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Fernanda Sande Candeias - egoeditora.com · faz recriar uma Joaninha e um Carlos, também apanhados na senda de contendas de uma guerra, a guerra oitocentista e de marcas fortes de

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Fernanda Sande Candeias

Ficha Técnica:

Autora - Fernanda Sande CandeiasTítulo - Os Silêncios dos WehmeyerCapa - EGOImagens da Capa e Contracapa - depositphotos©Revisão de Texto - Cláudia LealPaginação - EGOEdição - EGO1ª Edição - Outubro 2016, LisboaISBN - 978-1539673545Depósito Legal - 416963/16

Impressão e Acabamento - Tipografia Lousanense

©2016, Fernanda Sande Candeias e EGO Editora

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Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida,

nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo

sem prévia autorização por escrito da Ego Editora.

Para o Santiago

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“Os Silêncios dos Wehmeyer” assume-se como a primeira in-cursão ficcional de Fernanda Sande Candeias, romance his-tórico que tem como palco a Europa do século XX e como

personagens ativas membros de uma família alemã que vamos encontrar no Estoril, cruzando-se com portugueses, com jornalistas, com papéis de família esquecidos em Munique.

Estamos perante a escrita de jovem romancista, trama de historiadora graduada e especializada em História da Europa do século XX. A Guerra Civil de Espanha foi palco da sua escrita científica, para obter o grau de Mestre. Desse exercício por várias geografias de arquivos e de itinerân-cias nasce, certamente, a inquietude de ver mais para além das cartas e dos mapas dos arquivos, de intuir o que as páginas amareladas dos jornais depositados em bibliotecas e hemerotecas especializadas deixam vislum-brar. E… quando as fontes históricas não nos dão todas as respostas o historiador intui, e reconstrói malhas de memórias invisíveis, apagadas ou pelo menos adormecidas no tempo do fio do passado. É o tempo de liberdade e de emancipação do historiador que passa a dialogar com o leitor através de uma malha ficcional na qual sempre podemos mergulhar nos cenários de contextos reais, verídicos, europeus.

Este romance é também feito de viagens, as reais e as imaginadas pelos personagens. Qual alma racional de um engenheiro alemão - Hans Weh-

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meyer - que se deixou inquietar neste extremo ocidental da Europa; um ponto de chegada, mas também um ponto de partida, um espaço de placa giratória que é apaziguada pelo estuário do Tejo que nos antecipa o mar calmo e sereno que Hans e Lotte sentiram, vivenciaram tantas vezes no paredão do Estoril.

Viagens que conduzem o leitor a Lisboa – tão próxima e tão longe dos conflitos da Guerra Civil de Espanha e da Alemanha da II Grande Guerra, numa neutralidade cinzenta. É este o nó górdio da viagem ao passado, é esta a sigla da influência nefasta que tanto vai atormentar Hans, após a grande viagem sem retorno de Lotte, sua companheira de vida. Diria que o outro laço da viagem desta trama de memória familiar e europeia é o labor destemperado do jornalista que afanosamente trabalha em bibliote-cas em busca de fontes sobre a Alemanha hitleriana e de possíveis cone-xões com a Espanha franquista, vitoriosa da Guerra Civil de 1936-1939!

E… murmurava o Hans coberto de suores frios: «Já não bastava a an-siedade com a investigação do jornalista para agora ter a Joana envol-vida em tudo isto, mais profundamente do que eu alguma vez cheguei a pensar». Joaninha, em carinhoso nome familiar, envolvera-se no tema da investigação jornalística, cruzando-a com os levantamentos de factos históricos na documentação da Biblioteca. E… bibliotecas e arquivos são espaços de enamoramento, de sedução e de fascinação. Razões mais que suficientes para entendermos o monólogo de surdina «[…] sozinho na sala, ouvia um pouco de música e esperava a Joana e o seu Carlos». Magia que as viagens pelos livros nos fazem sorrir e regressar, também, ao passado da nossa juventude. No último retângulo da Europa, no espaço marcado pelas «Viagens na Minha Terra» de Almeida Garret, como não esboçar um sorriso doce de cumplicidade com Fernanda Sande Candeias que nos faz recriar uma Joaninha e um Carlos, também apanhados na senda de contendas de uma guerra, a guerra oitocentista e de marcas fortes de Romantismo literário e de imaginários europeus. Esta é também uma viagem que o livro nos proporciona, viagem pela nossa própria memória e identidade nacional e vivencial.

Viagens geográficas que transportam o leitor do eixo Estoril – Lisboa a Munique, com uma rota de Mediterrâneo para passar em Málaga, Ali-

cante, territórios de uma Andaluzia da Guerra Civil de Espanha, pretexto para recordar o Poeta andaluz que em verdes anos fizeram desaparecer – Garcia Lorca! Fernanda Sande Candeias brinda-nos com uma literatura de viageiro de memórias desmaiadas que vão ganhando cor, movimento, trama, cenografias complexas porque tudo foi meticulosamente experi-mentado e ensaiado no laboratório da oficina de mestre artesão para um fazer história. Tal como o gelado italiano precisa de um saber artesanal com-binado com a eficiência de um laboratório experimentado e eficiente, tam-bém “Os Silêncios dos Wehmeyer” precisou de tempo de maturação e de viagens amadurecidas pela Europa e pelos Europeus! E apetece desvendar o silêncio racional do engenheiro alemão saboreando as várias camadas de cores de um bom gelado italiano nas galerias do Estoril. Sem dúvida que vamos sentir a presença por perto de Hans e de Lotte, espreitando o nosso silêncio de leitores seduzidos e mergulhados nas páginas do livro e na paleta de cores de um sorvete acabado de ser comprado!

Resta-me desejar boa leitura… e bom apetite!

Maria de FátiMa NuNes,

Universidade de Évora, 24 de Outubro 2016

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Estava um mar de inverno, com um sol escondido, discreto. Lotte dizia que nestes dias eu me ausentava mais do que o habitual. Ia para longe de mim, da minha realidade e entregava-me a longas

divagações.Vesti o sobretudo e procurei o relógio. Faltavam cerca de cinquenta

minutos para a hora de almoço, tempo mais que suficiente para dar um passeio na marginal. Ultimamente não resistia a meia hora de pequenos passos e sucumbia junto ao pequeno muro que separava a estrada do areal da praia. A Celeste não gostava que eu saísse sozinho e tentava sempre reter-me perto dela. Estava em nossa casa há mais de vinte anos. Volun-tariosa e valente, criou sozinha dois filhos desde que o marido tinha caído inanimado no nosso jardim. Fazia em agosto precisamente cinco anos. Lotte ainda era viva e exigiu-lhe sempre a convicção de que sobreviveria à perda.

Praguejei quando não consegui abrir a porta. Tentava levar comigo o chapéu-de-chuva na mão direita e as luvas e chaves na mão esquerda.

– Ao menos não se afaste muito de casa para que eu o veja, senhor Hans – disse a Celeste.

– Está bem, mulher. Descansa que levo os óculos e telemóvel no bolso do casaco.

– Podia ficar no jardim, está tão bonito...

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– Por ti ficava todos os dias sentado naquela cadeira, a olhar para as flores e a pensar na morte.

– Credo, senhor Hans! Hoje está naqueles dias em que não se pode dizer nada. Já percebi... Sirvo o almoço à hora habitual?

Disse que sim, já embalado pela ventania que fazia lá fora. Empur-rado, consegui chegar ao muro de cal, tremendo de raiva e de tristeza. Via cada vez menos e, em dias escuros como aquele, as imagens surgiam desfocadas e sem vida. Ao menos não chovia e o grito das crianças aba-fava o barulho dos escapes dos carros que corriam na marginal. Sentia a brisa do mar na cara e com o chapéu-de-chuva, agora uma verdadeira bengala, disfarçada na minha mão direita, contornava o meu desconfor-to. Sentei-me numa rocha. Iria em breve ao meu médico, a Munique, queixar-me desta lástima.

Tinha saudades de Lotte e do seu olhar risonho sempre que pensava em viajar comigo. Raramente me lembrava do meu soturno cunhado, Albert, visto que não parecia notar a minha presença nas diversas vezes que fui a Munique.

Procurei olhar o cinzento do mar, o cinzento do céu, o cinzento claro do areal, o cinzento... Sentia-me um homem cinzento. Seria um homem cinzento desde sempre?

A brisa, agora, parecia-me demasiado fria. Sentia-me desconfortável com a perspetiva do dia seguinte. Fazia um mês que Lotte me tinha dei-xado, que a morte a tinha levado. Não conseguia sentir de outra forma. Via-me abandonado. A sua partida inundava-me de mágoa. Por vezes, pensava em como teria sido se eu tivesse sido diferente. Apenas um pou-co diferente.

A Celeste chorava de mansinho sempre que eu me referia a Lotte. Não falava dela, apenas com ela, em surdina. Coisas que queria ter-lhe dito. Percebi que nem sempre é preciso falar, apenas sentir. Aprendi a valorizar o silêncio com Lotte. Era a melhor forma de ultrapassar os erros e as omissões. O silêncio.

De onde estava conseguia adivinhar a nossa casa, minha e de Lotte. Os vasos à janela, pensados por ela. Tinha perseguido a ideia clássica de portões verdes e de paredes brancas, com um bonito jardim nas traseiras

a fazer as suas delícias. Vivíamos ali desde que decidimos morar em Por-tugal, no final dos anos 50, após terminar a minha formação em Munique. A proximidade da minha família, que já cá vivia há cerca de dez anos, foi determinante para esta escolha. Foram-me contadas muitas histórias ao longo dos anos que passámos juntos no Estoril. Morávamos perto e nos nossos encontros domingueiros, na Garrett, mostraram inúmeras vezes o quanto admiravam Lotte, o seu sentido de humor e inteligência rara. Foi nestas reuniões familiares que fui conhecendo um pouco do meu pai. Compreendia que aquele local tinha oferecido aos meus pais a segurança que, na altura, a Alemanha, ou depois Espanha, não nos tinham ofereci-do. Tantas recordações, tantas histórias.

Agradava-me aquele sal colado aos lábios e ao rosto. Nos últimos anos o areal tinha diminuído por força do mar e este, em dias de tempestade, galgava a estrada, ganhando vida própria. Só tinha pena de não conseguir andar muito tempo na areia molhada.

Quando regressei a casa, a Celeste procurou no meu rosto sinais de cansaço, tristeza ou de apenas fome. Adivinhou tudo. Mal falei ao entrar em casa.

– Foi bonito o passeio? Não estava muito frio para si?– Nada de especial – disse eu, tentando terminar por ali a nossa conversa.– Precisa de alguma coisa para amanhã?– Não. Apenas que o dia passe. Não sabe se os Lima vão diretamente

para a igreja, não? Queria-lhes pedir boleia.– Posso perguntar..., mas o senhor podia telefonar. Iam à Garrett...

Conversavam um pouco...– Não estou com cabeça para conversas, Celeste. O Lima se sabe que

vou a Munique vai querer acompanhar-me, sabe como ele é.– Vai a Munique? Quando? Não me disse nada! Está pior?Tive que sorrir. Podia não estar com paciência, mas aquela sincera

Celeste desarmou-me. Não a tinha preparado para a viagem. Não lhe contava muito sobre o que se passava com os meus olhos, mas ela apercebia-se da degradação da minha visão. À noite, a perda era total, mas de dia ainda conseguia ver alguns pormenores da minha realidade.

Não percebi se ela temia que eu ficasse por Munique, junto a Gertrud.

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Nunca foi uma ideia possível para mim. Gertrud não me era próxima. A distância física era sempre uma boa desculpa para que dois irmãos não cultivassem um contacto normal. Aliás, estes nunca me tinham trazido grandes alegrias.

Voltei de novo à cozinha, onde a Celeste ainda esperava por uma res-posta. Disse-lhe que iria a Munique, em breve, para uma consulta de rotina, nada de especial.

Almocei na copa, com vista para o jardim. A primavera parecia ter aparecido mais cedo e as flores estavam radiantes. A minha manta axa-drezada repousava no braço da cadeira de madeira, lá fora. O convidativo jardim era uma obra de Lotte. Nos últimos tempos era ali que ela par-tilhava as suas leituras comigo. Lia alto, entoava o texto com uma arte que eu desconhecia. Ficava limitado aos seus gostos, mas as suas escolhas transportavam-nos para uma intimidade por vezes esquecida. Estávamos juntos há tantos anos. Não tinha chegado a acabar de ler o último livro. Ou eu teria adormecido? Não me recordava. O facto é que não via o livro há já algum tempo. Não o saberia reconhecer. Lembrava-me apenas que era romântico, com uma escrita clássica e intensa.

Senti-me desistir, por momentos. Sentei-me na cadeira e tapei-me com a manta. Irritava-me não me lembrar do nome do autor, ou do livro. Não me queria esquecer dos nossos últimos dias juntos. Mais à tarde ten-taria procurá-lo na saleta.

Acordei com o barulho das panelas na cozinha. Tinha adormecido durante várias horas, sem interrupções. Tentei mexer-me, mas sentia os braços dormentes. Que horas seriam?

– Celeste?– Ora viva – disse ela com um tom bem-humorado. – Então que belo

sono, que rica vida!– Que horas são? – perguntou, ignorando a sua quase provocação.– São quase cinco. Estou a acabar o jantar. Hoje tenho que sair mais

cedo porque tenho lá em casa os meus dois filhos, senhor Hans.– Claro! Vá, sim.– O senhor Lima telefonou. Parecia que tinha adivinhado a nossa conversa

hoje ao almoço. Ofereceu-se para o levar à missa por alma da senhora Lotte.

– Obrigado, nem ouvi o telefone. Logo mais telefono-lhe para combinar as horas. Gostava de sair de casa por volta das onze e meia, o que acha?

– Acho bem. Gostava de ir também, será possível?– Claro que sim – disse, sorrindo. – Vem connosco no carro.– Está combinado, vou terminar o jantar.Levantei-me, afastando o tremor das pernas e espreguicei-me. Estava

mais fresco e tinha o nariz gelado. Sentei-me no meu escritório. Procurei uma caneta e os meus cartões. Apalpei os objetos que tapavam a superfície da gaveta e ignorei a sua desarrumação. Agarrei num cartão e senti o seu amarelo rugoso. Tinha-os escolhido há muitos anos atrás, por altura da mi-nha promoção enquanto Coordenador de Comunicação da KElectric em Portugal. Era um homem vaidoso, sabia-o. Gostava de objetos belos, úni-cos, destinados ao uso, ou melhor, à complementaridade. Agora eram, so-bretudo, recordações. Olhei de novo para o cartão. Enviaria um pedido de consulta e os exames mais recentes para Munique. Sentia-me algo ridículo por ainda recorrer a cartões da empresa. Já me tinha reformado há anos e não tinha qualquer vontade de fazer novos. O problema estava na ausência de título. Apenas Hans Wehmeyer. Tristonho, sem dúvida.

A falta de Lotte mostrou-me como era incipiente a minha vida so-cial. Também não queria que sentissem pena deste velho, quase cego e com um humor dos diabos. A Celeste já estava habituada, mas também ela, por vezes, mostrava pressa em ir para casa, para a sua família. Nada mais certo.

De volta ao cartão. Escrevi uma breve nota ao Dr. Karl Hesse, mos-trando disponibilidade para me deslocar ao seu consultório. Bastava que me respondesse com alguma antecedência para que procedesse à marca-ção do voo.

Tinha algumas expectativas associadas a esta viagem. Gertrud não ti-nha vindo ao enterro de Lotte, o que era compreensível se pensarmos nos seus afazeres diários e na sua idade. Uma família assim implicava uma indiscutível entrega e abnegação.

Dava-me conta da ironia de sentir falta de Munique, quando toda a vida tinha evitado as viagens sugeridas por Lotte. Ela, tal como eu, tinha toda a sua família na Alemanha e lamentava-se amiúde da distância que

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tinha sido imposta entre eles. Foram raras as vezes que a acompanhei a Nuremberga, com a desculpa de me sentir mal em comboios. Procurava apenas que ela percebesse o quanto me eram insuportáveis as constantes deslocações, as perguntas, o olhar inquiridor do seu irmão. Tínhamos, ainda por cima, o mesmo nome, Hans, o que dentro da família era pro-pício a piadas de mau gosto. De resto, tinham estado há pouco tempo em Lisboa e o nosso sofrimento atenuou, na altura, esta mútua aversão. Sentia-me pacificado e sobretudo ilibado caso fosse a Munique e não lhes dissesse nada. Estava decidido. Sem este elo em comum, já nada me obrigaria a farsas.

O tiquetaque do relógio da sala ditava as horas. Optei pela sale-ta confortável, com a lareira sempre em fogo. Lotte adorava esta sala. Afundei-me no sofá verde e senti-me um velho chorão. Perdido, olhei o amarelo casquinha das paredes e as estantes altas, brancas, atafulhadas de livros. Mergulhei no chá e biscoitos e senti o habitual peso nos olhos. Dormente, sentia-me dormente. Assim a meio caminho entre a profun-da tristeza e a apatia.

Andava a preparar um convite para que a Celeste se mudasse para esta casa. Estávamos em março e o filho mais velho, Luís, casar-se-ia em julho. A Joana era a minha preferida. Com vinte e dois anos, era determinada e tinha a ambição de chegar longe agora que terminara o curso de Direito. Enfim, a casa era grande e o meu vazio enorme. Seriamos três pessoas naquele casarão. Era esta a minha proposta.

Preferia pensar em tudo isto de olhos fechados. Escondia-me na es-curidão para disfarçar o medo da recusa. A Celeste disse até amanhã e deitou-me certamente um olhar que não vi. Já não via àquela distância. Deixava tudo arrumado, o jantar preparado, bastaria aquecer.

Acordei zonzo, ainda me ocorriam imagens estranhas de uma noite mal dormida. Não me recordava de nenhum sonho ou pesadelo em especial, apenas de algumas imagens dissonantes. Procurei os óculos e sentei-me na cama. Pensei pela primeira vez no meu dia e a cama

pareceu-me acolhedora. Ainda não ouvia o habitual ruído dos passos da Celeste e o silêncio era total. Apenas o distante burburinho, lá fora, confirmava que o dia já tinha nascido e que as crianças estavam a cami-nho da escola.

Tinha acordado com sede. Enchi, sonolento, um copo com água na casa de banho. Tinha envelhecido nesta noite agitada. Sentia os pelos brancos da barba a despontar. Tinha feito, em fevereiro, setenta e cinco anos. Segundo a Celeste era um típico aquariano. Não sabia o que isto significava, mas, pelo seu tom de voz, parecia ser algo que ela considerava interessante. Adiante. Fiz a barba, com aquela milagrosa máquina que a Hannah me tinha oferecido no meu aniversário. Disse-me, na altura, que estava cansada de me ver pintalgado com pequenos cortes na cara e no pescoço. Hoje almoçaria com ela e com o Vicente. Eram os meus amigos mais fiéis, desde sempre.

Tinha conhecido Hannah na Escola Alemã, no Estoril. No primeiro ano de residência em Portugal, após termos vivido sete anos em Espanha, o meu pai tinha optado por me inscrever na escola, tinha eu cerca de nove anos. Não tinha amigos cá e a minha irmã tinha ido para Munique. Procurava fazer o seu curso de Enfermagem, naquela altura tão difícil e violenta. Queria sentir-se útil, voltar para a Alemanha. Dizia-nos com fre-quência que queria estar por lá quando tudo acabasse e que já não devia faltar muito tempo. O meu pai advertiu-a vezes sem conta, mas ela lá foi.

Sentia-me muito só na altura. Quando a minha mãe me levou nos primeiros dias à escola, só me apetecia desaparecer. Não tinha essa cons-ciência na altura, mas sentia-me incapaz de estabelecer laços com outras crianças. Passava os dias à espera que ela me fosse buscar e que me levas-se à praia no final do dia. Esses eram os bons momentos.

Aproximei-me do espelho e vislumbrei aquele rapaz de há tantos anos atrás. Continuava muito magro e branco é certo, mas agora estava algo curvado. Tinha as maçãs do rosto salientes e os olhos mais encovados. Tinha os lábios finos da minha mãe, sem dúvida. Os cabelos ondulados, agora todos brancos, penteados para trás, lembravam-me o meu pai, nos seus últimos anos. Os meus olhos não se assemelhavam a qualquer um dos dois pois eram castanhos e destoavam do azul que abundava na minha

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família. Disseram-me que os tinha herdado do meu avô materno, que nunca conheci. Sorri para o espelho ao lembrar-me das palavras do meu pai, “herdaste de mim duas coisas: o nariz e a ironia”, dizia com frequên-cia. Nunca liguei muito a estas palavras, mas reconheço que ele as dizia com uma particular solenidade.

Escolhi o fato preferido de Lotte. Nada de preto. Um azul-escuro com discretas riscas cinzentas. Utilizava-o, sobretudo, nas receções da Em-baixada Alemã. Tinha diversos fatos, diferentes camisas e gravatas, fruto de tantas situações formais do meu trabalho. A Celeste organizava-me o guarda-fatos por texturas e por cores, com um método quase infalível, não fora eu hoje estar tão inquieto.

Desci as escadas sabendo de cor o que dizer às pessoas, como agir, quando sorrir e agradecer. Demorámos poucos minutos no trajeto. Sen-tia-me observado pelos meus três companheiros. Mal falámos. O dia não estava nem frio nem ventoso e cheirava a mar no átrio da igreja onde me esperavam alguns amigos. Abracei o Padre Filipe no final da cerimónia e dei o braço à Celeste.

– Já está – disse ela, com cumplicidade. – Vou para casa, apetece-me andar um pouco, aproveitar o calor do dia. Ainda precisa de alguma coisa?

– Não vá já para casa, Celeste. Fique e almoce connosco – retorqui.– Não senhor, vou andando – disse Celeste, apertando-me o braço.

– Deixo-o com amigos. Faz-lhe bem falar com outras pessoas. Não se preocupe, eu deixo tudo preparado para si, caso já não nos vejamos hoje.

Sorri para ela e procurei Hannah e o Vicente que me esperavam, sen-tados no muro exterior da igreja. Tinham-me prometido um almoço na Garrett conforme já era habitual aos domingos. Pensei que esta seria a altura ideal para os convidar para a viagem até Munique, já em abril. Os meus amigos ainda não conheciam a cidade e estavam ambos já reforma-dos e disponíveis para me acompanhar.

Já estava algo embriagado quando terminámos o nosso longo almoço. Tínhamos conseguido uma mesa na varanda envidraçada e o sol tinha dado alguma alegria àquele dia sombrio. Fizemos planos, discutimos da-tas, negociámos o itinerário e bebemos um belíssimo Madrigal a acompa-

nhar um robalo escalado com legumes. Tínhamos composto um futuro próximo, em conjunto, e sentia-me e comovido pela camaradagem do meu amigo Vicente.

Atirei-me para o sofá assim que cheguei a casa. Estava só e não me sabia mal o silêncio.

Os preparativos para a viagem a Munique decorreram de uma for-ma alucinante para um homem da minha idade. Já não tinha a pressa de outros tempos. A ansiedade da Hannah e a energia do Vicente empurraram-me a maior parte das vezes para uma resolução, para uma decisão. Foi a marcação da consulta, o contacto com Gertrud, a reserva de hotel e dos voos. Depois, os restantes preparativos para a viagem, como a roupa, os livros, os medicamentos e lembranças bem portuguesas para a minha irmã e toda a família. Enfim, até a Celeste já praguejava quando ouvia o telefone ou um bater insistente na porta. Dizia-me, “são eles!”

Agora, tentava prestar atenção a acontecimentos realmente relevan-tes, como aqueles que vivia, enquanto na minha cadeira no jardim, ouvia a Celeste a ler o livro que juntos tínhamos encontrado no meio dos papéis de Lotte. Era aquele que ela lia pouco antes de morrer. Notei que apenas me lembrava de alguns excertos, de alguns capítulos sem uma aparente relação entre si. Celeste lia as palavras de Sandor Marai e conduzia-me para histórias pessoais que pareciam encaixar na perfeição naquele enre-do. Parecia, no início, mais preocupada com o rigor da leitura e com o cumprimento rigoroso daquele dever. Depois passou para a fase do fo-lhetim. Referia-se aos capítulos tentando adivinhar o desfecho, as reações das personagens. A leitura de algumas páginas tornou-se um entretém viciante, para ambos, após a minha habitual sesta. No final, passámos à fase do inconformismo, não só porque tinha terminado a narrativa, mas, sobretudo, porque discordava daquele desfecho, sentia que as velas não tinham ardido até ao fim.

Munique modificara-se ao longo dos anos. Voltava lá com frequência,

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a trabalho. Frequentara a Ludwig-Maximilians-Universität1, nos anos 50, seguindo a tradição da Engenharia na nossa família, e pude assistir ao progressivo desvanecimento do alvoroço do pós-guerra. Foi marcante a fase da reconstrução. Associava-a ao momento em que conheci Lotte e, desde então, a efervescência aumentara de uma forma incontrolável. Longe dos meus pais, perto da minha irmã Gertrud, e pela primeira vez apaixonado. Foram cerca de seis anos de tal forma importantes que agora só me ocorria voltar.

Tinha telefonado a Gertrud. Era a altura de nos encontrarmos e con-versarmos. Quando perdi Lotte com uma pneumonia, percebi que com esta frágil idade as partidas estavam demasiado próximas. Gertrud não estaria no mundo dos vivos muito mais tempo. Era tão evidente o des-gaste provocado pela carga que a vida lhe tinha colocado aos ombros. Não podia dizer estas coisas perto dela. Nem pensar. Por isso telefonei e comuniquei-lhe que iria. Sim, iria com amigos, ficaríamos no Gästehaus Englischer Garten, como sempre, e passaríamos alguns dias entre o turis-mo e o meu revivalismo.

Cheguei ansiosamente a Munique com a certeza de que veria Ger-trud, o mais tardar no dia seguinte. Iria ter com ela, antes de me dedicar ao turismo desenfreado, como dizia Hannah. Percebia que

a consulta não passava de um bom pretexto para esta viagem a Munique.Instalámo-nos no hotel onde Lotte e eu sempre ficáramos. Olhei pela

janela do quarto. Senti o sol no rosto, imaginei-me, uma vez mais, agarra-do à cintura de Lotte, olhando os telhados da cidade e toda aquela man-cha verde que torneava o hotel. Caía a noite, o sol escondia-se e pouco me restava daquela visão iluminada pelas minhas recordações. Preferia, agora, centrar-me no dia seguinte e nos planos que os três tínhamos tra-çado para esta semana.

Tinha combinado com Gertrud um chá a meio da tarde. Passei a ma-nhã no hotel, a descansar e escusei-me a almoçar fora com Hannah e Vicente. Estes já tinham percebido o meu nervosismo e adivinhavam que era melhor darem-me tempo neste primeiro dia. Tínhamos tomado o pe-queno-almoço juntos, e levavam algumas sugestões de passeio pelo centro da cidade. Esperariam o meu telefonema, pelo menos para jantarmos.

Pontual, Gertrud entrou no café. Abracei-a sem pressa. Confirmei que estávamos ambos velhos apesar de ainda sentir, nela, aquela energia vibrante. Era preciso conhecê-la para confirmar estas palavras. Não éra-mos próximos, é verdade. Mas agora ao vê-la, ao abraçá-la, sentia aquela 1 - Universidade Ludwig Maximilian de Munique, mais à frente referida como LMU