40
Universidade Federal De Santa Catarina Centro de Ciências Jurídicas 1ª Fase de Graduação em Direito - Diurno História do Direito – Antonio Carlos Wolkmer Fichamento do livro: “Fundamentos da História do Direito” Organizador Antonio Carlos Wolkmer Eduardo Moretti

Fichamento Do Livro Fundamentos Da História Do Direito - Antonio Carlos Wolkmer

  • Upload
    eduardo

  • View
    173

  • Download
    148

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Historia do direito. UFSC. Antonio carlos Wolkmer.

Citation preview

Universidade Federal De Santa Catarina

Centro de Cincias Jurdicas1 Fase de Graduao em Direito - DiurnoHistria do Direito Antonio Carlos Wolkmer

Fichamento do livro:Fundamentos da Histria do DireitoOrganizador Antonio Carlos Wolkmer

Eduardo Moretti

Florianpolis, 18 de julho de 2011

DIREITO E SOCIEDADE NO ORIENTE ANTIGO: MESOPOTAMIA E EGITO Pode-se ilustrar a transio das formas arcaicas de sociedade para as primeiras civilizaes da Antiguidade mediante trs fatores histricos: (l) o surgimento das cidades; (2) a inveno e domnio da escrita e (3) o advento do comrcio e, numa etapa posterior, da moeda metlica. (p.15)A sntese desses trs elementos - cidades, escrita, comrcio representa a derrocada de uma sociedade fechada, organizada em tribos ou cls, com pouca diferenciao de papis sociais e fortemente influenciada, no plano das mentalidades, por aspectos msticos ou religiosos. H, nessas sociedades arcaicas, um direito ainda incipiente, bastante concreto, cognoscvel apenas pelo costume e que se confunde com a prpria religio. (p.18)Mas, aos poucos, vai se construindo uma nova sociedade urbana, aberta a trocas materiais e intercmbio de experincias polticas, mais dinmica e complexa , que demandar um novo direito. (p.18)A proximidade das datas de consolidao das civilizaes mesopotmica e egpcia no pode, por bvio, ser tratada como mera coincidncia histrica. (p.20)Ao contrrio de povos que precisavam manter-se em territrio litorneo, desrtico ou montanhoso - como os habitantes das regies da Fencia, Sria, Palestina ou Prsia -, os mesopotmicos e egpcios formaram suas civilizaes em torno dos rios Tigre, Eufrates e Nilo. Tal circunstncia permite, por bvio, a existncia de solo propcio agricultura, bem como a navegao fluvial, essencial para o transporte de mercadorias e sofisticao do comrcio. E todos esses fatores contribuem para um crescimento mais acelerado da populao dessas sociedades, bem como um maior desenvolvimento poltico e econmico. (p.20)A principal caracterstica comum da organizao poltica das civilizaes aqui analisadas consiste no fato de que ambas desenvolveram a monarquia como forma de governo. As diferenas, entretanto, neste terreno, so muito mais evidentes. (p.22)No Egito [...] consolidou-se uma monarquia unificada, com um poder central bastante definido, titularizado pelo fara, e com uma capital instalada em determinada cidade do reino (que podia ser Mnfis, Tebas, Sais, entre outras).[...] notvel a durabilidade da estrutura centralizada do antigo Egito [...] Conclui, ento, o mesmo autor (Jos das Candeias Sales): mais extraordinrio ainda o fato de, durante os mais de trs milnios , a realeza egpcia nunca ter sido verdadeiramente posta em questo. (p.22)Evidentemente, a experincia poltica na Mesopotmia era diversa; desde seus primrdios, essa civilizao optou pela fundao de cidades comumente designadas cidades-estado com alto grau de independncia. Cada cidade tinha seu governante, seus rgos polticos, e, muitas vezes, seu prprio exrcito. [...] Todas essas cidades possuam soberanos e divindades prprios. [...] ntido, ento, o contraste entre unidade do exerccio do poder poltico, no antigo Egito, e a fragmentao desse poder entre as vrias cidades da Mesopotmia (p.22-23) [...]consagrou-se, no Egito, a concepo de que o monarca no era um simples representante divino na Terra. Ele era o prprio deus. (p.23)De modo absolutamente contrrio [...] na Mesopotmia, com a instabilidade natural j descrita e a fragmentao do poder poltico entre vrios monarcas (os quais, frequentemente, guerreavam entre si), era simplesmente impossvel fundar a dominao do rei com base na assuno de uma divindade. Na verdade, a monarquia, nas cidades do Tigre e do Eufrates, assumiu um carter mais humano. O rei era, to-somente, um representante de deus (a divindade escolhida pela cidade) na Terra. E, nesse contexto, estava tambm submetido a limitaes e contingncias tpicas de qualquer ser humano. (p.23)[...] as sociedades mesopotmica e egpcia, em face de seu carter urbano e comercial, passaram a desenvolver um grau de complexidade que exigia a vigncia de um direito mais abstrato do que o simples costume ou tradio religiosa. Era necessrio um conjunto de leis escritas, que desse previsibilidade s aes no campo privado, que estipulasse algum tipo de tribunal ou juiz para resolver controvrsias e que fosse inteiramente seguido em toda a extenso do reino para o qual se destinava. Ambas as sociedades aqui estudadas atingiram esse estgio. Deve ser ressalvado, contudo, o fato de que uma caracterstica do direito arcaico ainda produziu efeitos nessas civilizaes urbanas: as normas de direito tinham sua justificao no princpio da revelao divina.(p.25)[...] quando se fala da existncia de cdigos na antiga Mesopotmia, claro que esta expresso no deve ser compreendida em seu sentido moderno (como um documento sistematizado, dotado de princpios gerais, categorias, conceitos e institutos, pensado para vigorar como um conjunto de preceitos gerais e abstratos). A configurao do direito, no alvorecer da Antiguidade, reflete o estado de maturidade poltica e institucional da poca. O emprego da expresso cdigo para descrever as normas de direito escrito produzidas na Mesopotmia encontra fundamento to-somente na tradio. No h qualquer paralelo com os cdigos de inspirao napolenica. (p.26)O primeiro desses cdigos da antiga Mesopotmia surge no perodo compreendido entre 2140 e 2004 a.C., na regio da Sumria. (p.26)A estrutura geral deste Cdigo e dos outros que lhe sucedero pode ser descrita como um meio-termo entre o direito fortemente concreto das sociedades arcaicas (pensado e manifestado exclusivamente para o caso em discusso) e as formas abstratas e gerais que caracterizam o direito moderno. Esses cdigos so constitudos, na correta sntese de Ciro Flamarion Cardoso, de esforos em direo a certa unificao da legislao que incluram a promulgao da primeira compilao importante de precedentes judicirios ou julgamentos tpicos. As normas ostentam o perfil de costumes reduzidos a escrito, ou, ento, de decises anteriormente proferidas em algum caso concreto. (p.27)[...] a promulgao do Cdigo de Hammurabi. Descoberto na Prsia, em 1901, por uma misso arqueolgica francesa, o documento legal, gravado em pedra negra, encontra-se hoje no Museu do Louvre. O Cdigo foi promulgado, aproximadamente, em 1694 a.C., no perodo de apogeu do imprio babilnico, pelo rei Hammurabi. Ele composto por 282 artigos, dispostos em cerca de 3600 linhas de texto, que abrangem quase todos os aspectos ligados dinmica da sociedade babilnica, desde penas definidas com preciso de detalhes at institutos do direito privado, passando, ainda, por uma rigorosa regulamentao do domnio econmico. O Cdigo representa, ainda hoje, uma das principais fontes histricas disponveis para o estudo da antiga Mesopotmia. Tudo indica, na verdade, que se trata de uma grande compilao de normas anteriormente dispostas em outros documentos e de decises tomadas em casos concretos, que serviram de base para a elaborao dos artigos. (p.29)

Mesmo no perodo de maior centralizao do poder poltico auge dos imprios sumrio, acdico, babilnico, assrio e neobabilnico - no se formou, nas cidades da Mesopotmia, uma estrutura burocrtico-profissional nos moldes existentes no Egito antigo. Havia, isso sim, funcionrios do palcio real e sacerdotes locais, que auxiliavam o soberano na aplicao do direito. Mas, em regra, os juzes eram nomeados pelo prprio monarca, que poderia, igualmente, ser instado para decidir, em grau de recurso, determinada causa existente no reino. (p.31-32)

Nenhum texto legal do perodo antigo do Egito chegou ao conhecimento do homem moderno. H, contudo, excertos de contratos, testamentos, decises judiciais e atos administrativos alm, claro, de uma abundncia de referncias indiretas s normas jurdicas em textos sagrados e narrativas literrias que permitem inferir alguns aspectos da experincia egpcia no campo do direito. (p.32)

A aplicao do direito (egpcio) estava subordinada, ento, incidncia de um critrio divino de justia. [...] confere direta e expressamente ao fara a responsabilidade de estabelecer a Justia, a Paz, o Equilbrio e a Solidariedade social e csmica da sociedade terrena. (p.33)

Convm ressaltar, enfim, que a jurisdio era titularizada pelo fara, que poderia, a seu critrio, delegar funcionrios especializados para a tarefa de decidir questes concretas. Em regra, esse funcionrio era o vizir, que vinha logo abaixo do soberano na hierarquia poltica do Egito (p.33)

plausvel supor, nesse contexto, que alguns dos institutos jurdicos existentes na Mesopotmia e do Egito tenham sido absorvidos pelos hititas e posteriormente transferidos para as sociedades do mundo grego. [...] Tampouco seria equivocado apontar a subsistncia, na sociedade e no direito romanos, de institutos provenientes da Mesopotmia e do Egito antigos, como a celebrao de espcies diversificadas de contratos e a centralizao administrativa apoiada por um corpo burocrtico estvel. razovel conceber, ento, um panorama de circulao de ideias na regio do Mediterrneo, que pode ter auxiliado na conformao de institutos jurdicos posteriormente legados ao patrimnio do Ocidente. (p.35-36)

DIREITO ROMANO CLSSICO: SEUS INSTITUTOS JURDICOS E SEU LEGADO

Esse mundo era caracterizado por formas de dominao diferentes das atuais, incluindo a um universo jurdico construdo por formas peculiares de controle social, mantidas pela fora coativa e pela persuaso de um universo cultural constitudo por uma religio, uma moral e filosofia tpicas daquela civilizao da Antiguidade Clssica. (p.123)

O universo cultural e a significao moral advindas desse mundo escravagista atribuam ao direito civil romano a forma de direito material e instrumental, baseado em ardis e fraudes, que por sua vez acabavam beneficiando os mais fortes em face da existncia de uma sociedade extremamente desigual, em que o direito formal permitia usualmente apenas aos mais fortes beneficiar-se do sistema jurdico existente devido ao seu poder material alicerado nos planos econmico e militar (p.124-125)

No existiam a autoridade e a coero pblicas indispensveis implementao de decises judiciais; e as violaes mais cruis possuam apenas um carter civil; no existia, portanto, coao pblica capaz de impor a sano penal, visando proteo contra a violncia que atingisse os bens jurdicos relevantes; as citaes eram feitas pelas prprias partes, que dependiam muitas vezes de poder militar para obter xito nesta iniciativa; no existia, pois, um poder pblico coativo e exterior, capaz de impor a sano jurdica de forma organizada e centralizada (p.125)

A expresso direito romano empregada ainda para designar as regras jurdicas consubstanciadas no Corpus Juris Civilis, conjunto ordenado de leis e princpios jurdicos reduzidos a um corpo nico, sistemtico, harmnico, mas formado de vrias partes, planejado e levado a efeito no VI sculo de nossa era por ordem do imperador Justiniano, de Constantinopla, monumento jurdico da maior importncia, que atravessou sculos e chegou at nossos dias. (p.127)

O direito romano continua vivo em vrias instituies liberais individualistas contemporneas, principalmente naquelas instituies jurdicas concernentes ao direito de propriedade no seu prisma civilista e ao direito das obrigaes, norteando o carter privatstico do nosso Cdigo Civil (p. 128)

Na fase da Realeza surgem algumas instituies poltico-jurdicas ainda muito vinculadas existncia de um Estado Teocrtico. O cargo de rei assume carter de magistratura vitalcia, sendo ao mesmo tempo chefe poltico, jurdico, religioso e militar, ou seja, o rei era o magistrato nico, vitalcio e irresponsvel. (p.130)

O Senado funcionava como uma espcie de Conselho do Rei [...] sua funo era consultativa e no deliberativa (p.130)

O direito era essencialmente costumeiro, sendo a jurisprudncia monopolizada pelos pontfices. (p.130)

No perodo da Repblica, as magistraturas passaram a ganhar mais prestgio, destacando-se do poder dos dois cnsules, que inicialmente so as magistraturas nicas e vitalcias; comandam o exrcito, velam pela segurana pblica, procedem recenseamento da populao, administram a justia criminal. (p.130)

A plebe depois consegue tambm o direito de participar de outras magistraturas (p.131)

As fontes do direito na Republica so o costume, a lei, e os editos dos magistrados (p. 131)

Finalmente, no perodo do Principado surgem os comcios centuariatos, que teriam aparecido conforme a tradio na poca do Imperador Srvio Tlio. Tais comcios seriam agrupados em cinco classes divididas de acordo com a riqueza imobiliria; mais tarde, os bens mveis foram tambm computados no recenseamento da riqueza dos cidados romanos, patrcios e plebeus. As classes superiores, dos cavaleiros e dos proprietrios fundirios patrcios, terminavam por prevalecer s votaes centuriais, devido ao peso excessivo atribudo nas votaes das duas primeiras centrias, compostas de membros da classe privilegiada romana. (p.131)

O ltimo perodo da histria da civilizao romana o do baixo Imprio (dominato), quando ocorre a cristianizao do Imprio, e tambm a decadncia poltica e cultural; a fonte de criao do direito passa a ser a constituio imperial (p. 132)

A incerteza na aplicao do direito , por parte dos magistrados patrcios , levou a plebe a pleitear a elaborao de leis escritas. (p.132) A lei das XII Tbuas foi elaborada por uma comisso de trs magistrados, encarregados de pesquisar, na Magna Grcia , as leis de Slon, propiciando a criao de um cdigo escrito de leis romanas.(p. 133)

A Lei das XII Tbuas j protegia a propriedade, punindo aqueles que contra ela atentassem, furtando-a, danificando-a, etc. Todavia, mesmo sendo considerado mais forte poder de uma pessoa sobre um objeto, o direito de propriedade nunca teve carter ilimitado e absoluto em Roma (p. 137)

Os romanos no possuam um termo preciso para exprimir a noo de personalidade jurdica. A palavra latina persona, que originariamente quer dizer mscara, utilizada nos textos com significao de homem em geral, tanto que se aplica aos escravos, que no eram sujeitos de direito. H duas categorias de pessoas: as fsicas, ou naturais, e as jurdicas, seres abstratos, que a ordem jurdica considera sujeitos de direito. Hoje basta o nascimento com vida. Na poca dos romanos exigiam-se trs requisitos: a) o nascimento; b) vida extra-uterina, c) forma humana. Para ter a capacidade jurdica plena, o sujeito devia ser cidado romano (status civitatis); em segundo lugar, devia ser livre (status libertatis) e gozar de situao independente no seio da famlia (sui iuris). (p.141)

[...] algumas noes jurdicas modernas surgiram da reinterpretao das fontes histricas do direito romano: os conceitos jurdicos de direito objetivo (norma agendi) e subjetivo (ius est facultas agendi), conceitos extremamente importantes para o direito pblico; e tambm os conceitos de ato e fato jurdico e a questo da irretroatividade das leis civis foram pioneiramente concebidos pelos romanos. (p.141)

Existem vrias teses sobre a queda do Imprio Romano, assim, vrios fatores podem ter contribudo e se conjugado para a sua queda: o colapso da economia escravagista; a falncia dos pequenos agricultores, devido ao fluxo gratuito de cereais das colnias conquistadas, como parte do trabalho de pilhagem romana; o crescimento do exrcito de desocupados urbanos, que exigiam gastos vultuosos do Estado(p.143)

[...] o exrcito no cultivava mais a disciplina dos velhos tempos, era composto essencialmente por 9/10 de mercenrios estrangeiros, sendo frequentemente dizimado para conter o povo, que explodia em rebelies internas conduzidas pelos pobres de Roma (guerra civil interna). [...]Os federati e os coloni, brbaros, passaram a ocupar as fronteiras do imprio, e os habitantes das urbs (cidades) foram paulatinamente migrando para o campo em busca de segurana privada dos grandes proprietrios, que tinham exrcitos particulares para se defender. O modo de produo escravagista foi sendo paulatinamente substitudo por uma economia de subsistncia agrria e esttica (no havia troca monetria, mas escambo, troca de um objeto por outro, sem um equivalente geral abstrato de troca, a moeda), baseada no trabalho servil e nos valores de uso. A economia escravagista sucumbiu ao trabalho servil e a Europa ocidental se fragmenta em unidades de produo descentralizadas que constituram o feudalismo no velho continente, sob o novo imprio da Igreja, nica instituio burocrtica dotada de centralizao (p.143)

A continuidade dos estudos sobre o direito romano justificava-se pela sua apropriao pelos ordenamentos jurdicos europeus [...] com o ressurgimento do comrcio em decorrncia do renascimento comercial europeu, criando a necessidade da construo de um direito privado moderno a partir de um sistema mais abstrato, formal e adaptado s exigncias do direito civil e comercial surgidos. (p.146)

A recepo do direito romano pela administrao de justia do Ocidente deu-se unicamente pela necessidade de acolher as suas qualidades formais genricas que, com a inevitvel especializao crescente da vida tcnica, ajudavam os burgueses na conduo das prticas capitalistas. Ao contrrio, os mesmos burgueses no estavam em absoluto interessados na apropriao das determinaes materiais do direito romano; as instituies de direito mercantil medieval e do direito de propriedade de suas cidades satisfaziam muito melhor suas necessidades. (p. 148)

Com a recepo do direito romano, houve uma importante alterao na estrutura do pensamento jurdico ocidental. As produes jurdicas, apesar de embasarem-se na lgica jurdica abstrata, no eram sistemticas, pois uma produo jurdica ocasional destinava-se soluo de um dado caso, podendo ser desprezada em outro. A sistematizao do direito ocorre em etapa posterior e coloca o direito romano como disciplina histrica, aps a sua reapropriao na modernidade. (p. 149)

Isto constitua o carter indutivo e emprico do direito desse perodo. A partir da incorporao de postulados formalistas do direito romano, o direito ocidental adquire o carter dedutivo que lhe caracterstico, com seu significado universalizador, abstrato e consubstanciado pelo atendimento dos requisitos formais essenciais. (p. 149)

A ordem legal capitalista encontrou substratos fundantes no sistema romano germnico, no nos seus aspectos materiais j ultrapassados, mas sim nos seus aspectos racionalizantes, que permitiram a certeza e a segurana do clculo capitalista nas modernas economias. (p. 153)

O DIREITO ROMANO E SEU RESSURGIMENTO NO FINAL DA IDADE MDIA

A histria da civilizao romana, e consequentemente a de seu direito, abrange um perodo de cerca de 12 sculos, cujo marco inicial remonta fundao da cidade de Roma em 753 a.C. e vai at a queda do Imprio Romano Ocidental em 476 de nossa era. (p. 180)

Com relao histria do direito, tambm podemos identificar trs perodos, no necessariamente correspondentes aos perodos da evoluo poltica de [...]. O primeiro perodo diz respeito ao direito primitivo, que remonta poca da fundao da cidade de Roma e perdura at meados do sculo II a.C. O segundo perodo o do direito clssico, cujo desenvolvimento se d entre os sculos II a.C. e II d.C. Por fim, o perodo ps-clssico, que basicamente corresponde ao direito praticado no baixo imprio e se encerra com a codificao de Justiniano. (p. 180)

O direito romano primitivo ou arcaico abrange toda a poca da realeza e uma parte do perodo republicano. Constitui um direito essencialmente consuetudinrio caracterstico de uma sociedade organizada em cls, que pouco conhecia o uso da escrita. (p.187)

No havia uma ntida diferenciao entre o direito e a religio, pois eram os sacerdotes que, at o perodo de 300-250 a.C., conheciam as formas e rituais de interpretao da lei.(p.187)

A esta poca pertenceu a famosa Lei das XII Tbuas, cujo texto, gravado em 12 placas de madeira, teria sido afixado no frum da cidade de Roma por volta de 449-451 a.C. O seu propsito era o de resolver certos conflitos entre plebeus e patrcios. [...] A Lei das XII Tbuas no chegou a formar um cdigo, no sentido moderno do termo, tampouco um conjunto de leis; parece antes uma reduo, em forma escrita, de costumes ento vigentes. (p.187)

A poca clssica do direito romano coincide com o perodo de maior desenvolvimento de sua civilizao. Tal perodo abrange o espao , compreendido entre os sculos II a.C. e II d.C. (p.187)

O direito de ento apresenta um carter essencialmente laico e individualista, cuja interpretao de suas fontes, cada vez mais de natureza legislativa do que consuetudinria, compete a um corpo de profissionais especializados: os jurisconsultos (p. 187)

Outra importante fonte do direito romano, alm da legislao e da doutrina (jurisprudncia), eram os editos dos magistrados - os pretores em Roma e os governadores das provncias. Estes gozavam de um amplo poder de criao normativa, uma vez que as leis forneciam elementos bastante gerais e abstratos.[...] Os amplos poderes concedidos aos magistrados permitiam uma grande maleabilidade do direito romano, o que possibilitou uma melhor adaptao com o direito e os costumes das populaes submetidas ao seu domnio (p.189)

A decadncia econmica e poltica de Roma no baixo imprio no poderia deixar de afetar o direito. Este ficou adstrito, durante o dominato, compilao dos preceitos formulados na poca clssica de sua existncia. (p. 190)

[...]esforo de codificao empreendido sob o governo do imperador Justiniano em 527-534 d.C. O ambicioso projeto, que foi levado a termo por uma comisso de dez juristas - notadamente Triboniano e Tefilo -, consistia na compilao de todas as fontes antigas do direito romano e sua harmonizao com o direito ento vigente. (p. 191)

Em concluso, o direito do baixo imprio no apresentou nenhuma contribuio significativa ao trabalho dos juristas clssicos. Como assinala Villey, o grande mrito do direito ps-clssico foi o de ter conservado, atravs do trabalho dos compiladores, as obras dos jurisconsultos romanos do perodo ureo de seu direito. (p. 192)

Com a invaso brbara e o colapso do Imprio Romano Ocidental [...] As populaes passaram ento a viver de acordo com as suas prprias leis, a isto se denominou princpio da personalidade do direito, ou seja, o indivduo vive segundo as regras jurdicas de seu povo, raa, tribo ou nao, no importando o local onde esteja.

[...] o direito fica adstrito s relaes feudo-vasslicas, ou seja, as relaes dos senhores com os seus servos. O costume passa a ser a fonte por excelncia do direito feudal. Inexistiram escritos jurdicos nos sculos X e XI. [...] A justia feita, na maior parte das vezes, apelando para a vontade divina; a poca dos ordlios e dos duelos judicirios. Todos os vestgios do direito romano desaparecem por volta do sculo X, exceto em algumas regies de forte tradio latina, como a Itlia, Espanha e sul da Frana, onde sobrevivem sob a forma de costumes locais. (p.193)

A partir do final do sculo XII e incio do sculo XIII, o direito romano desperta um novo interesse. [...] O Corpus Juris Civilis de Justiniano, recm-descoberto pelos juristas europeus, tornou-se a principal fonte para o estudo do direito romano.(p.194)

Os sculos da recepo do direito romano (XII-XIII) so tambm os do desenvolvimento da burguesia europeia. O capitalismo mercantil exigia uma nova estrutura jurdica, mais adequada s novas relaes econmicas emergentes. Em primeiro lugar, havia a necessidade de um direito estvel que garantisse uma efetiva segurana institucional e jurdica s operaes comerciais. Em segundo lugar, um direito universalmente vlido que unificasse os diversos sistemas europeus de forma a garantir um mercado internacional. E por fim, um sistema legal que libertasse a atividade mercantil das limitaes comunitaristas ou de ordem moral que lhes impunham os ordenamentos feudais e eclesisticos. O direito romano-justinianeu atendia a todas essas exigncias. (p.196)

Dois fatores contriburam para produo de um ambiente favorvel ao recebimento da herana jurdica clssica. Em primeiro lugar, fatores de ordem institucional, como o surgimento das universidades, onde se desenvolveram os estudos romansticos e cujo nmero restrito permitia uma maior homogeneidade no pensamento dos juristas europeus nelas formados. Em segundo lugar, fatores filosfico-ideolgicos, que sedimentaram a crena na legitimidade da razo.

[...] a estrutura jurdico romana, baseada na dicotomia direito pblico e direito privado, correspondia (sobretudo no perodo imperial da histria de Roma), por um lado, evoluo autoritria e inquestionvel do poder poltico, enquanto, por outro, garantia a autonomia dos agentes econmicos na esfera privada. Esta caracterstica adequou-se perfeitamente quela existente na Europa dos primeiros sculos da era moderna, em que o poder absoluto do rei na esfera poltica era contrabalanado pela liberdade comercial outorgada aos mercadores dos burgos. Desta forma, o direito romano atendia s aspiraes de liberdade econmica da emergente classe burguesa, bem como manuteno do status poltico da nobreza aglutinada em torno do poder centralizado do monarca. (p. 208)

ASPECTOS HISTRICOS, POLTICOS E LEGAIS DA INQUISIO

Sob a influncia da Igreja, todo um sistema de direito penal (o acusatrio) foi alterado, para que os crimes de heresia e bruxaria pudessem ser eficazmente combatidos. Novas regras para o processo, que lhe conferiram feio inquiritria, aliadas reintroduo da tortura como meio de extrair a confisso, redundavam num processo do qual dificilmente o acusado escapava sem condenao. (p.234)

Foi no perodo da Baixa Idade Mdia (sculos XII e XIII) que o poder eclesistico atingiu o seu apogeu; os reis recebiam o seu poder da Igreja, que os sagrava e podia excomung-los. (p.235)

Nesse perodo que teve incio a Inquisio, criada para combater toda e qualquer forma de contestao aos dogmas da Igreja Catlica. (p.235)

Na sua origem, a Inquisio foi denominada de Inquisio Medieval e consistia na identificao, julgamento e condenao de indivduos suspeitos de heresias. Essa tarefa, primordialmente desempenhada por membros do clero, no incio da Idade Moderna j se encontrava dividida entre Tribunais Eclesisticos e Tribunais Seculares. (p. 23)

Os dois tipos de tribunais adotaram o mesmo procedimento: aprisionavam as pessoas com base em meros boatos, interrogavam-nas, fazendo o possvel para conseguir-lhes a confisso que, ao final, levava condenao. Variando conforme a gravidade do crime, a condenao consistia na execuo do condenado pelo fogo, banimento, trabalho nas galeras dos navios, priso e, invariavelmente, no confisco dos bens. (p.235)

O direito cannico, que era o direito da comunidade religiosa dos cristos, desempenhou um papel importante durante toda a Idade Mdia. [...] tendo sido o nico direito escrito durante a maior parte do perodo. Elaborado inicialmente para aplicar-se aos membros e as autoridades do clero catlico, sua influncia sobre as legislaes da Europa ocidental deveu-se ao alargamento do poder jurisdicional dos Tribunais Eclesisticos que, durante a Idade Mdia, estendeu-se aos leigos. (p. 237)

Em matria penal, era de competncia dos Tribunais Eclesisticos processar e julgar todas as pessoas que praticassem alguma infrao contra a religio (heresia, apostasia, simonia, sacrilgio, bruxaria, etc.), bem como o adultrio e a usura. No apogeu da Inquisio, os Tribunais Seculares da Europa ganharam jurisdio sobre tais crimes, suplementando os Tribunais Eclesisticos como instrumentos judiciais da perseguio. (p. 237-238)

Igreja e Estado uniram-se no combate proliferao dos seguidores de Sat, que ameaavam no somente o poder da Igreja, como o poder do soberano. (p.238)

Em termos legais, o que realmente propiciou um julgamento intensivo dos hereges, com todos os seus requintes de barbrie, ao final da Idade Mdia e incio da Idade Moderna, foi a mudana ocorrida no sistema penal, entre os sculos XII e XIII. (p.238)

[...] mudana do processo acusatrio para o processo de inquirio (p.239)

No sistema acusatrio, a ao penal s poderia ser desencadeada por uma pessoa privada, que seria a parte prejudicada ou seu representante. A acusao era pblica e feita sob juramento, resultando na abertura de um processo contra o suspeito. Se as provas apresentadas pelo acusador fossem inequvocas ou se o acusado admitisse sua culpa, o juiz decidiria contra ele. (p.239)

Em caso de dvida, a determinao da culpa ou inocncia era feita de modo irracional, recorrendo-se interveno divina para que fornecesse algum sinal contra ou a favor do acusado. (p.239)

A forma comumente utilizada era o chamado ordlio, teste ao qual o acusado submetia-se como meio para verificao de sua inocncia. (p.239)

[...] a atuao do juiz era somente a de rbitro imparcial, que orientava todo o processo, mas nunca julgava o acusado. O papel de promotor era desempenhado pelo prprio acusador, que seria julgado caso o ru provasse a sua inocncia. (p.239)

O processo por inqurito, que veio substituir o processo acusatrio no sculo XIII, consolidando-se em toda a Europa continental no sculo XVI, alterou profundamente todo o sistema penal, atribuindo ao juzo humano um papel essencial (p.240)

[...]foi a Igreja que, principalmente, influenciou e incentivou a adoo dos novos procedimentos no sistema penal. (p.240)

A introduo de novos procedimentos dentre os quais se inclua a proibio do ordlio ocorreu principalmente pelo fato de que o novo sistema mostrava-se muito mais eficiente no combate aos crimes de heresia, que aumentava em enormes propores ameaando o seu poder. (p.240)

No processo por inqurito, o desencadeamento da ao penal ainda poderia ser feito pela acusao privada, mas o acusador no tinha nenhuma responsabilidade em caso de inocncia do ru. A denncia tambm poderia ser feita por habitantes de uma comunidade inteira. Os oficiais do tribunal poderiam intimar um suspeito de crime com base em informaes por eles mesmos obtidas. ( p. 240)

O juiz, no novo sistema, j no era mais um rbitro imparcial que presidia um conflito a ser resolvido pelo sobrenatural. Ao contrrio, ele e os demais oficiais do tribunal assumiam a investigao dos crimes e determinavam a culpabilidade ou no do ru, normalmente atravs do interrogatrio de testemunhas e do prprio ru (p.241)

A enorme importncia dada confisso explica o meio utilizado pelos juzes e inquisidores para obt-la: a tortura. A utilizao da tortura na heresia, bruxaria e outras causas foi, portanto, o resultado direto da adoo do processo por inqurito[...] (p.242)

A Igreja, que at ento havia condenado esse procedimento, autorizou, atravs da Bula do Papa Inocncio IV, em 1252, a adoo da tortura pelos inquisidores nos julgamentos de bruxaria e heresia, o que foi seguido pelos juzes dos Tribunais Seculares. (p.243)

O argumento para o uso da tortura era o de que, quando uma pessoa fosse submetida ao sofrimento fsico durante o interrogatrio, inevitavelmente, confessaria a verdade.

Normalmente, a sentena pronunciada era imediatamente executada. Havia alguns casos de apelao, o que era raro, pois os condenados, na maior parte pessoas humildes e no assistidas por advogados, ignoravam a existncia desse direito. (p. 245)

[...] o tema de fundo da caa aos hereges e s bruxas foi o fato de que a Igreja, ao ver-se ameaada por crticas aos seus dogmas e pelo surgimento de religies diferentes da catlica, ergueu a bandeira de combate aos chamados crimes religiosos. Em uma poca em que o poder da Igreja estava de tal forma imbricado ao poder do Estado, confundindo-se com este em alguns casos, todas as rebelies e manifestaes polticas assumiam carter religioso e eram combatidas por um sistema de represso especificamente montado, com o objetivo de justificar a existncia da prpria instituio eclesistica. (p.246)

DA DESCONTRUO DO MODELO JURDICO INQUISITORIAL

[...] o Tribunal do Santo Oficio da Inquisio levou um nmero incalculvel de pessoas a seus tribunais, onde sofreram processos verdadeiramente kafkianos, devido sua estrutura de denncia (o processo por inqurito admite acusaes annimas e muitas vezes o ru no conhece o contedo das acusaes que lhe so imputadas) e probatria (a confuso o principal meio de prova e a tortura utilizada como instrumento para descobrir a verdade). (p.249-250)

Em Estados como Portugal e Espanha, a Igreja radicalizou sua atuao desenvolvendo uma estrutura inquisitiva que iria perdurar por longo tempo. Em outros, como Alemanha e Frana, nos quais o calvinismo e o luteranismo emergiram como cultura questionadora do statu quo catlico, a meta inquisitorial foi proporcionar, conjuntamente com a perseguio de classes criminosas previamente selecionadas, a produo de uma contra-reforma, um movimento de resgate da doutrina catlico-romana atravs da represso aos desertores. (p.251)

Fundamental para a escalada inicial da Inquisio foi a reutilizao da tortura [...] aumentou as possibilidades de condenao devido facilidade na obteno de provas. (p.252) Passaram a coexistir trs jurisdies penais: a central, exercida pelos juzes do rei; a local, de cidades ou, conforme o pas, de regies mais ou menos extensas; a eclesistica, restrita s questes que importavam Igreja. ( p. 253)

O discurso intolerante da Inquisio, com sua pretenso de uniformizao e aceitao inconteste; foi colocado em dvida pelo avano cientfico. (p. 256)

A atuao dos magistrados franceses foi fundamental no processo de laicizao do direito. Essa prxis revolucionria, contudo, no pode ser vista como um fenmeno isolado. Fez parte do processo de secularizao das cincias e atuou como importante ingrediente na formulao da Teoria Iluminista do direito. (p.257)

Se incontestvel era a legitimidade do direito divino, com a ilustrao este passou a ser, alm de ilegtimo, ineficaz nas respostas a uma casta intelectual que defendia radicais mudanas na ordem vigente. (p. 267)

DA INVASO DA AMRICA AOS SISTEMAS PENAIS DE HOJE: O DISCURSO DA INFERIORIDADE LATINO-AMERICANA

certo que as matrizes tericas utilizadas pelos nossos juristas e operadores do sistema penal provm do pensamento primeiro-mundista [...] Mas tambm certo que s aqui, no mundo perifrico, estes saberes adquiriram um carter extremamente peculiar e cruel, implicando uma prtica de extermnio em massa e de segregao social em escalas sem precedentes. (p.271)

A descoberta de um Novo Mundo possibilitou que a Europa, ou melhor, o seu ego, sasse da imaturidade subjetiva da periferia do mundo muulmano e se desenvolvesse at tomar-se o centro da histria e o senhor do mundo (p.274)

Com a viagem de Colombo, iniciou-se, em propores jamais alcanadas, o contato entre dois mundos completamente diferentes. Ocorre que, desde o incio, a civilizao descoberta e toda a sua cultura foram desprezadas (p.276)

[...] apresentou dois tipos de reaes, que acabaram se complementando, perante os indgenas. Ora os considerou como iguais, isto , no plano divino tambm filhos do rebanho de Deus, sugerindo uma postura assimilacionista; ora os tomou como inferiores, momento em que a sua vontade lhes foi imposta pelo simples uso da autoridade da violncia. (p.277)

Bartolom de Las Casas considerado o primeiro defensor, na Amrica Latina, do que viria a se chamado de direitos humanos (p.289)

Apesar de todos os esforos europeus para que a cultura original do continente americano fosse encoberta ou negada, acabou-se gerando uma rica e sincrtica cultura popular, que formou na Amrica Latina vrios rostos diferentes. [...] Em primeiro lugar, os ndios. Embora os europeus controlassem o poder poltico e os pontos chaves, o modo de vida da maioria das pessoas era indgena, com um uso comunitrio da terra e uma vida comunal prpria. [...] liberalismo do sculo XIX, que, querendo impor uma forma de cidadania abstrata, individualista e burguesa [...] limitou aos ndios a possibilidade de viverem sua maneira (p.299-300)

O segundo rosto [...] : os negros. Nunca havia ocorrido uma experincia de escravizao em nmero to elevado e de maneira to sistematicamente organizada. Da mesma forma que os ndios, a resistncia dos escravos tambm foi contnua. (p.300)

[...] se defendeu no Brasil um liberalismo que se prestasse defesa da estrutura escravista, o direito por aqui (bem como, de uma forma geral, na Amrica Latina) costumou ser um instrumento cego ao sofrimento popular, pois procurava harmonizar a existncia da violncia irracional com a liberdade (para dentro obviamente). (p.300)

O terceiro rosto este povo uno de rostos mltiplos , como escreve Dussel, o mestio [...]Diferentemente dos ndios, negros, asiticos e europeus, os mestios no tm uma personalidade cultural e racial definida. [...] No chegaram a ser oprimidos to violentamente quanto os negros e ndios, mas tambm foram objeto do saber antropolgico racista, de cunho excludente e depreciante, sendo vtimas da situao estrutural de dependncia cultural, poltica e econmica, seja nacional ou internacional. (p.301)

O quarto rosto, que completa o bloco social oprimido latino-americano pr-independncia, o dos criollos ou crioulos. Filhos brancos de europeus nas ndias [...] Os crioulos foram os nicos que tiveram uma conscincia feliz da Amrica. (p.301)

Esses quatro rostos completam o quadro de um bloco social da Amrica Latina colonial, um sujeito histrico, um povo oprimido. Tal bloco social tornou-se claro e delimitado mediante as lutas em prol das emancipaes nacionais no sculo XIX. A dissoluo do lao com a metrpole realmente foi uma causa defendida por todas as classes e grupos sociais. Os ndios, negros e mestios, em geral, que compunham a parcela pauperizada do povo, viam na independncia a possibilidade de melhores condies de vida e de concretizao da justia social; a elite oligrquica e burocrtica, formada basicamente pelos crioulos, obviamente possua interesses bem diversos. No entanto, foi ela que liderou estes movimentos, utilizando-se do ideal liberal como base doutrinria e inspiradora. (p.301)

Cesare Lombroso e sua obra simbolizam muito bem todo um pensamento cientificista, correspondente ao perodo neocolonialista, de cunho racista-biologista, que visava justificar a delinquncia e o primitivismo dos habitantes das colnias mediante a auferio de uma inferioridade natural e implcita a tais sujeitos. Tal discurso estava na boca de toda a elite oligrquica latino-americana do perodo, contudo, sobreveio a sua proibio nos pases centrais em funo do nazismo. (p.303)

A base terica de nosso sistema penal refere-se a um modelo de cincia penal integrada, em que a cincia jurdica est ligada concepo geral do homem e da sociedade. Tal modelo bem sintetizado no que Alessandro Baratta chama de ideologia da defesa social, contempornea revoluo burguesa. O jurista italiano relaciona os princpios que informam tal corpo de ideias: a) princpio da legitimidade (o Estado, enquanto expresso da sociedade, encontra-se legitimado para reprimir a delinquncia); b) princpio do bem e do mal (o crime o mal, a sociedade constituda o bem); c) princpio da culpabilidade (o delito o resultado de uma postura interior com alto grau de reprovao, pois contrrio aos bons valores e normas da sociedade); d) princpio da finalidade ou da preveno (a pena serve para prevenir o crime, e no s para retribu-lo); e) princpio da igualdade (a lei penal se aplica igualmente a todos); f) princpio do interesse social e do delito natural(o ncleo central dos delitos definidos nos cdigos penais das naes civilizadas representa ofensa de interesses fundamentais, de condies essenciais existncia de toda a sociedade (...), apenas uma pequena parte dos delitos representa violao de determinados arranjos polticos e econmicos, e punida em funo da consolidao destes - delitos artificiais). (p.304)

O problema deste conceito de defesa social que ele a-histrico e no-contextualizado, e coloca o conceito de crime em um sentido ntico. Na Amrica Latina, a essencialidade do conceito de crime vem juntar-se essencialidade da condio inferior dos negros, mulatos, mestios e ndios. A ideologia da defesa social, ao considerar a existncia de valores absolutos, expresso harmnica de um todo social, contra os quais se contraporiam as aes criminais, a delinquncia, ignora a existncia de uma vasta diversidade cultural, fato que bem mais intenso na Amrica, marcada por uma cultura popular sincrtica. O princpio da culpabilidade expressa bem esta reduo realizada pela cincia penal, pois quando considera determinada atitude reprovvel, o faz em funo da existncia de valores e normas totais na sociedade. (p.304)

[...] o direito penal esconde, na realidade, sob a capa de valores gerais pressupostos, a seleo de determinados valores, referentes a determinados grupos. [...] esta ideia totalizadora de sociedade imposta pelo modelo punitivo ir facilitar sobremaneira a ao verticalizadora do sistema penal, que ser fatal para a integridade dos laos comunitrios e horizontais na sociedade, e, em ltima instncia, facilitar o controle de nossa regio perifrica. (p. 305)

O sistema penal, por gerar continuamente o antagonismo e a contradio social, contribui decisivamente para o enfraquecimento e a dissoluo dos laos comunitrios, horizontais, afetivos e plurais. [...] colocam como inimigos em potencial pessoas que pertencem s mesmas camadas sociais e econmicas. (p. 308)

O DIREITO NAS MISSES JESUTICAS DA AMRICA DO SUL

Na Amrica, os jesutas, serviram aos interesses coloniais das monarquias ibricas, ocupando o territrio, ampliando e defendendo as suas fronteiras, pacificando os indgenas e, principalmente, exercendo o poder tutelar e atuando como eficiente veculo de divulgao da cultura crist ocidental. (p.318)

[...] em decorrncia das exigncias do novo ambiente social, geogrfico e econmico, foi necessria a elaborao de normas jurdicas especficas, o chamado Direito Indiano. (p.319)

Assim, a vigncia das leis castelhanas nas ndias alcanou um carter supletrio, mas elas continuaram a ser consultadas devido pouca ou nenhuma existncia de fontes peculiares do Direito Indiano. (p.319)

O reducionismo fazia parte da poltica oficial da Coroa desde o incio da ocupao da Amrica, pois era um projeto poltico de integrao do ndio ao sistema colonial. A inteno era concentrar num mesmo local, aldeias indgenas dispersas, com o objetivo de facilitar, atravs da sedentarizao e do contato dirio com os missionrios, a converso e a evangelizao. Era uma forma de civilizar o indgena, urbanizando-o, pela concentrao e pelo isolamento em determinado espao fsico (p.322)

O cabildo hispano-americano fora a cpia do antigo municpio castelhano medieval. As Ordenanas de Francisco de Alfaro de 1611 [...] determinavam que cada reduo deveria ter um cabildo, constitudo integralmente por ndios. Cada reduo passava a ser um cabildo, isto , um municpio, dotado de completa estrutura poltico-administrativa e jurdica. O cabildo possua diversos membros, na sua maioria caciques que desempenhavam funes especficas. (p.323)

O direito civil missioneiro possua normas do direito cannico e do direito castelhano. Do direito cannico com relao ao direito de famlia e do direito castelhano com relao ao sistema de propriedade e nas relaes de trabalho. (p.326)

Dentro desse novo padro socioeconmico da sedentarizao, da concentrao e da urbanizao da populao indgena reduzida, aparece a organizao produtiva. A tutela religiosa faz com que o trabalho organizado passe a ser uma obrigao para homens, mulheres e crianas, assumindo uma fora moralizadora, desconhecida para as populaes indgenas. A idia dominante de que os ndios eram um povo preguioso, incapaz, rfo e indisciplinado incentivou a implantao de um sistema produtivo nas redues, sendo um dos objetivos humaniz-los pelo trabalho e introduzi-los no mundo civilizado.(p.331)

Cria-se, assim, um novo sistema de produo, hierrquico, autoritrio e coercitivo, totalmente diverso do Guarani. Cada indivduo tem definido o seu papel produtivo, bem como a sua parcela na distribuio dos bens produzidos. Aquele indivduo que no se enquadrasse no padro de comportamento de trabalhador disciplinado era rechaado, vindo a receber sano moral e fsica. (p.332)

Os jesutas introduziram nas misses nova estrutura social, fundamentada na concepo crist de famlia. A famlia nuclear substitu a grande famlia, e a monogamia tenta substituir a poligamia. At mesmo as residncias familiares foram projetadas para abrigar apenas a pequena famlia nuclear. (p.332)

Alguns casamentos preferenciais dos Guarani foram abolidos, considerados incestuosos, como o casamento entre tios e sobrinhas e entre primos. (p.333)

Junto com a condenao do divrcio veio tambm a supervalorizao da virgindade, da fidelidade matrimonial, da castidade e do celibato, conceitos at ento totalmente estranhos cultura Guarani. (p.333)

O direito penal nas misses [...] recebeu influncia do direito cannico nas questes relativas moral e aos bons costumes, e nos crimes praticados contra a f e a religio (heresia, feitiaria, sacrilgio, apostasia e outros). Os demais atos imputados como crime, e o sistema de sanes introduzido nas redues tm sua origem no direito castelhano. (p.334)

Como os ndios eram considerados incapazes e irresponsveis, para manter a disciplina, a alta produtividade e o respeito aos princpios morais cristos, era justificada a existncia de um sistema de polcia e vigilncia nas misses funcionando vinte e quatro horas por dia. (p.334)

O controle das pessoas no se fazia apenas de forma material, auxiliado pelos caciques, alcaides, guardas e crianas, alm da averiguao pessoal do cura. Os padres utilizaram outra estratgia muito mais eficiente no tolhimento dos impulsos desviantes de seus pupilos, que foi a introduo da idia de culpa e de pecado, at ento inexistente no imaginrio Guarani. (p.337)

Aliado idia de pecado, estava o sacramento da confisso. Mesmo com a promessa dos padres de que no haveria nenhuma punio em funo do que se ouvisse em confisso, ela tambm se manifestava como eficiente instrumento de controle social, pois era uma forma de saber, alm das aes dos indivduos, o que se passava no seu pensamento. (p.337)

A tutela dos indgenas, confiada aos jesutas pelo rei e pelos governadores, era suficiente para lhes conferir autoridade para fixar e executar as penas, independentemente de possurem autoridade judicial de jurisdio criminal. (p.339)

Homens, mulheres e crianas recebiam a pena do suplcio, isto , castigos fsicos, mas a quantidade de chibatadas e a forma como iriam ser castigados dependiam do grau de gravidade do crime cometido e da condio do agente infrator. (p.340)

Alm do castigo do aoite, havia a pena de priso perptua, priso por tempo determinado, banimento, arrastamento, acorrentamento, tosa de cabelo e oraes para penitenciar-se. Eram proibidos e considerados crime: a antropofagia, o adultrio, o concubinato, o incesto, a poligamia, a sodomia, a bestialidade, a luxria, as bebedeiras, o escndalo, as festas pags, a vadiagem, a indisciplina, a feitiaria, a rixa, a leso corporal, o aborto, o homicdio, o envenenamento, a desero, o roubo e outros. (p.341-342)

O direito missioneiro implantado nas redues, foi fundamentado no direito espanhol de Castela (aragons, catalo e valenciano), adaptado ao novo ambiente social, geogrfico e econmico, vindo a ser chamado de Direito Indiano e tambm no direito cannico devido submisso dos jesutas a Igreja Catlica. No interior das misses, os jesutas desrespeitaram e ignoraram o direito consuetudinrio Guarani, no entanto, alguns aspectos do direito indgena foram utilizados, [...] serviram aos seus interesses, sendo distorcidos e utilizados em prol de seus empreendimentos. (p.345)

Atravs do sistema de disciplina, coao, controle, fiscalizao, confisses para se livrarem do pecado, delaes e do cerceamento da liberdade individual, pode-se observar que os Guarani obedeceram ao direito missioneiro mais pelo temor de uma sano moral ou fsica, do que propriamente pelo entendimento daqueles novos valores e assimilao consciente daquelas normas. (p.346)

O DIREITO NO BRASIL COLONIAL

Pelos portugueses colonizadores o Brasil nunca foi visto como uma verdadeira nao, mas sim como uma empresa temporria, uma aventura, em que o enriquecimento rpido, o triunfo e o sucesso eram os objetivos principais. Essas eram as reais intenes dos colonizadores, no obstante o discurso simulado e cnico da necessidade de levar a palavra crist aos pagos. Em lugar de uma evangelizao, houve uma completa heresia e desrespeito aos ensinamentos do cristianismo originrio. (p.350)

O Brasil tinha como fontes econmicas, no incio da colonizao, a explorao dos metais preciosos e o extrativismo do pau-brasil. Em seguida, iniciou-se o cultivo de terras agricultveis. Foi, assim, essencialmente agrcola, refletindo a economia da Metrpole. A deteno dos meios de produo estava totalmente nas mos dos colonizadores, que tinham o domnio das propriedades, dos engenhos, das fazendas, alm de que o trabalho era escravagista e nesta condio se encontravam os negros e no raras vezes tambm os indgenas. (p.350)

O direito, no Brasil colonial, sofreu a mesma sorte da cultura em geral. Assim, o direito como a cultura brasileira, em seu conjunto, no foi obra da evoluo gradual e milenria de uma experincia grupal, como ocorre com o direito dos povos antigos, tais o grego, o assrio, o germnico, o celta e o eslavo. A condio de colonizados fez com que tudo surgisse de forma imposta e no construda no dia-a-dia das relaes sociais, no embate sadio e construtivo das posies e pensamentos divergentes, enfim, do jogo de foras entre os diversos segmentos formadores do conjunto social. Com a devida precauo, salvo excees que confirmam a regra, foi uma vontade monoltica imposta que formou as bases culturais e jurdicas do Brasil colonial.[...] A construo de uma cultura e identidade nacionais, por conseguinte, nunca foi uma empreitada levada a srio no Brasil. (p.351)

Os elementos formadores da cultura em geral, e do direito especificamente, no Brasil Colonial, tiveram origem em trs etnias ou raas distintas. evidente que essa formao no foi uma justaposio em que as condies particulares de cada raa tenham sido respeitadas. Antes, foi uma imposio dos padres dos portugueses brancos aos ndios e aos negros. (p.351-352)

Os indgenas, na formao da cultura em geral, tiveram a oportunidade de contribuir de forma razovel. O mesmo no ocorreu, infelizmente, quanto ao direito. As naes dos nativos que aqui habitavam, quando da chegada da colonizao, viviam num perodo neoltico em que foi comum a confuso entre o direito e o divino, e os tabus e o misticismo eram formas de resoluo para as questes jurdicas. (p.352)

Quanto aos negros, a sorte no foi diferente; a condio de escravos, ao serem arrancados de suas naes na frica e jogados em senzalas, fez com que houvesse uma grande desintegrao de suas razes. Mesmo assim [...] a cultura dos negros, seus costumes, suas crenas e tradies se fazem presentes, de forma razovel, em nossa identidade nacional. No que diz respeito, especificamente, ao direito, tambm foram eles mais objetos, coisas, do que sujeitos de direito. (p.352)

[...]houve a contribuio lusa dos brancos. Como tinham o posto privilegiado de colonizadores, puderam usar/abusar de todas as possibilidades de conformar o direito s suas concepes e vontades, sem o mnimo de respeito s demais etnias que ajudaram, em muito, na formao das riquezas nacionais. (p.352)

[...]Nesse perodo histrico( poca colonial, quando ainda vigoravam as capitanias hereditrias), percebe-se, no havia uma burocratizao quanto aos procedimentos e confundia-se em uma s pessoa as funes de legislar, acusar e julgar. Ao donatrio competia a funo de administrador, chefe militar e juiz ao mesmo tempo; o donatrio no repartia com outros o direito de aplicar a lei aos casos ocorrentes, dirimindo os conflitos de interesses e direitos entre os habitantes da capitania. (p.354)

[...] o sistema de capitanias hereditrias no logrou o xito esperado por Portugal. Por tal razo houve a centralizao administrativa da Colnia, ao se nomear um governador-geral. Assim, o poder local dos donatrios foi excludo e tomaram fora as ordenaes do reino (p.354)

As leis gerais, salvo casos particulares, eram consideradas vigentes no Brasil-Colnia e seu ajuntamento fez surgir trs grandes ordenaes, a saber: Ordenaes Afonsinas (1466), Ordenaes Manuelinas (1521) e Ordenaes Filipinas (1603). (p.354)

As Ordenaes Afonsinas foram a primeira grande compilao das leis esparsas em vigor. [...] consolidao das leis promulgadas desde Afonso II, das resolues das cortes desde Afonso IV e das concordatas de D. Dinis, D. Pedro e D. Joo, da influncia do direito cannico e Lei das Sete Partidas, dos costumes e usos. Pelo fato de terem sido substitudas, em 1521, pelas Ordenaes Manuelinas, tiveram pouco espao de tempo quanto sua aplicao no Brasil-Colnia. (p.354-355)

As Ordenaes Manuelinas, de 1521, foram obra da reunio das leis extravagantes promulgadas at ento com as Ordenaes Afonsinas, num processo de tcnica legislativa, visando a um melhor entendimento das normas vigentes. (p.355)

Promulgadas em 1603, as Ordenaes Filipinas compuseram-se da unio das Ordenaes Manuelinas com as leis extravagantes em vigncia, no sentido de, tambm, facilitar a aplicabilidade da legislao. Foram essas Ordenaes as mais importantes para o Brasil, pois tiveram aplicabilidade durante um grande perodo de tempo. Basta lembrar que as normas relativas ao direito civil, por exemplo, vigoraram at 1916, quando foi publicado o nosso Cdigo Civil Nacional. (p.355)

Destaca-se [...] a figura do ouvidor-geral. Era, o ouvidor-geral, na organizao judiciria primitiva, a maior autoridade. Sua nomeao dava-se por trs anos, garantindo-se sua permanncia na funo desde que bem a realizasse. (p.356)

Sucintamente, pode-se dizer que a administrao da Justia, na primeira instncia, era realizada por diversos operadores jurdicos cujas competncias, muitas vezes, eram similares ou muito prximas. Pode-se citar, sem ser exaustivo: os juzes ordinrios, os juzes de fora, os juzes de vintena, os juzes de rfos etc. (p.356-357)

O primeiro Tribunal da Relao na Bahia foi criado em 1587 (p.357)

Decorrido quase um sculo, s em 1751 que foi implantado no Brasil, no Rio de Janeiro, mais um Tribunal de Relao (p. 357)

Acima dos Tribunais de Relao, das suas decises, s restava o recurso extremo Casa da Suplicao em Lisboa, mas, somente, em casos muito especiais. (p.357)

Portugal pretendeu formar uma burocracia profissionalizada na Colnia a fim de proteger os seus interesses e sufocar as pretenses locais. [...] no era oportuno Metrpole que aqui se formasse uma organizao independente de governo [...] essa organizao procuraria, por todos os meios, desvincular-se das diretivas impostas pelo colonizador. (p.358)

[...] a premissa de que os burocratas no sofrem influncia da populao no teve validade na Colnia. [...] interpenetrao das duas formas supostamente hostis de organizao humana: a burocracia e as relaes sociais de parentesco. (p.358)

Os magistrados partiam de Portugal a fim de ocuparem os postos no Poder Judicirio local. Burocratas que eram, tinham por finalidade representar os interesses da Metrpole e no as aspiraes locais. (p.359)

A aproximao entre essa elite e os magistrados que aqui aportavam foi, desde logo, devidamente providenciada. [...] os objetivos almejados no eram o de formar uma vontade local unvoca que representasse os interesses de toda a Colnia, que protegesse, tambm, o indgena e o negro e os seus direitos respectivos. O acordo [...] visava troca de favores entre os agentes jurdicos vindos da Metrpole e a elite dominante da Colnia. (p.359)

De um lado, encontrava-se uma elite local com esquemas formados de corrupo e manuteno do statu quo. Do outro lado, magistrados dispostos a tudo a fim de garantirem privilgios para si e para os seus. (p.359)

Procedimento comum interpenetrao entre os interesses da elite local e os dos magistrados vindos de Portugal foi seu casamento com filhas de fazendeiros nobres. [...] lao principal entre as famlias e era o mtodo mais eficiente de incorporar magistrados na sociedade local de forma permanente. [...] representava a oportunidade de adquirirem riqueza e propriedades que estivessem de acordo com a posio social a que tanto aspiravam. Para as famlias locais, tal unio mostrava-se tambm muito proveitosa, pois propiciava a ocasio de efetivarem relaes formais de parentesco com os operadores jurdicos do Poder Judicirio. (p.360-361)

[...] a condio peculiar da formao/imposio do direito no perodo do Brasil colonial e a unio dos interesses dos operadores jurdicos burocratas com as estruturas existentes de apadrinhamento [...] fez com que o Poder Judicirio no ficasse afastado da sociedade de ento. No se critica o simples fato dessa aproximao, pois, afinal de contas, os magistrados tm como funo resolver as controvrsias [...] e esses embates do-se no seio das relaes sociais[...] O que se lamenta que a opo tomada pelo magistrado teve como objetivo no a proteo dos interesses de todo o conjunto social, antes, serviu para sufocar os legtimos interesses emergentes daqueles afastados do centro do poder, e para resolver os seus prprios problemas e os da elite dominante do Brasil-Colnia. (p.361)

[...] de se perceber que o direito nacional, infelizmente, nunca representou a contento os interesses do bem comum da coletividade (p.361)

[...] no h como negar que o direito assim como se apresenta no o resultado da vontade nacional e sim daqueles que dominam material e ideologicamente nossa sociedade. Ento, dizer que h um direito igual para todos, imparcial e afastado das lutas sociais, um grande engodo, uma construo ideolgica [...] Por um processo ideolgico, de encobrimento da verdade, procura-se atribuir s ideias e vontades sobre o direito da classe dominante, uma validade universal que representa todo o conjunto social. (p.363)

INSTITUIES, RETRICA E BACHARELISMO NO BRASIL

[...] um Estado que s obteve sua independncia no incio do sculo XIX (Brasil), evento esse que apenas desavisadamente pode ser lido como uma verdadeira ruptura, especialmente sob o ponto de vista das instituies poltico-jurdicas. (p. 368)

A tipificao do Estado brasileiro como patrimonialista, reconhecida herana da colonizao portuguesa, privilegia interpretao que coloca em destaque a participao dos estamentos burocrticos. (p. 369)

[...]sob a influncia do patrimonialismo portugus, falta-nos, ainda hoje, um Estado racional e despersonalizado, decorrendo da, de um lado, a distino precria entre o pblico e o privado, com a apropriao dos cargos e funes pblicas (tomados como coisa particular) pelos seus respectivos detentores, e, de outro, a precariedade da segurana do indivduo perante as possibilidades da atuao estatal (p.370)

[...] enquanto a Amrica espanhola conheceu cursos superiores desde o incio da colonizao, com a primeira universidade tendo sido fundada em 1538, em So Domingos, seguida da Universidade de So Marcos (Lima), em 1551, e a do Mxico, em 1553, nosso ensino superior resumiu-se, at a fuga da famlia real para o Brasil, s experincias jesuticas da Companhia de Jesus, com o primeiro colgio sendo estabelecido na Bahia, em 1550. [...] a ausncia de cursos superiores no Brasil normalmente atribuda formao centralizada pretendida pela Metrpole. (p.363)

[...] os estudos superiores, assim considerados apenas aqueles ministrados em instituies de ensino superior, s podiam ser realizados na Europa, com Portugal, designadamente a Universidade de Coimbra, figurando como escolha natural dos filhos da elite colonial, haja vista a lngua portuguesa em comum. (p.374)

A pedagogia jesutica inspirava-se na ratio studiorum [...] dando demasiada nfase retrica e privilegiando poucos autores, designadamente Aristteles e Toms de Aquino. Essa influncia [...] teria tido o condo de tomar a cultura portuguesa razoavelmente impermevel s significativas transformaes do continente europeu, ocorridas a partir do Renascimento. [...] o Estado portugus manteve-se a significativa distncia das novas ideias e tcnicas trazidas pela Era das Luzes (p.374)

Com a vinda da famlia real para o Brasil, em 1808, colocou-se na ordem do dia transformar a colnia em lugar apropriado para a instalao da Corte, datando da os significativos avanos verificados, a exemplo da inaugurao da Faculdade de Medicina, na Bahia, e a cadeira de Artes Militares, no Rio de Janeiro. [...] a instalao da Corte no suscitou de imediato a preocupao com a formao de quadros para ocupar os cargos e funes do Estado - leia-se bacharis. Convinha no descuidar das ideias e, nesta seara, melhor seria manter a dependncia da Colnia, pois [...] a formao coimbr consistiu em eficiente mtodo de controle ideolgico. (p.375-376)

Assim, a preocupao com o ensino superior resumiu-se formao militar e s outras reas consideradas tcnicas, a exemplo da engenharia, economia e medicina. Embora se possa dizer que, lato sensu e por extenso, estas ltimas reas tenham produzido bacharis, no sentido de formao superior, reserva-se o vocbulo para aqueles com formao humanstica (P.376)

Foi somente em 1827, j declarada a independncia e tendo em vista exatamente a necessidade de serem dados os primeiros passos para a construo do Estado Nacional, que se verificou, efetivamente, a implantao dos cursos jurdicos no Brasil, em Olinda (posteriormente transferido para Recife) e em So Paulo [...] com o quadro docente formado em muitos casos por professores portugueses. A chamada cultura jurdica nacional formou-se a partir dessas duas faculdades [...]As faculdades de So Paulo e Recife foram, assim, os centros responsveis pela formao ideolgica da elite dirigente, homognea na medida do possvel, que dever consolidar o projeto de Estado Nacional (p.376)

De fato, ainda que se registre a importncia dos bacharis de direito para a construo do Estado Nacional, porquanto a concentrao geogrfica e a identidade da formao intelectual tenha possibilitado a consolidao de uma ideologia comum sob o estrito controle do governo [...] na prtica, as faculdades de direito prestaram-se mais a distribuir o status necessrio ocupao de cargos pblicos de um quadro burocrtico que j se expandia, que a propiciar efetivamente a formao de uma elite intelectual razoavelmente coesa e preparada. (p.377)

A exemplo de outros pases, tambm no Brasil os bacharis de direito tiveram papel fundamental na estruturao do Estado, ocupando os mais importantes cargos pblicos e espraiando-se por todos os poderes, seja no Imprio, seja na Repblica. (p. 379)

[...]a ascenso do bacharel tipicamente brasileiro, que trouxe consigo os ideais do Iluminismo, o que se verifica que no houve, nem poderia haver, a conformao do Estado, efetivamente, s ideias liberais, o que, em outras palavras, poderia significar a substituio do modelo tradicional por uma forma de dominao de tipo racional [...] Tambm a qualidade das relaes sociais no sofreu qualquer alterao significativa (p.380)

[...] sem corresponder, de modo geral, efetividade de aes e posturas, no houve dificuldades de se levar a cabo a afiada defesa do liberalismo e da democracia, seja na imprensa, seja na tribuna. O discurso liberal incorporou-se ao Estado patrimonialista, com a contribuio indispensvel do bacharel, sem que se lhe modificasse a sua substncia. Os bacharis apropriaram-se dos cargos pblicos e das funes polticas e conformaram o adgio popular segundo o qual na prtica a teoria outra. (p. 381)

De qualquer forma, a atividade acadmica fomentou o desenvolvimento de uma imprensa tambm fortemente influenciada pelas ideias liberais, tendo dado asas a estudantes desejosos de realizar crticas pblicas (p.382)

Enfim, considerando-se que ser bacharel era um bom negcio, podendo render algum prestgio ou distino, verificou-se um certo estmulo, especialmente entre as classes intermedirias, prtica do bacharelismo formal. Falar difcil, vestir-se adequadamente, ostentar uma cultura literria e mesmo o conhecimento de textos legais tomou-se prtica verificvel fora do crculo restrito dos bacharis. (p.384)

O ESCRAVO ANTE A LEI CIVIL E A LEI PENAL NO IMPRIO (1822-1871)

Ao estudarmos o escravo ante a lei civil e a lei penal neste meio sculo, teremos como fundamentais os conflitos entre a escravido e o quadro institucional do pas (representado pela monarquia constitucional e pela economia agroexportadora), e ainda entre a escravido sustentada pelo direito positivo e as concepes jurdicas oriundas do constitucionalismo. (p.388)

A Constituio imperial de 1824 determinava, em seu artigo 6, inciso I, serem cidados brasileiros os nascidos no Brasil, quer sejam ingnuos, ou libertos. Atribua-se, assim, ao ex-escravo a cidadania, embora restrita (p.390)

Os libertos faziam parte da massa de cidados ativos (arts. 90 e 91, I, c/c art. 6, I), ao contrrio dos escravos, que eram habitantes no-cidados do pas. Mas pelas regras do sufrgio censitrio, no poderiam ser eleitores provinciais nem eleitos para cargos pblicos (p.390)

Despontavam, assim, as contradies filosficas e jurdicas entre a formulao constitucional oriunda da tradio iluminista e a realidade social da escravido. (p.392)

Do ponto de vista civil o escravo era res, simultaneamente coisa e pessoa. Mas no participava da vida da civitas, pois estava privado de toda capacidade. Em consequncia, no tinha direitos civis, muito menos polticos e tambm no podia atuar em atos como testemunhar em juzo, testar,contratar ou exercer tutela. (p.396)

[...] a norma vigente era de que o escravo nada adquiria para si, mas para seu senhor (p.397)

[...]embora a legislao penal do liberalismo j fosse influenciada pelas concepes iluministas sobre a sociedade, o crime e as penas - como as de Beccaria e Feuerbach, por exemplo a condio de escravo era agravante da penalidade, onerando juridicamente uma situao que, de fato, j era desigual. (p.401)

Na lei penal, diferentemente da civil, o escravo sujeito ativo ou agente do crime era considerado pessoa e no coisa, o que significa dizer que respondia plenamente por seus atos, como imputvel. Enquanto sujeito passivo, o mal a ele feito era considerado no dano mas ofensa fsica (p. 401)

No caso de crimes praticados por escravos e suas penalidades, no perodo colonial, sob a vigncia do Livro V das Ordenaes, aplicavam-se os mesmos procedimentos cruis e infamantes - torturas, marcas a ferro - a homens livres e escravos, embora para estes, por sua condio, as sanes fossem em geral mais duras, de direito e de fato. (p. 402)

CONCLUSO

O estudo da histria do direito faz-se essencial para compreendermos corretamente o que o direito tornou-se hoje e o porqu ele desta maneira. Para atingir tais objetivos o livro Fundamentos de Histria do Direito foi, deveras, importante, posto que ele mostrou-nos toda a trajetria do direito, passando pelo direito na Mesopotmia, Grcia, Roma, Idade Mdia.

Tais conhecimentos possibilitaram-nos a compreenso das causas e dos efeitos das mudanas jurdicas que aconteceram ao longo da histria. Afinal, o direito que temos hoje uma herana histrica, e no algo que surgiu de uma total inovao. evidente que durante o decorrer da histria determinados perodos tiveram uma doutrina de Direito como hegemnica, mas se necessita perceber que cada uma dessas ajudou a forjar o direito que hoje possumos.

Outro conhecimento que nos fora agregado atravs da leitura da Obra supracitada foi o desenvolvimento do Direito no Brasil. O entendimento desse desenvolvimento, de fato, relevante, uma vez que apesar de muitas teorias, sobretudo jusnaturalistas, tenderem a universalizar o direito, ou ao menos seus fundamentos, os operadores do Direito juzes, advogados, promotores trabalham com o Direito proveniente do Estado, portanto se seguirmos a carreira desses, essencial conhecermos no s o que o Direito atualmente no Brasil, decorando sua Constituio e Cdigos, mas tambm compreender todo o processo histrico que possibilitou o que hoje, de maneira simplista, denominamos de Direito brasileiro.

Evidenciou-se tambm, na Obra, que o Direito, que tem por objetivo regular a sociedade e resolver problemas sociais, tornou-se, em diversos momentos, uma ferramenta consolidadora da opresso de grupos poderosos em detrimento de grupos minoritrios. Isso pde ser observado, por exemplo, na Santa Inquisio ou at no Direito que fora imposto pelos colonizadores aos ndios e negros na Amrica colonial. Apesar de ambos os exemplos remontarem-nos a tempos j remotos, essa utilizao do Direito, por parte das classes mais abastadas, com o objetivo de oprimir os menos favorecidos se d ainda hoje.

O estudo da histria jurdica mostrou-nos tambm que em toda a sociedade existe Direito. Por mais primitiva ou arcaica que a sociedade for, existir sempre uma entidade ,visvel ou no, reguladora dos indivduos, que julga os atos de acordo com um sistema de valores e que penaliza os que ultrapassarem certos limites.

A conexo entre direito e religio tambm foi um tema tratado no Livro. Nas sociedades antigas, a exemplo da Mesopotmia, Egito e inclusive no inicio da civilizao romana, essa ligao direito-religio mostrava-se muito forte e evidente, enquanto que nas sociedades atuais o direito tenta ,ao mximo, ser laico. Todavia, ainda encontramos diversos fundamentos religiosos no Direito vigente, o que no poderia ser diferente, visto que o Direito feito para regular a sociedade e, portanto, no poderia ser ignorada a religiosidade desta. Por fim, podemos concluir que o estudo da histria do Direito fundamental para possuirmos uma viso crtica e, com isso, buscar elementos para gerar uma evoluo da cincia jurdica. Devemos buscar, ao longo da histria, os erros e acertos da cultura jurdica para, ento, debruarmos-nos sobre isso e, tomando cuidado para no sermos anacrnicos, identificar o que pode ser til para gerar uma evoluo do Direito. justamente esta a colaborao da histria do Direito: formar juristas que no sejam meros operadores do Direito, mas juristas que pensem criticamente e almejem melhorar essa cincia que tanto produz impacto na vida da sociedade.