais devinte e cinco anos pelo Conselho da Europa (exatamente desde 1983), que,preocupada com o patrimnio do futuro, interessantemente chamou a ateno para a

    56 Flavio Lopes; Miguel Brito Correia (org.),Patrimnio Arquitectnico e Arqueolgico: Cartas, Recomendaes e Convenes, p. 175-187.

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    necessidade de integrar a construo contempornea, de carter humano e comqualidade no conjunto arquitetnico existente, de modo a assegurar uma certacontinuidade da tradio arquitetnica57. Nesta Resoluo, verifica-se um

    extraordinrio alargamento da noo de patrimnio cultural universalidade dasestruturas construdas na cidade e qualidade de vida das populaes. Como bemavaliado por Flavio Lopes,

    este olhar para o presente e para o futuro, preconizando uma maiorateno arquitetura contempornea um sinal de negao dascorrentes mais conservadoras, defensoras de uma quase cristalizao

    das reas de acentuado valor patrimonial58

    .

    f) A tambm j referidaCarta sobre a salvaguarda das cidades histricas (ouCarta de Washington), do ICOMOS, de 1987, que reconhece nos ncleos urbanos,mais do que simples documentos histricos, representaes dos verdadeiros valoresdas civilizaes urbanas tradicionais.

    g) A Recomendao R (91) 13 para a proteo do patrimnio arquitetnico dosculo XX , publicada em 1991 pelo Conselho da Europa, a qual, ainda que de alcancerestrito aos pases do continente europeu, demonstra-se relevante para o mundo todo,como exemplo de ateno dispensada a um patrimnio que ainda no envelheceu,mas que j sofre srios riscos de aniquilamento, justificando-se assim sua salvaguardano presente, para garantir s geraes futuras o conhecimento e usufruto desteinstante da memria europeia.

    h) ACarta sobre o patrimnio construdo vernculo, aprovada pelo ICOMOSem 1999, relevante por reconhecer as tradies construtivas desenvolvidas pelasprprias comunidades e transmitidas de maneira informal aos seus descendentes comovalores dignos e necessitados de salvaguarda, especialmente em razo das ameaas dehomogeneizao cultural e arquitetnica existentes no mundo todo. Esta Carta

    57 Flavio Lopes; Miguel Brito Correia (org.),Patrimnio Arquitectnico e Arqueolgico: Cartas, Recomendaes e Convenes, p. 201-203.58 Evoluo do pensamento contemporneo atravs da leitura de normas internacionais, In Flavio Lopes;

    Miguel Brito Correia (org.),Patrimnio Arquitectnico e Arqueolgico: Cartas, Recomendaes eConvenes, p.36.

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    enumerou interessantes princpios de conservao desse patrimnio, tais como: (i) aparticipao de grupos multidisciplinares de especialistas que reconheam ainevitabilidade das mudanas, assim como a necessidade de respeito identidade

    cultural; (ii) o respeito aos valores culturais e ao carter tradicional de edifcios,conjuntos e assentamentos vernculos, quando necessrias intervenescontemporneas; (iii) a manuteno e preservao dos conjuntos e assentamentos decarter representativo em cada uma das reas, como modo de apreciao econservao do tradicional; (iv) a considerao do patrimnio vernculo como parteintegrante da paisagem cultural nos programas de conservao e desenvolvimento; e(v) a vinculao do patrimnio vernculo no s aos elementos materiais, edifcios,

    estruturas e espaos, mas tambm ao modo como ele usado e interpretado pelacomunidade e s tradies e expresses intangveis associadas a ele.

    No h dvidas de que um dos maiores avanos nessa matria foi o abandono dosprincpios da proteo atomizada de monumentos, para passar a abranger todo o tecidourbano. Esse novo modo de preservao deve-se necessidade de adaptaes a essaalargada concepo de patrimnio, reconhecendo-se tambm que o ambiente urbano naturalmente sujeito a transformaes de suas feies. Conforme sintetizado por FlvioLopes,

    Ultrapassa-se o nvel de preocupao sobre o monumento ou sobre aestrutura fsica, para abarcar as relaes entre a cidade e o ambienteenvolvente natural ou criado pelo homem e para tentar preservar asdiferentes funes da cidade, adquiridas ao longo da sua histria59.

    Existem inmeras abordagens ambientalistas e ecologistas do tema, depreendendo-se uma viso globalizante do patrimnio cultural urbano e tentando-se, com isso, fazerfrente s rpidas e profundas alteraes sentidas no ambiente urbano. Essas recentesconcepes dinmicas, como dito, exigem a superao de novos desafios, tentando-seencontrar a justa medida nas intervenes.

    59 Flvio Lopes,op. Cit , p. 31

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    2.2. A concepo jurdica de patrimnio cultural segundo a Constituio Federalde 1988

    No Direito brasileiro, o patrimnio cultural vem atualmente definido no artigo216 da Constituio Federal de 1988, que estabelece:

    Art. 216. Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens denatureza material e imaterial, tomados individualmente ou emconjunto, portadores de referncia identidade, ao, memriados diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quaisse incluem:

    I as formas de expresso;

    II os modos de criar, fazer e viver;

    III as criaes cientficas, artsticas e tecnolgicas;

    IV as obras, objetos, documentos, edificaes e demais espaosdestinados s manifestaes artstico-culturais;

    V os conjuntos urbanos e stios de valor histrico, paisagstico,artstico, arqueolgico, paleontolgico, ecolgico e cientfico.

    Antes do advento dessa Constituio, contava-se com a conceituao jurdicade patrimnio oferecida pelocaput e pelos pargrafos 1 e 2 do artigo 1 do Decreto-lei n 25/37, a saber:

    Art. 1. Constitui o patrimnio histrico e artstico nacional oconjunto dos bens mveis e imveis existentes no pas e cujaconservao seja de interesse pblico, quer por sua vinculao afatos memorveis da histria do Brasil, quer por seu excepcionalvalor arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou artstico.

    1 Os bens a que se refere o presente artigo s sero consideradosparte integrante do patrimnio histrico e artstico brasileiro depoisde inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros doTombo de que trata o art. 4 desta lei.

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    2 Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e sotambm sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem comoos stios e paisagens que importe conservar e proteger pela feionotvel com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciadospela indstria humana.

    Da leitura desses trechos, constata-se que comparativamente ao que at entoera previsto pelo Decreto-lei n 25/1937, a Constituio de 1988 inovou notratamento dispensado ao tema da preservao do patrimnio cultural em pelo menosdois aspectos.

    Primeiramente, ao elevar para o plano constitucional a concepo depatrimnio cultural, tendo o constituinte optado at mesmo por citar alguns exemplosde bens integrantes desse patrimnio, ao que parece, para que no pairassem dvidasquanto maior extenso da referida expresso.

    Tal iniciativa indica uma clara preocupao do constituinte com que estepatrimnio, nas dimenses ali traada, seja reconhecido como um direito difuso,constitucionalmente garantido. Confere, assim, a essa norma assim como s

    previstas nos pargrafos 1 a 6 desse mesmo artigo60 -, estabilidade, j que somentemodificvel por processo especial, assim como superioridade, em relao s normasinfraconstitucionais.

    Em segundo lugar, a Constituio de 1988 inovou ao dedicar definio jurdicamuito mais ampla para o que, a partir de ento, passou a denominar com preciso

    60 A conceituao do patrimnio cultural brasileiro feita nocaput do art. 216 da Constituio de 1988 permiteo balizamento da diretiva estatal de preservao, incentivo e valorizao dos bens integrantes desse acervo.Tal diretiva vem pormenorizada nos pargrafos deste dispositivo nos seguintes termos:1. O Poder Pblico, com a colaborao da comunidade, promover e proteger o patrimnio culturalbrasileiro, por meio de inventrios, registros, vigilncia, tombamento e desapropriao, e de outros modos deacautelamento e preservao.2 Cabem administrao pblica, na forma da lei, a gesto da documentao governamental e asprovidncias para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.3. A lei estabelecer incentivos para a produo e o conhecimento de bens e valores culturais.4. Os danos e ameaas ao patrimnio cultural sero punidos na forma da lei.

    5. Ficam tombados todos os documentos e os stios detentores de reminiscncias histricas dos antigosquilombos.

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    patrimnio cultural brasileiro, numa clara assuno de uma viso abrangente douniverso patrimonial.61

    Conforme verificado no primeiro trecho transcrito acima, o constituinte de1988 entendeu como dignos de tutela especial pela ordem jurdica brasileira os bens materiais62 ou imateriais63, tomados em conjunto ou isoladamente eleitos pelosdiferentes grupos formadores da sociedade brasileira como portadores de referncia sua identidade, sua ao e sua memria.

    Note-se que, com essa medida, a Constituio Federal de 1988 passou aconferir explicitamente a esses diferentes grupos sociais a titularidade do direito

    proteo do patrimnio cultural brasileiro. Essa idia vem reforada pelo pargrafo 1do artigo 216, que prev a colaborao da comunidade nas atividades de promoo ede proteo desse patrimnio.

    Assim, assumindo um vis claramente democrtico quanto ao contedo dopatrimnio cultural, essa nova definio constitucional suplantou concepo maisantiga, contida no Decreto-Lei n 25/37, de um patrimnio histrico e artsticonacional designado pelo Estado a partir de concepes oficiais dos fatosmemorveis da histria e dos valores excepcionais merecedores de proteo64.

    E confirmou o completo abandono da idia de inscrio do bem no Livro doTombo - ou seja, do tombamento daquele - como requisito indispensvel para aconstituio do direito tutela estatal do referido bem. Tanto que, em reforo a essa

    Jos Afonso da Silva analisa como adequada a expresso patrimnio cultural brasileiro, empregada pelaConstituio de 1988, por sintetizar tanto a idia de patrimnio histrico, quanto a de patrimnio artstico.Tanto a do patrimnio reconhecido pela Unio, como a do patrimnio reconhecido pelos Estados e pelosMunicpios. Apesar desse aperfeioamento, o autor ressalta que a terminologia constitucional ainda imprecisa, causando algumas vacilaes, como por exemplo o uso das expresses patrimnio histrico,cultural, artstico, turstico e paisagstico, e patrimnio histrico-cultural local, nos arts. 24, VII e 30, IX,respectivamente. (Ordenao Constitucional da Cultura, pp. 100 e 101).

    62 Como as imagens sacras de Aleijadinho, o Palcio Imperial de Petrpolis e o conjunto arquitetnico docentro histrico de Salvador, todos tombados pelo IPHAN entre 1938 e 1985 (Processos de tombamenton.845-T-71, 1162-T-85, 822-T-69 e 823-T-69; n. 166-T-38; e n. 1093-T-83 respectivamente).63 Tais quais o ofcio das paneleiras de Goiabeiras, no Esprito Santo; a celebrao religiosa Crio de NossaSenhora de Nazar, em Belm do Par; e o Frevo, registrados pelo IPHAN em 2002, 2004, e 2007respectivamente.64 Art. 1 do Decreto-Lei n. 25/37.

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    prescindibilidade do tombamento, o constituinte de 1988 fez referncia expressa auma srie de instrumentos os quais igualmente podero servir aos fins de designaoe proteo dos bens integrantes do patrimnio cultural brasileiro (artigo 216,

    pargrafo 1).

    A propsito, essa nova concepo constitucional do patrimnio culturalbrasileiro acompanha a tendncia contempornea de admitir-se a influncia dascincias sociais sobre a acepo jurdica do termo65. Esta tendncia, como j visto, foiobjeto de profcuos debates havidos no nvel internacional a partir da segunda metadedo sculo XX, tendo-se intensificado nos anos 80, quando amplamente debatida aformulao do conceito de patrimnio cultural com base em princpios inerentes sreas da antropologia e da sociologia. Conforme j comentado, foi na Declarao do Mxico de 1985, promovida pelo ICOMOS por ocasio da Conferncia Mundial sobreas Polticas Culturais, que restou consignada essa influncia dessas duas reas deconhecimento sobre o conceito jurdico de patrimnio cultural, hoje refletida nasConstituies de inmeros pases ocidentais.

    Acerca dessa influncia sobre o conceito de patrimnio cultural, Sonia Rabello

    de Castro confirma que:

    Tradicionalmente, poder-se-ia conceber que o valor cultural de umprdio, em que estivesse em discusso seu aspecto artstico,envolvesse to-somente profissionais da rea da arquitetura. Hoje,esta viso restrita do bem cultural acha-se ultrapassada, [...].

    [...] o trabalho de conceituao do que seja patrimnio cultural exigea participao integrada de outros tcnicos, mormente das reasrelacionadas ao estudo do conhecimento epistemolgico e filosfico,bem como de reas de estudo da cultura das sociedades, como aantropologia, a histria e demais cincias sociais. Se o fundamentalno a coisa em si, e sim o seu valor simblico, importantedetectar no s a questo objetiva da arquitetura de um prdio, por

    65 Jos Eduardo Ramos Rodrigues, A Evoluo da Proteo do Patrimnio Cultural crimes contra oordenamento urbano e o patrimnio cultural, InTemas de Direito Pblico, n. 3, p. 202.

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    exemplo, mas sua insero como valor cultural para um determinadogrupo social66.

    V-se que a Constituio de 1988 reconhece de modo indito o cartersincrtico e multifacetado da cultura brasileira, formada pelas diferentes expressessimblicas produzidas no seu territrio, inclusive as de alcance apenas regional oulocal. Desmitifica a idia de uma cultura nacional homognea, formadora daidentidade do Povo Brasileiro, pois impossvel universalizar a cultura de um Pas,especialmente no caso do Brasil, de territrio to extenso e de to expressivadiversidade tnica67.

    Assim, considera como integrantes do patrimnio cultural brasileiro aquelesbens detentores de um valor simblico aos diferentes grupos formadores da sociedadebrasileira68.

    O requisito da referencialidade vem previsto na Constituio de 1988 comocondio de existncia dessa tutela constitucional especial. Com efeito, tratou-se deexpressar que nem todas as manifestaes culturais constituem o denominado

    patrimnio cultural brasileiro, mas somente aquelas referenciais, ou seja, aquelas de66 O Estado na preservao de bens culturais. O tombamento, pp. 43-44.67 Na avaliao de Alayde Mariani, no tempo em que institudos o Decreto-lei n 25/37 e, com ele, o conceito jurdico de patrimnio histrico e artstico, vivia-se no Brasil um momento de orgulho nacional, quando sepretendia projetar e espelhar a feio de uma civilizao particular para a nao. [...] A ao nacionalista doEstado Novo, embora integrada ao nacionalismo cultural dos modernistas, no deixava de incorporar outrasrepresentaes na proposta de criao ou formao do novo homem/povo brasileiro. [...] Construa-se umapedagogia de formao do brasileiro sob o horizonte do homem ocidental e universal. A memria popularno registro do patrimnio, In Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. n. 28, 1999, p.158. Essasimpresses da autora, todavia, parecem ser refutadas pelas de Maria Ceclia Londres Fonseca sobre o mesmoassunto, a qual no obstante reconhea o relevante papel da educao e da cultura no projeto ideolgico doEstado Novo, interpreta especificamente as aes do Sphan, rgo nacional de preservao institudo nesseperodo, como dotadas de autonomia. A atividade desenvolvida por esse grupo de intelectuais [modernistas]no Sphan gozou de surpreendente autonomia dentro do MES. Desde o incio, a rea do patrimnio ficou margem do propsito de exortao cvica que caracterizava a atuao do ministrio na rea educacional. Acultura produzida pelo Sphan sequer era articulada com os contedos dos projetos educacionais ou com osinstrumentos de persuaso ideolgica do Estado Novo; esses contedos eram mais compatveis com avertente ufanista do modernismo. Durante o Estado Novo, o Sphan funcionou efetivamente como um espaoprivilegiado, dentro do Estado, para a concretizao de um projeto modernista.O patrimnio em processo:trajetria da poltica federal de preservao no Brasil,p. 98.68 Tais como os terreiros da Casa Branca do Engenho Velho e do Ax Op Afonj, em Salvador(tombamentos federais n. 1067-T-82 e n. 1432-T-98); a Baslica Velha de Nossa Senhora de Aparecida, emSo Paulo (tombamento estadual n. 22.002/82, resoluo n. 11, de 18.04.1982); e o stio arqueolgico na Ilha

    do Campeche, no Estado de Santa Catarina (tombamento federal n. 1426-T-98), dentre tantos outrosexemplos.

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    especial importncia para a formao da identidade, para a