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SUMMA BUROCRÁTICA Já não se pode ouvir falar contra a burocracia. Não se pode. É fácil de mais. Quero, ao contrário, defender aqui uma tese impopular: não basta a burocracia que há. É preciso aumentá-la, dispersá-la, complicá-la. Muito, mesmo. E o argumento é simples: enquanto a burocracia se mantiver num nível tolerável, nós toleramo-la. Será uma forma gramatical arrevesada, mas nós toleramo-la, mesmo assim. Mas se a burocracia se torna insuportável? Suportá-la-emos? Ainda não sabemos, mas nessa altura se verá. É crucial, portanto, que a burocracia se estenda, se adense e se aprofunde, que se aperte o cerco. Ponham-se os olhos em ministérios e serviços públicos – ali sim, temos um bom exemplo de como otimizar os processos para que eles não funcionem. Porque reparem que as coisas, se não são infinitamente complexas, quando deixadas ao seu próprio critério, funcionam bem. Olhem os lírios dos campos, olhem os peixes dos mares. A Natureza toda, com os seus ciclos regulares. Mesmo um grupo de crianças de seis anos, se não for monitorizado por um adulto profissionalizado sem crianças, que as irrite com sugestões e ideias de brincadeiras, arranja sem, qualquer dificuldade um sistema de funcionamento. Qualquer organismo se organiza, se equilibra espontaneamente. É por isso que é preciso otimizar as condições que façam com que os serviços não funcionem. Tem de se dar uma ajudinha científica à realidade. Há vários métodos empíricos, todos eles testados com êxito. Por exemplo, é de inteira conveniência que os funcionários andem em serviço fora da empresa todo o dia. Assim, se algum consumidor tiver a veleidade de uma reclamação, de um tímido protesto, é informado que o senhor Matos ou anda fora em serviço ou já saiu e só volta amanhã. Outra regra de ouro: nunca divulgar que funcionário é responsável por que área dos serviços. Ou ir ainda mais longe, e fazer constar que a Dona Mariquita trata dos pagamentos em atraso, para grande espanto da própria Dona Mariquita, que há vinte anos não faz absolutamente nada. Arriscaria ainda outra regra, de mui longo alcance: contratar exclusivamente pessoas da mesma família. Isto é arriscado, mas ousar lutar, ousar 1

Ficha 8 - Crónica I

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SUMMA BUROCRÁTICA

Já não se pode ouvir falar contra a burocracia. Não se pode. É fácil de mais. Quero, ao contrário, defender aqui uma tese impopular: não basta a burocracia que há. É preciso aumentá-la, dispersá-la, complicá-la. Muito, mesmo. E o argumento é simples: enquanto a burocracia se mantiver num nível tolerável, nós toleramo-la. Será uma forma gramatical arrevesada, mas nós toleramo-la, mesmo assim. Mas se a burocracia se torna insuportável? Suportá-la-emos? Ainda não sabemos, mas nessa altura se verá.

É crucial, portanto, que a burocracia se estenda, se adense e se aprofunde, que se aperte o cerco. Ponham-se os olhos em ministérios e serviços públicos – ali sim, temos um bom exemplo de como otimizar os processos para que eles não funcionem. Porque reparem que as coisas, se não são infinitamente complexas, quando deixadas ao seu próprio critério, funcionam bem. Olhem os lírios dos campos, olhem os peixes dos mares. A Natureza toda, com os seus ciclos regulares. Mesmo um grupo de crianças de seis anos, se não for monitorizado por um adulto profissionalizado sem crianças, que as irrite com sugestões e ideias de brincadeiras, arranja sem, qualquer dificuldade um sistema de funcionamento. Qualquer organismo se organiza, se equilibra espontaneamente.

É por isso que é preciso otimizar as condições que façam com que os serviços não funcionem. Tem de se dar uma ajudinha científica à realidade. Há vários métodos empíricos, todos eles testados com êxito. Por exemplo, é de inteira conveniência que os funcionários andem em serviço fora da empresa todo o dia. Assim, se algum consumidor tiver a veleidade de uma reclamação, de um tímido protesto, é informado que o senhor Matos ou anda fora em serviço ou já saiu e só volta amanhã. Outra regra de ouro: nunca divulgar que funcionário é responsável por que área dos serviços. Ou ir ainda mais longe, e fazer constar que a Dona Mariquita trata dos pagamentos em atraso, para grande espanto da própria Dona Mariquita, que há vinte anos não faz absolutamente nada. Arriscaria ainda outra regra, de mui longo alcance: contratar exclusivamente pessoas da mesma família. Isto é arriscado, mas ousar lutar, ousar vencer. As pessoas da mesma família tendem a ir de férias juntas, a ficar doentes juntas e, em geral, a ter as mesmas idiossincrasias. Isto causaria ausências coletivas que poderiam facilmente bloquear os serviços. Uma rixa familiar seria uma festa, uma zanga conjugal poderia e deveria fazer um grande número de vítimas inocentes. Um outro princípio simples é, naturalmente, afastar o mais possível uns dos outros os vários departamentos dos serviços. Assim, para alcançar entregar um requerimento em Santos, seria necessário ir consultar as instruções a Entrecampos, copiar a minuta ao Cais do Sodré, comprar o papel formato X em Sacavém, ir comprar o selo a uma loja especializada ali à Avenida da República, vir carimbá-los, à Praça da Figueira e subir a entregá-lo em Entrecampos. Assim, sim, seria impossível. São tudo pequenas coisas, eu sei, mas de magnas consequências.

Outro caminho, mais perverso, de relacionar o cidadão com a burocracia começou apenas agora a ser testado – é a Loja do Cidadão. A Loja do Cidadão aposta no caminho inverso propõe-se simplificar a burocracia de forma que quase raia o ridículo. O leitor ainda não conhece a Loja do Cidadão. Considere-se feliz na sua

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ignorância e mantenha-se afastado. A Loja do Cidadão provoca êxtase burocrático. Vicia em burocracia. É o sonho dourado de qualquer verdadeiro burocrata – tornar a burocracia gira, jovem, acessível e divertida em vez de tentar acabar com ela.

Um amigo conta-me que se tomou de frenesi burocrático logo à entrada. Aquilo é um imenso centro comercial de vinte e tantas chafarias administrativas, a Direção Geral de Viação ombro a ombro com a companhia dos telefones, ao lado das eletricidades, a repartição de finanças, o arquivo de identificação, correios, pousadas de Portugal, e etc. e etc. Em querendo, a gente trata da nossa vida e põe-se em dia em menos de um fósforo. Renova-se a carta de condução, o bilhete de identidade, o cartão de contribuinte, mesmo sem necessidade. Tira-se a senha de vez e corre-se em delírio de balcão para balcão, mesmo que não precise de nada – é tão fácil, é tão barato, porque não? E sou só o número vinte na bicha, posso pagar já o imposto? Posso? Oh, por favor!

Luísa Costa Gomes, Isto e mais isto e mais isto (Crónicas 1998-1999), Ed. Notícias, 2000

I – Compreensão Escrita

1. Em que organismos a burocracia atinge o seu auge.

2. “Quero (...) defender aqui uma tese impopular.”2.1. Explique a tese que a autora defende neste texto.2.2. Na sua opinião, concorda em relação ao facto de esta tese ser “impopular”? Porquê?

3. No início do terceiro parágrafo, Luísa Costa Gomes chega à seguinte conclusão: “É por isso que é preciso otimizar as condições que façam com que os serviços não funcionem”.3.1. “É por isso que...” é um conector, portanto, estabelece uma ligação com o parágrafo

anterior,3.1.1. Qual é a frase do segundo parágrafo que resume o raciocínio de todo o

parágrafo?3.1.2. Quais são os exemplos apontados para provar que “as coisas, (...) quando

deixadas ao seu próprio critério, funcionam bem”.3.1.3. Identifique as cinco sugestões dadas pela autora para complicar ainda mais o

funcionamento dos “serviços” que já funcionam mal.3.1.4. Sinalize, no terceiro parágrafo, as palavras “veleidade”, “idiossincrasias” e

“magnas” e substitua-as por sinónimos adequados ao contexto.

II – Funcionamento da Língua

1. Classifique os verbos presentes nas seguintes frases:1.1. “Quero defender aqui uma tese impopular (...)”1.2. “Aquilo é um imenso centro comercial (...)”1.3. “O leitor ainda não conhece a loja do cidadão?”1.4. “Posso pagar já o imposto?”

2. Identifique o tipo de conjugação presente na seguinte frase:

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2.1. “Suportá-la-emos?”

3. Identifique e classifique o valor da modalidade presente nas seguintes frases:3.1. “É preciso aumentá-la, dispersá-la, complicá-la.” 3.2. “Ainda não sabemos (...).”

4. Analise sintaticamente as seguintes frases:4.1. “A Loja do Cidadão provoca êxtase burocrático.”4.2. “ (...) o argumento é simples.”

5. Reescreva as frases seguintes, substituindo as expressões sublinhadas por pronomes:5.1. Os alunos foram visitar a antiga professora.5.2. Eles enviaram livros para Timor.5.3. Se ele se atrasar, telefonará à mãe.5.4. Eu daria a bicicleta ao Zé caso ele merecesse.

6. Sublinhe as formas perifrásticas e indique o seu valor em cada caso:6.1. Ele estava a adormecer no momento em que tu ligaste.6.2. Despacha-te! O filme está a começar.6.3. Apesar da idade que tenho, continuo a viajar.6.4. A roupa está-lhe curta; hei de comprar-lhe uma nova.6.5. Ele está a fazer progressos.

7. Classifique cada um dos verbos destacados no texto abaixo, colocando-os no respetivo lugar da grelha: Trovejou toda a noite e os cães ladraram furiosamente. Ele tinha passado a noite em claro e estava muito cansado. Quando o despertador tocou, ele desligou-o e fechou os olhos.

Verbo principal

IntransitivoTransitivo diretoTransitivo indiretoTransitivo direto e indiretoTransitivo-predicativoImpessoal

Verbo auxiliarVerbo copulativo

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