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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
ESCOLA DE ENGENHARIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM ENGENHARIA DE PRODUO
DOUTORADO EM ENGENHARIA DE PRODUO
FERNANDA SANTOS ARAUJO
GESTO DO TRABALHO NA COOPERMINAS:
mobilizao de competncias e coletivos de trabalho na atividade dos operadores de uma mina de
carvo em luta pela autogesto
NITEROI
2016
FERNANDA SANTOS ARAUJO
GESTO DO TRABALHO NA COOPERMINAS: mobilizao de competncias e
coletivos de trabalho na atividade dos operadores de uma mina de carvo em luta pela
autogesto
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao
Stricto Sensu em Engenharia de Produo da
Universidade Federal Fluminense como requisito
parcial para obteno do ttulo de Doutora em
Engenharia de Produo.
Orientadora:
Profa. Dra. Denise Alvarez
Coorientador:
Prof. Dr. Marcelo Figueiredo
Niteri, RJ
2016
Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca da Escola de Engenharia e Instituto de Computao da UFF
A663 Araujo, Fernanda Santos
Gesto do trabalho na COOPERMINAS : mobilizao de
competncias e coletivos de trabalho na atividade dos operadores de
uma mina de carvo em luta pela autogesto / Fernanda Santos
Araujo. Niteri, RJ : [s.n.], 2016.
317 f.
Tese (Doutorado em Engenharia de Produo) - Universidade
Federal Fluminense, 2016.
Orientadores: Denise Alvarez, Marcelo Figueiredo.
1. Administrao do trabalho. 2. Autogesto. 3. Competncia. 4.
Cooperativa. I. Ttulo.
CDD 658.54
AGRADECIMENTOS
Difcil nomear as tantas pessoas que contriburam fundamentalmente, com
diferentes papis, ao longo dessa longa trajetria de trabalho e de vida. A histria que me
conduziu at aqui no pode ser resumida nessas curtas linhas.
Agradeo minha professora orientadora Denise Alvarez, que me acolheu com
carinho e generosidade, me apoiando e se empenhando para a realizao desse trabalho
cheio de sentido para mim. Igualmente orientador e acolhedor foi o papel desempenhado
pelo professor Marcelo Figueiredo.
Vicente Nepomuceno, amigo e companheiro de trabalho de longa data no campo
da engenharia popular e solidria, foi, mais uma vez, um grande parceiro nessa jornada que
compartilhamos para a realizao da pesquisa e das teses (minha e dele, produzidas a partir
da mesma experincia de campo). Que alegria essa companhia!
A participao dos professores Chico Lima e Helder Muniz, seja na primeira etapa
da qualificao, seja em outros valiosos momentos de troca em disciplinas, congressos e
encontros acadmicos tambm foi decisiva.
O minucioso trabalho de transcrio de mais de 10 horas de gravao em cerca de
150 pginas de dilogos com os trabalhadores da COOPERMINAS, feito cuidadosamente
por Camille Periss, teve tambm fundamental importncia.
Grandes mestres que me inspiraram e apoiaram na trajetria prvia ao doutorado
merecem ser lembrados com carinho, respeito e admirao. Ainda na graduao, tive a
oportunidade de aprender muito com Thales Paradela e Flvio Bruno, entre outros mestres.
Numa segunda etapa da vida acadmica, Sido e Thiollent me mostraram um mundo de
possibilidades no universo acadmico e na engenharia.
A turma do SOLTEC/UFRJ, minha casa, meu abrigo, referncia essencial para
construo da minha carreira profissional e dos meus valores de vida talvez a maior
responsvel por tudo isso. Alm de Vicente e Sido, j citados, Felipe Addor, Flavio
Chedid, Celso Alvear, Alan Tygel, Vera Maciel, Marlia Gonalves, Camila Laricchia,
Ricardo Silveira... e tantos outros que passaram e passam por l a cada ano mantendo
acessa a chama da solidariedade na engenharia.
Igualmente importante nessa luta e construo cotidiana de uma engenharia
popular e solidria a eterna juventude dos Encontros Nacionais e Regionais de
Engenharia e Desenvolvimento Social (ENEDS e EREDS) e da Rede de Engenharia
Popular (REPOS). Alm dos j citados como parte do SOLTEC, Lais Fraga, Bruna
Vasconcellos, Sandra Ruffino, Thiago Nogueira, Lina Anchieta, Clara Carmago, Rafaela
S, Victor Marques, Larissa Campos, Cinthia Versianni, Dbora Nascimento, Wagner Curi,
Clcio Santos, Maria Paula, galera do Par, de Floripa, Santa Maria... impossvel citar
todas(os). Compartilhar esse espao (e tantos outros) com essas pessoas me renova, me
inspira, me faz sonhar e trabalhar por um mundo melhor.
Ao CEFET/RJ-NI, instituio que hoje me acolhe com meus projetos e sonhos,
que me permite um espao para dialogar sobre eles com a juventude que ingressa na
engenharia na Baixada Fluminense e que me permitiu dedicar os ltimos 18 meses
integralmente rdua tarefa de redao dessa tese, muito obrigada! Agradeo, em especial,
Camila Laricchia, que me substituiu em sala de aula durante esse perodo com qualidade
inquestionvel.
A turma da CAPINA, Katia Aguiar, Terezinha, Ricardo, Aida e Rosana, me
influenciou e influencia permanentemente, para mim um exemplo de militncia e trabalho
srio, de compromisso com o povo e com um mundo mais humano.
Os companheiros do Grupo de Pesquisa em Empresas Recuperadas pelos
Trabalhadores (GPERT) foram tambm fundamentais para o meu mergulho nesse campo e
para a construo dos compromissos que reafirmo nessa tese. Flavio, Vicente, Sandra e
Thiago, j citados, e ainda Mariana Giroto, Vanessa Sgolo, Maira Rocha, Alejandra
Paulucci, Alessandra Azevedo e Maurcio Sard.
No poderia deixar de lembrar, claro, dos trabalhadores das ERTs brasileiras,
que nos receberam e se dispuseram a compartilhar conosco suas conquistas e seus desafios
cotidianos. Em especial, os trabalhadores da COOPERMINAS, essa maravilhosa
experincia de luta e ousadia da classe trabalhadora mineira de Cricima. Vale nomear
alguns: Miro, Saulo, Saulo, Nei, Amilton, Tarzan, Fuzil, Bidu, Preto, Chuveirinho, Pedrada
e Vav. Deise e Lucas, esposa e filho do Miro, que nos acolheram carinhosamente em sua
casa para realizao da pesquisa tambm merecem esse agradecimento.
toda a minha grande famlia, primas, primos, tias, tios, sobrinhas, sobrinhos,
cunhadas, cunhados, sogro, sogra, agregadas e agregados, muito obrigada pela intensa e
prazerosa convivncia que me permite seguir na vida tranquila por saber que nunca estarei
s.
Aos amigos da juventude, aqueles insubstituveis, que mesmo hoje no to
presentes quanto a gente gostaria, estaro sempre aqui no corao, aquecendo e acolhendo a
distncia. Titi, Ana Paula, Mari, Rafa, Bebel, Catata, Irene, Pri, Caju, Talita, Cacau...
Minha me, Adelina, meu pai, Srgio, minha irm, Fabiana, e meu irmo, Felipe,
so o alicerce de tudo isso, o porto seguro, o amor incondicional e o exemplo maior de
vida.
Por fim, famlia que eu escolhi e constru com Raul e Samuel, meus grandes
amores, muitssimo obrigada pela companhia dia-a-dia, pela pacincia, pelo carinho, pela
alegria, por tudo o que vocs representam para mim. E (o) pequena(o) que ainda cresce no
ventre e em breve se juntar a ns trazendo ainda mais alegria e estmulo para a vida.
RESUMO
Esta tese prope-se a analisar a gesto do trabalho pelo olhar da atividade em uma mina de
carvo em luta pela autogesto, assim contribuindo com os estudos sobre as Empresas
Recuperas por Trabalhadores no Brasil. Para elaborar esse ponto de vista recorremos
ergonomia da atividade, perspectiva ergolgica e psicodinmica do trabalho, nos
valendo especialmente do que essas disciplinas/abordagens/perspectivas puderam oferecer
a respeito do tema das competncias e da dimenso coletiva da atividade. Um panorama do
universo da minerao de carvo e das lutas histricas dos trabalhadores pela autogesto do
trabalho e da produo tambm compuseram nosso referencial para a anlise. Nossa ida a
campo se apoiou na metodologia da Anlise Ergonmica do Trabalho, enriquecida por
outras influncias fundamentais para adapt-la realidade estudada e aos nossos objetivos
de pesquisa. O resultado dessa experincia mostra que a luta dos trabalhadores da
COOPERMINAS pela autogesto do trabalho e da produo est longe de cessar. Se por
um lado podemos afirmar que importantes conquistas foram alcanadas pela resistncia
cotidiana dos trabalhadores favorecendo o bem estar das pessoas e a eficcia da produo,
por outro, apontamos uma srie de limitaes que decorrem das contradies impostas por
um cenrio adverso no qual a luta dos trabalhadores se configura como um projeto
extremamente conflitivo. O olhar para a atividade, orientado pelos conceitos de
competncias e coletivos de trabalho, foi fundamental para a elaborao dessa anlise.
Palavras-chave: autogesto, empresas recuperadas por trabalhadores, gesto do trabalho,
atividade, competncias, coletivos de trabalho.
ABSTRACT
The purpose of this thesis is analyze the work management from the perspective of the
activity in a coal mine in a struggle for self-management, thus contributing to the studies
about workers recovered companies in Brazil. To elaborate this point of view we use the
activity ergonomics, the ergological perspective and the psychodynamics of the work,
making use especially of what these disciplines / approaches / perspectives might offer
about the subject of skills and collective dimension on activity. A panorama of coal mining
universe and historical workers struggles for self-management also composed our
benchmark for analysis. Our trip to the field of this study was based on the methodology of
Ergonomic Work Analysis, enriched by other influences fundamental to adapt it to the
reality studied and our research objectives. The result of this experiment shows that the
struggle of COOPERMINAS workers for self-management is far from ceasing. On the one
hand we can say that significant achievements have been made by the daily resistance of
workers favoring the well-being of people and the efficiency of production, on the other,
we point out a number of limitations arising from the contradictions imposed by an adverse
scenario in which the struggle of workers is configured as a highly conflictive project. The
look for the activity, guided by the concepts of skills and collective was essential to prepare
the analysis.
Keywords: self-management, workers recovered companies, work management, activity,
skills, collective work.
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 Produo de carvo bruto em Santa Catarina ..................................................... 56
Figura 2 Representao das galerias subterrneas nas minas exploradas pelo mtodo de
cmaras e pilares (elaborada pela autora) ............................................................................. 58
Figura 3 Fotos da boca da mina e do subsolo percurso de acesso s frentes de servio 62
Figura 4 Representao simplificada da rvore de problemas ........................................ 146
Figura 5 Esquema simplificado do processo de extrao de carvo na COOPERMINAS
............................................................................................................................................ 149
Figura 6 Fotos das operaes carregamento, perfurao da frente e limpeza das rafas151
Figura 7 Organograma simplificado do setor de produo da COOPERMINAS ........... 152
Figura 8 Foto do operador 3 dentro da mquina ............................................................. 202
Figura 9 Fotos da MT em operao. ................................................................................ 205
Figura 10 Representao simplificada de um painel em operao .................................. 222
Figura 11 Posio dos operadores de correia .................................................................. 231
Figura 12 Imagens da correia transportadora .................................................................. 232
Figura 13 Descarregar o material na correia transportadora ........................................... 249
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Vida til estimada dos recursos energticos mundiais ....................................... 53
Tabela 2 Acidentes de trabalho nas principais atividades da regio de Cricima (1985) . 65
Tabela 3 Nmero de trabalhadores por setor em Cricima ............................................. 128
Tabela 4 Faixas de remunerao na COOPERMINAS ................................................... 191
Tabela 5 Perfil dos operadores de MT ............................................................................ 214
Tabela 6 Perfil dos cabistas ............................................................................................. 229
Tabela 7 Perfil dos operadores de correia ....................................................................... 234
Tabela 8 Proposta de plano de carreira para operadores de produo............................. 241
Tabela 9 Causas dos acidentes com operadores de MT no perodo de 25/02/2014 a
05/08/2014 .......................................................................................................................... 246
SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................................... 1
PARTE I: Lentes da anlise................................................................................................. 10
CAPTULO 1: Gesto do trabalho pelo olhar da atividade................................................. 11
1.1. Trabalhar gerir: contribuies da ergonomia da atividade .................................. 16
1.1.1. Uma base terica em ergonomia da atividade ................................................ 18
1.1.2. A questo das competncias para a ergonomia da atividade .......................... 22
1.1.3. Os coletivos de trabalho para a ergonomia da atividade ................................ 26
1.2. A gesto pelo corpo-si em um universo de valores: contribuies da perspectiva
ergolgica ............................................................................................................................. 32
1.2.1. Um olhar para a atividade pela perspectiva ergolgica .................................. 33
1.2.2. Os ingredientes da competncia ..................................................................... 37
1.2.3. Entidades coletivas relativamente pertinentes ................................................ 40
1.3. Mobilizao psquica e intersubjetiva para a gesto do trabalho: contribuies da
psicodinmica do trabalho .................................................................................................... 42
1.3.1. Confiana, reconhecimento e cooperao ...................................................... 43
CAPTULO 2: Ambiente, processo e organizao do trabalho na minerao de carvo ... 52
2.1. Carvo mineral no Brasil e no mundo ................................................................... 52
2.2. O subsolo: ambiente de trabalho na minerao de carvo ..................................... 57
2.3. O massacre: sade e segurana dos trabalhadores na minerao de carvo .......... 63
2.4. Experincias na histria: organizao do trabalho na minerao de carvo .......... 68
2.4.1. Antes das mquinas: sistemas pr-mecanizados de produo ........................... 69
2.4.2. A chegada das mquinas: sistemas mecanizados de produo .......................... 73
2.4.3. Para alm das mquinas: a experincia de Chopwell e a abordagem sociotcnica
80
CAPTULO 3: Os trabalhadores resistem: luta pela autogesto e empresas recuperadas por
trabalhadores no Brasil ........................................................................................................ 88
3.1. Os sentidos da luta ................................................................................................. 88
3.2. Uma breve histria da luta pela autogesto ........................................................... 97
3.3. Empresas Recuperadas pelos Trabalhadores no Brasil ........................................ 112
PARTE II: COOPERMINAS, uma luta permanente pela autogesto ............................... 126
CAPTULO 4: Conhecendo e reconhecendo o campo de estudo e interveno ............... 127
4.1. O movimento operrio em Cricima e a formao da COOPERMINAS ........... 127
4.2. A anlise ergonmica do trabalho na COOPERMINAS ..................................... 138
4.2.1. Anlise da Demanda ..................................................................................... 143
4.2.2. Anlise do funcionamento global ................................................................. 147
4.2.3. Anlise da tarefa e primeira aproximao da atividade ................................ 154
4.2.4. Anlise da atividade e recomendaes ......................................................... 157
CAPTULO 5: Um olhar sobre a organizao do trabalho na COOPERMINAS ............. 165
5.1. A formao e a funo das instncias de deciso: assembleia geral, conselho
administrativo e conselho deliberativo ............................................................................... 166
5.2. As instncias hierrquicas de planejamento e controle do trabalho .................... 172
5.3. Convivncia entre cooperados e contratados ....................................................... 180
5.4. Liberdade, participao e o ponto de vista da sade e segurana ........................ 185
5.5. Plano de carreira e poltica de remunerao ........................................................ 191
5.6. Formao de competncias para a autogesto ..................................................... 194
CAPTULO 6: Um olhar sobre a operao na COOPERMINAS: mobilizao de
competncias e coletivos de trabalho na limpeza das rafas ............................................... 200
6.1. Diagnstico parte 1: aspectos materiais ............................................................... 201
6.2. Diagnstico parte 2: organizao da equipe ........................................................ 212
6.2.1. Operadores de MT ........................................................................................ 213
6.2.2. Avaliao dos operadores de MT e a dinmica do reconhecimento ............ 220
6.2.3. Cabistas ......................................................................................................... 225
6.2.4. Operadores de correia ................................................................................... 230
6.2.5. Os coletivos na atividade .............................................................................. 235
6.2.6. Rodzio de funes ....................................................................................... 239
6.3. Diagnstico parte 3: etapas da operao .............................................................. 242
6.3.1. Primeira etapa: encher a concha ................................................................... 243
6.3.2. Segunda etapa: transportar o material at a correia ...................................... 246
6.3.3. Terceira etapa: descarregar o material na correia transportadora ................. 248
6.3.4. Dilogos entre operao e manuteno ........................................................ 254
CONCLUSO ................................................................................................................... 259
Bibliografia ........................................................................................................................ 269
ANEXO I rvore de problemas ..................................................................................... 279
ANEXO II Termo de cooperao ................................................................................... 280
ANEXO III Cadernos de formao ................................................................................ 283
ANEXO IV Recomendaes finais ................................................................................ 314
ANEXO V Nomes fictcios dos trabalhadores ............................................................... 317
1
INTRODUO
O percurso da pesquisadora e a origem do tema
Estudar o trabalho na COOPERMINAS foi para mim uma experincia nica e
especial por diversos motivos. Meu desejo de estudar engenharia de produo nasceu em
uma fbrica de leos lubrificantes, na minha primeira experincia profissional, ainda como
tcnica em qumica. O ambiente fabril me instigava e me animava. As questes relativas
gesto dos processos de produo me interessavam. Ao mesmo tempo, a convivncia com
os trabalhadores diretos, no cho-de-fbrica, me agradava, tornava aquele espao vivo e
rico de aprendizagens e vivncias.
Ao longo do curso de graduao, no entanto, no tive outras oportunidades de
atuar na indstria. A grande maioria dos estgios oferecidos para os estudantes da
engenharia de produo era no setor de servios, ou nas sedes das grandes corporaes,
distantes da produo, da fbrica, dos operrios. Cheguei a fazer alguns desses estgios,
mas no consegui me encontrar neles. No sei se pela ausncia dos desafios da produo, se
pelo ambiente de trabalho tpico dos escritrios das grandes corporaes, ou pela falta dos
trabalhadores que conhecem, de fato, pela prtica, os processos de transformao da
matria.
Depois de um tempo perdida, procura de um sentido para aquela formao
profissional, j no ltimo semestre antes da sua concluso, encontrei, pelo Ncleo de
Solidariedade Tcnica (SOLTEC/UFRJ), a oportunidade de trabalhar em um projeto de
extenso voltado para a assessoria a uma cooperativa de produo de parafusos na Baixada
Fluminense, a COOPARJ. Aquele encontro no me permitiu apenas voltar a pensar a
produo. Estudar a produo numa cooperativa, uma empresa gerida pelos trabalhadores,
na companhia de estudantes, professores e pesquisadores militantes, me levou a refletir
sobre a engenharia de produo com um olhar crtico.
Pouco a pouco fui me dando conta que os conhecimentos acumulados ao longo do
curso de graduao, que eu estava ansiosa para colocar em prtica, nem sempre resolviam
os problemas da produo e, principalmente, dos trabalhadores. Talvez aquela sensao de
bem estar no ambiente da fbrica advinha, entre outros fatores, do reconhecimento de que
os trabalhadores diretos tinham (e tm) muito a nos ensinar. A convivncia com eles se
2
tornava um espao de aprendizado riqussimo, alm de um espao de trocas culturais que
alimentam a mente, a alma e o corao.
Sem negar o valor do conhecimento adquirido pela formao curricular, encontrei
no dilogo com os trabalhadores a oportunidade de refletir sobre as tcnicas de gesto do
trabalho e da produo de uma maneira crtica. Pensar dessa forma no serve para rejeitar o
conhecimento acumulado nos livros. Pelo contrrio, eu voltei a ver a beleza das tcnicas e
dos saberes quando pude situ-los de volta num contexto, num espao, num tempo, em
relaes que deram sentido ao conhecimento. Isso me permitiu (e me permite, sempre)
reelabor-lo e recri-lo buscando coloc-lo a servio das necessidades (e desejos) dos
trabalhadores e da produo. Essa perspectiva de atuao me fez valorizar a minha
formao. Finalmente me senti fazendo engenharia.
Nessa experincia de assessoria a uma cooperativa de produo, em 2006, tive o
meu primeiro contato com uma Empresa Recuperada por Trabalhadores (ERT). A
formao da COOPARJ foi resultado do processo de falncia da Parafusos guia, na
dcada de 90. Os trabalhadores que ficaram desempregados com o fechamento da empresa
se organizaram para continuar a produzir em forma de cooperativa, herdando uma parte dos
equipamentos da massa falida, como parte de um acordo para quitar as dividas trabalhistas
decorrentes do processo de encerramento da empresa. O acordo no se deu sem conflitos.
Os trabalhadores tiveram que fazer viglia na porta da fbrica durante seis meses para
impedir que o patro retirasse o patrimnio sem pagar a dvida.
A experincia da COOPARJ no foi um caso isolado. Nos anos 90 o pas passou
por uma virada neoliberal. A abertura dos mercados e a flexibilizao das relaes
trabalhistas levaram ao fechamento de muitas indstrias. Os trabalhadores organizados em
sindicatos ou outras agremiaes reagiram aos desmontes do capital ocupando empresas e
lutando pela propriedade dos meios de produo para seguir trabalhando e gerando renda.
Estima-se que cerca de 200 empresas foram ocupadas e recuperadas pelos trabalhadores
nessa virada de sculo (NOVAES, 2005). Parecia uma das poucas sadas diante do
desemprego estrutural. Mas ela foi construda pelos trabalhadores organizados com muita
luta. Por isso, Nascimento (2004) afirma que a recuperao de empresas mais um captulo
da histrica luta pela autogesto.
3
Diversos autores que se debruaram sobre o tema das ERTs no Brasil
(HENRIQUES, 2014; NOVAES, 2005; FARIA, 2011; SGOLO, 2015; entre outros)
afirmam que a recuperao das empresas manifesta uma luta pela manuteno dos postos
de trabalho e no uma luta poltica conduzida pelo iderio anticapitalista. No entanto,
Rebon (2007) sugere que pela recuperao de empresas os trabalhadores elaboram
cotidianamente uma crtica prtica ao modelo capitalista de produo, experimentando
pequenas, mas valiosas, alteraes na lgica de reproduo do capital.
Nascimento (2004, 2010) chamou essa lenta e diria transio de revoluo
cultural do cotidiano. A revoluo cultural do cotidiano um processo de longo prazo,
pelo qual se confrontam normas e valores historicamente construdos e consolidados pelo
modo de produo capitalista com novos valores emanados da experincia do trabalho
associado. Sem os patres e os dirigentes, os trabalhadores tm a oportunidade de tomar os
rumos da produo. Gramsci dizia que as experincias nas quais os trabalhadores tm o
controle sobre a produo representam uma escola maravilhosa de formao de
experincia poltica e administrativa (apud FISCHER e TIRIBA, 2009, p. 3).
A histria mostra, no entanto, que as ausncias do patro e do dirigente podem no
ser suficientes para garantir o controle dos trabalhadores sobre a produo. Afinal, os
patres e dirigentes no esto mais na fbrica recuperada, mas ainda esto silenciosamente
presentes em todos os espaos da sociedade. A luta pela autogesto extrapola os limites da
fbrica e da produo e perpassa todas as esferas da vida.
Transitando e dialogando com variadas forma de luta pela autogesto fui me dando
conta disso e fui buscando maneiras de atuar como engenheira militante olhando para a
produo, sem dar as costas para a vida. Lembrava, dos meus estudos de graduanda, que a
ergonomia se propunha a transformar o trabalho buscando adapt-lo ao homem, assim
contribuindo para o bem-estar das pessoas e o desempenho global dos sistemas. Mas,
descolado de um contexto, no momento em que esse enunciado me foi apresentado, ele no
teve sentido algum. Era s mais uma frmula que eu tinha que decorar para passar na
prova.
Quando me tornei professora na Universidade Federal de Ouro Preto, em 2010, fui
incumbida de ministrar ergonomia e psicologia de trabalho. Era a oportunidade que eu
precisava para retomar aquele estudo. Mergulhei fundo. Descobri a ergonomia da atividade,
4
a ergologia e a psicodinmica do trabalho. Descobri que h sempre uma distncia entre o
trabalho prescrito e o trabalho real, e que essa distncia s pode ser preenchida pela ao
humana, singular, situada, nica e enigmtica. Para realizar essa ao o sujeito mobiliza
corpo, mente e sensaes numa dinmica complexa, que no se realiza fora de um contexto
marcado por relaes com o mundo material e com o mundo dos homens e mulheres.
Descobri que o que eu entendia por gesto, um jargo frequentemente utilizado na
engenharia de produo, era s uma pequena parte da questo. Gesto da produo, gesto
financeira, gesto de estoques, gesto da cadeia de suprimentos e at gesto do trabalho so
disciplinas do curso de engenharia que se limitam s prescries. A gesto muito mais do
que isso. No se trata de uma atividade especfica e exclusiva dos especialistas em gesto.
Os gestores planejam e administram o uso dos recursos, definem as prescries e as
entregam para os operadores executarem. Mas o trabalho nunca pura execuo. Quando
se deparam com as lacunas entre o prescrito e o real os operadores precisam gerir. A gesto
do trabalho o prprio trabalhar, faz parte da atividade de todo operador, supe escolhas,
arbitragens e uma hierarquizao de objetivos e valores (SCHWARTZ, 1994).
Na gesto cotidiana do trabalho, ou simplesmente na atividade de trabalho, os
trabalhadores experimentam o fracasso (DEJOURS, 2012). Eles sofrem ao se dar conta que
os saberes acumulados no so suficientes para responder s demandas imprevisveis do
real. preciso reelaborar, recriar, e s possvel fazer isso pela prtica, experimentando,
errando e acertando.
Quando experimentam criar o novo os trabalhadores fazem escolhas. Eles so,
certamente, influenciados pelo contexto e as relaes que o circundam, mas sempre h um
espao para a tomada de posio. Se impossvel desvendar tudo o que est por trs dessas
tomadas de posies, isso no significa que elas so irracionais, sem lgica. Nenhuma
escolha produto do aleatrio. Elas se produzem no infinitamente pequeno, mas
manifestam valores de vida em nada insignificantes (SCHWARTZ, 2011 b). Por isso,
Schwartz (2007) diz que a atividade de trabalho um debate de normas e valores.
Ento voltamos a falar da revoluo cultural do cotidiano. Se na atividade os
trabalhadores se deparam com normas e valores enrijecidos pela histria e recriam para dar
conta do real, pela atividade eles podem realizar a revoluo cultural do cotidiano. Os
estudos da ergonomia da atividade, da ergologia e da psicodinmica do trabalho, me
5
fizeram perceber que os valores se constroem nas relaes cotidianas entre as pessoas, entre
os trabalhadores, em qualquer situao de trabalho ou de vida.
As interfaces entre o estudo da autogesto e o estudo do trabalho, pelo ponto de
vista da atividade, foram se tornando cada vez mais explcitas no decorrer do meu percurso
de formao. A percepo dessa interface e a minha vontade de ser uma engenheira
engajada, militante, se fortaleciam mutuamente. Eu queria pensar as tcnicas e os saberes
da gesto do trabalho sem descolar essa reflexo da dimenso dos valores, da luta poltica
por um mundo mais humano e solidrio.
Em paralelo a esse amadurecimento terico, aumentava vagarosamente minha
aproximao com o universo das ERTs brasileiras. Em 2010, em parceria com
pesquisadores de diversas universidades, criamos o Grupo de Pesquisa em Empresas
Recuperadas por Trabalhadores (GPERT). Juntos, pelo GPERT, realizamos uma pesquisa
nacional que buscou mapear a totalidade das ERTs no pas.
Verificamos que aquele movimento fervoroso do final dos anos 90 tinha esfriado.
Encontramos apenas 67 ERTs em funcionamento. Apesar da reduo no nmero de casos,
surpreendia a sobrevida das ERTs formadas nas dcadas passadas. Mesmo fragilizadas, elas
resistiam, encarando batalhas cotidianas para sobreviver nas brechas do sistema dominante.
O desafio no era s a sustentabilidade econmica (diante do qual a empresa capitalista
anterior sucumbiu), mas tambm a preservao dos valores da luta que uniu os
trabalhadores para recuperar as empresas, em especial o valor do trabalho.
A estrada sinuosa e cheia de percalos. As empresas recuperadas se configuram
como um projeto extremamente conflitivo. Elas manifestam uma natureza hibrida,
revelando contradies que no podem ser superadas pelo carter coletivo da propriedade
ou pela maior participao dos trabalhadores na gesto (FARIA, 2011).
Diversos estudos1 apontaram para essas contradies. Eles mostraram, por
exemplo, que nas ERTs as formas de controle do trabalho podem se alterar, numa
perspectiva de substituir o controle pela regulao. Tambm mostraram que nessas
empresas as desigualdades na distribuio dos resultados financeiros do trabalho so
reduzidas e que muitos trabalhadores envolvidos nesse processo consideram que trabalham
1 VIEITEZ e DAL RI, 2001; VALLE, 2002; IBASE/ANTEAG, 2003; TAUILLE, 2005; NOVAES, 2005,
2007 e 2011; FARIAS, 2011; HENRIQUES, 2014; HENRIQUES et. al., 2013.
6
de uma maneira diferente da que existia na empresa tradicional anterior. As mudanas na
organizao do trabalho, segundo relatos dos trabalhadores, trazem maior democracia ao
espao produtivo, permitindo maior autonomia e liberdade para os trabalhadores. Por outro
lado, essas pesquisas tambm mostraram uma tendncia de criao de uma "elite poltica e
administrativa" que, com o tempo, acumula poder e concentra decises e informaes,
desfavorecendo as conquistas no sentido da democracia. As dificuldades de insero no
mercado so comuns a muitas empresas e podem ser um elemento que pressiona para que
elas retornem s formas tradicionais de gesto do trabalho e da produo.
Algumas pistas estavam dadas. Mas eu queria me aproximar mais da atividade em
uma experincia singular de recuperao de empresa pelos trabalhadores para tentar
perceber os debates de normas e valores se manifestando no cotidiano. Uma oportunidade
foi aberta na COOPERMINAS.
Sob o comando dos trabalhadores desde 1987, a COOPERMINAS uma das
primeiras empresas recuperadas no Brasil. A formao da cooperativa foi resultado de
intensas lutas da classe trabalhadora mineira em Cricima/SC. Eu e Vicente Nepomuceno
(companheiro ao longo de toda essa jornada, desde minha chegada ao SOLTEC/UFRJ)
conhecemos a COOPERMINAS em 2011, na ocasio da realizao do mapeamento
nacional das ERTs. Nos encantamos com a experincia dessa categoria to importante na
histria do movimento operrio mundial. O universo da minerao de carvo , ao mesmo
tempo, fascinante e arrepiante.
Nossa vontade de mergulhar nesse estudo s crescia. Em 2013, convidamos o
engenheiro eltrico da mina, que tnhamos entrevistado em 2011, para um evento
organizado na UFRJ. Encontramos muitas afinidades com ele, que depois se tornou um
interlocutor privilegiado.
Em 2014, a COOPERMINAS tinha cerca de 600 trabalhadores e produzia
aproximadamente 4.000 toneladas de carvo bruto por dia, equivalendo a um faturamento
mensal da ordem de sete milhes de reais. A gente queria entender os dilemas que os
trabalhadores da empresa enfrentavam para produzir o carvo dentro dos requisitos
impostos pelo mercado, carregando, por sua histria, as marcas da luta pela autogesto.
Estudar a COOPERMINAS no contexto atual nos parece relevante para
compreender os rumos que o movimento de recuperao de empresas por trabalhadores
7
tomou nos ltimos anos. O cenrio no o mesmo das dcadas de 1990 e 2000. As
experincias hoje esto mais isoladas. A memria das lutas de uma gerao anterior vai se
apagando lentamente. Certamente o estudo desse caso no suficiente para revelar a grande
complexidade do fenmeno, no entanto, acreditamos que sua histria expressa bem
algumas dificuldades e possibilidades compartilhadas por um conjunto amplo de
experincias.
Aportes metodolgicos
Como engenheiros e pesquisadores militantes, propomos uma pesquisa-ao que
se concretizou na forma do Projeto META (Mineiros para o Estudo do Trabalho na
Autogesto). Buscamos alcanar o nvel da atividade nos inspirando na Anlise
Ergonmica do Trabalho (AET) (GUERIN et. al., 2001) e no Dispositivo Dinmico de Trs
Polos (DD3P) (SCHWARTZ, 2004) para elaborar uma metodologia de investigao e
interveno que satisfizesse ao nosso desejo de compreender-transformando a realidade. A
elaborao metodolgica foi influenciada ainda pelos estudos de Lacomblez, Teiger e
Vasconcelos, que propem a utilizao da AET combinada com a perspectiva de formao
de trabalhadores num campo que os autores definiram como Formao de atores em e
pela anlise do trabalho, para e pela ao (LACOMBLEZ, TEIGER E
VASCONCELOS, 2014).
O projeto se realizou a partir de cinco visitas Cricima, cada uma com uma
semana de durao, cada semana recheada de muitas entrevistas, conversas, reunies e
observaes na empresa, mas tambm de muitos espaos de vivncia e interao com os
trabalhadores e seus familiares fora do local de trabalho.
Seguindo os preceitos da teoria fundamentada (grounded theory) (STRAUSS e
CORBIN, 2008), deixamos emergir do campo os conceitos que nos ajudariam a analisar a
realidade estudada. Ganharam destaque ao longo da interveno a questo das
competncias dos operadores para realizar uma determinada atividade e a mobilizao dos
coletivos de trabalho que interagiam naquela situao.
Esses conceitos (coletivos e competncias) so caros s abordagens (disciplinas e
perspectivas) de estudo do trabalho em que nos apoiamos. Os principais autores da
ergonomia da atividade, da ergologia e da psicodinmica oferecem diferentes olhares sobre
8
o tema. Essa sintonia entre as possibilidades abertas pela pesquisa-ao e nossa base
terico-metodolgica permitiu formular os objetivos e as questes de pesquisa orientadoras
para essa tese.
Objetivo da tese
Analisar a gesto do trabalho pelo olhar da atividade na COOPERMINAS,
buscando compreender como os trabalhadores constroem e mobilizam competncias e
como os coletivos participam dessa gesto para dar conta da distncia entre o prescrito e o
real. Tambm buscaremos revelar os valores que esto por trs da gesto do trabalho e
refletir sobre como esses valores influenciam e so influenciados na/pela luta pela
autogesto.
Questes de pesquisa
O que restringe e o que favorece a mobilizao das competncias dos
operadores na COOPERMINAS?
O que restringe e o que favorece a dimenso coletiva da atividade na
COOPERMINAS?
Como as competncias e os coletivos influenciam e so influenciados na/pela
luta pela autogesto?
Nossa hiptese que a luta pela autogesto se manifesta em diferentes esferas e
que um olhar para a atividade ajuda a compreender os valores em disputa nas relaes
cotidianas de trabalho e de produo.
Estrutura da tese
Esta tese est estruturada em duas partes, totalizando seis captulos.
Na primeira parte apresentamos ao leitor nossas lentes de anlise, ou a
fundamentao terica para elaborao de um olhar sobre a gesto do trabalho na
COOPERMINAS.
O captulo um traz as contribuies da ergonomia da atividade, da perspectiva
ergolgica e da psicodinmica do trabalho, com especial nfase no que essas abordagens
9
oferecem a respeito do tema das competncias e dos coletivos de trabalho.
No segundo captulo introduzimos o universo da minerao de carvo, situando a
produo no cenrio nacional e global e caracterizando o ambiente e as condies de
trabalho nesse contexto. Ainda nesse captulo resgatamos algumas experincias histricas
de organizao do trabalho para a extrao do minrio, que sero teis para refletir sobre o
caso da COOPERMINAS.
Para concluir nossa fundamentao, apresentamos, no captulo trs, uma reviso
bibliogrfica sobre o tema da autogesto. Esclarecemos o que para ns representa o sentido
dessa luta, traamos um histrico dos embates entre os trabalhadores organizados e o
sistema do capital e mostramos um panorama das resistncias que recentemente resultaram
na formao das ERTs no Brasil.
Na segunda parte da tese nos debruamos sobre a experincia da
COOPERMINAS. Iniciamos apresentando, no captulo quatro, o movimento operrio em
Cricima e sua culminncia na recuperao da empresa em 1987. Ainda no quarto captulo
discorremos sobre o percurso metodolgico trilhado pelos pesquisadores que permitiu um
olhar sobre a gesto do trabalho na empresa.
No quinto captulo comeamos a mostrar os resultados do estudo. A anlise da
gesto do trabalho pelo olhar da atividade na COOPERMINAS revela sinais de ruptura e
continuidade com relao s formas anteriores de organizao do trabalho na produo de
carvo. o que pretendemos mostrar e analisar nessa primeira parte dos resultados.
No sexto capitulo, por fim, o foco da anlise a operao de um trator num
determinado posto de trabalho na empresa. Focar o olhar na operao oportunizou
aprofundar a reflexo sobre a mobilizao das competncias e dos coletivos de trabalho na
atividade nesse conflituoso terreno de luta pela autogesto.
Conclumos nossa tese respondendo s questes propostas nesta introduo e
apontando os avanos conquistados nesse percurso que permitiram dar continuidade
produo e sistematizao de conhecimentos sobre a gesto do trabalho nas ERTs no
Brasil.
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PARTE I: Lentes da anlise
!
A gente quer valer o nosso amor
A gente quer valer nosso suor
A gente quer valer o nosso humor
A gente quer do bom e do melhor...
A gente quer carinho e ateno
A gente quer calor no corao
A gente quer suar, mas de prazer
A gente quer ter muita sade
A gente quer viver a liberdade
A gente quer viver felicidade...
!
A gente no tem cara de panaca
A gente no tem jeito de babaca
A gente no est
Com a bunda exposta na janela
Pr passar a mo nela...
!
A gente quer viver pleno direito
A gente quer viver todo respeito
A gente quer viver uma nao
A gente quer ser um cidado
Gonzaguinha
11
CAPTULO 1: Gesto do trabalho pelo olhar da atividade
O trabalho sempre atravessado por uma dimenso enigmtica e uma definio
clara e precisa do que vem a ser o trabalho ser sempre um problema. Por mais difcil e
arriscada que seja essa tarefa, se queremos tratar da gesto do trabalho, no podemos nos
furtar de esclarecer o que entendemos por trabalho. Certamente no pretendemos trazer
aqui uma discusso aprofundada sobre o conceito, mas algumas consideraes iniciais.
A situao natural do ser homano no mundo requer uma relao de mediao entre
ele e a natureza, pois o mundo, tal como o homem (ou a mulher) o encontra dado, no
oferece as condies para a satisfao de suas necessidades, sendo necessrias realizaes
permanentes para ele/ela poder viver nesse mundo. Netto e Braz (2008) dizem que o
trabalho o processo pelo qual o ser humano transforma a natureza para dela extrair os
meios para satisfao de suas necessidades vitais. Marx (1982) define o trabalho como o
processo de interao do homem com a natureza que impulsiona, regula e controla seus
recursos materiais, imprimindo-lhes forma til vida humana2.
Mas o homem no est s, isolado, diante de uma natureza objetiva. Marcuse
(1998) lembra que a existncia do homem acontece em um espao configurado por outros e
em um tempo maturado por outros. O homem um ser social e histrico. Ento, para alm
da mediao entre indivduo e natureza, o trabalho tambm tem o papel de mediao entre
os homens, e entre sociedade e natureza.
No livro "O Fator Humano", Dejours (2005) elabora uma definio de trabalho
onde essa tripla mediao operada pelo/no trabalho denotada. O autor diz que o trabalho
uma atividade til e coordenada. O sentido de utilidade conecta a atividade com uma
realidade material e um contexto econmico, no qual o resultado do trabalho deve ser til
satisfao das necessidades humanas. A ideia de coordenao explicita a participao dos
outros, da sociedade, nessa mediao do homem com o mundo material e econmico.
2 Daqui por diante utilizamos muitas vezes a expresso homem como sinnimo de ser humano ou
humanidade, sem fazer distines de gnero, assim reproduzindo a linguagem (e o que est por traz dela)
androcntrica arraigada nos estudos histricos sobre o trabalho. O mesmo ocorre quando nos referimos aos
trabalhadores, quase sempre no masculino. Cientes dos limites dessa opo, no conseguimos, por ora, dar
conta de realizar as crticas feministas que se fazem necessrias a esses estudos e, lamentavelmente, seguimos
a toada androcntrica de produo do conhecimento.
12
Dejours (2005) acrescenta um elemento a essa definio recorrendo ergonomia
da atividade. A ergonomia da atividade tem o cuidado de precisar o significado do real
no/do trabalho. O real "aquilo que no mundo se faz conhecer por sua resistncia ao
domnio tcnico e ao conhecimento cientfico". O real est ligado ao fracasso, ele se faz
conhecer por tentativas de ao fracassadas. " aquilo que no mundo nos escapa e se torna,
por sua vez, um enigma a decifrar" (DEJOURS, 2005, p. 40). Portanto, enriquecendo a
definio anterior de trabalho: "o trabalho a atividade coordenada desenvolvida por
homens e mulheres para enfrentar aquilo que, em uma tarefa utilitria, no pode ser
obtido pela execuo estrita da organizao prescrita" (DEJOURS, 2005, p. 43).
Em outras palavras, trabalho o trabalhar, e trabalhar preencher a lacuna entre o
prescrito e o real. um certo modo de engajamento da personalidade para responder a uma
tarefa delimitada por presses (materiais e sociais3), oriundas das condies e da
organizao do trabalho (DEJOURS, 2004). Trabalhar inclui os gestos, os saber-fazer, o
engajamento do corpo, a mobilizao da inteligncia, o poder de sentir, de pensar, de
inventar (DEJOURS, 2012).
Nesse engajamento o trabalhador encara o sofrimento. Uma vez que o real resiste
ao conhecimento prvio, ele se apresenta ao sujeito por meio de um efeito surpresa
desagradvel, ou seja, de um modo afetivo. Trabalhar experimentar o fracasso e o
sofrimento (DEJOURS, 2004).
Quando observamos Marcuse (1998) tratar do carter penoso do trabalho, somos
remetidos ao que acabamos de dizer a partir de Dejours. Para Marcuse o trabalho existe
como pena, na medida em que subordina o fazer humano a uma lei alheia, imposta: a lei
da coisa (Sache) que preciso fazer (p. 18). Lei esta que precisa ser apreendida e
dominada pelo homem que trabalha. Segundo Netto e Braz (2008), a apreenso e o domnio
dessas leis exigem dos homens habilidades e conhecimentos que so adquiridos no
processo de trabalho por repetio e experimentao.
Assim, numa relao primordial de sofrimento no trabalho que o corpo faz,
simultaneamente, a experincia do mundo e de si mesmo. O sofrimento ao mesmo tempo
3 O real do trabalho no somente o real da tarefa. tambm a realidade do mundo social. Trabalhar
tambm fazer resistncia ao mundo social, dominao social (DEJOURS, 2004).
13
impresso subjetiva do mundo e a origem do movimento de conquista do mundo
(DEJOURS, 2004).
Trabalhar no s produzir, tambm transformar a si mesmo. O conceito de
atividade subjetivante, em Dejours (2005), denota justamente essa dimenso da
transformao do sujeito pela atividade de trabalho, sem a qual nenhuma eficcia seria
possvel. Apreender a atividade passa no s pela observao dos atos, mas tambm pela
identificao das marcas que ela deixa na transformao dos sujeitos.
Por outra via, Schwartz (2011a) diz que pelo trabalho os homens e mulheres
"envolvem seus corpos em uma atividade socialmente programada que visa a produzir os
meios materiais de suas existncias" (p. 20). O autor lembra, pertinentemente, que ele no
um parmetro do processo histrico, mas a prpria base do que faz a histria. O trabalho
uma forma especfica de algo mais geral: a atividade humana, pela qual o homem constri
sua histria, a histria da humanidade.
Ento qual seria sua especificidade em relao s demais formas de atividade
humana? Ser socialmente programado? Estar orientado para a produo dos meios
materiais necessrios a existncia humana?4 Parece insuficiente. Como vimos, apesar de
socialmente programado, ele d espao singularizao de acordo com o contexto, sendo
sempre necessria uma reprogramao, uma vez que o real nunca corresponde prescrio.
Ele se orienta para o atendimento das necessidades humanas, mas ele no se move sem os
desejos.
Nol, Revuz e Durrive (2007) situam o trabalho como um objeto por meio do qual
o homem busca um equilbrio, sempre precrio, em sua vida psquica. E como o homem
um ser de necessidades, mas tambm de desejos, o trabalho um objeto duplo.
Por um lado ele pertence realidade, ou seja, constitudo por um certo
nmero de exigncias econmicas, tcnicas, fsicas, jurdicas; possui uma
dimenso coletiva, existe enquanto objeto social. Isso uma coisa.
4 Nas situaes mercantis, que hoje subordinam (mesmo que parcialmente) quase todas as relaes de
trabalho, ele assume outra especificidade. Ele passa a ser uma atividade que se troca por dinheiro. em torno
dessa troca amplamente desigual que vo se organizar as classes sociais, os movimentos sociais, a experincia
da explorao. O trabalho passa a ser ento, o lugar do desenvolvimento das contradies entre as relaes
sociais de produo e as foras produtivas (SCHWARTZ, 2011). por isso que para superar essas
contradies preciso colocar o trabalho como centro da anlise das situaes e suas mudanas.
14
Mas, ao mesmo tempo, ele existe enquanto objeto do desejo, com esta
dimenso imaginria. Enquanto objeto do desejo, ele portador de
investimentos que podem ser perfeitamente inconscientes para a pessoa,
[...] uma espcie de funcionamento completamente enigmtico... (NOL,
REVUZ e DURRIVE, 2007, p. 229)
Os autores insistem que somente na medida em que rena os dois - necessidade e
desejo - que se torna possvel sobreviver no trabalho. Ento como planejar, programar,
um trabalho de maneira a satisfazer simultaneamente necessidades e desejos de uma
pessoa? No h resposta pronta. Dada essa face enigmtica do trabalho enquanto objeto de
desejo, no possvel antecipar o que o homem ou a mulher buscam no/pelo trabalho. As
pessoas s vo compreender o que elas buscam no trabalho quando elas encontrarem um
trabalho que lhes agrade. Ou melhor, enquanto elas estiverem encontrando isso
permanentemente.
Marcuse (1998), que definiu o trabalho orientado para a satisfao das
necessidades vitais humanas, ao discorrer mais sobre o carter de tais necessidades, se
aproxima dessa viso que contempla o desejo como um de seus objetivos. Ele diz que para
entender o carter dessas necessidades no basta a teoria que parte da compreenso do
homem apenas como ser orgnico, como vida biolgica. Assim no se distinguiriam as
necessidades humanas das necessidades animais, que se resumem a demanda de bens.
Marcuse diz que preciso consider-lo como ser histrico, que tem como necessidade vital
uma demanda jamais satisfeita: a auto-realizao continua e permanente.
Por isso o autor diz que o trabalho marcado pela continuidade e permanncia. O
trabalho continuo, pois a auto-realizao no fruto de um processo de trabalho singular,
ou de vrios deles. Ela corresponde a um contnuo estar-trabalhando. J o sentido de
permanncia deriva do entendimento de que o resultado do trabalho passa a fazer parte do
mundo e da histria, seja como um objeto, seja conferindo ao prprio trabalhador uma
posio no mundo.
Para Marcuse
a necessidade vital aponta para uma situao fatual ontolgica: ela se
funda na prpria estrutura do ser humano, que nunca pode deixar-se
acontecer imediatamente em sua plenitude, mas que permanente e
continuamente precisa se efetivar a si prpria, fazer-se a si prpria.
(MARCUSE, 1998, p.25)
15
Em sntese, o que dissemos at aqui que o trabalho uma atividade que atua na
mediao entre trs esferas: o indivduo, a natureza objetiva e a sociedade. Ele se vale de
algo que programado, planejado, prescrito tanto socialmente quanto pelo prprio
indivduo, mas essa antecipao nunca suficiente. As formas de mediao entre essas
esferas precisam ser sempre renovadas e reelaboradas para dar conta do que h de singular
e enigmtico no real. Uma permanente frustrao com a insuficincia do prescrito se revela
para o sujeito como sofrimento, mas tambm como oportunidade de um novo movimento
de conquista do mundo (nova aprendizagem, desenvolvimento). Assim o sujeito transforma
o mundo e a si mesmo no/pelo trabalho. Por fim, essa transformao orientada pelas
necessidades humanas, mas tambm pelos desejos dos indivduos, jamais plenamente
satisfeitos.
Certamente isso no foi suficiente para revelar tudo o que est por trs dessa
importante e histrica discusso sobre o que o trabalho. Mas um comeo que deve nos
permitir avanar para a compreenso da gesto do trabalho na COOPERMINAS.
Encontramos algumas abordagens de estudo do trabalho que compartilham (pelo menos em
parte) dessa viso que acabamos de apresentar. Abordagens que falam do trabalho como o
trabalhar, a partir da atividade, e no como o emprego, a relao formal (prescrita) ou
salarial.
A ergonomia da atividade, a perspectiva ergolgica e a psicodinmica do trabalho,
cada uma com sua particularidade, tm convergncias nesse sentido. Essas abordagens so
compostas por um conjunto amplo e complexo de conceitos, ou por maneiras particulares
de articular os conceitos com as prticas, que permitem um entendimento da atividade. No
nosso objetivo apresentar a vasta contribuio de cada uma dessas correntes.
Elegemos dois conceitos que consideramos fundamentais para analisar a gesto do
trabalho na COOPERMINAS e buscamos resgatar os olhares dessas abordagens sobre eles.
Procuramos compreender como os trabalhadores constroem e mobilizam competncias
para preencher as lacunas entre o prescrito e o real, e como os coletivos de trabalho
participam da atividade facilitando (ou dificultando) essa construo e mobilizao.
Acreditamos que as competncias e os coletivos so elementos essenciais para o trabalho,
para a transformao do mundo e dos sujeitos que trabalham.
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Esses dois conceitos ancoram nossa anlise da gesto do trabalho na
COOPERMINAS e por isso vamos, a seguir, resgatar o que a ergonomia da atividade, a
perspectiva ergolgica e a psicodinmica do trabalho tm a dizer sobre eles.
1.1. Trabalhar gerir: contribuies da ergonomia da atividade
O termo "ergonomia" foi usado oficialmente no final dos anos 40, quando
engenheiros, com a colaborao de fisiologistas e psiclogos, inauguravam uma forma de
cooperao multidisciplinar que visava compreender, no contexto da II Guerra Mundial,
por que equipamentos extremamente modernos no eram operados com a eficincia e
eficcia esperada (WISNER, 1994, 2004)5.
Segundo a definio mais atual da Internation Ergonomics Association (IEA)
A ergonomia (ou Human Factors) a disciplina que visa a compreenso
fundamental das interaes entre os seres humanos e os outros
componentes de um sistema, e a profisso que aplica princpios tericos,
dados e mtodos com o objetivo de otimizar o bem-estar das pessoas e o
desempenho global dos sistemas. (FALZON, 2007, p. 5)
Falzon (2007) destaca que uma especificidade da ergonomia reside em sua tenso
entre esses dois objetivos.
De um lado, um objetivo centrado nas organizaes e no seu desempenho.
Esse desempenho pode ser apreendido sob diferentes aspectos: eficincia,
produtividade, confiabilidade, qualidade, durabilidade etc. De outro, um
objetivo centrado nas pessoas, este tambm se desdobrando em diferentes
dimenses: segurana, sade, conforto, facilidade de uso, satisfao,
interesse do trabalho, prazer etc. (FALZON, 2000, p. 8)
bastante conhecida pelos resgates da histria da sade e segurana do trabalho
(BISSO, 1990), bem como pela histria da prpria ergonomia da atividade (LAVILLE,
2007), a resistncia do patronato com relao ao avano desses campos de estudo e
interveno.
5 Vidal (2001) atribui a Wojciech Jastrzebowski a primeira definio de ergonomia, em um artigo intitulado
"Ensaios de Ergonomia, ou cincia do trabalho, baseada nas leis objetivas da cincia sobre a natureza",
publicado em 1857. Como nos interessamos nessa tese particularmente pela ergonomia da atividade, adotamos a perspectiva histrica apresentada por Wisner (1994, 2004).
17
Laville (2007), ao retomar alguns problemas com os quais os ergonomistas
franceses tiveram que se deparar ao longo da construo desse campo, lembra-se de um
questionamento frequente na dcada de 70:
[...] como sair do laboratrio para conduzir esses estudos em campo? Por
um lado, a comunidade cientfica se pergunta sobre a validade dos
resultados de pesquisa, onde no se pode manipular nem controlar todas
as variveis; por outro, as direes das empresas temem que os estudos
favoream conflitos sociais. (LAVILLE, 2007, p. 29)
Simone Weil (1937, p. 114) dizia que "o que preciso para extrair o maior
nmero possvel de produtos, no necessariamente o que pode satisfazer aos homens que
trabalham na fbrica". Ela afirmava que "as necessidades da produo e as necessidades
dos produtores no coincidem forosamente". Para a autora, o desafio pensar num
mtodo de organizao do trabalho "meio-termo", que nem sacrifique demais um lado (a
produo), nem o outro (os trabalhadores).
No sentido oposto, Duc, Duraffourg e Durrive (2007, p. 73) afirmam que "opor
eficcia sade no razovel". Eles entendem que "a eficcia participa do sentido do
trabalho: trabalhar para encher lixeiras insuportvel!". Portanto, no haveria conflito
entre interesses opostos, pois no h oposio entre os interesses da produo e os dos
produtores.
A nosso ver, aqui temos que fazer um esclarecimento e uma distino. Uma parte
desse impasse pode ser explicada pelo conflito Capital X Trabalho, e se d porque estamos
nos marcos de uma sociedade e um mercado capitalistas, onde os meios de produo e os
produtos foram tirados dos produtores. Acreditamos que nesse marco, esse conflito no tem
mesmo soluo e, nesse caso, concordamos com Weil.
No entanto, esse conflito tambm pode ser caracterizado como um conflito entre
os interesses e necessidades individuais e os interesses e necessidades de um coletivo.
Mesmo considerando a possibilidade de construo de uma sociedade de homens e
mulheres livres e iguais, esse conflito no poderia ser desfeito. A contradio entre
indivduo e sociedade est para alm dos dilemas do capitalismo e prpria do ser humano
enquanto ser social. Todavia, acreditamos que nessa suposta sociedade sem classes esse
conflito assumiria outros contornos, uma vez que os resultados da produo no seriam
18
usurpados por uma classe dominante. Dessa forma, encontramos sentido na afirmao de
Duc, Duraffourg e Durrive.
Diversos outros autores (Tocqueville, Putnam entre outros) poderiam contribuir
com esse debate. A discusso sobre a possibilidade de conciliar a esfera individual com
uma instncia coletiva, comunitria ou societria remonta grandes debates no campo das
cincias sociais, polticas e humanas. Nesta tese essa questo tambm est posta, porm
ser elaborada a partir do micro da atividade, da poltica entendida como prtica cotidiana.
Para a pergunta " possvel pensar uma forma de gesto do trabalho que favorea
igualmente a sade e a eficcia?", no h resposta fcil. A ergonomia encara esse desafio e
aposta nessa possibilidade. Ns acreditamos que encarar esse desafio se engajar num
processo de transformao social. Acreditamos tambm que mais importante do que
afirmar se ou no possvel conciliar esses objetivos, assumir que eles sempre estaro em
debate e que uma soluo s ser possvel se for construda pela experimentao. Vamos
ver na experincia concreta da COOPERMINAS como esses objetivos so disputados na
atividade.
Ao longo dessa pequena introduo sobre o que a ergonomia da atividade,
falamos que ela uma disciplina cientfica, mas tambm uma prtica profissional, que
pretende atuar para a transformao das situaes de trabalho visando contribuir com o
desempenho das organizaes e com o bem estar dos trabalhadores. Nos tpicos que se
seguem vamos tratar da ergonomia da atividade como disciplina. Reservamos para o
captulo 4 desta tese a apresentao da ergonomia como uma prtica, como uma
metodologia para compreender-transformar o trabalho.
1.1.1. Uma base terica em ergonomia da atividade
Toda disciplina se define por um objeto, uma teoria e um mtodo. Para a
ergonomia da atividade, o objeto a atividade de trabalho. Ela busca resolver e tratar os
problemas das condies e da organizao do trabalho a partir da compreenso das
atividades dos trabalhadores, isto , do seu trabalhar.
Daniellou usa a imagem da trama e da urdidura para descrever a atividade de
trabalho.
19
Em suas atividades, os homens ou as mulheres, no trabalho, tecem. A
trama seriam os fios que os ligam a um processo tcnico, a propriedade da
matria, a ferramentas ou a clientes, a polticas econmicas [...], a regras
formais, ao controle de outras pessoas... No caso da urdidura, ei-la ligada
sua prpria histria, a seu corpo que aprende e envelhece; a uma
multido de experincias de trabalho e de vida; a diversos grupos sociais
que lhes ofereceram saberes, valores, regras com os quais compem dia
aps dia; aos prximos tambm, fontes de energia e de preocupaes; a
projetos, desejos, angstias, sonhos... (DANIELLOU, 2004, p. 2)
O autor diz ainda, que se o trabalho parte dessas duas origens, ele tambm
desemboca nessas duas mesmas. De um lado so elaboradas produes que pertencem
histria da humanidade. Por outro lado, o trabalho tambm produz para os indivduos novos
laos, novas experincias, transformaes do corpo, que estaro disponveis para serem
tecidos na obra de uma vida. A ergonomia6 avalia as consequncias externas e internas do
trabalho - o que ele gera para a produo, para a sociedade, para o ambiente, e o que fica
para o trabalhador em termos de aprendizado, satisfao, transformaes do corpo etc.
A teoria da ergonomia parte de trs proposies ou princpios unificadores
(ABRAHO, 2008):
variabilidade dos contextos e dos indivduos: no existe um homem mdio e a
situao de trabalho nunca igual a outra;
diferenciao entre tarefa e atividade: o qu faz e como faz o trabalhador;
regulao na atividade: o trabalhador mobiliza competncias para dar conta do
que a situao de trabalho demanda.
A partir desses princpios, nascem os principais conceitos em ergonomia da
atividade.
Trabalho prescrito e Trabalho real
Tarefa e Atividade
Variabilidade e Regulao
O trabalho prescrito remete aos resultados a serem obtidos (em termos de
produtividade, qualidade, prazo), a partir da aplicao de mtodos e procedimentos
previstos, dentro de condies previamente determinadas. Ele inclui as ordens emitidas pela
6 A partir daqui sempre que usarmos a expresso "ergonomia" estamos nos referindo ergonomia da
atividade.
20
hierarquia e as instru es de trabalho, os protocolos, as normas tcnicas e de segurana, os
meios tcnicos colocados disposio, a forma de diviso do trabalho e as condi es
temporais e socioeconmicas (qualificao, salrio) pr-estabelecidas.
No mbito do trabalho prescrito, se define a tarefa - o que se espera do
trabalhador, o que deve ser feito, a ao que foi planejada para ele realizar, em funo da
qual ele foi treinado e ser provavelmente avaliado.
O trabalho real, no entanto, nunca corresponde ao que foi prescrito. O trabalho real
determinado pelas caractersticas dos trabalhadores, pelas regras de funcionamento da
organizao e pelo contexto da ao. No contexto da ao, as condies reais nunca sero
iguais s previamente determinadas. Isso porque as condies de produo, assim como as
condies fsicas e psquicas dos trabalhadores, nunca so perfeitamente estveis.
No possvel controlar ou prever todos os fatores intervenientes na produo. No
contexto da ao, a nica certeza a variabilidade. As variabilidades podem ser
relacionadas com os aspectos da produo, como matrias-primas com qualidades
diferentes, variaes de temperatura do ambiente de trabalho, estado geral das ferramentas
e equipamentos, incidentes que ocorrem em um dispositivo tcnico etc. As variabilidades
podem estar relacionadas tambm aos trabalhadores. No existe populao padro, normal,
mdia. Um trabalhador no igual ao outro. Eles se diferenciam pelas suas caractersticas
fsicas, culturais e socioeconmicas. O mesmo trabalhador tambm nunca igual. Um dia
ele est mais cansado ou mais disposto, mais alegre ou mais abatido, mais rpido ou mais
lento etc. O funcionamento do homem no pode ser reduzido a um modelo. O homem
vivo, est perpetuamente em desenvolvimento, em transformao. As variabilidades podem
ser ainda organizacionais, como acontece quando um trabalhador falta e no substitui o
outro no turno seguinte, quando os tempos planejados no conseguem ser realizados,
quando a qualificao esperada para a realizao de uma funo no garantida etc.
Guerin et. al. (1991, p. 23) diziam: J que as variabilidades persistem,
importante conhec-las, tentar prev-las e considerar sempre a possibilidade de que novas
venham a existir. Se os meios de que dispomos para trabalhar e a maneira como eles
funcionam esto longe de ser estveis, Wisner (1994) adverte que o controle das variaes
de funcionamento do sistema tcnico constitui o essencial do trabalho.
21
Diante das variabilidades, a tarefa no suficiente. O trabalhador nunca poder ser
um mero executante. Se pelo trabalho prescrito possvel definir a tarefa, pelo trabalho real
pode-se definir a atividade. A atividade a mobilizao efetiva do trabalhador. o
resultado do acoplamento entre o sujeito e a situao de trabalho. o que a tarefa e a
situao convocam e exigem do trabalhador para que ele alcance os objetivos estabelecidos.
A atividade a gesto das variabilidades. Trabalhar gerir o imprevisto e elaborar o novo,
as novas formas de pensar e agir.
A atividade no apenas o comportamento. A atividade, para a ergonomia, indica
o que se faz e o que se deixa de fazer. O comportamento uma face da atividade, sua parte
observvel, manifesta. A atividade inclui ainda o inobservvel, o que se pensa, o que se
julga, o que se hesita no momento da ao. Para os ergonomistas importa compreender a
interao entre percepo, cognio e ao.
Duas correntes da ergonomia da atividade interpretam de maneira diferente essa
interao. Para os cognitivistas, a mente determina a ao do corpo. De acordo com essa
corrente, o sujeito age guiado por suas representaes do mundo contidas em seus mapas
cognitivos. O trabalhador elabora um modelo mental a partir da seleo, captao e
interpretao das informaes disponveis para compreender a situao. A partir dessa
representao, ele define um conjunto ordenado de passos, chamado de estratgias
operatrias, que envolvem o raciocnio e a resoluo de problemas, possibilitando a tomada
de deciso e a ao (ABRAHO et. al., 2009). As representaes do mundo, na forma de
ideias, conceitos e imagens, comandam as aes do corpo. O sucesso da ao depende da
representao dos aspectos relevantes da situao. Por essa perspectiva, a regulao se
opera na mente, que comanda a ao do corpo, como instncias separadas e hierarquizadas.
Se contrapondo a essa corrente, a perspectiva da ao situada (THEUREAU,
2014) redefine a relao entre a representao e a ao7. Ela substituiu a ideia de uma
representao para a ao, pela ideia de uma representao na ao. Antipoff (2014) diz que
a distino entre as duas abordagens no a presena ou ausncia de representao, mas
sim o lugar ocupado por ela. Seguindo essa abordagem, a autora afirma que as
7 Para apresentar essa abordagem Antipoff (2014) tambm se referencia em Lave (1988) e Suchman (1987)
respectivamente Cognition in practice e Plans and situated actions: the problem of human/machine
communication.
22
representaes emergem na ao de maneira irrefletida. Elas esto incorporadas na ao.
Portanto, a representao no antecede ou determina a ao, mas parte dela, como um
recurso a mais. Dessa forma, a regulao no se restringe a uma operao mental, passando
pelo corpo todo, que inclui a mente (a cognio), mas tambm as sensaes (percepo).
A regulao na atividade permite o desenvolvimento de uma ao eficaz e
compatvel com a sade do trabalhador, respondendo s variabilidades da produo, sem
deixar de considerar as variabilidades internas de quem trabalha. O resultado disso uma
atividade que tem componentes imprevisveis, enigmticos, singulares e contextualizados.
A ideia de regulao est intimamente relacionada com os dois conceitos centrais
dessa tese: competncias e coletivos de trabalho. So as competncias dos trabalhadores e a
cooperao dos coletivos que permitem a regulao na atividade.
1.1.2. A questo das competncias para a ergonomia da atividade
Compreender a atividade passa por compreender o que o trabalhador mobiliza para
realiz-la. A identificao das competncias ajuda a desvelar o enigma da ao humana. A
ns no interessa uma anlise de aptides e capacidades descoladas do contexto. Buscamos
estudar as competncias no contexto da situao de trabalho concreta.
A ideia de competncia est ligada s possibilidades de ao. Ela operacionaliza
conhecimentos e habilidades do trabalhador que se concretizam no seu fazer. na ao que
se constitui a competncia (ABRAHO et. al., 2009).
Weil-Fassina e Pastr (2007) partiram da perspectiva cognitivista para tentar
explicar a organizao da atividade na situao real de trabalho. Assim os autores
apresentaram a ideia de que as competncias fundamentam a representao para a ao e a
construo das estratgias operatrias para enfrent-las. A competncia seria ento a
capacidade de elaborar representaes mentais que espelhem a situao de maneira mais ou
menos verdadeira e planejar estratgias operatrias adequadas para a situao conforme
interpretada. De acordo com essa abordagem, essa a base para a regulao na atividade.
Pela perspectiva da ao situada, no entanto, vimos que a regulao no se
restringe a uma operao mental e que a ao no resultado somente da representao.
Portanto, o agir em competncia no depende somente da capacidade de elaborar
23
representaes adequadas para a ao. A ao inteligente tambm passa pela articulao de
um conjunto da saberes incorporados, demandando mais do que capacidades cognitivas.
Antipoff (2014), baseando-se na perspectiva da ao situada de Suchman, ressalta
que a inteligncia est na ao e na capacidade de usar o corpo em situao e em tempo
real. A efetividade dos planos e procedimentos previamente elaborados depende do
engajamento corporal do sujeito no momento aqui e agora, ou seja, a inteligncia da ao
depende da disposio corporal, perceptual e gestual em situao, para mobilizar
representaes pertinentes no momento presente. Esse engajamento o ponto crucial da
competncia. A autora afirma que o papel das previses e antecipaes passa a ser o de
criar condies para o corpo usar suas habilidades incorporadas da melhor forma
possvel, dependendo dessas habilidades o sucesso da ao (p. 24).
Mas uma teoria no nega a outra. A nosso ver, elas se complementam. Ento
vamos por partes. Primeiro tentando resgatar as contribuies da abordagem cognitivista,
para depois trazer as ponderaes da perspectiva da ao situada.
A ao dotada de saberes que muitas vezes so implcitos e no conscientes,
emergindo em situao. o que Vergnaud (2003) chamou de conhecimentos em ato. Piaget
j havia mostrado que muitas vezes o sucesso da ao precede a sua compreenso. Na
origem de numerosas competncias, os trabalhadores sabem fazer, sem realmente
compreender o que eles fazem. Weil-Fassina e Pastr explicam sinteticamente essa ideia de
Piaget:
H duas etapas na coordenao da ao: a coordenao prtica da ao,
em que a ao conseguida sem ser compreendida; e a coordenao
conceitual, em que a compreenso da ao acaba alcanando seu sucesso,
constituindo assim um progresso decisivo na organizao da ao.
(WEIL-FASSINA e PASTR, 2007, p. 178)
Para Piaget (1978) a distncia entre fazer algo e compreender o realizado
explicada pela ausncia da reflexo sobre as representaes. Na coordenao prtica
prevalece o que ele chama de representao de primeira ordem, que apenas reflete a
realidade sem elabor-la, signific-la, conscientemente. O autor diz que preciso um
retorno reflexivo sobre a ao aps a sua realizao para reconstituir as operaes (mentais
e corporais) realizadas e ai sim produzir uma explicao para ao (sua compreenso). Essa
reflexo sobre a ao no estava presente no momento da ao. Ela uma representao de
24
segunda ordem, posterior ao, que pode levar o sujeito a tomar conscincia dos
processos engendrados na ao, permitindo a transformao da ao em operaes mentais
generalizveis, que acumuladas estaro disponveis para serem utilizadas em situaes
futuras.
a representao aps a ao que leva coordenao conceitual. Mas vale
lembrar que nem sempre essa representao acontece e que mesmo ocorrendo ela ser
sempre parcial. Afinal, a experincia do corpo nunca pode ser inteiramente reproduzida
pelos smbolos. Wisner (2004) resgata a fala de um operador da Central Nuclear de Three
Mille Island, que disse:
a razo da eventual perda de pacincia dos operadores quando explicam
para um engenheiro o que se passou durante um 'transitrio' (incidente)
que ele est decepcionado por no poder descrever as centenas de
pensamentos, de decises e de aes que se produziram durante o
'transitrio', pois no h um gravador para tanto [...] (FREDERICK, 1988,
apud WISNER, 2004, p. 45)
A coordenao conceitual, de acordo com Weil-Fassina e Pastr (2007), resulta na
aquisio de modelos cognitivos e modelos operativos, que so produzidos pelo acmulo
de operaes mentais elaboradas a partir da reflexo sobre a prtica. Os modelos cognitivos
so um conjunto de conhecimentos cientficos e tcnicos que permitem a compreenso do
funcionamento de um dispositivo ou sistema tcnico. J os modelos operativos, ou regras
de ao, esto orientados para a operao. Para os autores, importa menos saber como o
dispositivo tcnico funciona (regras declarativas, lgica de funcionamento), e mais saber
como oper-lo para chegar ao resultado esperado (regras operativas, lgica operatria). A
abordagem cognitivista sugere que o domnio dos modelos operativos decisivo para o
sucesso da ao.
Pela perspectiva da ao situada, no entanto, esses modelos no so suficientes
para fornecer aos operadores todos os elementos necessrios para ao. As regras de ao
so muitas, muito diversas, indeterminadas e por vezes at contraditrias. Somente um
diagnstico do estado presente do sistema e de sua evoluo, o que depende do
engajamento corporal na situao dinmica, far emergir as regras pertinentes quela
situao singular.
25
Pastr (2011, apud Antipoff 2014) diz que preciso um julgamento pragmtico,
que equivale a uma meta-regra, para embasar as regras de ao em dado momento. Mas no
se trata de fornecer mais regras para orientar o uso das j existentes, pois isso levaria
regresso ao infinito. Nenhum esquema de representaes pode prever de antemo o que
ser demandado no curso da ao. Sempre haver um abismo entre a regra e sua aplicao,
ou entre representao e ao.
Saber como agir em cada situao particular exige exerccio, prtica,
percepo situada, julgamentos tcitos e sociais, no sendo as
representaes suficientes, j que estas no contm as regras de sua
aplicao. E a aplicao, o uso, o saber como agir em cada situao que
definem uma prtica competente e, no, um corpus ou um esquema
desprendido do tempo e do espao, como um conjunto de procedimentos e
normas a serem seguidas. (ANTIPOFF, 2014, p. 62)
A prtica no se resume aplicao de teorias. A primeira situada no tempo e no
espao, enquanto a segunda universal e atemporal. Antipoff (2014), partindo de Theureau,
Ingold, Collins e Winch8, afirma que os julgamentos tcitos corporais e sociais necessrios
para o uso das regras dependem do engajamento do sujeito numa forma de vida (e de
trabalho) compartilhada com outros e tambm da educao do corpo, da percepo, dos
gestos, adquiridos pela prtica em situao.
O ponto-chave e decisivo para o agir em competncia ento o acoplamento entre
o sujeito e a situao real de trabalho. Esse acoplamento, segundo Theureau (2014),
constitutivo de toda forma de conhecer e intervir sobre o mundo, uma vez que o sujeito a
sua relao com o meio, no podendo se separar dele. E toda forma de conhecer e intervir
no se resume a processos cognitivos, demandando a mobilizao dinmica de percepo,
cognio e ao no momento nico e singular de cada atividade.
8 THEUREAU, J. Le cours d'action: Mthode lmentaire. Toulouse: Octars, 2004; WINCH, P. A ideia de
uma cincia social e sua relao com a Filosofia. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970; INGOLD,
T. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000;
COLLINS, H. M. Experts artificiels. Paris: ditions du Seuil, 1992.
26
1.1.3. Os coletivos de trabalho para a ergonomia da atividade
A ideia de coletivos de trabalho, como dissemos anteriormente, nos parece
fundamental para a ergonomia da atividade. Sua importncia emerge dos estudos sobre a
atividade de regulao, que revelaram que essa instncia decisiva para o sucesso da ao.
Apesar disso, a preocupao de definir esse conceito surgiu tardiamente entre os
ergonomistas. Em 1996, Milton Athayde alertou:
Tem sido atravs da investigao acerca das modalidades de comunicao
que a Ergonomia aproximou-se da dimenso coletiva de trabalho. [...] se
quisermos avanar na dmarche ergonmica da dimenso coletiva da
atividade de trabalho, parece mais fecundo partir da constatao de
fragilidade terica e metodolgica com relao a esta dimenso (logo,
com relao ao entendimento mesmo da vida no trabalho). consensual o
fato de que a Ergonomia, tem se dedicado essencialmente ao estudo dos
aspectos individuais do trabalho (LEPLAT, 1992). (p. 61/62)9
Apesar do alerta, pertinente, Athayde (1996) conseguiu pinar entre os estudos
da ergonomia desenvolvidos at ento, apontamentos que, mesmo sem definir um conceito
de coletivos de trabalho, representavam avanos na compreenso dessa dimenso. Outros
autores se somaram a esse esforo de sistematizar um olhar da ergonomia para a dimenso
coletiva, permitindo alcanar um patamar onde hoje dificilmente um estudo em ergonomia
da atividade deixa de contemplar essa questo.
Trazemos a seguir um conjunto de ideias sobre o tema, agrupadas em trs tpicos:
uma definio de coletivos de trabalho, requisitos para a atividade coletiva e resultados da
atividade coletiva.
a) Uma definio de coletivos de trabalho
Todos ns pertencemos a vrios grupos sociais, de diferentes dimenses e formas
de relao. A famlia um grupo, a comunidade do prdio, da rua, do bairro ou da cidade
pode ser outro, as pessoas que frequentam um mesmo clube, frequentam ou frequentaram a
9 Quando diz que "tem sido atravs da investigao acerca das modalidades de comunicao que a
Ergonomia aproximou-se da dimenso coletiva de trabalho" o autor est fazendo referncia a uma srie de
estudos (Daniellou, 1986; Chabaud, 1987; Leplat, 1991, entre outros) fortemente influenciados pela
perspectiva cognitivista, que, apesar de relevantes, no sero priorizados nessa tese. Tampouco nos ateremos
aos aspectos da comunicao que so tratados pelos estudos da lingustica, sem tambm deixar de reconhecer
sua importante contribuio para o estudo do trabalho.
27
mesma escola, participam de uma associao cultural ou poltica etc. Chamamos de
coletivos de trabalho um grupo de pessoas que trabalham juntas para realizao de uma
tarefa ou para alcance de um objetivo comum10
(DANIELLOU et. al., 2010).
Um coletivo no uma soma de pessoas, mas sim um conjugado. Ele carrega os
benefcios do efeito da sinergia. Ou seja, o todo irredutvel soma das partes. Montmollin
(1997) diz que o coletivo ultrapassa o interindividual. Num coletivo possvel integrar as
diferenas e articular os talentos especficos.
Daniellou et. al. (2010) dizem que os coletivos podem ter formas muito variadas:
Seus membros podem ou no se encontrar no mesmo lugar;
Eles podem ter ou no as mesmas funes;
Eles podem compartilhar as mesmas tarefas imediatas ou somente objetivos
de mdio prazo.
Assim como participamos de vrios grupos sociais, podemos tambm integrar
mais de um coletivo de trabalho. O setor de produo de uma empresa um coletivo amplo
que compartilha um objetivo de mdio prazo. Uma equipe de um turno um coletivo mais
restrito. Mais restrito ainda pode ser o coletivo formado pelos operadores de um
determinado posto de trabalho. Ou ainda, uma dupla de operador e ajudante de operao.
Podem se formar coletivos para realizao de uma tarefa especfica, como um
grupo de projeto ou uma fora-tarefa para limpar e organizar um galpo, assim como
podem existir coletivos mais permanentes.
Figueiredo e Athayde (2004), ancorados em Dejours, dizem que a cooperao o
que funda o coletivo (veremos mais sobre as contribuies de Dejours no tpico 1.3). Pela
atividade coletiva, os trabalhadores cooperam tendo como resultado da cooperao a
coordenao coletiva do trabalho e o alcance dos objetivos partilhados. Vejamos adiante
alguns requisitos para a atividade coletiva
10 Diferente dos coletivos de trabalho, so os coletivos de ofcio: pessoas que tm o mesmo ofcio, sem
necessariamente trabalharem juntas. No vamos tratar dessa forma de coletivo aqui.
28
b) Requisitos para a atividade coletiva
Uma condio inicial para o bom funcionamento de qualquer atividade coletiva
que cada um que dela participa tenha uma compreenso suficiente do trabalho dos outros.
preciso conhecer a organizao geral do trabalho dos colegas, as diferentes fases da sua
ao e os constrangimentos aos quais se submetem (GURIN et. al., 2001).
Uma segunda condio, inteiramente em harmonia com a primeira, a
comunicao entre os membros do coletivo. A comunicao, para alm de um requisito,
tambm um indicador da atividade coletiva. A comunicao pode se revelar por palavras,
mas tambm por gestos, relatrios, bilhetes; ou ainda pela postura, pelo posicionamento
com relao s instalaes, pelos rudos etc. (GURIN et. al., 2001).
A terceira condio remete ao que Terssac e Chabaud (1990, apud ATHAYDE,
1996) chamaram de um "referencial [operativo] comum" que se constri entre os
trabalhadores de uma equipe. Os autores falavam de uma "dependncia cognitiva" para
designar a permeabilidade de saberes no seio de uma equipe, que daria origem a esse
referencial comum. No entanto, indo alm da abordagem cognitivista, acreditamos que essa
dependncia pode ser algo mais do que cognitiva, atravessando a esfera do corpo e das
sensaes. Daniellou et. al. (2010) dizem que os grupos so portadores de um patrimnio
coletivo que influencia na conduta dos seus membros: "At mesmo a percepo
influenciada pelo pertencimento a um grupo: este portador de uma sensibilidade
particular para certas informaes e de classes de interpretaes j prontas" (p. 51).
A quarta condio para a atividade coletiva que consideramos aqui tem a ver com
os objetivos mltiplos que concorrem na atividade. Dissemos que o coletivo de trabalho
um grupo de pessoas que trabalham juntas para o alcance de um objetivo comum.
Entretanto, preciso alertar que, para alm desses objetivos comuns, cada sujeito que se
coloca na atividade carrega outros objetivos prprios.
Montmollin (1997) ressalta que dificilmente possvel determinar a priori todos
os objetivos projetados na/pela atividade. Ao se colocar em ao, o trabalhador redefine a
tarefa prescrita, incluindo nela objetivos pessoais e sociais: sua carreira, sua sade fsica e
29
mental, sua integrao no grupo, a construo da sua identidade (SILVA, 2006)11
. A
situao de trabalho tambm alimenta a tarefa inicialmente prescrita de novos objetivos,
necessrios para dar conta de constrangimentos que se apresentam a cada momento. Esses
objetivos mltiplos podem ser complementares e facilmente conciliveis, como podem ser
contraditrios e difceis de conciliar12
.
Os objetivos so orientados por diferentes lgicas que coexistem em qualquer
organizao: a qualidade, o custo, o prazo, a sade e segurana etc.; alm das lgicas
internas e valores prprios dos sujeitos da ao. A atividade pode ser expressa como o
dilogo entre essas diferentes lgicas, que leva a uma gesto