FGV - Atividades e Atos Administrativos

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Zohar - Arnaldo Niskier

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  • GRADUAO 2015.2

    ATIVIDADES E ATOS ADMINISTRATIVOS

    AUTORES: PATRCIA REGINA PINHEIRO SAMPAIO E SRGIO GUERRACOLABORADOR: BERNARDO BARBOSA

  • SumrioAtividades e Atos Administrativos

    INTRODUO ..................................................................................................................................................... 3

    UNIDADE 1: PRINCPIOS DA ADMINISTRAO PBLICA .............................................................................................. 10Aula 1 .......................................................................................................................................... 11Aula 2 .......................................................................................................................................... 17Aula 3 .......................................................................................................................................... 27Aula 4 .......................................................................................................................................... 33Aula 5 .......................................................................................................................................... 41Aula 6 .......................................................................................................................................... 47

    UNIDADE II ADMINISTRAO PBLICA DIRETA E INDIRETA. TERCEIRO SETOR. ............................................................. 55Aula 7: ......................................................................................................................................... 56Aulas 8 e 9 ................................................................................................................................... 62

    UNIDADE III ATOS ADMINISTRATIVOS ................................................................................................................ 72Aulas 10 e 11 ............................................................................................................................... 73

    UNIDADE IV PODER DE POLCIA ........................................................................................................................ 79Aula 12 ........................................................................................................................................ 80Aula 13: ....................................................................................................................................... 84

    UNIDADE V: LICITAES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS .......................................................................................... 88Aula 14: Princpios da licitao .................................................................................................... 89Aula 15 ........................................................................................................................................ 95Aula 16 ...................................................................................................................................... 103Aula 17 ...................................................................................................................................... 108Aulas 18 e 19 ............................................................................................................................. 116

    UNIDADE VI: BENS PBLICOS ............................................................................................................................. 128Aula 19 ...................................................................................................................................... 129Aula 20 ...................................................................................................................................... 134

    UNIDADE VII: INTERVENO DO ESTADO SOBRE A PROPRIEDADE PRIVADA ................................................................... 138Aulas 21 e 22 ............................................................................................................................. 139Aula 23 ...................................................................................................................................... 148Aula 24 ...................................................................................................................................... 152

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    INTRODUO

    A. OBJETO GERAL DA DISCIPLINA

    O objetivo do curso Atividades e Atos Administrativos consiste em apre-sentar uma viso abrangente de alguns dos principais temas afetos atividade da Administrao Pblica, com nfase em uma abordagem principiolgica e crtica dos principais institutos de direito administrativo.

    B. FINALIDADES DO PROCESSO ENSINO-APRENDIZADO

    No curso Atividades e Atos Administrativos, a cada encontro sero discu-tidos um ou mais casos geradores, que so construdos, na maioria das vezes, a partir de situaes que foram objeto de deciso pelo Superior Tribunal de Justia ou pelo Supremo Tribunal Federal, a fim de acostumar o aluno com questes discutidas no dia a dia forense e despertar o seu senso crtico relati-vamente s posies adotadas pelos Tribunais.

    A finalidade do processo de ensino-aprendizado deste curso consiste em expor a problematizao das questes enfrentadas pelos administradores p-blicos e pelos administrados, com nfase na pluralidade de correntes sobre os temas abordados e anlise da jurisprudncia.

    C. MTODO PARTICIPATIVO

    A metodologia do curso eminentemente participativa, requerendo pre-paro prvio para as aulas, mediante a leitura das indicaes bibliogrficas obrigatrias, dos casos geradores e, sempre que possvel, das leituras com-plementares. Tambm sero produtivas as iniciativas dos alunos que trouxe-rem assuntos ligados aos temas tratados e estejam nas pautas dos principais veculos da imprensa.

    Alm da bibliografia obrigatria informada nesta apostila, o professor po-der indicar textos adicionais, ao longo do semestre, como leituras obrigat-rias ou complementares.

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    D. DESAFIOS E DIFICULDADES COM VISTAS SUPERAO E AO DESEN-VOLVIMENTO PLENO

    O curso exigir do aluno uma viso reflexiva do direito administrativo e a capacidade de relacionar a teoria exposta na bibliografia e na sala de aula com outras disciplinas, especialmente com o direito constitucional. O desa-fio reside em construir uma viso contempornea do direito administrativo, centrada na proteo da dignidade da pessoa humana e no respeito aos direi-tos dos cidados, buscando sempre cotejar o contedo da disciplina com a realidade do Pas.

    E. CRITRIOS DE AVALIAO

    A avaliao ser composta por duas provas de igual peso e, eventualmen-te, da prova final. Ao longo do semestre poder ser proposta a realizao de trabalhos que, nessa hiptese, comporo parte da nota de uma das provas.

    F. ATIVIDADES PREVISTAS

    O curso possui um blog que pode ser acessado em http://direitoadminis-trativofgvrio.wordpress.com/blog/. Os alunos so estimulados a contribuir para as discusses do blog ao longo do semestre.

    CONTEDO DA DISCIPLINA

    O curso inicia-se com uma discusso acerca das mutaes observadas na relao poder pblico-cidado ao longo do tempo e, consequentemente, no contedo do princpio da supremacia do interesse pblico. Em seguida, so apresentados os princpios constitucionais que regem a Administrao Pbli-ca, problematizando o seu contedo e a sua abrangncia.

    A segunda Unidade destinada conformao da Administrao Pblica. Apresenta-se a distino entre Administrao direta e indireta, bem como se abordam as principais caractersticas das entidades que compem essa ltima (autarquias, fundaes pblicas, empresas pblicas, sociedades de economia mista). Comentam-se tambm brevemente os regimes jurdicos das entidades privadas que, sem integrar a Administrao Pblica, com ela colaboram na persecuo do interesse pblico.

    Passa-se, ento, atividade administrativa, discutindo-se os principais te-mas atinentes ao ato administrativo e ao poder de polcia.

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    Procede-se, na sequncia, ao estudo da disciplina jurdica das licitaes pblicas e dos contratos administrativos.

    Em seguida, o curso aborda os bens pblicos e a interveno do Estado sobre a propriedade privada, atravs de institutos como desapropriao, ser-vido administrativa,

    Em sntese, o curso ser composto pelas seguintes unidades:

    Unidade I: princpios da Administrao Pblica Unidade II: Administrao Pblica direta e indireta. Terceiro setor Unidade III: ato administrativo Unidade IV: poder de polcia Unidade V: licitaes e contratos administrativos Unidade VI: bens pblicos Unidade VII: interveno do Estado sobre a propriedade privada

    PLANO DE ENSINO

    Apresentamos abaixo quadro que sintetiza o Plano de Ensino da discipli-na, contendo a ementa do curso, sua diviso por unidades e os objetivos de aprendizado almejados com a matria.

    DISCIPLINA

    Atividades e atos administrativos

    PROFESSOR

    Patrcia Regina Pinheiro Sampaio

    NATUREZA DA DISCIPLINA:

    Obrigatria

    CDIGO:

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    CARGA HORRIA

    60 horas

    EMENTA

    Princpios da Administrao Pblica. Administrao Pblica Direta e Indireta. Terceiro Setor. Ato administrativo. Poder de polcia. Licitaes e contratos administrativos. Bens pblicos. Interveno do Estado sobre a pro-priedade privada.

    OBJETIVO(S)

    O objetivo do curso Atividades e atos administrativos consiste em apresentar uma viso abrangente de alguns dos principais temas afetos atividade da Ad-ministrao Pblica, com nfase em uma abordagem principiolgica e crtica.

    METODOLOGIA

    A metodologia de ensino participativa, com nfase em estudos de casos. Para esse fim, a leitura prvia obrigatria, por parte dos alunos, mostra-se fundamental.

    PROGRAMA

    Unidade I: Princpios da Administrao Pblica.

    Apresentao dos princpios constitucionais que informam a atuao da Administrao Pblica

    Problematizao do contedo do princpio da legalidade aplicado Administrao Pblica

    Discusso da distino entre atos vinculados e discricionrios, espe-cialmente em funo da possibilidade de sua reviso pelo Poder Judicirio. Discusso acerca dos conceitos jurdicos indeterminados

    Estudo de casos envolvendo aplicao dos princpios da moralidade, impessoalidade, publicidade, eficincia, motivao, finalidade, proporciona-lidade e razoabilidade

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    Unidade II: Administrao Pblica Direta e Indireta. Terceiro Setor.

    Apresentao de como se estrutura a Administrao Pblica, com a diferenciao entre rgos e entidades administrativas

    Apresentao das caractersticas das autarquias, fundaes pblicas, empresas pblicas e sociedades de economia mista

    Problematizao do regime jurdico das estatais luz da jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal

    Apresentao dos institutos que compem o Terceiro Setor, com nfase no regime jurdico das OSCIPs e OS.

    Unidade III: Ato administrativo.

    Apresentao das caractersticas e atributos do ato administrativo Anlise das hipteses de extino do ato administrativo Distino entre revogao e anulao do ato administrativo

    Unidade IV: Poder de polcia.

    Discusso acerca do contedo do instituto, em uma viso contempo-rnea

    O ciclo de polcia: ordem, consentimento, fiscalizao e sano Anlise dos limites ao exerccio do poder de polcia Discusso acerca das diferenas entre licenas e autorizaes

    Unidade V: Licitaes e contratos administrativos.

    Apresentao dos princpios da licitao Anlise das ocasies em que no ocorre licitao: dispensa e inexigibi-

    lidade Diferenciao das modalidades e tipos de licitao de acordo com a Lei

    8.666/93 Apresentao das modificaes introduzidas no ordenamento jurdico

    com a Lei do Prego (Lei 10.520/02) Discusso das inovaes trazidas pelo Regime Diferenciado de Contra-

    taes Pblicas RDC

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    Unidade VI: Bens pblicos.

    Apresentao das caractersticas dos bens pblicos Anlise das hipteses de uso privativo de bem pblico por particular:

    autorizao, permisso, concesso de uso de bem pblico, concesso real de uso, concesso especial de uso para fins de moradia

    Unidade VII: Interveno do Estado sobre a propriedade privada.

    Discusso das hipteses em que o poder pblico pode manejar o ins-tituto da desapropriao. Requisitos constitucionais para a desapropriao vlida. Espcies de desapropriao.

    A desapropriao por utilidade pblica e a desapropriao por interesse social: hipteses de cabimento e principais caractersticas.

    Casos de tombamento: compulsrio e voluntrio. Anlise das conse-qncias do tombamento.

    Breve apresentao dos institutos da Requisio e da Ocupao Tem-porria.

    CRITRIOS DE AVALIAO

    A avaliao ser composta por duas provas, sendo uma no meio e outra ao final do semestre. Eventualmente, as provas podero ser conjugadas com trabalhos, aos quais poder ser atribuda pontuao parcial sobre a nota da prova.

    BIBLIOGRAFIA OBRIGATRIA

    ARAGO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. Rio de Ja-neiro: Forense, 2012.

    CARVALHO FILHO, Jos dos Santos. Manual de direito administrativo. So Paulo: Atlas, 2012.

    JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: F-rum, 2010.

    MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

    ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Curso de direito administrativo. So Paulo: Atlas, 2010.

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    BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

    BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Re-novar, 2006.

    GUERRA, Sergio. Discricionariedade e reflexividade. Belo Horizonte, Frum, 2009.

    JUSTEN FILHO, Maral. Comentrios lei de licitaes e contratos adminis-trativos. So Paulo: Dialtica, 2010.

    ____________. Prego: comentrios legislao do prego comum e eletr-nico. So Paulo: Dialtica, 2009.

    MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens pblicos: funo social e ex-plorao econmica: o regime jurdico das utilidades pblicas. Belo Ho-rizonte: Frum, 2009.

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    1 CAVALCANTI, Themstocles Brando. Curso de Direito Administrativo. 7.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1954.

    UNIDADE 1: PRINCPIOS DA ADMINISTRAO PBLICA

    OBJETIVO:

    H que se considerar no Direito Administrativo um conjunto de condies que envolvem apenas a estrutura burocrtica do Governo e que integram a organizao administrativa necessria para manter o funcionamento dos servios essenciais do Estado e superintender ou controlar o funcionamento daqueles sujeitos iniciativa privada ou criados com autonomia.1

    No. Este no mais o objeto do Direito Administrativo vivenciado na denominada ps-modernidade.

    O direito administrativo atual deve observar as normas principiolgicas e o novo rol de temas que permeia a sociedade de riscos, notadamente a elo-quente tecnicidade que impe uma anlise sistmica do campo jurdico para se alcanar a justia.

    O objetivo desta Unidade consiste em debater, em profundidade, os prin-cpios que regem a atuao da Administrao Pblica na ps-modernidade, tendo em vista a sua importncia como guia interpretativo de toda a discipli-na do Direito Administrativo constitucionalizado ou legalizado.

    1. CAVALCANTI, Themstocles Brando. Curso de Direito Administrativo. 7.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1954.

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    2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21 ed. So Paulo: Atlas, 2008, p. 64.

    AULA 1

    I. TEMA

    O princpio da supremacia do interesse pblico e sua releitura na ps-modernidade

    II. ASSUNTO

    Anlise das correntes doutrinrias que discutem o significado e a utilidade do princpio da supremacia do interesse pblico.

    III. OBJETIVOS ESPECFICOS

    O objetivo desta primeira aula consiste em apresentar um breve panorama histrico do desenvolvimento do direito administrativo em geral e, em espe-cial, do princpio da supremacia do interesse pblico, buscando demonstrar a necessidade de sua releitura na ps-modernidade, a partir de um ordena-mento jurdico centrado na proteo da dignidade da pessoa humana e na promoo dos direitos fundamentais.

    IV. DESENVOLVIMENTO METODOLGICO

    clssica a lio doutrinria segundo a qual o direito administrativo regido pelo princpio da supremacia do interesse pblico (sobre o privado). Nesse sentido, observa Maria Sylvia Zanella di Pietro:

    As normas de direito pblico, embora protejam reflexamente o in-teresse individual, tm o objetivo primordial de atender ao interesse pblico, ao bem-estar coletivo. Alm disso, pode-se dizer que o direito pblico somente comeou a se desenvolver quando, depois de supe-rados o primado do direito civil (...) e o individualismo que tomou conta dos vrios setores da cincia, inclusive do Direito, substituiu-se a ideia do homem como fim nico do direito (prpria do individualis-mo) pelo princpio que hoje serve de fundamento para todo o direito pblico e que vincula a Administrao em todas as suas decises: o de que os interesses pblicos tm supremacia sobre os individuais.2

    2. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Di-reito administrativo. 21 ed. So Paulo: Atlas, 2008, p. 64.

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    3 Sobre a era da informao, economia, sociedade e cultura, ver o primeiro vo-lume da trilogia de CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 8.ed. So Paulo: Paz e Terra, 2005.

    Atualmente, entretanto, vem-se crescentemente firmando uma vertente doutrinria que contesta a supremacia apriorstica dos direitos coletivos so-bre os individuais, sustentando que, em caso de conflito, a soluo somente possa se apresentar no caso concreto, tendo por norte a dignidade da pessoa humana e a proteo aos direitos fundamentais.

    Para abordamos o tema da releitura da supremacia do interesse pblico sobre o interesse de cada um dos cidados deve-se marcar, como ponto fun-damental, o debate surgido no constitucionalismo do sculo XX a partir da sua segunda metade.

    Nessa fase histrica verificou-se, em diversos Estados, a experimentao de uma forte aspirao por democracia, podendo-se destacar dois importantes marcos simblicos deste perodo: a queda do muro de Berlin (1989) e o fim da Unio Sovitica (1991).

    Os movimentos responsveis, em grande parte, por essas mudanas, de-correm da globalizao, do amplo processo desestatizante surgido no bojo do modelo neoliberal, e da complexidade cotidiana denominada de a era das informaes3. Pelo modelo neoliberal cabe ao setor privado o papel de organizar a economia de mercado, de modo que iniciativa privada seriam destinados os bnus e os nus da flutuao mercadolgica.

    Contudo, a simples reduo do Estado ao patamar mnimo a exemplo do que ocorreu no modelo liberal oitocentista no corresponderia aos an-seios da sociedade nem, tampouco, s necessidades de equilbrio do sistema econmico (em benefcio dele prprio), do sistema social e dos interesses individuais.

    No Brasil, se certo que a Carta Magna de 1988 absorveu os influxos neoliberalizantes, pautando a Ordem Econmica sob o princpio da livre iniciativa e na valorizao do trabalho humano, tambm certo afirmar que, seguindo a linha aberta pelas Cartas da Alemanha (1949), Grcia (1975), Portugal (1976) e Espanha (1978), a nossa Lei Fundamental colocou o cida-do e o respeito a sua dignidade no centro do ordenamento jurdico.

    Nesse novo sistema, o jusnaturalismo liberal e o intervencionismo social cedem lugar interveno estatal na ordem econmica e social com vistas ao bem-estar social e individual, numa permanente ponderao dos interesses em presena. Sob esse enfoque, busca-se, a partir da dcada de 90 do sculo passado, um novo marco terico para a Administrao Pblica, que substitua a perspectiva burocrtica weberiana at ento aplicada, despontando entida-des estatais com maior proximidade do cidado em setores estratgicos.

    H um reconhecimento de que as democracias contemporneas no se configuram em instrumentos para garantir apenas a propriedade e os con-tratos. Ao contrrio, as modernas formas de administrao dos diversos in-teresses no mais encarando um interesse pblico predeterminado como

    3. Sobre a era da informao, economia, sociedade e cultura, ver o primeiro vo-lume da trilogia de CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 8.ed. So Paulo: Paz e Terra, 2005.

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    4 CANOTILHO apresenta cinco critrios para distinguir regras e princpios: a) grau de abstrao: os princpios so normas com um grau de abstrao relativamente elevado; de modo diver-so, as regras possuem uma abstrao relativamente reduzida; b) grau de determinabilidade na aplicao do caso concreto: os princpios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediaes concretizadoras, enquanto as regras so suscetveis de aplicao direta; c) grau de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princpios so normas de natureza ou com um papel fundamental no orde-namento jurdico devido sua posio hierrquica no sistema das fontes (ex: princpios constitucionais) ou sua importncia estruturante dentro do sistema jurdico (ex. princpio do Esta-do de Direito); d) proximidade da idia de direito: os princpios so standards juridicamente vinculantes radicados na idia de justia (DWORKIN) ou na idia de direito (LARENZ); as regras podem ser norma vinculativas com um conte-do meramente funcional; e) Natureza normogentica: os princpios so fun-damento de regras, isto , so normas que esto na base ou constituem a ratio de regras jurdicas, desempenhando, por isso, uma funo normogentica fundamentante. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1993, pp. 166/167.

    poder supremo devem formular e implementar polticas estratgicas para suas respectivas sociedades, tanto no sistema social como no campo cientfico e tecnolgico, ambos umbilicalmente atados ao sistema econmico. Nesse contexto, o Estado se v compelido a adotar prticas gerenciais modernas e eficientes, sem perder de vista sua funo eminentemente pblica.

    No atual perodo ps-moderno, a relativizao do positivismo (ps-po-sitivismo), a conciliao e convivncia harmnica entre valores, princpios e regras se traduzem em alguns dos assuntos mais relevantes do Estado De-mocrtico de Direito. No estgio em que se encontra o multilateralismo e pluralismo social h um conjunto de valores conflituosos, com numerosas dependncias recprocas, de modo que a interveno estatal, em um determi-nado aspecto do conjunto social, acaba por refletir em outro segmento. Isso faz com que, em certas situaes, os benefcios advindos da interveno para um determinado interesse pblico sejam irrazoveis e desproporcionais aos problemas e desvantagens que acarretaro para outros interesses pblicos ou para direitos individuais.

    Pelos aspectos antes ressaltados, deve se fazer uma releitura da concepo clssica da noo e primazia do interesse pblico, adotado como fundamento para a legitimao dos atos e medidas no mbito da Administrao Pblica. Na atualidade h, de maneira muito mais clara, necessidade de se perseguir uma verdade objetiva e no absoluta dando-se importncia aos indiv-duos e dignidade humana, com relevo dos direitos e garantias fundamen-tais.

    A problemtica do tema tem o seu cerne na impossibilidade de adoo de um interesse pblico unvoco, e, portanto, a inviabilidade de se cogitar a existncia de um princpio de supremacia desse mesmo interesse pblico.

    Vale lembrar que a doutrina majoritria, com destaque para Ronald Dworkin, sustenta que na ps-modernidade a estrutura normativa com-posta por princpios e regras jurdicas.4 Os princpios, que so mais genricos e abstratos do que as regras, no esto subsumidos a uma situao de fato, possuindo uma dimenso de peso ou importncia. Para sua aplicao, no importa que os princpios estejam previstos no texto constitucional ou no.

    Nessa linha, Karl Larenz define os princpios como sendo normas jurdi-cas que no possuem uma situao ftica determinada. Segundo esse doutri-nador, princpios:

    enquanto idias jurdicas materiais so manifestaes especiais da idia de Direito, tal como esta se apresenta no seu grau de evoluo histrica, alguns deles esto expressamente declarados na Constituio ou noutras leis; outros podem ser deduzidos da regulao legal, da sua cadeia de sentido, por via de uma analogia geral ou do retorno ratio legis; alguns foram descobertos e declarados pela primeira vez

    4. CANOTILHO apresenta cinco critrios para distinguir regras e princpios: a) grau de abstrao: os princpios so normas com um grau de abstrao relativamente elevado; de modo diver-so, as regras possuem uma abstrao relativamente reduzida; b) grau de determinabilidade na aplicao do caso concreto: os princpios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediaes concretizadoras, enquanto as regras so suscetveis de aplicao direta; c) grau de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princpios so normas de natureza ou com um papel fundamental no orde-namento jurdico devido sua posio hierrquica no sistema das fontes (ex: princpios constitucionais) ou sua importncia estruturante dentro do sistema jurdico (ex. princpio do Esta-do de Direito); d) proximidade da idia de direito: os princpios so standards juridicamente vinculantes radicados na idia de justia (DWORKIN) ou na idia de direito (LARENZ); as regras podem ser norma vinculativas com um conte-do meramente funcional; e) Natureza normogentica: os princpios so fun-damento de regras, isto , so normas que esto na base ou constituem a ratio de regras jurdicas, desempenhando, por isso, uma funo normogentica fundamentante. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1993, pp. 166/167.

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    5 Metodologia na cincia do direito. Tra-duo de Jos Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1989, p. 577.

    6 Op. cit., p. 39.

    7 DWORKIN, Ronald. Taking rights se-riously. Harvard University Press, 1977, p. 43. H traduo para o vernculo: Levando os direitos a srio. Traduo de Nelson Boeira. So Paulo: Martins Fontes, 2002.

    8 Op. cit., pp.42-43.

    9 Op. cit., p. 114.

    10 Os princpios so mandatos de otimizao, que esto caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento no ape-nas depende das possibilidades reais como tambm das jurdicas. O mbito das possibilidades jurdicas determi-nado pelos princpios e regras opostos. Teoria de los Derechos Fundamentales. Traduo de Ernesto Garzn Valds. Madri: Centro de Estudios Constitucio-nales, 1993, p. 86. Ver, ainda, o artigo Coliso de direitos fundamentais e realizao de direitos fundamentais no Estado de Direito Democrtico. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janei-ro, v.217: I-VI, pp. 67-79, jul./set.1999, que sintetiza sua palestra no Brasil no ano de 1998.

    11 Teoria da Argumentao Jurdica. Tra-duo de Zilda Hutchinson Schild Silva. So Paulo: Landy, 2001, p.248.

    pela doutrina ou pela jurisprudncia, as mais das vezes atendendo a casos determinados, no solucionveis de outro modo, e que logo se impuseram na conscincia jurdica geral, graas fora de convico a eles inerente. Decisiva permanece a sua referncia de sentido idia de Direito.5

    A teoria principiolgica teve fundamental contribuio com os estudos elaborados por Ronald Dworkin, em 1967, contra o positivismo. Para esse autor, as regras so adotadas pelo mtodo all or nothing, vale dizer, dados os fatos que uma regra estipula, ento ou a regra vlida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou no vlida, e neste caso em nada contri-bui para a deciso.6 Assim, se uma regra se confronta com outra, uma delas deve ser considerada invlida.7

    De outra parte, Dworkin destaca a questo dos pesos entre princpios (di-mension of weight), de modo que na hiptese de coliso prevalece o de maior peso sem excluir o outro totalmente:

    Os princpios possuem uma dimenso que as regras no tm a di-menso do peso ou importncia. Quando os princpios se entrecruzam (...), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a fora relativa de cada um. Esta no pode ser, por certo, uma mensurao exata e o julgamento que determina que um princpio ou uma poltica particular seja mais importante que outra freqentemente ser objeto de controvrsia. No obstante, essa dimenso uma parte integrante do conceito de um princpio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quo importante ele .8

    E conclui: O homem que deve decidir uma questo v-se, portanto, diante da exigncia de avaliar todos esses princpios conflitantes e antagni-cos que sobre ela incidem e chegar a um veredicto a partir desses princpios, em vez de identificar um dentre eles como vlido.9 O professor alemo Robert Alexy complementou o pensamento de Dworkin ao sustentar que o princpio, como espcie de norma jurdica, no determina as conseqncias normativas de forma direta, ao contrrio das regras. Da definir os princpios como mandamentos de otimizao, aplicveis em vrios graus normativos e fticos.10 Por suas palavras, princpios so proposies normativas de um to alto nvel de generalidade que podem via de regra no ser aplicados sem o acrscimo de outras premissas normativas e, habitualmente, esto sujeitos s limitaes por conta de outros princpios.11

    Nesse sentido, quando ocorre uma coliso de princpios preciso que a Administrao Pblica verifique qual deles possui maior peso. A soluo so-mente advm da ponderao do caso concreto.

    5. Metodologia na cincia do direito. Traduo de Jos Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1989, p. 577.6. Op. cit., p. 39.7. DWORKIN, Ronald. Taking rights se-riously. Harvard University Press, 1977, p. 43. H traduo para o vernculo: Levando os direitos a srio. Traduo de Nelson Boeira. So Paulo: Martins Fontes, 2002.8. Op. cit., pp.42-43.9. Op. cit., p. 114.

    10. Os princpios so mandatos de oti-mizao, que esto caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida de-vida de seu cumprimento no apenas depende das possibilidades reais como tambm das jurdicas. O mbito das possibilidades jurdicas determinado pelos princpios e regras opostos. Te-oria de los Derechos Fundamentales. Traduo de Ernesto Garzn Valds. Madri: Centro de Estudios Constitu-cionales, 1993, p. 86. Ver, ainda, o ar-tigo Coliso de direitos fundamentais e realizao de direitos fundamentais no Estado de Direito Democrtico. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janei-ro, v.217: I-VI, pp. 67-79, jul./set.1999, que sintetiza sua palestra no Brasil no 11. Teoria da Argumentao Jurdica. Tra-duo de Zilda Hutchinson Schild Silva. So Paulo: Landy, 2001, p.248.

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    12 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 105.

    13 MEDAUAR, Odete. O Direito Adminis-trativo em Evoluo. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 183.

    Deste modo, como pensar em um suposto princpio da supremacia do in-teresse pblico, prevalente terica e antecipadamente12 sobre o interesse pri-vado, enquanto a Constituio Federal de 1988 se volta, como eixo central, proteo do indivduo e de sua dignidade? Por isso a doutrina sustenta que tende a modificar-se tambm o entendimento de sacrifcio de um interesse em benefcio de outro, ou de primazia de um sobre outro interesse.13

    Nessa ordem de convices, desponta de capital importncia o estudo do tema, notadamente sob o enfoque da proporcionalidade como mecanismo de ponderao de interesses.

    V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

    Leitura obrigatria:

    JUSTEN FILHO, Maral. Curso de direito administrativo. So Paulo: Saraiva, ca-ptulos I e III.

    Leitura complementar:

    ARAGO, Alexandre Santos de. A supremacia do interesse pblico no ad-vento do Estado de Direito Contemporneo e na hermenutica do direi-to pblico contemporneo. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio de supre-macia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, pp. 1-22.

    MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Princpios informativos e inter-pretativos do direito administrativo. In: Mutaes do Direito Pblico. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 265-313.

    VI. AVALIAO

    Caso gerador:

    O Ministrio Pblico Federal ajuizou ao civil pblica em face da Agn-cia Nacional de Telecomunicaes ANATEL, com vistas anulao dos atos da agncia reguladora que haviam permitido o reajuste da tarifa de tele-fonia fixa comutada com base no IGP-DI, o ndice previsto nos contratos de concesso celebrados por ocasio da licitao no mbito do Programa Nacio-nal de Desestatizao.

    12. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 105.13. MEDAUAR, Odete. O Direito Adminis-trativo em Evoluo. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 183.

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    Em sua petio, o Ministrio Pblico sustentou que a implementao do reajuste contratualmente previsto teria por efeito o aumento em 25% da tarifa residencial, onerando demasiadamente o oramento da populao bra-sileira como um todo, com grave dano ao interesse pblico. Dessa forma, o Parquet requereu a substituio do referido ndice pelo INPC, que naquele ano havia apresentado variao significativamente inferior ao IGP-DI. Na viso do Ministrio Pblico, os atos da ANATEL violavam o direito difuso dos usurios do servio pblico a tarifas mdicas.

    De outro lado, alegavam as concessionrias que a promoo do interesse pblico, no caso, consistia na preservao dos contratos celebrados pela Admi-nistrao Pblica e na manuteno do seu equilbrio econmico-financeiro, meio necessrio para permitir s concessionrias conservarem a qualidade, a continuidade e as metas de universalizao dos servios pblicos concedidos. Alegavam, ainda, que caso o Poder Judicirio determinasse a alterao no ndice de recomposio inflacionria contratualmente acordado, nulificando o ato da ANATEL que homologara os novos valores tarifrios, estaria pro-movendo a insegurana jurdica e afugentando novos investidores, realidade que, inclusive, feriria a Ordem Econmica constitucionalmente estabelecida.

    A seu ver, a invocao, pelo Poder Judicirio, do princpio da supremacia do interesse pblico sobre o privado, como razo de decidir, seria suficiente para resolver a controvrsia acima quanto legalidade ou constitucionalidade do ato administrativo da ANATEL?

    VII. CONCLUSO DA AULA

    O princpio da supremacia do interesse pblica classicamente definido como o princpio basilar do Direito Administrativo, segundo o qual o inte-resse da coletividade deve preponderar sobre o interesse do particular. No entanto, esse princpio clssico vem sendo revisitado por parcela da doutrina, que tem colocado em xeque a sua utilidade como vetor de interpretao do direito e solucionador de casos complexos.

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    14 Curso de Direito Administrativo. 14.ed. So Paulo: Malheiros, p. 83.

    15 Sobre o no cumprimento das pro-messas da modernidade e os aspectos da ambivalncia na ps-modernidade, ver: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalncia. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. A obra original, denominada Modernity and ambivalence, foi publicada, em sua 3 edio, no ano de 1995, pela Polity Press, Cambridge, Inglaterra. Ver, ain-da, questes sobre ambivalncia nos artigos de BECK, Ulrich e LASH, Scott na obra Modernizao reflexiva: polti-ca, tradio e esttica na ordem social moderna.

    16 Nesse sentido, ver Ronald Dworkin. Taking rights seriously. Harvard Univer-sity Press, 1977. O assunto tambm abordado pelo Autor nas obras: O imp-rio do direito. Traduo de Jefferson Luiz Camargo. So Paulo: Martins Fontes, 1999; e Uma questo de princpio. Tra-duo de Luiz Carlos Borges. So Paulo: Martins Fontes, 2001.

    AULA 2

    I. TEMA

    Princpio da legalidade e poder regulamentar

    II. ASSUNTO

    O princpio da legalidade e o dever de agir da Administrao Pblica

    III. OBJETIVOS ESPECFICOS

    Discutir o contedo do poder regulamentar da Administrao Pblica face ao princpio da legalidade estrita.

    IV. DESENVOLVIMENTO METODOLGICO

    A legalidade constitui o motor de atuao de toda a atividade administra-tiva, constituindo princpio constitucional de acordo com o art. 37, caput, da Constituio de 1988.

    Segundo Celso Antnio Bandeira de Mello14, o princpio da legalidade capital para a configurao do regime jurdico-administrativo, pois aquele que qualifica o Estado de Direito e que lhe d identidade prpria. A ideia de administrao pblica s pode ser exercida em conformidade com a lei, sen-do, portanto, sublegal, infralegal, consistente em comandos complementares lei. A finalidade que a lei possa combater a exacerbada personificao dos governantes, sendo o antdoto natural do poder monocrtico ou oligrquico, pois tem como raiz a soberania popular, de exaltao da soberania.

    Malgrado esse pensamento, parte da doutrina sustenta que estamos viven-do no perodo da ps-modernidade15, e, no campo do Direito, isto representa a transposio do positivismo jurdico clssico, doutrina de pensamento que se hospedou em diversos pases como o Brasil filiados ao tronco jur-dico romano-germnico.

    Se de um lado a doutrina contempornea16 perfilha o entendimento de que a estrutura normativa composta por princpios e regras jurdicas, isto , os princpios, que so mais genricos e abstratos do que as regras, no esto subsumidos a uma situao de fato (possuindo uma dimenso de peso ou

    14. Curso de Direito Administrativo. 14.ed. So Paulo: Malheiros, p. 83.

    15. Sobre o no cumprimento das pro-messas da modernidade e os aspectos da ambivalncia na ps-modernidade, ver: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalncia. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. A obra original, denominada Modernity and ambivalence, foi publicada, em sua 3 edio, no ano de 1995, pela Polity Press, Cambridge, Inglaterra. Ver, ain-da, questes sobre ambivalncia nos artigos de BECK, Ulrich e LASH, Scott na obra Modernizao reflexiva: polti-ca, tradio e esttica na ordem social moderna.

    16. Nesse sentido, ver Ronald Dworkin. Taking rights seriously. Harvard Univer-sity Press, 1977. O assunto tambm abordado pelo Autor nas obras: O imp-rio do direito. Traduo de Jefferson Luiz Camargo. So Paulo: Martins Fontes, 1999; e Uma questo de princpio. Tra-duo de Luiz Carlos Borges. So Paulo: Martins Fontes, 2001.

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    importncia), o normativismo lgico, nos termos sustentados pela Escola de Viena (e que teve no gnio de Hans Kelsen o seu grande luminar criador da chamada Teoria Pura de Direito), ainda impregna o mundo jurdico e vin-cula os atos da Administrao Pblica no Brasil.

    Vale lembrar que, para o positivismo, o ser (realidade) no necessariamen-te deriva do dever-ser (o direito). Essa, em apertada sntese, representa a tese primordial dessa doutrina gerada no seio do liberalismo econmico burgus. A dissociao entre realidade (ser) e direito (dever-ser) conduz iluso de que o direito cria a sua prpria realidade, puramente normativa e meramente ideativa, por conseguinte, infensa a valores, consideraes polticas, sociol-gicas, econmicas etc., dissociada da realidade complexa e sempre dinmica da vida, notadamente no campo do sistema econmico.

    Esse distanciamento entre o ser e o dever-ser, contudo, no resiste a muitas necessidades cotidianas e alta complexidade e tecnicidade da vida, e, portanto, deve ser repensado.

    Entretanto, para compor a relao entre os interesses pblicos e privados o Estado intervm sob vrias formas, mas, essencialmente, adota polticas pblicas para direcionar a relao entre o mbito social e econmico. E para o exerccio desse poder-dever o Estado se vale de normas jurdicas, condu-zindo as polticas econmicas e sociais de modo a manter (ou perseguir) o equilbrio entre os interesses pluralistas envolvidos e que, em grande parte, encontram-se em situao contraposta, numa permanente ambivalncia.

    Nessa ordem de ideias, de notar-se que, se de um lado o poder de deci-so das questes de natureza poltica primria compete ao Poder Legislativo na edio de normas jurdicas, por outro indisputvel que a lei no pode regular o direito nos detalhes que a soluo dos problemas cotidianos exi-ge. Da porque h necessidade de que o Poder Executivo tenha, em muitas situaes, de atuar sem uma conduta totalmente pr-determinada por uma norma, sempre, porm, balizado por certos limites jurdicos.

    Sob uma viso atual, discorre Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao tecer comentrios sobre a transio da fase legalista e totalmente avessa a qualquer tipo de delegao normativa, para inaugurar, nas sociedades pluralistas e de massa dos dias de hoje, a fase de uma legalidade temperada, em que se admite o instituto da delegao normativa e da deslegalizao:

    Este princpio de reserva legal, que se constitui numa garantia in-dividual fundamental, tem sido, por longa tradio, adotado nos or-denamentos constitucionais, ditando uma interpretao restritiva do princpio da separao de poderes, que assim prevaleceu durante um longo perodo de amadurecimento do Direito Pblico, passando por duas fases: a primeira, de absoluta inaceitao e, depois, da aceitao li-mitada da delegabilidade da funo normativa (...) A lei, como concei-

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    17 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatrio. Rio de Janeiro: Re-novar, 2003, pp. 118 e 124.

    18 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e polticas pblicas. So Paulo: Saraiva, 2002, pp. 15-16.

    19 Principios generales del derecho admi-nistrativo. v. I. Traduo de Julio N. San Milln Almagro. Buenos Aires: Editorial Depalma, 1948, p. 33.

    to iluminista-racionalista, enquanto produto do Estado formalmente manifestado pelos rgos legislativos constitucionais, parece ter atin-gido seu znite como instrumento regrador de condutas sociais. Com efeito, o pluralismo, ao multiplicar os centros de poder na sociedade, tornando-a policrtica, fez despontar novas fontes normativas autno-mas e semi-autnomas que atuam com vantagem como sucednea da norma legal. Por outro lado, a omnmoda submisso da sociedade a uma excessiva padronizao e detalhamento de comportamentos por via legislativa, a pretexto de racionaliz-los e de impor critrios tidos como superiores, acaba paradoxalmente desservindo ordem jurdica, no s por banaliz-la, como pelo desgaste que causa a babel provocada pelo incontrolvel chorrilho legiferante a que se dedicam legisladores federais, estaduais e municipais de milhares de casas legislativa.17

    Uma legislao minuciosa e exaustiva sobre a conduta administrativa no garantia de lisura ou proteo aos cidados. Esse equvoco foi cometido no passado recente, quando as leis que tratavam de matria administrativa procuravam esgotar todas as situaes possveis sob a sua gide. A clareza das diretrizes e fundamentos da funo administrativa, ao contrrio, se expostas ao conhecimento e deliberao dos cidados, podem funcionar como pode-roso meio de constrangimento ao abuso do aparelho administrativo para fins que no interessam coletividade.18

    Qual seria, ento, o espao do Poder Executivo na produo de normas que ditem as condutas necessrias para a manuteno do Estado Democrti-co de Direito?

    Sobre a natureza do regulamento Gaston Jze se manifestou, em obra cls-sica do Direito Administrativo do incio do sculo XX, no sentido de que toda manifestao de vontade que, no exerccio de um poder legal, cria ou organiza uma situao geral, impessoal e objetiva, um ato legislativo.19 Para esse jurista, pouco importa a qualidade do autor do ato, no interessando tampouco suas formas e o procedimento seguido para realiz-lo. Isto porque no h diferena de natureza jurdica entre a lei propriamente dita, isto , a regra de direito geral e impessoal, formulada pelo Congresso e sancionada pelo Presidente da Repblica, e o regulamento simples, ou seja, a regra jur-dica geral e impessoal formulada pelo Presidente da Repblica ou qualquer outro agente pblico investido do poder regulamentar.

    Na Frana o tema no chega a ser polmico, haja vista que, nos termos da Constituio de 1958, h espaos pr-definidos para a lei e para o regulamen-to. Mas, diante da realidade ps-moderna, o tema que envolve a pluralidade de fontes normativas no contexto jurdico-constitucional brasileiro ainda no chegou prximo do consenso.

    17. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatrio. Rio de Janeiro: Re-novar, 2003, pp. 118 e 124.18. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e polticas pblicas. So Paulo: Saraiva, 2002, pp. 15-16. 19. Principios generales del derecho admi-nistrativo. v. I. Traduo de Julio N. San Milln Almagro. Buenos Aires: Editorial Depalma, 1948, p. 33.

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    20 BARROSO, Lus Roberto. Neoconsti-tucionalismo e Constitucionalizao do Direito: o triunfo tardio do Direito Cons-titucional no Brasil. Revista da EMERJ, v. 9, n. 33, 2006, p. 43,ss.

    21 Acerca do surgimento e evoluo dos regulamentos administrativos, vale colher os esclarecimentos trazidos por Eduardo Garca de Enterra: um dos problemas capitais , sem dvida, o que se planteia com uma legislao especial no imaginada apenas pelo pensamento clssico, a menos em sua importncia desbordante, a legislao de formulao administrativa. Sobre uma mnima base no constituciona-lismo tradicional, em realidade como resduo do antigo poder rgio de or-denana que se salva na frmula da monarquia constitucional baixo a eti-queta imprecisa de poder executivo, a Administrao comear no sculo XIX a ditar uma normatizao de segundo grau, os Regulamentos. Legislacin delegada. potestad reglamentaria y con-trol judicial. 3.ed. Madri: Civitas, 1998, pp. 40-41.

    Com o advento do ps-positivismo,20 h que se repensar o alcance do princpio da legalidade e da separao de poderes, no para aboli-los ou com-bat-los, mas para adequ-los realidade, nem sempre acolhida sob o ngulo do formalismo excessivo, com a predominncia da letra dos textos sobre a complexidade da vida cotidiana.

    nessa ordem de questes que a doutrina ptria vem apresentando teses controvertidas acerca da abrangncia e dos limites do poder regulamentar de competncia do Chefe do Poder Executivo, rgos e entidades estatais aut-nomas. O aspecto central do debate tem a ver com a possibilidade ou no do Chefe do Poder Executivo editar regulamentos autnomos, assim como acerca da constitucionalidade de uma funo regulamentar diversa daquela exercida pelo Chefe do Poder Executivo e seus Ministros por titular de rgo ou entidade da Administrao Pblica indireta. 21

    REGULAMENTOS AUTNOMOS E REGULAMENTOS AUTORIZADOS

    O regulamento autnomo aquele que retira seu fundamento de validade diretamente da Constituio, na ausncia de lei em sentido formal que regule a matria.

    A maioria da doutrina administrativa clssica sustenta que, luz da Cons-tituio de 1988 e ao menos at o advento da Emenda Constitucional n 32, no havia a possibilidade de a Administrao Pblica exarar regulamentos autnomos, tendo em vista o dever de obedincia ao princpio da legalidade (art. 37, caput, CRFB/88) e o fato de a redao original do art. 84, VI, exigir que os decretos de organizao da Administrao fossem expedidos na for-ma da lei.

    A Emenda Constitucional n 32/01 veio alterar a redao do art. 84, VI, da Constituio, retirando a expresso na forma da lei, passando referido dispositivo, ento, a ter a seguinte redao:

    Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da Repblica:(...)VI dispor, mediante decreto, sobre:a) organizao e funcionamento da administrao federal, quando

    no implicar aumento de despesa nem criao ou extino de rgos pblicos;

    b) extino de funes ou cargos pblicos quando vagos.

    Dessa forma, o Chefe do Poder Executivo pode expedir decretos aut-nomos isto , que prescindem de lei quando a matria regulada diga respeito auto-organizao da Administrao Pblica federal, desde que de

    20. BARROSO, Lus Roberto. Neoconsti-tucionalismo e Constitucionalizao do Direito: o triunfo tardio do Direito Cons-titucional no Brasil. Revista da EMERJ, v. 9, n. 33, 2006, p. 43,ss.21. Acerca do surgimento e evoluo dos regulamentos administrativos, vale colher os esclarecimentos trazidos por Eduardo Garca de Enterra: um dos problemas capitais , sem dvida, o que se planteia com uma legislao especial no imaginada apenas pelo pensamento clssico, a menos em sua importncia desbordante, a legislao de formulao administrativa. Sobre uma mnima base no constituciona-lismo tradicional, em realidade como resduo do antigo poder rgio de or-denana que se salva na frmula da monarquia constitucional baixo a eti-queta imprecisa de poder executivo, a Administrao comear no sculo XIX a ditar uma normatizao de segundo grau, os Regulamentos. Legislacin delegada. potestad reglamentaria y con-trol judicial. 3.ed. Madri: Civitas, 1998, pp. 40-41.

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    22 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 168 e 169.

    suas disposies no decorram criao de novos cargos ou sua extino, ou aumento de dispndio para a Administrao Pblica. Trata-se, assim, de pos-sibilidade relativamente limitada.

    Sobre a possibilidade de existirem regulamentos autnomos no direito brasileiro aps a EC n 32/01, Gustavo Binenbojm destaca a existncia de trs diferentes correntes doutrinrias, nos seguintes termos:

    (I) a primeira, composta por aqueles que continuam a negar a exis-tncia dos regulamentos autnomos, no Brasil, a partir de uma com-preenso rgida do princpio da legalidade, como vinculao positiva da Administrao lei;

    (II) a segunda, em sentido diametralmente oposto, entendendo que a nova modalidade do art. 84, VI, (a), ocorrer em mbito de reserva de administrao (na modalidade de reserva de poder regulamentar), imune lei em sentido formal, que simplesmente no mais poder dis-por sobre organizao e funcionamento da Administrao Pblica em matrias que no importem aumento de despesa, exceto no que disser respeito criao e extino de rgos, sob pena de configurao de inconstitucionalidade formal;

    (III) e a terceira, reconhecendo a existncia de uma nova espcie de regulamento ou do velho regulamento autnomo, agora apenas ad-mitido formalmente pelo novel texto constitucional, mas mantendo inclume o princpio da preferncia da lei; ou seja: a matria relativa organizao e funcionamento da Administrao Pblica pode at ser tratada por regulamento, mas no caso de supervenincia de lei de ini-ciativa do Presidente da Repblica, esta prevalecer no que dispuser em sentido diverso. De igual modo, ser cabvel a expedio de regu-lamentos autnomos em espaos normativos no sujeitos constitucio-nalmente a reserva de lei (formal ou material), sempre que mngua do ato legislativo, a Administrao Pblica estiver compelida a agir para cumprimento de seus deveres constitucionais. Tambm neste caso, por evidente, assegura-se a preeminncia da lei superveniente sobre os re-gulamentos at ento editados.22

    Para alm da discusso sobre a admissibilidade de regulamentos autno-mos no ordenamento jurdico ptrio, tem-se observado a importncia cres-cente dos chamados regulamentos autorizados, isto , aqueles que dispem sobre matrias que, embora no cheguem a ser disciplinadas detalhadamente em lei formal, nela encontram seu fundamento de validade.

    Assim, por exemplo, as leis que instituem as agncias reguladoras comu-mente atribuem a essas entidades competncia para editar atos normativos abstratos em matrias que exijam conhecimentos tcnicos especficos. Veja-

    22. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 168 e 169.

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    FGV DIREITO RIO 22

    23 A abrangncia da competncia nor-mativa das agncias reguladoras ser tema do prximo semestre.

    24 TCITO, Caio. Comisso de valores mo-bilirios: poder regulamentar. In: Temas de direito pblico, v.2. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, pp. 1079 e 1088.

    25 Op. cit.

    26 O congresso nacional e as delegaes legislativas. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 105.

    se, a ttulo de ilustrao, o art. 27 da Lei n 10.233/2001, que instituiu a Agncia Nacional de Transportes Aquavirios ANTAQ:

    Art. 27. Cabe ANTAQ, em sua esfera de atuao:...IV Elaborar e editar normas e regulamentos relativos prestao

    de servios de transporte e explorao da infraestrutura aquaviria e porturia, garantindo isonomia no seu acesso e uso, assegurando os direitos dos usurios e fomentando a competio entre os operadores;

    Note-se, entretanto, que esses atos normativos secundrios (instrues normativas ou resolues da diretoria colegiada) no chegam a ser conside-rados regulamentos autnomos, pois possuem previso na lei de criao da agncia reguladora, alm de deverem obedincia aos princpios estatudos no referido diploma legal. Assim, no exemplo acima apresentado, a competncia normativa para regulamentar a explorao da infraestrutura aquaviria ad-vm do art. 27 da Lei n 10.233/2001, lei em sentido estrito.23

    FUNO REGULAMENTAR

    At o momento estivemos analisando a posio jurdica dos regulamentos luz do princpio constitucional da legalidade. Passa-se, agora, a discutir brevemente quem so os titulares da competncia para a edio de regula-mentos.

    Caio Tcito sustenta que se o poder regulamentar em princpio e do-minantemente exercido pelo Presidente da Repblica, em razo de sua com-petncia constitucional (art. 84, IV, CF/88). Todavia, segundo o autor, nada impede antes em determinadas circunstncias aconselha possa a lei habilitar outras autoridades prtica do poder normativo.24 Nesse sentido, sustenta que a norma constitucional que outorga competncia ao Presidente da Repblica (art. 84) enumerativa, no sendo vlido o raciocnio a contra-rio sensu, excludente de outra frmula de ao normativa que o Legislativo entenda necessria ou conveniente.25

    Neste contexto, Carlos Roberto Siqueira Castro anota que uma das mais acentuadas peculiaridades do Estado contemporneo a denomi-nada descentralizao normativa.26 O constitucionalista leciona que no se ignora que o vocbulo lei nem sempre utilizado em sua acepo formal, isto , como ato legislativo tpico produzido no mbito das Casas Legislativas investidas da representao popular. H outras espcies de atos normativos, sejam equiparados lei formal de acordo como o processo legislativo previsto nas Constituies, sejam a ela inferiores, mas pratica-

    23. A abrangncia da competncia nor-mativa das agncias reguladoras ser tema do prximo semestre.24. TCITO, Caio. Comisso de valores mobilirios: poder regulamentar. In: Temas de direito pblico, v.2. Rio de Ja-neiro: Renovar, 1997, pp. 1079 e 1088.25. Op. cit.26. O congresso nacional e as delegaes legislativas. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 105.

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    27 Op. cit;, pp. 105-121.

    28 O Direito das Agncias Reguladoras Independentes. So Paulo: Dialtica, 2002, p. 519.

    29 Agncias reguladoras e a evoluo do direito administrativo econmico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 381.

    30 Agncias administrativas, poder regulamentar e o sistema financeiro nacional. Revista Dilogo Jurdico. Salvador, CAJ Centro de Atualizao Jurdica, v.1, n. 7. out/2001. Disponvel em http://www.direitopublico.com.br. Acesso em 25 de maro de 2003.

    dos com base nela, nas quais se confere aptido para regrar o exerccio da liberdade individual e coletiva.

    Trata-se dos atos-regras gerados pelos inmeros agentes da Administrao Pblica, que proliferam a toda hora e que expressam um poder regulamen-tar difuso da burocracia estatal.27

    Nesse sentido, Maral Justen Filho, ao tecer uma srie de consideraes acerca do poder regulamentar, aduz que a competncia para editar regulamen-tos no privativa do Presidente da Repblica, ou seja, a redao do art. 84, IV, da CF/88 no significa uma reserva constitucional privativa para o Presidente da Repblica editar normas gerais, de natureza regulamentar, visando perfeita execuo das leis. Assim, para o autor, essa competncia se distribui entre as diversas entidades integrantes da Administrao Pblica.28

    Na mesma senda, Alexandre Santos de Arago adverte que muitas vezes a lei confere poder regulamentar a titular de rgo ou a entidade da Admi-nistrao Pblica distinta do Chefe do Poder Executivo. O autor se vale da expresso cunhada por San Tiago Dantas, descentralizao do poder norma-tivo do Executivo para rgos ou entidades tecnicamente mais aparelhados. Por essa descentralizao, o poder de baixar regulamentos, isto , de estatuir normas jurdicas inferiores e subordinadas lei, mas que nem por isso deixam de reger coercitivamente as relaes sociais, uma atribuio constitucional do Presidente da Repblica, mas a prpria lei pode conferi-la, em assuntos determinados, a um rgo da Administrao Pblica ou a uma dessas entida-des autnomas que so as autarquias.29

    De forma semelhante, Egon Bockmann Moreira tambm admite essa tese ao dizer que o Presidente da Repblica e os Ministros de Estado so titulares de competncia constitucional para expedir decretos, regulamentos e instru-es para a fiel execuo das leis, mas tal previso no exaustiva e supressora de outros ttulos competenciais, detidos pelas demais entidades da Adminis-trao Pblica. Nesse sentido, sustenta que cada qual detm, dentro de seu mbito de atuao e na medida da competncia a si conferida, possibilidade de emanar regulamentos.30

    Srgio Varella Bruna, com uma viso intermediria, ao tratar do tema do regulamento no poder hierrquico inerente organizao administrativa, leciona:

    no s chefe do Executivo que investido na competncia para edi-tar regulamentos de execuo. Todo agente administrativo que, dota-do de poder hierrquico, tiver a atribuio de dar cumprimento lei, pode expedir comandos normativos gerais a seus subordinados para, nos limites dessa lei, estabelecer regras para disciplinar a execuo do comando legal. Desse modo, a competncia atribuda, em carter su-premo, ao Presidente da Repblica, pelo art. 84, IV, da CF, no exclui a

    27.Op. cit;, pp. 105-121. 28. O Direito das Agncias Reguladoras Independentes. So Paulo: Dialtica, 2002, p. 519.29. Agncias reguladoras e a evoluo do direito administrativo econmico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 381.30. Agncias administrativas, poder regulamentar e o sistema financeiro nacional. Revista Dilogo Jurdico. Sal-vador, CAJ Centro de Atualizao Jurdica, v.1, n. 7. out/2001. Disponvel em http://www.direitopublico.com.br. Acesso em 25 de maro de 2003.

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    31 Agncias reguladoras: poder norma-tivo, consulta pblica, reviso judicial. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 86.

    32 Parcerias na administrao pblica: concesso, permisso, franquia, terceiri-zao e outras formas. 5.ed. So Paulo: Atlas, 2005, p. 143.

    33 Op. cit.

    34 Atividade legislativa do poder executi-vo. 2.ed. So Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2000, p. 285. Em igual sentido, Vicente Ro, ao assinalar a tendncia de se conferir s autarquias a faculdade de editar normas obrigatrias de direito, impor e arrecadar impostos e exercer funo de jurisdio judicial, sustenta ser contrrio suposta funo nor-mativa dessas entidades autrquicas. Por seu pensamento, se a delegao ao Executivo, que um dos poderes polti-cos, de qualquer faculdade pertencente ao legislativo ou ao Judicirio, merece a condenao dos juristas, com maior energia se h de condenar semelhan-te delegao a entidades autnomas, embora de carter administrativo. E complementa seu pensamento afir-mando que nas organizaes polticas, onde a delegao de poderes vedada por textos constitucionais, onde as fa-culdades do Legislativo, com carter de exclusividade, so enumeradas, expres-samente, pelas disposies polticas es-tatutrias, no se compreendem, nem se justificam, delegaes dessa espcie. O direito e a vida dos direitos. 5.ed. anotada e atualizada por Ovdio Rocha Barros Sandoval. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 319.

    35 FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Reforma do estado: o papel das agn-cias reguladoras e fiscalizadoras. In: MORAES, Alexandre de. Agncias regu-ladoras. So Paulo: Atlas, 2002, p. 142.

    competncia das demais autoridades dotadas de poder hierrquico para expedir normas gerais aos seus subordinados, no intuito de viabilizar o cumprimento da lei.31

    Outra corrente doutrinria defende alguns pontos contrrios funo re-gulamentar por rgos ou pelas entidades estatais descentralizadas.

    Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por exemplo, sustenta que, da mesma ma-neira que os Ministrios, outros rgos administrativos de nvel inferior tam-bm tm reconhecidamente o poder de praticar atos normativos, como porta-rias, resolues, circulares, instrues, porm nenhum deles podendo ter carter regulamentar, vista da competncia indelegvel do Chefe do Executivo para edit-los.32 Destaca a autora que inmeros rgos administrativos e entidades da Administrao indireta editam atos normativos por meio especialmente de reso-lues e portarias, em grande parte dos casos, por expressa atribuio legal. Para a administrativista, esses rgos baixam normas inovadoras na ordem jurdica, em uma quantidade assustadora, absolutamente incompreensvel e contraditria com a poltica governamental de Reforma do Estado, em que se insere ou deveria inserir-se a desregulao, se se pretende prestigiar a liberdade do cidado.33

    Da mesma forma, Clmerson Merlin Clve entende que o regulamento no se confunde com os demais atos normativos da Administrao. Para o autor, os regulamentos encontram-se em uma posio hierrquica superior aos demais atos normativos do Executivo, sendo, portanto, unicamente edi-tados pelo Presidente da Repblica.34

    Malgrado a polmica sobre o tema, Manoel Gonalves Ferreira Filho adverte que difundida e tolerada a prtica de que rgos autrquicos re-gulamentem as leis, lembrando que todos tm presentes as circulares e as portarias de que certos rgos da Administrao Pblica usam e abusam, fazendo leis que no raro mais interferem na vida do cidado que as leis propriamente ditas.35

    Da a polmica sobre se aos rgos e entidades descentralizadas da Ad-ministrao Pblica pode ser conferida uma funo normativa e, em caso positivo, qual a sua abrangncia.

    V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

    Leitura obrigatria:

    BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Curso de direito administrativo. So Paulo: Malheiros, 2004, captulo intitulado O regulamento no di-reito brasileiro.

    31. Agncias reguladoras: poder norma-tivo, consulta pblica, reviso judicial. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 86.32. Parcerias na administrao pblica: concesso, permisso, franquia, terceiri-zao e outras formas. 5.ed. So Paulo: Atlas, 2005, p. 143.33. Op. cit. 34. Atividade legislativa do poder execu-tivo. 2.ed. So Paulo: Revista dos Tri-bunais, 2000, p. 285. Em igual sentido, Vicente Ro, ao assinalar a tendncia de se conferir s autarquias a faculdade de editar normas obrigatrias de direito, impor e arrecadar impostos e exercer funo de jurisdio judicial, sustenta ser contrrio suposta funo nor-mativa dessas entidades autrquicas. Por seu pensamento, se a delegao ao Executivo, que um dos poderes polti-cos, de qualquer faculdade pertencente ao legislativo ou ao Judicirio, merece a condenao dos juristas, com maior energia se h de condenar semelhan-te delegao a entidades autnomas, embora de carter administrativo. E complementa seu pensamento afir-mando que nas organizaes polticas, onde a delegao de poderes vedada por textos constitucionais, onde as fa-culdades do Legislativo, com carter de exclusividade, so enumeradas, expres-samente, pelas disposies polticas es-tatutrias, no se compreendem, nem se justificam, delegaes dessa espcie. O direito e a vida dos direitos. 5.ed. anotada e atualizada por Ovdio Rocha Barros Sandoval. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 319. 35. FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Reforma do estado: o papel das agn-cias reguladoras e fiscalizadoras. In: MORAES, Alexandre de. Agncias regu-ladoras. So Paulo: Atlas, 2002, p. 142.

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    Leitura complementar:

    MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, captulo X (controle de legalidade).

    VI. AVALIAO

    Caso gerador:

    O art. 2 da Lei estadual 3.438/2000 do Rio de Janeiro impe s distribuido-ras de combustvel o dever de colocar lacres nos tanques dos postos revendedores de gasolina, prevendo o art. 3 a imposio de pena pecuniria caso no seja cumprida essa determinao:

    Lei 3438, de 07 de julho de 2000

    Obriga as distribuidoras de combustveis a colocarem lacres eletr-nicos, nos tanques dos postos de combustveis, no mbito do estado do rio de janeiro

    O Governador do Estado do Rio de Janeiro,Fao saber que a Assemblia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

    decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

    Art. 1 Obriga as Distribuidoras de Combustveis a colocarem equipamentos de segurana, ou adotarem procedimentos tcnicos, que garantam a inviolabilidade dos tanques dos postos de combustveis em que fazem distribuio.

    1 Os equipamentos de segurana, ou procedimentos tcnicos citados no caput deste artigo devero ser testados e aprovados pelo IN-METRO, tendo suas eficincias atestadas para o fim a que se destinam, alm de estarem sujeitos aprovao do rgo estadual competente.

    2 Para efeito dos meios de controle previstos no caput des-te artigo, podero ser utilizadas substncias identificadoras, que sero continuamente monitoradas, sendo estas substncias, exclusivas para cada distribuidora, incorporadas aos combustveis. (redao dada pela Lei n 4563/2005).

    Art. 2 Fica a distribuidora responsvel pela colocao de lacres nos Postos, podendo s a mesma ter acesso abertura dos tanques.

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    Art. 3 O no cumprimento desta Lei, sujeitar as infratoras, multa de 10.000 Unidades Fiscais de Referncia UFIR, para cada caso aplicando-se o dobro em caso de reincidncia.

    Art. 4 O Poder Executivo regulamentar a presente Lei no prazo de 30 dias a contar de sua publicao

    Art. 5 Esta Lei entrar em vigor na data de sua publicao, re-vogadas as disposies em contrrio.

    Rio de Janeiro, 07 de julho de 2000.ANTHONY GAROTINHOGovernador

    Posteriormente, decreto do chefe do Poder Executivo estadual vem a de-terminar que os postos revendedores de combustveis so responsveis em caso de violao ou depredao do lacre, sob pena de sano pecuniria. Nesse sentido, o Decreto Estadual 29.043/2001, modificando o Decreto 27.254/2000, regulamentador do tema, incluiu o art. 10-A, que prev:

    Art. 10-A. No caso de violao ou depredao assim como na recusa da instalao do lacre por parte de postos revendedores para venda a va-rejista que exibam marca da distribuidoras, incidiro sobre os mesmos as penalidades previstas no artigo anterior

    A seu ver, constitucional esse decreto? Justifique o seu entendimento.

    VII. CONCLUSO DA AULA

    O princpio da legalidade estrita vem sendo reinterpretado frente cres-cente necessidade de atuao e, portanto, de normatizao por parte de en-tidades administrativas nas matrias de sua competncia. Nesse contexto ga-nham espao no ordenamento jurdico os atos normativos expedidos pelo Chefe do Executivo e por entidades da Administrao Pblica. preciso atentar, todavia, para os limites ao exerccio do poder regulamentar, sob pena de ofensa ao prprio princpio da legalidade estabelecido no art. 37, caput, da CF/88, e no prprio princpio da separao dos poderes.

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    36 MEDAUAR, Odete. Poder discricio-nrio da administrao. Revista dos Tribunais, So Paulo, v. 610, p.38-45, ago. 1996, p.42.

    AULA 3

    I. TEMA

    Princpio da legalidade

    II. ASSUNTO

    Princpio da legalidade e discricionariedade administrativa

    III. OBJETIVOS ESPECFICOS

    Discutir a diferena entre atos vinculados e discricionrios, e sua conse-quncia no que tange possibilidade de reviso dos atos administrativos pelo Poder Judicirio.

    IV. DESENVOLVIMENTO METODOLGICO

    A atuao vinculada da Administrao Pblica se apresenta quando a nor-ma a ser cumprida determina, com exatido, a conduta da Administrao Pblica face a certa situao ftica. Isto quer dizer que a norma indica o nico e possvel comportamento que o administrador pblico dever adotar diante do caso concreto, no permitindo ao mesmo qualquer espao para um julgamento subjetivo. No ato vinculado o fim o legal, de objetividade incondicional. O comportamento da Administrao, alm de ser exigido, exatamente determinado, haja vista que o trao original do poder vinculado o automatismo, pois a autoridade administrativa no necessita procurar qual a melhor soluo, em determinada circunstncia, pois s h uma solu-o, aquela previamente determinada pela lei.36

    Por outro lado, na escolha discricionria o Administrador tem uma dose de liberdade, sob os critrios de convenincia e oportunidade (mrito do ato), quanto a melhor soluo para a efetivao do fim pblico. Em virtude das exigncias de clara identificao das funes que a norma primria atri-bui ao Poder Executivo, a lei acaba por remeter a Administrao valorao subjetiva quanto s condies no identificadas, notadamente quanto inte-grao da norma diante do caso concreto. Nas palavras de Garca de Enterra e Toms-Ramon Fernndez:

    36. MEDAUAR, Odete. Poder discricio-nrio da administrao. Revista dos Tribunais, So Paulo, v. 610, p.38-45, ago. 1996, p.42.

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    37 Curso de derecho administrativo. Tomo I. 10.ed. Madri: Civitas, 2001, p. 453.

    38 QUEIR, Afonso Rodrigues. A teoria do desvio de poder em direito admi-nistrativo. Revista de Direito Administra-tivo, Rio de Janeiro, n. 6, p.41-78, out. 1946, p. 44.

    39 Discrecionalidad administrativa y control judicial. Madri: Tecnos, 1994, p. 9. Nas lies de Karl Engisch, o conceito de discricionariedade (poder discricio-nrio) um dos conceitos mais pluris-significativos e mais difceis da teoria do Direito. Introduo ao pensamento jurdico. 8.ed. Traduo de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001, p. 214. Nesse mes-mo sentido, Csar David Ciriano Vela aduz que com independncia dos dis-tintos conceitos e tcnicas de controle utilizados, em todos os pases se consi-dera que o estudo da discricionariedade uma das questes mais importantes do Direito de nossos dias e, em es-pecial, do Direito administrativo. Por isso, absolutamente necessrio um aprofundamento na sua anlise. Admi-nistracin econmica y discrecionalidad (un anlisis normativo e jurisprudencial. Valladolid: Lex Nova, 2000, p. 65. Em idntico posicionamento, Francisco Lpez Menudo sustenta que a discricio-nariedade um tema clssico, ou qui possa qualific-lo como neoclssico. El control judicial de la administracin en la CE. In: Discrecionalidad administrati-va y control judicial. Eduardo Hinojosa Martnez; Nicols Gonzles-Deleito Domnguez (Orgs.) Madri: Civitas, 1996, p. 39.

    40 Teoria pura do direito. 6.ed. Traduo de Joo Baptista Machado. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 388.

    Definindo a Lei, porque no o pode deixar de fazer, em virtude das exigncias de explicitude e especificidade da potestade que atribui Administrao, algumas das condies de exerccio dessa potestade remete estimao subjetiva da Administrao o resto das referidas condies, bem como quanto integrao ltima do suposto de fato (...) bem como quanto ao contedo concreto, dentro dos limites legais, da deciso aplicvel (...), bem como de ambos os elementos.37

    O exerccio da discricionariedade pela Administrao Pblica comporta um elemento subjetivo para a completa integrao do comando legal ao caso particular. Nessa hiptese, a integrao da norma no ser considerada uma faculdade ilegal, proveniente de um suposto e hipottico poder originrio da Administrao. Ao contrrio, trata-se de uma atribuio estabelecida pela prpria lei exatamente com esse carter, de modo que a discricionariedade no se configura uma liberdade da Administrao Pblica em face da norma, mas, em sentido oposto, apresenta-se como um caso tpico de submisso legal. Com efeito, o poder discricionrio aparece, assim, como necessrio elemento na gradual formao do direito, ou das normas jurdicas; ele que as torna sucessivamente mais concretas.38

    O conceito doutrinrio de discricionariedade est longe de ser unssono. Bem por isso, Miguel Snchez Morn, ao ressaltar a discricionariedade admi-nistrativa como um conceito clssico da Teoria do Direito Pblico, assevera que difcil a esta altura dizer algo novo acerca do tema. um problema sempre recorrente, sobre o qual a polmica jamais parece se esgotar.39 A partir da segunda metade do sculo XX a funo discricionria detida pelo Poder Executivo vem sendo extremamente debatida em sede doutrinria, entre ns e alhures, haja vista as profundas mudanas ocorridas no sistema capitalista ps-moderno analisado em nossa primeira aula, notadamente nas duas lti-mas dcadas do sculo passado.

    Um comeo para o debate sobre o efeito polissmico de discricionarieda-de est na obra de Hans Kelsen. Em sua Teoria Pura do Direito, o autor ob-servou, acerca da relativa indeterminao do ato de aplicao do Direito, que a relao entre um escalo inferior da ordem jurdica e um superior uma relao de determinao ou vinculao, ou seja, a norma do escalo superior regula o ato por meio do qual produzida a norma do escalo inferior.40

    Entretanto, para o autor, esta determinao nunca completa. A norma do escalo superior no pode vincular em todas as direes (sob todos os aspectos) o ato por meio do qual ampliada. Tem sempre de ficar uma mar-gem, ora maior ora menor, de livre apreciao, de tal forma que a norma de escalo superior tem sempre, em relao ao ato de produo normativa ou de execuo que a aplica, o carter de um quadro ou moldura a preencher por

    37. Curso de derecho administrativo. Tomo I. 10.ed. Madri: Civitas, 2001, p. 453.38. QUEIR, Afonso Rodrigues. A teoria do desvio de poder em direito admi-nistrativo. Revista de Direito Administra-tivo, Rio de Janeiro, n. 6, p.41-78, out. 1946, p. 44.

    39. Discrecionalidad administrativa y control judicial. Madri: Tecnos, 1994, p. 9. Nas lies de Karl Engisch, o conceito de discricionariedade (poder discricio-nrio) um dos conceitos mais pluris-significativos e mais difceis da teoria do Direito. Introduo ao pensamento jurdico. 8.ed. Traduo de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001, p. 214. Nesse mes-mo sentido, Csar David Ciriano Vela aduz que com independncia dos dis-tintos conceitos e tcnicas de controle utilizados, em todos os pases se consi-dera que o estudo da discricionariedade uma das questes mais importantes do Direito de nossos dias e, em es-pecial, do Direito administrativo. Por isso, absolutamente necessrio um aprofundamento na sua anlise. Admi-nistracin econmica y discrecionalidad (un anlisis normativo e jurisprudencial. Valladolid: Lex Nova, 2000, p. 65. Em idntico posicionamento, Francisco Lpez Menudo sustenta que a discricio-nariedade um tema clssico, ou qui possa qualific-lo como neoclssico. El control judicial de la administracin en la CE. In: Discrecionalidad administrati-va y control judicial. Eduardo Hinojosa Martnez; Nicols Gonzles-Deleito Domnguez (Orgs.) Madri: Civitas, 1996, p. 39.

    40. Teoria pura do direito. 6.ed. Traduo de Joo Baptista Machado. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 388.

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    41 Idem.

    42 Sobre a crtica ao pensamento de Kel-sen, a publicista Maria Sylvia Zanella Di Pietro aponta, ainda, a dificuldade, se no a impossibilidade, de se distinguir a atividade vinculada da atividade dis-cricionria da Administrao Pblica, j que, para ele, cada ato implica um acrscimo em relao norma de grau superior, quando, na realidade, em se tratando de atividade vinculada, a Administrao tem que se limitar a constatar o atendimento dos requisitos legais, sem possibilidade de optar por soluo diversa daquela prevista em lei. Discricionariedade administrativa na Constituio de 1988. 2.ed. So Pau-lo: Atlas, 2001, p. 72.

    43 RIVERO, Jean. Direito administrativo. Traduo de Rogrio Ehrhardt Soares. Coimbra: Almedina, 1981, p. 94.

    44 Op. cit.

    45 Nesse sentido, BULLINGER, Martin. La discrecionalidad de la administracin pblica. Madri: La Ley, VII, 1986. Ver MAGIDE HERRERO, Mariano. Lmites constitucionales de las administraciones independientes. Madri: INAP, 2000, p. 247.

    46 Nessa linha de pensamento, ver MAGIDE HERRERO, Mariano. Lmites constitucionales de las administraciones independientes. Madri: INAP, 2000, p. 252. Em sentido prximo, Afonso Ro-drigues Queir sustenta que a discricio-nariedade representa uma faculdade de escolher uma entre vrias significa-es contidas num conceito normativo prtico, relativos s condies de fato do agir administrativo, escolha feita sempre dentro dos limites da lei. Op. cit., pp. 77-78.

    47 Los problemas del control judicial de la discrecionalidad tcnica. Madri: Ed. Civitas, 1997, p. 22.

    este ato. Sustenta que mesmo uma ordem, o mais pormenorizada possvel, tem de deixar quele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determi-naes a fazer.41

    certo que o pensamento desse mestre da Escola de Viena sofreu in-meras crticas, haja vista que na teoria de formao do direito por degraus o mesmo identifica discricionariedade e interpretao, quando sabido que na interpretao s deve haver uma nica soluo correta inserida no processo cognitivo, enquanto que na discricionariedade h o dever de escolha entre as opes decorrentes da norma.42

    Ademais disso, entre as atividades vinculadas e discricionrias da Adminis-trao Pblica deve haver certa dosagem, equilbrio, conforme o pensamen-to de Jean Rivero.43 Para o publicista francs, a atividade da Administrao no pode conformar-se com uma generalizao da competncia vinculada. indispensvel adaptar-se constantemente s circunstncias particulares e mutveis que a norma no pde prever. Inversamente, uma Administrao amplamente discricionria no ofereceria aos administrados qualquer segu-rana. Ela seria voltada ao arbtrio.44

    Diante dessas consideraes, como se deve compreender a discricionarie-dade administrativa? Tradicionalmente, define-se a discricionariedade como sendo uma margem de liberdade da Administrao que surge quando a sua atividade no est plenamente definida em lei.45

    A discricionariedade no surge da coincidncia de um espao de liberdade da Administrao Pblica com relao ao legislador e ao juiz. Ao contrrio, a discricionariedade decorre da eleio feita Poder Legislativo de permitir ao Poder Executivo uma contribuio no processo de determinao do interesse geral, a partir da ponderao de interesses particulares e coletivos. 46

    A esse respeito, Eva Desdentado Daroca47, uma das maiores estudiosas contemporneas sobre o tema da teoria da discricionariedade, ao ressaltar a ausncia de consenso doutrinrio em torno da utilizao da discricionarie-dade administrativa, define a discricionariedade como sendo a realizao de eleies de diferentes alternativas, quando do exerccio de poderes conferidos pela norma aberta. Por suas palavras, a discricionariedade administrativa:

    Consiste na realizao de escolhas entre diferentes alternativas com a finalidade de exercer uma potestade conferida pelo ordenamento ju-rdico e que este, no entanto, no regulou plenamente. A discriciona-riedade , pois, um modus operandi que se caracteriza pelos seguintes traos: 1) supe a adoo de decises dentro de uma margem de livre apreciao deixada pelo ordenamento jurdico; 2) implica um ato de escolha sobre a base de argumentos valorativos acerca dos quais pessoas razoveis podem diferir; e 3) a escolha se adota sempre conforme crit-rios valorativos extrajurdicos.

    41. Idem.42. Sobre a crtica ao pensamento de Kel-sen, a publicista Maria Sylvia Zanella Di Pietro aponta, ainda, a dificuldade, se no a impossibilidade, de se distinguir a atividade vinculada da atividade dis-cricionria da Administrao Pblica, j que, para ele, cada ato implica um acrscimo em relao norma de grau superior, quando, na realidade, em se tratando de atividade vinculada, a Administrao tem que se limitar a constatar o atendimento dos requisitos legais, sem possibilidade de optar por soluo diversa daquela prevista em lei. Discricionariedade administrativa na Constituio de 1988. 2.ed. So Pau-lo: Atlas, 2001, p. 72.43. RIVERO, Jean. Direito administrativo. Traduo de Rogrio Ehrhardt Soares. Coimbra: Almedina, 1981, p. 94. 44. Op. cit.45. Nesse sentido, BULLINGER, Martin. La discrecionalidad de la administracin pblica. Madri: La Ley, VII, 1986. Ver MAGIDE HERRERO, Mariano. Lmites constitucionales de las administraciones independientes. Madri: INAP, 2000, p. 247.46. Nessa linha de pensamento, ver MAGIDE HERRERO, Mariano. Lmites constitucionales de las administraciones independientes. Madri: INAP, 2000, p. 252. Em sentido prximo, Afonso Ro-drigues Queir sustenta que a discricio-nariedade representa uma faculdade de escolher uma entre vrias significa-es contidas num conceito normativo prtico, relativos s condies de fato do agir administrativo, escolha feita sempre dentro dos limites da lei. Op. cit., pp. 77-78.47. Los problemas del control judicial de la discrecionalidad tcnica. Madri: Ed. Civitas, 1997, p. 22.

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    48 Controle jurisdicional do ato adminis-trativo. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 150. Pensa em igual sentido o saudoso Hely Lopes Meirelles. Para o Autor, discricionariedade o que o Di-reito concede Administrao de modo explcito ou implcito, para a prtica de atos administrativos com liberdade na escolha de sua convenincia, oportuni-dade e contedo. MEIRELLES, Hely Lo-pes. Direito administrativo brasileiro. 18 ed. So Paulo: Malheiros, 1993, p. 102.

    49 Legitimidade e discricionariedade: no-vas reflexes sobre os limites e controle da discricionariedade. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p.22. Para a administra-tivista Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o conceito de discricionariedade admi-nistrativa pode ser resumido na facul-dade que a lei confere Administrao para avaliar o caso concreto, segundo critrios de oportunidade e convenin-cia, e escolher uma dentre duas ou mais solues, sendo todas elas vlidas pe-rante o direito. Discricionariedade admi-nistrativa na constituio de 1988. 2.ed. So Paulo: Atlas, 2001, p. 67. Em idnti-co sentido, Germana de Oliveira Moraes aduz que a discricionariedade resulta da abertura normativa, em funo da qual a lei confere ao administrador uma margem de liberdade para constituir o Direito no caso concreto, ou seja, para complementar a previso aberta da norma e configurar os efeitos parcial-mente previstos, mediante a pondera-o valorativa de interesses, com vista realizao do interesse pblico geral. Controle jurisdicional da administrao pblica. So Paulo: Dialtica, 2002, p. 39. Eis, por seu turno, o trecho do magistrio de Weida Zancaner, para quem a discricionariedade pode ocorrer quando a lei legitima o juzo subjetivo do administrador, para que complete o quadro regulativo necessrio ao exerc-cio do poder, ou para que exercite o de-ver de integrar in concreto o contedo rarefeito insculpido na regra de direito. Da convalidao e da invalidao dos atos administrativos. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 49.

    50 Sobre esse aspecto, h quem j sus-tente que o advento do neoconstitucio-nalismo, ou melhor, com a constitucio-nalizao do direito administrativo, no se deva admitir o instituto da discricio-nariedade administrativa, e sim uma juridicidade administrativa. BINEN-BOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalismo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

    Jos Cretella Jnior, por sua vez, definindo o ato administrativo discricio-nrio como conseqncia de um poder discricionrio da Administrao, aduz que a discricionariedade a manifestao concreta e unilateral da vonta-de da Administrao. Fundamentada em regra objetiva de direito que a legiti-ma e lhe assinala o fim, concretiza-se livremente, desvinculada de qualquer lei que lhe dite previamente a oportunidade e convenincia da conduta, sendo, pois, neste campo, insuscetvel de reviso judiciria.48

    No mesmo diapaso, Diogo de Figueiredo Moreira Neto define a discri-cionariedade como sendo a qualidade encarregada pela lei Administrao Pblica para determinar, de forma abstrata ou concretamente, o resduo de legitimidade necessrio para integrar a definio de elementos essenciais sua execuo, diretamente referido a um interesse pblico especfico.49

    Em vista das conceituaes trazidas colao, pode-se concluir que a nor-ma primria no aponta todos os caminhos a serem trilhados pela Adminis-trao diante do caso concreto, de modo que h diversos questionamentos quanto a poder ou no seus atos serem revisados totalmente pelo Poder Judi-cirio em vista do princpio da separao de poderes. 50

    Malgrado respeitveis posicionamentos doutrinrios acerca da conceitua-o da discricionariedade, referindo-se, unicamente, ao resduo deixado pela lei para ser integrado pelo Administrador diante do caso concreto (abertura da norma), isto , somente estando presente quando o legislador assim deter-minar, certo que uma corrente de pensamento sustenta a possibilidade da discricionariedade administrativa quando estiverem presentes na norma os conceitos jurdicos indeterminados, objeto da nossa prxima aula.

    Diante de todas essas questes, fica patente que o tema da discricionarie-dade administrativa est no centro do debate acerca dos limites da atuao da Administrao Pblica e seu controle pelo Poder Judicirio. Nesse contexto, reflita sobre os limites de atuao administrativa, para enfrentar o caso abaixo apresentado.

    V. RECURSOS/MATERIAIS UTILIZADOS

    Leitura obrigatria:

    BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Curso de direito administra-tivo. So Paulo: Malheiros, captulo intitulado O regulamento no direito brasileiro.

    48. Controle jurisdicional do ato adminis-trativo. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 150. Pensa em igual sentido o saudoso Hely Lopes Meirelles. Para o Autor, discricionariedade o que o Di-reito concede Administrao de modo explcito ou implcito, para a prtica de atos administrativos com liberdade na escolha de sua convenincia, oportuni-dade e contedo. MEIRELLES, Hely Lo-pes. Direito administrativo brasileiro. 18 ed. So Paulo: Malheiros, 1993, p. 102.49. Legitimidade e discricionariedade: no-vas reflexes sobre os limites e controle da discricionariedade. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p.22. Para a administra-tivista Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o conceito de discricionariedade admi-nistrativa pode ser resumido na facul-dade que a lei confere Administrao para avaliar o caso concreto, segundo critrios de oportunidade e convenin-cia, e escolher uma dentre duas ou mais solues, sendo todas elas vlidas pe-rante o direito. Discricionariedade admi-nistrativa na constituio de 1988. 2.ed. So Paulo: Atlas, 2001, p. 67. Em idnti-co sentido, Germana de Oliveira Moraes aduz que a discricionariedade resulta da abertura normativa, em funo da qual a lei confere ao administrador uma margem de liberdade para constituir o Direito no caso concreto, ou seja, para complementar a previso aberta da norma e configurar os efeitos parcial-mente previstos, mediante a pondera-o valorativa de interesses, com vista realizao do interesse pblico geral. Controle jurisdicional da administrao pblica. So Paulo: Dialtica, 2002, p. 39. Eis, por seu turno, o trecho do magistrio de Weida Zancaner, para quem a discricionariedade pode ocorrer quando a lei legitima o juzo subjetivo do administrador, para que complete o quadro regulativo necessrio ao exerc-cio do poder, ou para que exercite o de-ver de integrar in concreto o contedo rarefeito insculpido na regra de direito. Da convalidao e da invalidao dos atos administrativos. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 49.50. Sobre esse aspecto, h quem j sus-tente que o advento do neoconstitucio-nalismo, ou melhor, com a constitucio-nalizao do direito administrativo, no se deva admitir o instituto da discricio-nariedade administrativa, e sim uma juridicidade administrativa. BINEN-BOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalismo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

  • ATIVIDADES E ATOS ADMINISTRATIVOS

    FGV DIR