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ESTATUTO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO A Ciência, tal como hoje a consideramos – isto é, como um conhecimento que, aliado a sofisticadas técnicas, confere ao homem um saber que é simultaneamente um poder – tem a sua origem na Idade Moderna. Quer isto dizer que antes da modernidade não havia ciência? Certamente que havia. A existência da ciência remonta à necessidade dos homens elaborarem teorias racionais explicativas dos fenómenos que o rodeiam e que o intrigam. Ela é tão antiga como o desejo humano de compreender racionalmente o mundo. No entanto, desde os primeiros filósofos até à Idade Moderna, a ideia de ciência com que nos deparamos, embora já orientada para o conhecimento do universal, caracterizava-se essencialmente por: - uma dimensão contemplativa /teórica (a ciência é desinteressada e contenta-se com a contemplação do mundo). - apoiava-se em procedimentos dedutivos (partindo-se de princípios gerais para eles extrair verdades de âmbito particular). - as fronteiras do seu conhecimento não estavam ainda demarcadas nem da Filosofia nem da Teologia. É esta concepção de ciência que vai ser profundamente alterada com o advento da Idade Moderna, nomeadamente nos séculos XVI e XVII. Seguem-se alguns dos traços essenciais dessa nova Ciência: a) Em primeiro lugar, a Ciência Moderna carrega o projecto de dominação humana da natureza. Ela visa tornar o homem dono e senhor da natureza e, neste sentido, está associada a uma vontade de poder e de domínio. O homem procura explicar os fenómenos para poder prevê-los e colocar a natureza ao seu serviço. b) Em segundo lugar, e sendo este um dos traços fundamentais que marca a mudança, aparecem novos procedimentos metodológicos, nomeadamente com Galileu (considerado o fundador da Ciência Moderna) – o método experimental. A ciência deixa de ser meramente contemplativa, sendo que a observação, experiência e experimentação passam a ter um lugar de destaque na ciência moderna. Este método pressupõe uma íntima relação entre a razão e a experiência. c) Em terceiro lugar, a ciência moderna caracteriza-se pela luta contra todas as formas de autoridade, emancipando-se relativamente à Filosofia e Teologia , constituindo-se como um saber independente e autónomo. A sua emancipação relativamente à Filosofia passa por dois pontos essenciais: - o primeiro é que ela delimita a sua investigação – a ciência moderna procede a uma matematização da natureza e com isto faz da natureza um objecto de estudo mais delimitado ou preciso, a compreensão do mundo através de teorias, com um alto teor

Filosofia

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O que é o conhecimento

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ESTATUTO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

A Ciência, tal como hoje a consideramos – isto é, como um conhecimento que, aliado a sofisticadas técnicas, confere ao homem um saber que é simultaneamente um poder – tem a sua origem na Idade Moderna.

Quer isto dizer que antes da modernidade não havia ciência? Certamente que havia. A existência da ciência remonta à necessidade dos homens elaborarem teorias racionais explicativas dos fenómenos que o rodeiam e que o intrigam. Ela é tão antiga como o desejo humano de compreender racionalmente o mundo.

No entanto, desde os primeiros filósofos até à Idade Moderna, a ideia de ciência com que nos deparamos, embora já orientada para o conhecimento do universal, caracterizava-se essencialmente por:- uma dimensão contemplativa /teórica (a ciência é desinteressada e contenta-se com a contemplação do mundo).- apoiava-se em procedimentos dedutivos (partindo-se de princípios gerais para eles extrair verdades de âmbito particular).- as fronteiras do seu conhecimento não estavam ainda demarcadas nem da Filosofia nem da Teologia.

É esta concepção de ciência que vai ser profundamente alterada com o advento da Idade Moderna, nomeadamente nos séculos XVI e XVII.Seguem-se alguns dos traços essenciais dessa nova Ciência:

a) Em primeiro lugar, a Ciência Moderna carrega o projecto de dominação humana da natureza. Ela visa tornar o homem dono e senhor da natureza e, neste sentido, está associada a uma vontade de poder e de domínio. O homem procura explicar os fenómenos para poder prevê-los e colocar a natureza ao seu serviço.

b) Em segundo lugar, e sendo este um dos traços fundamentais que marca a mudança, aparecem novos procedimentos metodológicos, nomeadamente com Galileu (considerado o fundador da Ciência Moderna) – o método experimental. A ciência deixa de ser meramente contemplativa, sendo que a observação, experiência e experimentação passam a ter um lugar de destaque na ciência moderna. Este método pressupõe uma íntima relação entre a razão e a experiência.

c) Em terceiro lugar, a ciência moderna caracteriza-se pela luta contra todas as formas de autoridade, emancipando-se relativamente à Filosofia e Teologia, constituindo-se como um saber independente e autónomo. A sua emancipação relativamente à Filosofia passa por dois pontos

essenciais: - o primeiro é que ela delimita a sua investigação – a ciência moderna procede a uma matematização da natureza e com isto faz da natureza um objecto de estudo mais delimitado ou preciso, a compreensão do mundo através de teorias, com um alto teor especulativo é substituída por explicações baseadas na medida, no cálculo e na quantificação. - O segundo é que são definidos novos critérios de aquisição e validação do saber – o método experimental. Estes dois pontos contribuem para a autonomização da ciência face à Filosofia. Esta autonomização verifica-se também face à Teologia, nomeadamente

face à Igreja e ao seu poder ao longo de toda a Idade Média. Deixa de haver uma submissão da actividade científica à tutela religiosa. Ciência e Teologia passam a expressar dois domínios distintos: A primeira expressa o ponto de vista da razão, a segunda o ponto de vista da fé.

A partir do século XVIII, o paradigma da ciência passa a tornar-se culturalmente hegemónico: a ciência passa a ser tomada como a mais sublime criação do homem, como a sua mais elevada conquista e chega mesmo a ser considerada como a via de salvação e realização da humanidade.

Esta ideia de que a ciência e o seu imparável progresso solucionará todos os problemas humanos e desvendará todos os mistérios da realidade é ainda mais explicitamente veiculada pelo Positivismo e pelo Cientismo de finais do século XIX e inícios do século XX. A ciência passa a ser encarada como a única forma válida de encarar, compreender e explicar a natureza.

No entanto, no decorrer do século XX – século de crises e grandes apreensões - este ânimo vitorioso do Cientismo acaba por declinar. Importantes acontecimentos contribuem para este abandono da crença nos poderes absolutos da razão:

O primeiro grande choque decorre da I Guerra Mundial: é o desmoronar da confiança inocente e optimista no poder da razão humana, o ser humano passa a provar do seu próprio veneno, encarando os poderes destrutivos insuspeitados que aração e as suas criações, afinal, também comportam. O mundo da ciência e a razão revela-se também como um mundo de guerra, os instrumentos que a ciência criou revelam-se também instrumentos de morte e de aniquilamento dos próprios homens. Com a II Guerra Mundial, a suspeita face à razão e à Ciência e às suas obras parece instalar-se definitivamente. É que agora, a Ciência e a Técnica contribuem para planear campos de morte. As infelizmente famosas câmaras de gás, mas também o requinte de outras técnicas sofisticadas de extermínio maciço da vida humana – pense-se em Hiroxima e Nagasaki – levam a que um pensamento que se quis racional se sinta agora completamente desorientado. Como acreditar ainda no império da razão e da Ciência? Como confiar numa razão que organiza a morte e espalha a destruição?!

Chegamos a uma situação que, sendo consequência da modernidade, nos leva a questões fundamentais – é que o poder decorrente do saber científico e do engenho técnico, esse saber que se mede pela capacidade de obter um poder incondicionalmente bom para o homem, apresenta-se agora como uma ameaça. E as perguntas surgem: o poder é sempre bom? A capacidade dominadora e exploradora do homem é incondicionalmente factor de felicidade? Se a Ciência e a Técnica – já para não falar no capital – são hoje as principais formas de poder, e se o poder que o homem detém lhe permite a autodestruição, não se tornará necessário pensar o saber, como forma de poder que necessariamente é, a partir da ideia de responsabilidade? Não deverão estar subjacentes aos problemas da Ciência e da Técnica questões de ordem ética? Torna-se assim imperativo que o progresso científico-tecnológico seja balizado pela reflexão ética, construindo-se assim uma Ciência com Consciência.

CONTIBUTOS DA EPISTEMOLOGIA CONTEMPORÂNEA PARA O MOVIMENTO DE DESDOGMATIZAÇÃO DA CIÊNCIA MODERNA

A) Realidade dada ou descoberta / realidade construída ou inventada:Uma das convicções que durante muito tempo persistiu foi a ideia de que as teorias científicas reflectiam o real. A realidade estava aí para ser descoberta e as terias nada mais fariam do que traduzi-la de uma forma directa. Contudo, esta é uma ingenuidade hoje denunciada pela epistemologia contemporânea que insiste sobre a não neutralidade das teorias científicas, afirmando que todo o conhecimento é uma construção e que os próprios factos são sempre fabricados: a realidade que a ciência nos apresenta não é a própria realidade mas uma forma de a abordar, ela é uma forma perspectivada de ver a realidade e está indissociavelmente ligada à criatividade humana. Para além disso, ela não é a única explicação possível da

realidade e é tão válida como as explicações alternativas d religião, astrologia, filosofia, arte ou poesia.

B) Sujeito neutro / sujeito participanteOutra das convicções que prevaleceu no paradigma da Ciência Moderna foi a ideia de que as observações e investigações levadas a cabo elos cientistas deveriam ter um carácter absolutamente impessoal, devendo o cientista eliminar da sua investigação todos os preconceitos de ordem subjectiva, fossem eles de tipo cultural, religioso, afectivo, moral, …Esta ideia foi posta em causa pela epistemologia contemporânea, que a denuncia ao referir a impossibilidade que o cientista tem de se abstrair totalmente da sua dimensão enquanto ser social e cultural e de se libertar totalmente dos seus preconceitos, seja de que ordem forem.

C) Absolutismo do valor das teorias / relativismo das comunidades científicas

A Ciência Moderna acreditava no valor absoluto das suas teorias. Acreditava que as leis científicas possuíam uma validade necessária, universal e eterna e que o caminho da ciência era feito por um acumular de conhecimentos que gradualmente engrandeciam o corpo do seu saber. A epistemologia contemporânea põe em causa este valor absoluto, chamando a atenção para a dimensão provisória das teorias científicas ( K. Popper) e para a impossibilidade de as dissociar das comunidades científicas em que elas se desenvolvem e são discutidas ( T. Kuhn). Torna-se assim como característica fundamental da Ciência o seu carácter de revisibilidade, e a consciência de que nenhuma teoria é absolutamente verdadeira, podendo, sempre, no futuro vir a ser posta em causa.