168
filosofia das ciências e da matemática licenciatura em matemática Ministério da Educação - MEC Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Universidade Aberta do Brasil Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará

filosofia das ciências e da matemática - CAPES

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Page 1: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

filosofia dasciências e damatemáticalicenciatura emmatemática

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Ministério da Educação - MEC

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

Universidade Aberta do Brasi l

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará

Page 2: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

Universidade Aberta do Brasil

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará

Diretoria de Educação a Distância

Fortaleza, CE2011

Licenciatura em Matemática

Filosofia das Ciências e da Matemática

Francisco Régis Vieira Alves

Page 3: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

CréditosPresidenteDilma Vana Rousseff

Ministro da EducaçãoFernando Haddad

Presidentes da CAPESJoao Carlos Teatine Climaco

Diretor de EaD - CAPESCarlos Eduardo Bielschowsky

Reitor do IFCECláudio Ricardo Gomes de Lima

Pró-Reitor de EnsinoGilmar Lopes Ribeiro

Diretora de EAD/IFCE e Coordenadora UAB/IFCECassandra Ribeiro Joye

Vice-Coordenadora UAB Régia Talina Silva Araújo

Coordenador do Curso de Tecnologia em HotelariaJosé Solon Sales e Silva

Coordenador do Curso de Licenciatura em MatemáticaPriscila Rodrigues de Alcântara

Elaboração do conteúdoFrancisco Régis Vieira Alves

ColaboradorMarília Maia Moreira

Equipe Pedagógica e Design InstrucionalAna Claúdia Uchôa AraújoAndréa Maria Rocha RodriguesCarla Anaíle Moreira de OliveiraCristiane Borges BragaEliana Alves MoreiraGina Maria Porto de Aguiar VieiraGlória Monteiro MacedoIraci Moraes SchmidlinIrene Moura SilvaIsabel Cristina Pereira da CostaJane Fontes GuedesKarine Nascimento PortelaLívia Maria de Lima SantiagoLourdes Losane Rocha de SousaLuciana Andrade Rodrigues

Maria Irene Silva de MouraMarília Maia MoreiraMaria Luiza MaiaSaskia Natália BrígidoMaria Vanda Silvino da Silva

Equipe Arte, Criação e Produção VisualÁbner Di Cavalcanti MedeirosBenghson da Silveira DantasGermano José Barros PinheiroGilvandenys Leite Sales JúniorJosé Albério Beserra José Stelio Sampaio Bastos NetoLucas de Brito ArrudaMarco Augusto M. Oliveira Júnior Navar de Medeiros Mendonça e NascimentoRoland Gabriel Nogueira MolinaSamuel da Silva Bezerra

Equipe WebBenghson da Silveira Dantas Fabrice Marc JoyeLuiz Bezerra de Andrade FIlhoLucas do Amaral SaboyaRicardo Werlang Samantha Onofre Lóssio Tibério Bezerra Soares

Revisão TextualAurea Suely ZavamNukácia Meyre Araújo de Almeida

Revisão WebAntônio Carlos Marques JúniorDébora Liberato Arruda HissaSaulo Garcia

LogísticaFrancisco Roberto Dias de AguiarVirgínia Ferreira Moreira

SecretáriosBreno Giovanni Silva AraújoFrancisca Venâncio da Silva

AuxiliarAna Paula Gomes CorreiaBernardo Matias de CarvalhoIsabella de Castro BrittoWagner Souto Fernandes

Page 4: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

Alves, Francisco Régis Vieira. Filosofia das Ciências e da Matemática / Francisco Régis Vieira Alves; Coordenação Cassandra Ribeiro Joye. - Fortaleza: UAB/IFCE, 2011. 166p.: il.; 27cm.

ISBN 978-85-475-0008-5

1. FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS 2. FILOSOFIA DA MATEMÁTICA. 3. MATEMÁTICA I. Joye, Cassandra Ribeiro (Coord.). II. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE. III. Universidade Aberta do Brasil – UAB. IV. Título.

CDD – 510.1

V657f

Catalogação na Fonte: Islânia Fernandes Araújo (CRB 3 - Nº 917)

Page 5: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

SUMÁRIO

AULA 2

AULA 3

AULA 4

Apresentação 7Referências 164

Tópico 1

Tópico 2

Tópico 3

Tópico 1

Tópico 2

Tópico 1

Tópico 2

Tópico 3

Tópico 1

Tópico 2

Tópico 3

Currículo 167

Filosofia das Ciências e da Matemática 8Relações entre filosofia das ciências e filosofia da

matemática e o ensino de matemática 9A natureza do conhecimento matemático 18Os precursores da filosofia 23

AULA 1

Filosofia da Matemática 35As correntes filosóficas da matemática 36O construtivismo na matemática e o construtivismo

piagetiano 50

Arquimedes e a Noção de Demonstração 58Sobre a natureza das definições matemáticas 59As influências das correntes filosóficas no

ensino atual 68As características de uma definição matemática e

o ensino de álgebra 80

As dimensões filosóficas da intuição, seupapel da atividade do matemático e alguns

paradoxos 84As dimensões filosóficas da intuição matemática 85O papel da intuição da atividade do matemático 91Os paradoxos relacionadosà intuição matemática 98

Page 6: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

AULA 6

Tópico 1

Tópico 2

Tópico 3

Tópico 1

Tópico 2

Tópico 3

AULA 5 A construção axiomática dos números naturais, inteiros e

racionais 107Relações entre filosofia das ciências e filosofia da matemática e o

ensino de matemática 108As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática II 116As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática III 125

A construção dos números reais, complexos e

considerações finais 134As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática III 135As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática IV 149Uma aplicação de sequência metodológica de ensino por meio de

sua história 156

Page 7: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

7APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃOCaro(a) estudante, apresentamos o material referente à disciplina de Filosofia das Ciências

e da Matemática. De início, recordamos um ensinamento pertinente, atribuído ao filósofo

da ciência Karl Popper, e ao matemático Imre Lakatos. O primeiro investigou a Lógica da

Descoberta Científica – LDC, enquanto o segundo, em sua vida acadêmica, analisou a Lógica

da Descoberta Matemática – LDM. Sustentamos a “impossibilidade”, do ponto de vista

filosófico, de compreensão da LDC, por parte do futuro professor, sem um entendimento

razoável da LDM, embora muitos defendam o contrário. Para tanto, traçamos, nas aulas

iniciais, o cenário filosófico, epistemológico e político, pelo qual identificamos a evolução e a

revolução dos paradigmas da Matemática. Nosso objetivo é a busca de um pensamento, de

um olhar, de um sentimento filosófico do professor com relação à sua disciplina que, aos olhos

dos incipientes, lhes parece uma “ciência dos números”. Acrescentamos que a Matemática é

bem mais do que isso, bem mais do que a aplicação tácita de fórmulas. Por fim, trazemos a

filosofia pessoal de Bertrand Russell, Henri Poincaré e Morris Kline, com a intenção de inspirar

a pedagogia do futuro docente.

Francisco Regis Vieira Alves

Page 8: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

8 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

AULA 1 Filosofia das Ciências e da Matemática

Nesta parte inicial discutiremos algumas noções introdutórias relacionadas aos

campos de investigação da Filosofia da Matemática e das Ciências. Vamos nos

deter inicialmente na demarcação e no interesse de cada uma das áreas e em

seguida na discussão dos elementos mais interessantes com respeito ao ensino

de Matemática. Nesta aula inicial apresentaremos algumas noções fundamentais

no âmbito da Filosofia das Ciências e da Filosofia da Matemática, introduziremos

também, a partir desta primeira aula e de modo sistemático nas subseqüentes,

alguns termos particulares e específicos destas áreas de investigação.

Objetivos

• Descrever os pressupostos básicos da Filosofia da Matemática comparando-a com Filosofia das Ciências

• Discutir a natureza do saber matemático e alguns exemplos de ordem lógica formal

• Conhecer os principais pensadores que estabeleceram o terreno fértil para a Filosofia da Matemática

Page 9: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

9AULA 1 TÓPICO 1

TÓPICO 1 Relações entre filosofia das ciências e filosofia da matemática e o ensino de matemáticaObjetivO

• Descrever os pressupostos básicos da Filosofia da

Matemática comparando-a com Filosofia das Ciências

Na perspectiva do professor de matemática em formação, o que

podemos tomar como mais significativo a compreensão da

evolução do saber científico ou a compreensão do saber matemático

científico? Neste sentido, é surpreendente encontrarmos pessoas no ambiente

acadêmico que se apoiam na crença segundo a qual “é possível compreender o

movimento interno impulsionador e de evolução da Matemática a partir da

compreensão dos movimentos e da evolução que marcaram determinados períodos

históricos num contexto mais amplo e geral”, como o contexto das Ciências. De

modo inquestionável, encontramos na literatura vários pensadores e epistemólogos

(JAPIASSU, 1988) que fornecem um depoimento

que assegura o papel de modelo deste paradigma

para várias outras áreas do saber científico.

Neste sentido, para compreendermos

o pensamento filosófico, necessitamos,

em grande parte, nos apropriarmos do

pensamento epistemológico. A respeito da

epistemologia, Japiassu (1988) faz a seguinte

distinção:

a. Epistemologia, no sentido bem amplo do termo, pode ser considerada

o estudo metódico e reflexivo do saber, de sua organização, de sua

formação, de seu desenvolvimento, de seu funcionamento e de seus

produtos intelectuais;

s a i b a m a i s !

Epistemologia: Diz respeito ao estudo da

gênese, da estrutura, da organização/evolução

dos métodos e a validade/confiabilidade do

conhecimento científico.

Page 10: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

10 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

b. Epistemologia global (geral), quando trata do saber globalmente

considerado, com a virtualidade e os problemas do conjunto de sua

organização, quer sejam especulativos, quer científicos;

c. Epistemologia particular, quando trata de levar em consideração um

campo particular de saber, quer especulativo, quer científico;

d. Epistemologia específica, quando trata de levar em conta uma

disciplina intelectualmente constituída em unidade bem definida

do saber, e de estudá-la de modo próximo, detalhado e técnico,

mostrando sua organização, seu funcionamento e as possíveis relações

que ela mantém com as demais disciplinas.

Depois dessas caracterizações, torna-se necessário sublinharmos a

ênfase que daremos ao longo destas aulas à Epistemologia Específica e, de modo

particular, à Epistemologia da Matemática, que possui de modo intrínseco um

seu viés filosófico. Assim, defendemos a compreensão do movimento filosófico

da Matemática na medida em que identificamos mudanças e substituições de

paradigmas epistemológicos.

Defendemos, assim, a impossibilidade de compreendermos a Filosofia da

Matemática, muito menos diversos fenômenos que evoluem no universo didático,

histórico, lógico e metodológico (Figura 1), recorrendo-se apenas à Filosofia

das Ciências. Deste modo, daremos ênfase aos elementos apresentados abaixo,

identificados no item (2):

Figura 1: Aspectos do saber matemático (ALVES; BORGES NETO, 2010, p. 2)

O diagrama da Figura 2, reproduzida a seguir, nos ajuda a defender que

determinados fenômenos característicos do âmbito das Ciências não explicam/

caracterizam ou significam determinadas dimensões do saber matemático, apesar

de possuírem uma região de interface comum, todavia tal interface ou região de

Page 11: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

11AULA 1 TÓPICO 1

interseção é observada graças à necessidade e insuficiência que muitas áreas do

conhecimento científico apresentam; deste modo, necessitam se apoiar, “importar”

e se ‘apropriar’ de determinados paradigmas e métodos próprios da Matemática

para seu próprio interior, como garantia de rigor e cientificidade.

Figura 2: Relações entre Ciências e Matemática (elaboração própria)

Por outro lado, destacamos, também na Figura 2, uma região pertencente ainda

à Filosofia da Matemática que possui vigor próprio, que indicamos por (?), a qual

não é encontrada e/ou identificada em mais nenhuma outra área do conhecimento

científico. Sua importância se explicita na medida em que desenvolvermos nossas

considerações acerca do ensino de Matemática que não pode desprezar a dimensão

filosófica do saber matemático.

Para exemplificar, são esclarecedoras as considerações do professor Jairo

José da Silva, quando, em seu livro intitulado Filosofias da Matemática, destaca:

A matemática entrou na cultura primeiramente como uma técnica, a de fazer

cálculos aritméticos e geométricos elementares, e suas origens perdem-se

nos primórdios da história. Dentre os povos antigos, os egípcios foram bons

matemáticos, como suas realizações técnicas o atestam, mas os babilônios

foram ainda melhores. Mas, ainda que essas culturas tenham produzido uma

matemática reconhecível como tal, faltava a ela o caráter sistemático, rigoroso,

puro – isto é, não empírico – e, em grande medida, a indiferença com respeito

a aplicações práticas e imediatas que caracterizam o conhecimento matemático,

tal como entendemos hoje (SILVA, 2007, p. 31).

Identificamos em suas palavras uma passagem e transição de um saber

matemático especulativo, empírico e desinteressado, apontado e produzido por

algumas civilizações mais antigas para um saber matemático de caráter “rigoroso”,

“sistemático” e “puro”, como o próprio autor acentua. Ora, este movimento de

Page 12: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

12 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

transição, encontrado em determinadas fases históricas mais proeminentes, como

as fases históricas discutidas por Silva, são objeto de estudo do que Hilton Japiassu

chamou acima da epistemologia específica da Matemática.

A Filosofia da Matemática que por ora discutimos se interessa por questões

desta natureza. Além disso, vamos discutir, ainda, outros interesses que podem ser

identificados apenas nesta área e em mais nenhuma outra área do conhecimento

científico (Figura 2).

Destacamos outro trecho de Silva (2007, p.34) com a intenção de ilustrar, em

nossa discussão filosófica inicial, a significação do termo Filosofia da Matemática.

O gênio de Euclides, porém, estava no modo como ele fez isso. A partir de

um sistema mínimo e supostamente completo de verdades não-demonstradas

e indemonstráveis – axiomas e postulados (posteriormente verificou-se

que faltavam pressupostos substituídos pela intuição espacial) -, Euclides,

demonstrava racionalmente todos os enunciados de Os elementos. Estava assim

criado o método axiomático-dedutivo que viria a servir de modelo para toda

a matemática a partir de então: a redução racional (preferivelmente lógica) de

todas as verdades de uma teoria e uma base mínima e completa de verdades

evidentes ou simplesmente pressupostas. Não havia nada de remotamente

similar na matemática não grega.

Nas palavras do autor, observamos um dos

elementos peculiares ao pensamento matemático

que influenciou, séculos mais tarde, várias

áreas do conhecimento científico. Note-se que a

dimensão epistêmica é sempre exigida para que

possamos compreender o caráter filosófico dos

saberes científicos constituídos até nossos dias.

De fato, Silva (2007) fez menção explicita ao

método axiomático-dedutivo, inaugurado pela

civilização jônica. Sua função naquela época

assumiu um papel fundamental do ponto de

vista epistemológico, principalmente quando

adotamos a seguinte significação:

A epistemologia pode, então ser definida como o ‘estudo da constituição dos

conhecimentos válidos’. O termo ‘constituição’ recobre ao mesmo tempo as

‘condições de acesso’, isto é, os processos de aquisição dos conhecimentos, e

s a i b a m a i s !

O Método axiomático–dedutivo foi sistematizado

a partir dos gregos evoluiu e se aperfeiçoou,

alcançando seu apogeu com o grupo Bourbaki.

A intenção principal consiste em formalizar e

descrever o conhecimento matemático por meio

de estruturas gerais e abstratas.

Page 13: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

13AULA 1 TÓPICO 1

as ‘condições propriamente constitutivas, quer dizer, as condições formais ou

experimentais que dizem respeito à validade dos conhecimentos, e as condições

que dizem respeito, quer às contribuições do sujeito, que às do objeto no

processo de estruturação do conhecimento. Portanto, para Piaget, só há ciência

quando estiverem reunidos esse três elementos: (1) elaboração de fatos; (2)

formalização lógico-matemática; (3) controle experimental (JAPIASSU, 1988,

p. 44).

Notamos no trecho acima o registro de um grande pensador recordado pelo

epistemólogo Hilton Japiassu, trata-se do epistemólogo geneticista Jean Willian

Fritz Piaget (1896-1980) . Destacamos o grande pesquisador Piaget não só por sua

importância no campo científico, mas, sobretudo pelo valor de seu estudo sobre

a análise e os processos de reformulação de certos conceitos científicos por meio

de uma análise lógica (JAPIASSU, 1988, p. 44). A Matemática para Piaget assumiu

um papel imprescindível para a explicação e previsão de inúmeros fenômenos

observados no âmago do conhecimento científico moderno.

Antes, porém, de discutirmos um pouco mais a respeito do caráter

epistemológico do saber matemático e sua função no interior de Filosofia da

Matemática, sublinhamos a explicação do pesquisador inglês Paul Ernest (1991,

p. 3):

A filosofia da Matemática é um ramo da filosofia cuja tarefa se reflete ao

tomar em consideração a natureza da Matemática. Esta é um caso especial

de epistemologia que leva em consideração o conhecimento humano em

geral. A filosofia da Matemática se orienta no sentido de responder algumas

questões: Qual é a base do conhecimento matemático? Qual é a natureza da

verdade matemática? O que caracteriza a verdade em matemática? O que é

uma afirmação e sua justificação? Por que as verdades em matemática são

necessariamente verdades?

Ernest confirma a presença e necessidade da adoção de vários pressupostos

epistemológicos, corroborando com o que mencionamos nos parágrafos anteriores,

quando menciona que, ao adotarmos largamente uma abordagem epistemológica,

assumimos que conhecimento é qualquer área representada por um conjunto de

proposições, aliado a um conjunto de procedimentos capazes de realizar verificação

e assegurar sua confiabilidade (ERNEST, 1991, p. 4).

Na citação anterior, observamos alguns questionamentos intrínsecos ao que

chamamos de Filosofia da Matemática, que se apresenta como um campo distinto

Page 14: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

14 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

da Filosofia das Ciências. Retomando a Figura

2, lembramos que a Filosofia da Matemática é

marcada por elementos particulares que não são

encontrados nas outras áreas do conhecimento

científico humano. No início sublinhamos

uma “crença” equivocada segundo a qual

muitos ainda acreditam na possibilidade de se

compreender o particular partindo-se do geral ().

Assumimos que este ponto de vista encontrado

no locus acadêmico é completamente equivocado e interpretamos esta atitude

e posicionamento epistemológico como uma espécie de “miopia acadêmica”.

Adotamos, por outro lado, o percurso inverso () por acreditarmos que assim

poderemos proporcionar melhor entendimento.

Figura 3: Relação entre o caráter particular e o geral dos saberes científicos (elaboração própria)

Para exemplificar de que modo os sintomas da “miopia” e mesmo, em

terminados casos, cegueira acadêmica pode ocorrer, recordamos a seguinte

caracterização fornecida por Bicudo & Guarnica (2001, p. 19), ao defenderem a

supremacia da Filosofia da Educação sobre a Filosofia da Matemática:

A Filosofia da Educação, por proceder de modo analítico, crítico e abrangente,

volta-se para questões que tratam de como fazer educação, de aspectos básicos

presentes ao ato do educador como é o caso do ensino, da aprendizagem, de

propostas político-pedagógicas, do local onde a educação se dá e, de maneira

sistemática e abrangente, as analisa, buscando estender seu significado para o

mundo e para o próprio homem.

De modo semelhante, os mesmos autores definem a Filosofia da Matemática

como uma área em que:

Proceder conforme o pensar filosófico, ou seja, mediante a análise critica,

reflexiva, sistemática e universal, ao tratar de temas concernentes à região

s a i b a m a i s !

Para conhecer um pouco mais sobre a Filosofia

das Ciências, acesse o site:

http://www.lusosofia.net/textos/serra_paulo_

filosofia_e_ciencia.pdf

Page 15: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

15AULA 1 TÓPICO 1

de inquérito da matemática, diferencia-se da matemática, pois não se dispõe

a fazer matemática, construindo o conhecimento desta ciência, mas dedica-

se a entender o seu significado no mundo, o sentido que faz para o homem,

de uma perspectiva antropológica e psicológica, a lógica da construção do

seu conhecimento, os modos de expressão pelos quais aparece e materializa-

se, cultural e historicamente, a realidade dos seus objetos, a gênese do seu

conhecimento (BICUDO; GUARNICA, 2001, p. 27).

Neste ponto registramos que a “miopia” acadêmica acontece quando

pensamos que, de um ponto de vista prático e utilitarista, seria mais importante

para o professor de matemática um razoável conhecimento em Filosofia da Educação

em detrimento da Filosofia da Matemática. Tal patologia intelectual pode ocorrer

também quando acreditamos de modo ingênuo que, compreendendo a Filosofia da

Educação, consequentemente, o professor compreenderá a Filosofia da Matemática.

E, por fim, com vistas finais ao ensino de matemática propriamente dito, qual das

duas se apresenta de maior relevância para o futuro professor de matemática?

Recordamos um pressuposto simples e recorrentemente descuidado por

profissionais que desconhecem o real e o concreto efetivo significado da regência

numa aula de Matemática, que se refere ao fato de que a maior parte do tempo

despendido pelo professor na escola é dedicada à ação de dar aula de Matemática.

Assim, a retórica que identificamos na definição fornecida por Bicudo & Guarnica

(2001) relativa à Filosofia da Educação, em termos práticos, em nada melhorará ou

aperfeiçoará a ação que mencionamos. Nesse sentido, destacamos a relevância de

um saber vinculado e determinado pelo saber matemático que poderá proporcionar

o aperfeiçoamento da ação docente, de acordo com o que exibimos na Figura 1.

Antes de apresentarmos nosso argumento final, discutiremos outras questões

levantadas por Bicudo & Guarnica (2001, p. 27) quando afirmam que:

As perguntas básicas da filosofia – “O que existe?”, “O que é o conhecimento?”,

“O que vale?” -, são trabalhadas pela filosofia da matemática, focalizando-se

especificamente nos objetos da matemática. Desdobram-se em termos de “Qual

a realidade dos objetos da matemática?”, “Como são conhecidos os objetos

matemáticos e quais os critérios que sustentam a veracidade das afirmações

matemáticas?”, “Os objetos e as leis matemáticas são inventadas (construídas)

ou descobertas?”.

Mais adiante os autores destacam que o tratamento destas questões é

relevante para a autocompreensão da Matemática e necessário para a definição de

Page 16: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

16 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

propostas curriculares, por determinar escolhas de conteúdos, atitudes de ensino,

expectativas de aprendizagem, indicadores de avaliação (BICUDO; GUARNICA,

2001, p. 27).

Depois destas ponderações, acreditamos ser insustentável a crença de que a

formação em Filosofia da Educação deve anteceder qualquer formação e informação

relativa à Filosofia da Matemática. Além da maior importância da Filosofia da

Matemática, no que diz respeito à instrumentalização efetiva do futuro mestre,

assumir este posicionamento implica aceitar o diagrama que propomos (Figura 3),

ou melhor, significa compreender o particular, para depois compreender o geral.

Vários epistemólogos nos fornecem esta lição, entre eles podemos citar Karl Popper

e Thomas Khun.

Como tencionamos nesta primeira parte descrever os pressupostos

iniciais que adotaremos neste curso, inclusive suas implicações para o ensino

de Matemática, recordamos ainda que a Filosofia da Matemática interessa-se por

questões de caráter: (i) ontológico: o que existe em Matemática; (ii) epistemológico:

como se conhece o que existe em Matemática e o que pode ser considerado

conhecimento matemático; (iii) axiológico: quando um conhecimento matemático

pode ser considerado como verdadeiro. Estes questionamentos podem nos fornecer

elementos para compreender os processos necessários que tornam nossas crenças

matemáticas em conhecimento matemático válido.

Figura 4: Relações entre conhecimento e crença matemática

Muitas destas questões serão discutidas e significadas dentro da própria

Matemática, uma vez que esta é, em tese, a área de maior interesse do futuro

professor de Matemática.

Para finalizar, destacamos uma área de investigação, internacionalmente

firmada e reconhecida, chamada Filosofia da Educação Matemática. Tal área de

inquérito investigativo é assim caracterizada:

Page 17: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

17AULA 1 TÓPICO 1

Por focalizar a matemática no contexto da educação, a Filosofia da Educação

Matemática também se coloca questões sobre o conteúdo a ser ensinado e a

ser apreendido e, desse modo, necessita de análises e reflexões da filosofia

da matemática sobre a natureza dos objetos matemáticos, da veracidade do

conhecimento matemático, do valor da matemática (BICUDO; GUARNICA,

2001, p. 30).

Esta área de investigação será retomada por nós no final de nossos estudos.

Assim, para prosseguir de acordo com o que acreditamos ser o mais compreensível

para o leitor (Figura 3), detalharemos a partir deste ponto outras questões

relacionadas ao saber matemático.

Nesta aula, discutimos e demarcamos alguns elementos essenciais

relacionados com a Filosofia das Ciências e Filosofia das Matemáticas. No próximo

tópico introduziremos outros elementos que diferenciam e distinguem a evolução

do saber matemático no contexto científico de qualquer outro saber acadêmico.

Page 18: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

18 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Como mencionamos sem maiores detalhes na seção anterior, a

Matemática, tradicionalmente, foi vista como paradigma para certos

conhecimentos, desde que foi erigida há 2500 anos com Euclides,

como bem atesta Ernest (1991, p. 4). Nos séculos subsequentes, sua influência

continuou a se mostrar promissora e frutífera

para inúmeros campos do saber. De fato, Ernest

(1991, p. 4) recorda que:

Desde a época de Euclides até o final

do século XIX, seu paradigma foi

explorado para estabelecer a verdade e a

certeza. Newton usou alguns elementos

no seu Principia encontrados ainda nos

Elementos de Euclides; Spinoza em sua

estética [...] A matemática desde muito

tempo tem sido tomada como fonte de

muitos saberes da raça humana.

Ernest adverte que conhecimento é a base

na qual assentamos todas nossas afirmações.

Explica ainda que conhecimento a priori consiste

em proposições que são produzidas unicamente

assentadas ou sustentadas pela razão, sem o

TÓPICO 2 A natureza do conhecimento matemáticoObjetivO

• Discutir a natureza do saber matemático e alguns

exemplos de ordem lógica formal

v o c ê s a b i a?

Conhecimento a priori: a priori (do latim, «

partindo daquilo que vem antes »), expressão

do âmbito filosófico que designa uma etapa

para se chegar ao conhecimeto válido, que

consiste o pensamento dedutivo. Note-se que

o conhecimento proposicional não pode ser

adquirido, incorporado por meio da percepção,

introspecção, memória ou testemunho. É,

deste modo, uma anterioridade lógica e não

cronológica que é designada na noção “a

priori”. Tal conhecimento se complementa com

o conhecimento a posteriori, que designa aquele

que adquirimos com a experiência mundana.

Page 19: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

19AULA 1 TÓPICO 2

recurso da observação do mundo real (ERNEST, 1991, p.4). Aqui, a razão empregada

pelo autor consiste no recurso de lógica dedutiva e significados de termos,

tipicamente encontrados em definições. Em oposição, conhecimento a posteriori ou

conhecimento empírico consiste em proposições produzidas com respeito a uma base

de experimentos e observações do mundo real.

Mais adiante, Ernest (1991, p.4) esclarece:

O conhecimento matemático é classificado como conhecimento a priori, desde

que consista de proposições e seja fundamentado a partir da razão. Razão que

inclui lógica dedutiva e definições que são usadas em conjunção de axiomas e

postulados, como base para a obtenção de inferências. Todavia, a fundação do

conhecimento matemático consiste em investigar a verdade nas proposições

matemáticas, consiste no método dedutivo.

Vamos trazer para ilustrar nossa discussão o problema relacionado ao

princípio de indução matemática abordado pelo matemático Giuseppe Peano (1858-

1932). Para tanto, é importante recordarmos o conjunto ={1,2,3,.....,....,...} , que

é chamado de conjunto dos números naturais que estão relacionados de modo íntimo

com a noção de conjunto enumerável (LIMA, 2004). Lima (2004, p. 32) explica que

os axiomas de Peano exibem os números naturais como “números ordinais”, isto é,

objetos que ocupam lugares determinados numa sequência ordenada. O axioma de

Peano é enunciado do seguinte modo:

Existe uma função injetiva ®:s . A imagem ( )s n de cada número

natural În chama-se o sucessor de ‘n’;

Existe um único número natural Î1 tal que ¹1 ( )s n para todo În ;

Se um conjunto ÌX é tal que Î1 X e Ì( )s X X , isto é, se Î ® Î( )n X s n X ,

então =X .

Tais condições podem ser reformuladas do seguinte modo:

(i’) Todo número natural tem um sucessor, que ainda é um número natural;

números diferentes têm sucessores diferentes;

(ii’) Existe um único número natural ‘1’ que não é sucessor de nenhum outro;

(iii’) Se um conjunto de números naturais contém o número ‘1’ e contém

também o sucessor de cada um dos seus elementos, então esse número contém

todos os números naturais.

Lima (2004, p. 33) principia uma discussão filosófica ao declarar que:

Page 20: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

20 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Do ponto de vista de Peano, os números naturais não são definidos. É

apresentada uma lista de propriedades gozadas por eles (os axiomas) e tudo

decorre daí. Não interessa i que os números são; (isto seria mais um problema

filosófico) o que interessa é como eles se comportam. Embora os axiomas por

ele adotados já fossem conhecidos por Dedekind, tudo indica que Peano

trabalhou independentemente. O mais importante não são quais os axiomas

ele escolheu e sim qual a atitude que ele adotou, a qual veio a prevalecer na

Matemática atual, sob o nome de método axiomático.

Por outro lado, o que destacamos há pouco nada possui ou apresenta de

filosófico, todavia a descrição que fizemos acima, com destaque para o item (iii),

que caracteriza o princípio de indução matemática, é pura Filosofia da Matemática.

Caraça (1951, p. 4) referenda nosso posicionamento quando comenta que:

A ideia de numero natural não é um produto puro do pensamento humano,

independentemente da experiência; os homens não adquirem primeiro os

números naturais para depois contarem; pelo contrário, os números naturais

foram-se formando lentamente pela prática diária de contagens. A imagem

do homem criando de uma maneira completa a ideia de número, para depois

aplicar à prática da contagem, é cômoda, mas falsa.

Note-se que, dependendo do

sistema matemático formal, o conjunto

={0,1,2,3,.....,.....} ou ={1,2,3,.....,.....} .

De fato, quando consideramos a teoria aritmética

dos números, o primeiro conjunto é assumido, e

quando estudamos os conteúdos de Análise Real,

o conjunto é assumido sem o zero ‘0’. Lima

(2004, p. 150) se manifesta do seguinte modo:

Sim e não. Incluir ou não o número 0

no conjunto dos números naturais é

uma questão de preferência pessoal ou,

mais objetivamente, de conveniência. O

mesmo professor ou autor pode, em diferentes circunstâncias, escrever Î0

ou Ï0 . Como assim? Consultemos um tratado de Álgebra. Praticamente

em todos eles encontramos ={0,1,2,3,.....,.....} . Vejamos um livro de

Análise. Lá achamos quase sempre ={1,2,3,.....,.....} .

s a i b a m a i s !

A criação de um símbolo para representar o

nada constitui um dos atos mais audazes do

pensamento, uma das maiores aventuras da razão.

Essa criação é relativamente recente (talvez pelos

primeiros séculos da era cristã) e foi devida às

exigências da numeração escrita. (CARAÇA,

1951, p. 6).

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21AULA 1 TÓPICO 2

Ernest (1991) discute o exemplo da verificação que de fato + =1 1 2 , segundo

o sistema axiomático de Peano. Para tanto, assumimos os axiomas que garantem

que podemos escrever que =(0) 1s e =(1) 2s . Também a partir da Aritmética

de Peano, sabemos que + = = +0 0x x x , para todo Îx . Temos também que

+ = +( ) ( )x s y s x y , onde Î,x y . Na sequência, o fato banal simbolizado por

+ =1 1 2 , é verificado formalmente por Ernest (1991, p. 5), após executar dez

passos de inferências lógicas como vemos na Figura 5.

Figura 5: Passos de inferências lógicas (ERNEST, 1991, p. 5)

Alguns dos elementos discutidos anteriormente apontam para a direção de

considerar o conhecimento matemático dotado de verdades universais, infalível e

não questionável. Essencialmente construído a partir de verdades estabelecidas a

priori. Tal perspectiva é o que Ernest (1991, p. 7) chama de visão absolutista da

matemática. De acordo com tal visão, o conhecimento matemático fornece o único

modo de alcançarmos a verdade.

O autor explica ainda que parte deste poder e caráter absolutista é fortalecido

por meio do método dedutivo formal. Tal terreno é construído a partir da lógica e

pode fornecer absoluta certeza ao conhecimento. Ernest (1991, p. 7- 8) salienta ainda

que, no primeiro momento, todos os pressupostos básicos são assumidos a partir da

exploração de suas provas e demonstrações. Ademais, os axiomas matemáticos são

assumidos como verdade e, a partir da necessidade de considerações anteriores, as

definições formais matemáticas são construídas assumindo também valores lógicos

verdadeiros.

No segundo momento, as regras lógicas e modelos de inferência devem

preservar a verdade e conduzir também à verdade. E, verdade deve ser obtida a

partir de verdades, por meio do emprego destes modelos lógicos. Ernest (1991, p.

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22 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

8) acrescenta ainda que toda afirmação ou proposição estabelecida num sistema

dedutivo deverá conter suas conclusões e, uma vez estabelecido um teorema por

meio do método dedutivo, o conhecimento extraído deste teorema deve ser sempre

verdadeiro.

A visão absolutista da matemática encontrou e enfrentou vários problemas

(ERNEST, 1991, p. 8) séculos mais tarde, todavia nos deteremos neste assunto,

de modo pormenorizado, nas próximas aulas. Para concluir, destacamos algumas

características do saber matemático, fornecidas por Morris Kline:

Outro uso básico da matemática, sobretudo nestes tempos modernos, tem

sido fornecer uma organização racional para a natureza dos fenômenos. Os

conceitos, os métodos e conclusões a respeito de que a matemática constitui o

substratum das ciências físicas. (KLINE, 1964, p. 5).

Em outro trecho, Kline (1964, p. 6-7) enaltece algumas características da

beleza do conhecimento matemático ao declarar que:

Além da beleza da estrutura concluída, o uso indispensável da intuição,

imaginação árida na criação de provas e conclusões oferece satisfação estética

de alta para o criador. Se a percepção e a imaginação, simetria e proporção, a

falta de superfluidade, e adaptação exata entre meios e fins são compreendidas

em beleza e são características das obras de arte, então a matemática é uma arte

com uma beleza própria [...] Grandes pensadores cedem às modas intelectuais

do seu tempo como as mulheres fazem a moda no vestuário. Mesmo os gênios

criativos para quem a matemática era puramente um hobby prosseguido

os problemas que agitavam os matemáticos e cientistas profissionais. No

entanto, esses “amadores” e matemáticos em geral, não têm se preocupado

principalmente com a utilidade do seu trabalho.

Vários autores discutem a natureza do conhecimento matemático. Neste

âmbito de reflexão, podemos perceber que determinadas facetas filosóficas

dificilmente seriam percebidas por um estudante que não apresente uma formação

em Matemática além da escolar. Este assunto será retomado por nós adiante, por

ora, apresentamos, na seção seguinte, alguns dos precursores do pensamento

matemático filosófico ocidental.

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23AULA 1 TÓPICO 3

TÓPICO 3 Os precursores da filosofia

ObjetivO

• Conhecer os principais pensadores que estabeleceram o

terreno fértil para a Filosofia da Matemática

Nesta parte discutiremos alguns

dos principais pensadores

gregos que mais contribuíram

para o estabelecimento inicial de algumas

doutrinas na Matemática, com destaque para

Platão e Aristóteles.

A primeira figura ilustre a ser lembrada

quando falamos de Filosofia da Matemática

é Platão. No que diz respeito ao período de

formação de Platão, Barbosa (2009, p. 27) explica:

É muito provável que Platão, em torno de seus vinte

anos, tenha conhecido Sócrates e freqüentado o seu

círculo, não com o intuito de se tornar um filósofo, mas

com o propósito de, mediante o estudo da filosofia,

aprimorar seus conhecimentos para a vida política.

Todavia, o destino, sempre caprichoso, mudaria por

completo os rumos de seus objetivos.

v o c ê s a b i a?

Platão é sempre lembrado pelas ideias e concepções

que influenciou os românticos da matemática.

Nasceu em 428/427 a.C. e foi descendente de uma

família ateniense de classe alta.

s a i b a m a i s !

Platão sustenta que há ideias eternas e

independentes dos sentidos, como o um, o dois,

etc., ou seja, as Formas Aritméticas e outras

como o ponto, a reta, plano, que são as Formas

Geométricas. Quando enunciamos propriedades

ou relações entre esses entes, estamos descrevendo

relações entre as Formas (CURY, 1994, p. 42).

Page 24: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

24 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Platão identifica, nas discussões de sua

época, a dicotomia instalada entre a retórica

e a filosofia. Neste contexto, os sofistas que

tinham como objetivo a formação do espírito e

a multiplicidade de métodos determinam esta

discussão. Neste sentido, Barbosa (2009, p. 28)

declara:

Enquanto matemática e filosofia se

animam mutuamente na ampliação dos

horizontes especulativos da realidade

circundante, a sofística vem a preencher,

no contexto do conhecimento, um

espaço outrora vazio, visto que, ao contrário das duas primeiras, não tem

como escopo um saber teórico ou científico, mas trata de uma exigência de

ordem estritamente prática.

O resultado desta discussão foi a primazia do conhecimento enciclopédico

e intelectualizante que herdamos até nossos dias; assim sendo, esse novo “saber

enciclopédico” (polimathia) e estruturado passou a representar um fenômeno que veio

a formular os conceitos ocidentais da educação como difusão do saber (BARBOSA,

2009, p. 28). No que se refere à contribuição específica de Platão com respeito

à Filosofia da Matemática, Barbosa (2009, p. 37)

adverte:

Quando nos referimos ao platonismo na

esfera da filosofia da matemática, não

podemos atribuir uma doutrina a Platão

da mesma forma como associamos, por

exemplo, o logicismo a Frege e Russell,

isto é, como um corpo de preceitos,

um sistema filosófico em sua acepção

moderna. E isso ocorre justamente

porque não era essa a intenção de

Platão. Ele estaria mais preocupado em

estimular as pessoas a pensar, colocando

deste modo as almas no caminho certo

do conhecimento puro e desinteressado, que outrora vislumbraram antes de

serem condenadas ao devir mundano, a esse doloroso vir-a-ser, e sofrer as

tribulações do corpo e a ignorância da mente.

at e n ç ã o !

Platonismo: Corrente filosófica baseada no

pensamento do seu precursor, Platão, talvez

a mais conhecida, recordada e de implicações

ainda hoje discutida por estudos acadêmicos. Sua

escola, dos séculos IV até I a.C. foi responsável

pela sistematização e aprofundamento de suas

concepções.

at e n ç ã o !

Sofistas: constituíram de grupos de mestres que

viajavam pelas cidades realizando aparições

e eventos públicos para distrair curiosos e

estudantes. Os mesmos cobravam taxas pelo

serviço fornecido. Seu foco principal concentrou-

se no logos ou no discurso, com preocupação nas

estratégias de argumentação.

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25AULA 1 TÓPICO 3

Barbosa (2009), no excerto acima, faz referência a uma corrente filosófica

absolutista da Matemática conhecida como logicismo. Discutiremos as principais

características desta corrente nas próximas aulas. De qualquer modo, são

esclarecedoras suas palavras na medida em que explicam as intenções iniciais

do antigo filósofo, e é interessante conhecer as consequências que tiveram e as

implicações desta ideologia ou doutrina do platonismo com relação ao saber

matemático. Neste contexto, Barbosa (2009, p. 37) acrescenta ainda:

Uma boa parte do platonismo, assim como nós o conhecemos hoje, é, portanto,

uma criação posterior a Platão. O platonismo na moderna filosofia matemática é

descrito como uma teoria que trata das verdades das proposições matemáticas,

sendo “usualmente tomado como um tipo de realismo, equivalente a crença

de que os objetos da matemática tais como os números literalmente existem

independentes de nós e de nossos pensamentos a respeito deles”.

Segundo Silva (2007, p. 37), para Platão, as entidades matemáticas constituem

um domínio objetivo independente e auto-suficiente, ao qual temos acesso pelo

entendimento. Para outro importante personagem grego, Aristóteles, os entes

matemáticos têm uma existência parasitária dos objetos reais – uma vez que os

objetos matemáticos só existem encarnados em objetos reais – e só nos são revelados

com o concurso, ao menos em parte, dos sentidos. Silva (2007, p. 37-38) diferencia

de modo eficiente as duas perspectivas desenvolvidas por estes dois pensadores ao

declarar que:

Para Platão, o mundo real apenas reflete imperfeitamente um mundo puro

de entidades perfeitas, imutáveis e eternas – os conceitos matemáticos entre

elas. Para Aristóteles, o mundo sensível é a realidade fundamental, os entes

matemáticos são ‘extraídos’ dos objetos sensíveis por meio de operações do

pensamento, e os conceitos matemáticos são apenas modos de tratar o mundo

real. [...] De um lado o racionalismo de Platão, que atribui à razão humana o

poder de penetrar nos domínios supra-sensíveis da matemática, e o seu realismo

ontológico transcendente, que afirma que a existência independente dos entes

matemáticos num reino fora deste mundo; de outro, o empirismo de Aristóteles,

que se recusa a dar morada aos entes matemáticos em qualquer outro reino que

não o deste mundo, e o seu realismo ontológico imanente, que garante, ele

também, uma existência dos objetos matemáticos independentemente de um

sujeito [...].

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26 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Silva (2007, p. 40) sublinha que, para Platão, existe uma pluralidade de

números matemáticos. Para ele, não existem vários números ‘2’, e sim a ideia de

dois. Se existisse no mundo ideal apenas um número 2, que sentido teria a identidade

+ =2 2 4 , na qual comparecem duas instâncias da ideia de ‘2’ (SILVA, 2007, p. 40).

Essa identidade não pode ser uma relação entre Ideias numéricas – sendo entidades

singulares elas não admitem cópias de si próprias – mas entre números, que

precisam então existir em abundância. Platão teve assim que admitir a existência,

além da perfeita Ideia de 2, das várias instâncias perfeitas desta Ideia (SILVA, 2007,

p. 40).

Outros conceitos estudados por Platão que merecem atenção são os

conceitos de números pares e números ímpares. Barbosa (2009, p. 48) acrescenta

que os conceitos de par e ímpar permeiam toda a

aritmética platônica, sendo eles capazes de gerar

todos os outros números. Esta dualidade pode

indicar certa concordância com o pitagorismo. E

ainda, Platão teria utilizado os números dois e

três precisamente por se tratarem dos primeiros

par e ímpar, respectivamente. Na Antiguidade,

em geral, não se considerava o um como número

(BARBOSA, 2009, p. 48).

Não podemos esquecer as preocupações

de Platão com o ensino e, com respeito a isto,

Barbosa (2009, p. 49) ilustra:

Voltando ao método da hipótese, ele é também utilizado no Mênon. Nesse

diálogo, Platão faz uma brilhante exposição do método socrático como

instrumento de ensino, quando primeiramente leva o escravo a reconhecer o

próprio erro, e depois o induz ao conhecimento certo. O problema colocado

para o escravo é o de calcular a área de um quadrado de lado 2. Feito isso,

Sócrates questiona o jovem escravo sobre o que aconteceria com cada linha

deste quadrado se a sua área fosse duplicada [...] Sócrates constrói com o

escravo um novo quadrado sobre aquele inicialmente dado, o que tem lados

com medida de 2 pés, prolongando os seus lados até que atinjam a medida 4

pés. O escravo parece estarrecido ao notar que o quadrado construído com as

linhas duplicadas do quadrado original tem o quádruplo de sua área.

at e n ç ã o !

A filosofia da Matemática de Aristóteles foi

desenvolvida, em parte, em oposição a de Platão,

pois ele critica a Teoria das Formas, dizendo que

ela não é racional. Para Aristóteles, cada objeto

empírico, cada ser existente, é uma unidade e não

existe separado de sua forma ou essência (CURY,

1994, p. 47).

Page 27: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

27AULA 1 TÓPICO 3

O discípulo de Platão, Aristóteles (384 – 322 a. C.), permitia-se discordar

do mestre. Em primeiro lugar, Aristóteles não admitia a existência de um reino

transcendente de Ideias e formas matemáticas. As formas geométricas e numéricas

existem, para Aristóteles, apenas como aspectos de objetos e coleções de objetos reais

(SILVA, 2007, p. 43).

Para Aristóteles, os objetos matemáticos são uma abstração apenas ou, na pior

das hipóteses, uma ficção útil (SILVA, 2007, p. 44). Eles não têm existência separada

dos objetos empíricos, são apenas aspectos delas, e se por vezes pensamos como

independentes, isto é, não tem maiores consequências. Um objeto empírico é um

objeto matemático na medida em que nós podemos considerá-lo do ponto de vista de

seu aspecto matemático, ou seja, como um objeto matemático (SILVA, 2007, p. 44).

Machado (1994, p. 21) fornece uma distinção interessante quando declara:

Enquanto que para Platão, os enunciados matemáticos eram verdadeiros por

serem descrições de, ou relações entre, formas matemáticas de existência

objetiva. Aristóteles reabilita o mundo empírico bem como o trabalho do

matemático. E recoloca a questão de os objetos matemáticos e os enunciados

serem verdadeiros ou falsos não em termos absolutos, mas por serem mais ou

menos adequados à representação do mundo empírico, adequação esta relativa

a algum fim que se objetiva.

Diferentemente de Platão, Aristóteles se volta à estrutura das teorias

matemáticas, aos sistemas de proposições. Aristóteles vislumbra a necessidade

e o método que identificamos até nossos dias que diz respeito à organização

das proposições nas hipóteses iniciais, logicamente necessárias e nas proposições

dedutíveis a partir delas, tratando especificamente de estruturar as possíveis deduções

(MACHADO, 1994, p. 21). Suas concepções podem ser consideradas as precursoras

do pensamento que motivou os princípios que passaram a regular e caracterizar

as subdivisões sucessivas da matemática em várias ramificações (no caso das

geometrias: Geometria Euclidiana, Geometria Diferencia, Geometria Hiperbólica,

Geometria Riemanniana, etc).

Silva (2007, p. 45) diferencia o pensamento aristotélico do seguinte modo:

Analogamente, para Aristóteles, a matemática estuda objetos sob certos

aspectos apenas, uma bola como uma esfera, um par de dois livros como dois.

Ao fazer isso, abstraímos da bola a sua forma geométrica e da coleção de livros

sua forma aritmética. Visto assim, Aristóteles, é um empirista em ontologia,

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28 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

pois, para ele, apenas os objetos dos sentidos existem realmente, com um

sentido pleno de existência.

Mas o posicionamento aristotélico produziu respostas inclusive para

os limites da abstração humana. Neste sentido, Silva (2007, p. 45) questiona:

poderíamos, porém, perguntar, e os números tão grandes que não podem numerar

nenhuma coleção real, e as formas geométricas tão esdrúxulas que não podem dar

forma a nenhum objeto real (como o miriágono, o polígono de dez mil lados)?

O autor acrescenta que a saída vislumbrada por Aristóteles foi admitir que

entre os objetos matemáticos também encontramos formas fictícias. Essas, no

entanto, por serem construtíveis a partir de certas formas reais, são possíveis na

realidade (SILVA, 2007, p. 45). De fato:

Um número muito grande pode ser construído, por adição sucessiva de

unidades, a partir de qualquer número pequeno dado, e o miriágono pode ser

construído a partir de figuras geométricas reais, como círculos e segmentos

de reta. Assim, numa compreensão mais ampla, a matemática, segundo

Aristóteles, trata não apenas de formas abstratas atuais, mas também de formas

abstratas possíveis (SILVA, 2007, p. 45).

Para concluir nossas considerações sobre Aristóteles, vale destacar as

ponderações devidas a Machado (1994, p. 22) quando destaca:

Em resumo, poderíamos dizer que a posição de Aristóteles no que se refere

à relação da Matemática com a realidade pode ser situada, simultaneamente,

na origem tanto do realismo como do idealismo modernos, na medida em

que, por um lado, reabilita o mundo empírico e, por outro lado, o trabalho do

matemático deixa de ser um mero caçador de borboletas no mundo perfeito

das Formas, vislumbrando a possibilidade dele mesmo ser um ‘fabricante’ de

borboletas.

O posicionamento assumido por Aristóteles em relação à Matemática pode

ser compreendido também nas palavras de Silva (2007, p. 46), quando explica:

Como a entendo, a abstração aristotélica, a operação pela qual consideramos

objetos e coleções de objetos empíricos como objetos matemáticos, comporta

também um elemento de idealização. Tratar uma bola como uma esfera é uma

operação complexa: abstrair-se da bola a sua forma mais ou menos esférica e,

simultaneamente, idealiza-se essa forma, isto é, desconsideram-se as diferenças

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29AULA 1 TÓPICO 3

entre ela e a esfera matemática perfeita (determinada pela sua definição como o

lugar geométrico dos pontos espaciais eqüidistantes de um centro). Uma esfera

matemática é, assim, a idealização de um aspecto da bola, e só assim ela existe.

A Matemática como a conhecemos hoje é o exemplo mais puro e clássico de

ciência dedutiva, e várias outras áreas do conhecimento buscaram e adaptaram,

na medida do possível, alguns de seus pressupostos e paradigmas de rigor. De

fato, é relevante a influencia do pensamento aristotélico no desenvolvimento da ciência

em geral (SILVA, 2007, p. 50). Aristóteles entendia a Matemática como um edifício

logicamente estruturado de verdades encadeadas em relações de conseqüência lógica a

partir de pressupostos fundamentais não demonstrados (2007, p. 50).

Aristóteles contribuiu também com relação às noções metamatemáticas

(propriedades elementares da metodologia das ciências dedutivas) fundamentais,

como as de axioma, definição, hipótese e demonstração. Aristóteles critica o modelo

de demonstrações em Matemática que conhecemos por redução ao absurdo. O mesmo

considera-as não explicativas, isto é, sabe-se que algo é verdadeiro sem saber por que é

verdadeiro (SILVA, 2007, p. 52). A este respeito, Silva (2007, p. 52) comenta:

Demonstrações por redução ao absurdo (para se demonstrar que uma asserção

qualquer A, supõe-se a falsidade de A e obtêm-

se como conseqüência uma falsidade qualquer ou,

equivalentemente uma contradição. O que mostra que

A não pode ser falsa, sendo, portanto, verdadeira)

ocorrem com freqüência na matemática grega, em

particular no método da exaustão de Arquimedes, que

envolve uma dupla redução ao absurdo. A introdução

de métodos infinitarios na matemática do século

XVII, em especial por Cavalieri, visava em grande

medida substituir demonstrações por exaustão por

demonstrações diretas, causais, respondendo assim às

demandas aristotélicas.

Em vários aspectos podemos dizer que os

germes da ideia da importância de uma ciência

dedutiva e o poder da lógica puramente formal

encontram-se nas concepções aristotélicas. Nesta

perspectiva, à matemática formal não importa o

significado nem a veracidade das asserções, mas

v o c ê s a b i a?

Zenão de Eléia foi um filósofo pré-socrático

e foi discípulo de Parmênides. Das suas

descobertas, destacamos a dialética clássica, o

modo de argumentar que consiste em derivar

contradições das teses do opositor ao seu

discurso. Zenão utilizou o método na defesa das

ideias de Parmênides acerca da unidade do ente

e da impossibilidade do movimento, propondo

algumas contradições ou aporias, que desafiaram

os seus contemporâneos e intrigam até nossos

dias. Ver sua descrição no curso de História da

Matemática.

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30 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

apenas as relações formais entre elas (SILVA, 2007, p. 51). Mas isto quer dizer que

podemos tomá-la apenas como um jogo formal sem nenhuma intenção cognitiva?

Este questionamento, fruto de intensas querelas e embates políticos entre os

matemáticos, será retomado nas próximas aulas, uma vez que não se tem uma

resposta de argumentação satisfatória.

Outro aspecto que merece ser destacado diz respeito às contribuições de

Aristóteles com relação a algumas noções que funcionam até nossos dias como

pedras angulares para o saber matemático. Um destes exemplos e que foi objeto de

reflexão para Aristóteles diz respeito à noção de infinito.

Em virtude das ponderações aristotélicas, desenvolveram-se as noções de

infinito atual e infinito potencial, entretanto,

no que diz respeito ao aspecto matemático

desta noção, Georg Cantor (1845-1918)

forneceu o acabamento final, acrescentando

alguns elementos descuidados por Aristóteles.

Com relação a tais noções, Silva (2007, p. 51)

acrescenta:

Devemo-lhes a distinção fundamental

entre o infinito atual e o infinito

potencial, ou seja, entre a noção de

uma totalidade finita em que sempre

cabe mais um indefinidamente – o

infinito potencial – e uma totalidade infinita acabada. Segundo Aristóteles,

aos matemáticos bastava a noção de infinito potencial. Se bem que esta ideia

não corresponde à realidade da prática matemática, uma vez que a noção de

infinito atual é essencial a muitas teorias matemáticas, uma vez que a noção de

infinito atual é essencial a muitas teorias matemáticas, ela foi, e ainda é, aceita

por muitos matemáticos, que não vêem na matemática do infinito senão uma

fonte de absurdos e contradições.

Nas próximas aulas, nos deteremos um pouco mais nestas duas noções

importantes para a Matemática. Para concluir esta seção, discutiremos ainda parte

das contribuições devidas à Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) e Immanuel

Kant (1724-1804) . Machado (1994) explica que cerca de dois mil anos se passaram

para que a obra aristotélica, enquanto Lógica, fosse retomada e desenvolvida.

Segundo Machado (1994, p. 22), Leibniz fornece uma intensa contribuição

ao aceitar a pressuposição aristotélica da forma sujeito-predicado de todas as

at e n ç ã o !

Acreditamos que a radical mudança na abordagem

sobre o infinito promovida por Cantor no final do

século XIX pode ser melhor destacada com uma

análise sob três ângulos, que interpretamos como

três pontos de vista sobre o infinito: o histórico, o

filosófico e o matemático.

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31AULA 1 TÓPICO 3

proposições. E vai além, ao afirmar que o predicado de uma proposição sempre está

contido, em algum sentido, no sujeito. Machado (1994, p. 22) esclarece que:

Para Leibniz há duas classes de verdades: as verdades da razão e as verdades

dos fatos. As verdades da razão são necessárias e sua negação não faz sentido.

A necessidade se exprime através da análise e da conseqüente decomposição

em proposições mais simples até que se chegue a um ponto em que a

necessidade lógica seja transparente. O princípio que regula a análise é o da

não-contradição, que engloba o da não identidade e o do terceiro excluído.

Acrescenta ainda que não só as tautologias como também os axiomas, os

postulados e os teoremas são verdades da razão, ou seja, são verdades cuja negação é

impossível de sustentar sem incorrer em contradições (MACHADO, 1994, p. 23). As

verdades da razão enunciam que uma coisa é necessária e universal, não podendo

de modo algum ser diferente do que é e de como é.

Um exemplo evidente das verdades da razão são as ideias matemáticas. É

inquestionável que o triângulo não possua três lados e que a soma dos seus ângulos

seja diferente de dois ângulos retos. Outro exemplo interessante de verdade da

razão é que um circulo não tenha todos os pontos eqüidistantes do centro. Outra

verdade da razão é que não se pode contradizer o que 2+2 seja diferente de 4; é

impossível questionar que o todo é maior do que suas partes constituintes.

As verdades de fato, por outro lado, são as que dependem de nossa experiência

captada no mundo em que vivemos. De fato, elas são obtidas através da sensação,

da percepção e da memória. Elas são empíricas e se referem a coisas que poderiam

ser diferentes do que são, mas podemos identificar causas que sejam assim. Quando

dizemos que uma rosa é branca, nada impede que ela possa ser vermelha ou amarela,

mas se ela é branca é porque alguma causa a fez deste modo e aparência. Mas não

é acidental ou contingente que ela tenha cor e é a “cor” que possui e envolve uma

causa necessária.

As verdades de fato são verdades porque para elas funciona e empregamos

o principio da razão suficiente, segundo o qual tudo o que existe, tudo o que

percebemos e identificamos, e tudo aquilo que temos experiência possui uma causa

determinada e identificável e conhecida. Pelo princípio da razão suficiente – isto

é, pelo conhecimento das causas – toda a verdade de fato pode tornar-se verdades

necessárias e serem consideradas verdades da razão, ainda que para conhecê-las

dependamos da experiência mundana.

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32 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Machado (1994, p. 23) explica ainda que as verdades dos fatos são proposições

empíricas cuja negação não encontra óbices do ponto de vista lógico. É uma verdade

da razão que minha caneta é uma caneta ou que + =2 2 23 4 5 . É uma verdade de fato

que minha caneta é preta ou que um corpo, abandonado em uma certa altura da Torre

de Pisa, cairá até o solo. Machado (1994, p. 23) fornece uma importante distinção:

Diferentemente de Platão, para quem diagramas, figuras, cálculo simbólico,

foram elementos auxiliares ocasionais, Leibniz acreditava que a representação

concreta do pensamento em símbolos adequados era, segundo suas próprias

palavras, o “fio de Ariadne” que conduz a mente. E o desenvolvimento que ele

imprime à Lógica decorre do seu propósito de criar um método de representar

o pensamento através de signos, de características relacionadas com o que se

está pensando.

Para concluir este tópico, destacamos

a figura emblemática da Imanuel Kant. Sua

proposta inicial consiste na distinção de duas

classes de proposições. As proposições sintéticas:

as que são empíricas, ou as sintéticas a posteriori

e as que não são empíricas, ou sintéticas a priori.

As proposições sintéticas a posteriori dependem,

segundo Kant, da experiência sensível, para

sua verificação, para sua validação e aceitação.

Ou ainda de modo indireto, uma vez que são

consequências de inferências proposicionais

passíveis de alguma verificação experimental.

Por outro lado, Machado (1994, p. 24)

explica que:

Já as proposições sintéticas a priori

não dependem da percepção sensorial

para sua validação, nem são analíticas,

isto é, nem a sua negação conduz

a contradições. São proposições

necessárias por constituírem a base, a

condição de possibilidade da ciência, da

experiência objetiva.

s a i b a m a i s !

Experiência sensível: Este termo possui dupla

raiz etimológica. A palavra latina experientia de

onde deriva a palavra experiência, é originária

da expressão grega. Deriva-se também de um uso

específico da palavra empírico.

s a i b a m a i s !

Validação: Este termo aqui é empregado no

sentido restrito ao âmbito da investigação em

Matemática Pura, assim, diz respeito à aplicação

de paradigmas de testagem e verificação da

confiabilidade dos conteúdos matemáticos

obtidos.

Page 33: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

33AULA 1 TÓPICO 3

Para Kant, todas as proposições da

Matemática são sintéticas a priori. Machado

(1994, p. 25) explica este posicionamento ao

mencionar que:

Os objetos do mundo empírico situam-se no espaço

e no tempo. Não é possível estudá-los, conhecê-los,

investigá-los, percebê-los sensorialmente, sem uma

concepção inicial do espaço e do tempo. A estrutura

conceitual do par espaço-tempo é que determina

o modo como o mundo empírico é apreendido. Esta

estruturação é, a uma só vez, sintética e a priori.

Ao descrever o tempo e o espaço, descrevemos não

impressões sensíveis de algo situado fora de nós, do

mundo empírico, mas sim as matrizes permanentes,

invariantes, de tais conceitos, que existem em nós,

independentemente das impressões sensíveis e que

são a condição de possibilidade de atuar no mundo

empírico. E a matemática, enquanto se refere ao

espaço e ao tempo, é constituída de proposições

sintéticas a priori e não analíticas, como anteriormente

era considerada.

Para concluir, ressaltamos que Kant destacou que os

matemáticos são os indivíduos “eleitos” para desvendar os segredos do

harmônico universo platônico preexistente, de perquiridores de tal mundo

perfeito universo, ou de criadores de abstrações, de conceitos gerais para

explicar o mundo, a partir do imperfeito material empírico (MACHADO, 1994,

p. 25).

O principal mecanismo de acesso a tais entes não se dá mais por meios dos

órgãos sensoriais, e sim, por meio da razão introspectiva.

As ideias repercutidas por estes personagens emblemáticos receberam

séculos mais tarde uma enorme atenção de matemáticos e filósofos modernos. O

interessante será reservado a uma análise da forma como tais ideologias ainda se

manifestam e condicionam as formas de veiculação e ensino do saber matemático.

Na próxima aula, discutiremos as implicações deste pensamento filosófico antigo.

s a i b a m a i s !

Para a Geometria, o espaço puro é um dos

primeiros pressupostos. A Geometria supõe o

espaço sob os seus conceitos de polígonos. Por

exemplo, a linha reta é a distância mais curta entre

dois pontos (qualquer linha reta = universalidade,

em quaisquer condições = necessidade). Embora

não tenha em si o princípio de não contradição,

e dependa da intuição de espaço e, portanto é

sintética, essa afirmação é conhecimento puro ou

a priori porque a intuição do espaço está em nossa

mente. E uma vez concebida, não depende mais

da experiência sensível captada por nossos órgãos

sensórios.

Page 34: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

34 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

AT I V I D A D E S D E A P R O F U N D A M E N T O

1. Pesquisar exemplos de infinito atual e infinito potencial dentro da Matemática.

2. Pesquisar exemplos de verdades da razão e de verdades dos fatos.

3. Pesquisar exemplos de conhecimentos que não derivam da experiência empírica.

Page 35: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

35AULA 2

AULA 2 Filosofia da Matemática

Nos próximos tópicos, nos deteremos em alguns dos pressupostos fundamentais

assumidos pelas principais correntes filosóficas da Matemática. Uma das

implicações mais importantes diz respeito à identificação de distorções e

incongruências relacionadas ao ensino de Matemática. Tais distorções se referem

à interpretação dos fenômenos relacionados a este ensino sob o viés de teorias

pedagógicas de campos de saberes não aplicáveis e insuficientes ao saber

matemático. Assim, o conhecimento das correntes filosóficas da Matemática

poderá instrumentalizar o futuro professor no sentido de proporcionar uma leitura

filosófica de sua própria prática docente.

Objetivos

• Conhecer as principais correntes absolutistas da Matemática• Conhecer aspectos do “construtivismo” matemático e os fundamentos da

teorização de Piaget e suas implicações para o ensino

Page 36: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

36 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Nesta aula discutiremos as principais correntes filosóficas da

Matemática. Alguns dos autores escolhidos e consultados ao

longo do texto as denominam de correntes absolutistas, pelo fato

de não conceber o caráter falível do saber matemático. Um comentário introdutório

sobre tais correntes podem ser encontradas em Machado (1994, p. 26) quando

esclarece que:

As principais concepções a respeito da natureza da Matemática, de sua relação

com a realidade, a despeito de suas várias raízes e dos inúmeros filósofos

envolvidos, convergiram a partir da segunda metade do século XIX, para três

grandes troncos. Estas três grandes correntes do pensamento matemático,

cada uma das quais pretendendo fundamentar a Matemática, sua produção,

seu ensino, são o Logicismo, o Formalismo e o Intuicionismo.

Certamente que a classificação fornecida por Machado (1994) é de caráter

esquemático e pedagógico, uma vez que é impossível enquadrar de modo indiscutível

todas as concepções nesta camisa-de-força (MACHADO, 1994, p. 26). No contexto

histórico, identificamos que, no final do século passado, a Matemática havia-se

desenvolvido enormemente, com os trabalhos de Leonhard Euler, Johann Carl

Friedrich Gauss (no século XVIII) e as contribuições, principalmente os resultados

obtidos por Georg Cantor (no século XIX).

TÓPICO 1 As correntes filosóficas da matemáticaObjetivO

• Conhecer as principais correntes absolutistas da

Matemática

Page 37: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

37AULA 2 TÓPICO 1

Cury (1994, p. 53) destaca que alguns filósofos matemáticos, no entanto,

estavam preocupados com o surgimento de paradoxos e contradições na Lógica e na

Teoria dos Conjuntos. Assim, com a intenção de identificar critérios mais rigorosos

e confiáveis no sentido de fundamentar a Matemática, desenvolveram-se três escolas

de filosofia, cuja influência se faz sentir até os dias atuais: o Logicismo, o Intuicionismo

e o Formalismo (CURY, 1994, p. 53).

Ao declarar que seus efeitos ainda podem ser identificados nos dias de

hoje, Cury faz um parêntese importante que nos auxiliará no aprofundamento

com respeito à atividade avaliativa em Matemática. Muitos tentam compreender

e descrever este fenômeno específico por meio de teorias “importadas” de outros

campos do saber, o que resulta em uma leitura

e significação de caráter retórico, pouco

operacional no que diz respeito à sua aplicação

no ensino efetivo de Matemática.

Iniciamos nossa discussão com uma

reflexão de Russell (1920, p. 18) quando alerta

que:

Matemática e lógica, historicamente, têm sidoestudos inteiramente distintos

[...] Mas ambos têm se desenvolvido em tempos modernos; a lógica tornou-se

mais matemática e matemática tornou-se mais lógica. A conseqüência é que

agora se tornou completamente impossível traçar uma linha entre os dois, na

verdade os dois são um só [..] A prova da sua identidade é, naturalmente, uma

questão de detalhe.

No excerto acima identificamos a dificuldade de traçarmos uma linha

divisória entre Matemática e Lógica. De fato, até mesmo mentes brilhantes,

como a de Bertrand Russell (1872-1970), destacavam tal empecilho. Mas já que

introduzimos a polêmica em torno da Lógica, discutiremos inicialmente alguns

aspectos relacionados ao Logicismo. Para falar do Logicismo, é necessário falar de

Gottlob Frege (1848-1925).

Silva (2007, p. 127) acentua que a estratégia logicista de Frege começa com uma

releitura das distinções kantianas. Frege nos alerta de saída para nunca confundirmos

o lógico com o psicológico. Em sua concepção:

A razão é simples, representações são “cópias” das coisas em nossa mente, elas

são objetos mentais, e qualquer tentativa de definir analiticidade em termos

v o c ê s a b i a?

Bertrand Russell foi um matemático, filósofo,

lógico e historiador matemático inglês.

Page 38: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

38 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

de representações mentais corre o risco de ser contaminada pelo psicologismo.

Para Frege, essa distinção entre o a priori e o posteriori, é puramente lógica

[...] (SILVA, 2007, p. 127).

No trecho acima, Silva expõe a crítica de Frege ao Psicologismo que manifesta

preocupação com a interpretação que possamos dar às nossas representações

mentais que construímos no decorrer de nossa existência finita no mundo.

Seu posicionamento do valor da Lógica é identificado por Silva (2007, p.

126-127) quando menciona:

Apesar de concordar com Kant quanto à Geometria, Frege acreditava que a

aritmética é analítica, porém em um sentido de analiticidade diferente de Kant.

Mais precisamente, para Frege, a aritmética é redutível à lógica, ela nada mais

é do que pura lógica. Para fazer prevalecer esse ponto de vista, Frege engajou-

se numa luta sem quartel contra as filosofias que, segundo ele, comprometiam

o caráter da verdade aritmética em particular os empiristas, para os quais a

verdade aritmética é uma generalização da experiência, fundada em sólida

base indutiva; e os psicologistas, para os quais os números são entidades

mentais e as verdades aritméticas dependem de leis empíricas que regulam

nossos processos mentais; isto é, leis da psicologia.

Para Frege, uma proposição matemática pode apresentar duas naturezas

distintas. De fato, temos uma proposição analítica quando a demonstração desta

proposição envolve apenas leis lógicas gerais e definições formais. Se, pelo

contrário, qualquer demonstração de uma

proposição recorre ao emprego de verdades de

escopo limitado (como os axiomas da geometria),

ela será uma proposição sintética. Ademais,

quando a mesma proposição utiliza verdades

particulares, embora não demonstráveis (como as

asserções que expressam os dados imediatos dos

sentidos), ela será uma proposição a posteriori. E

quando em tal proposição observamos que sua

demonstração se fundamenta em fatos e verdades

gerais, ela será a priori (SILVA, 2007, p. 127). De

modo resumido, temos o quadro sistemático de

classificação segundo as concepções de Frege.

s a i b a m a i s !

O Empirismo é descrito e caracterizado pelo

conhecimento científico, a sabedoria é adquirida

por intermédio da apreensão perceptual, pela

origem das ideias por onde captamos e percebemos

as coisas, de modo independe de seus objetivos

e significados. E pela relação de causa-efeito por

onde fixamos nossa mente, o que é percebido/

identificado atribui à percepção causas e efeitos.

Page 39: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

39AULA 2 TÓPICO 1

Proposições Características Quanto à demonstração

Proposição sintética

Emprega verdades de escopo limitado para assegurar sua

validade

Quando recorre apenas a verdades gerais (a priori)

Proposição analítica

Sua verificação envolve o recurso de leis gerais da

lógica e definições formais

Quando se fundamenta em verdades particulares, não

demonstráveis (a posteriori)

Quadro 1: Propriedades das proposições (SILVA, 2007, p. 133)

Dando continuidade ao pensamento da corrente Logicista, encontramos o

matemático e filósofo Bertrand Russell. Silva (2007, p. 134) diz que Russell não foi

tão pessimista quanto Frege sobre o destino do programa logicista. Seu pensamento

pode ser contemplado no seguinte trecho:

A matemática é um estudo que, quando iniciado de suas partes mais

familiares, pode ser levado a efeito em duas direções opostas. A mais comum

é construtivista, no sentido da complexidade gradativamente crescente: dos

inteiros para as frações, os números reais, os números complexos, da adição

e multiplicação para a diferenciação e integração e daí para a matemática

superior. A outra direção, que é menos familiar, avança, pela análise, para a

abstração e a simplicidade lógica sempre maiores; em vez de indagar o que

pode ser definido e deduzido daquilo que se admita para começar, indaga-se

que mais ideias e princípios gerais podem ser encontrados, em função dos

quais o que fora o ponto de partida possa ser definido ou deduzido. É o fato

de seguir essa direção oposta é que caracteriza a Filosofia da Matemática, em

contraste comum com a matemática (RUSSELL, 1981, p. 9, apud SILVA, 2007,

p. 135).

Note-se que, no trecho acima, apesar de extenso, há espaço para a inspiração

adequada para nossa discussão. Observamos a distinção do termo construtivismo

em Matemática. Russell faz indicações concretas a respeito da necessidade de

construção progressiva dos conceitos matemáticos, passo a passo. Neste sentido,

destaca o papel da abstração humana como a capacidade ontológica do indivíduo

que proporciona determinados saltos, avanços e retrocessos qualitativos do

indivíduo.

Nesse sentido, Russell (1981, p. 9) salienta que os antigos geômetras gregos

ao passarem das regras de agrimensura empíricas egípcias e proposições gerais pelas

Page 40: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

40 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

quais se constatou estarem aquelas regras justificadas, e daí para os axiomas e

postulados de Euclides, estavam praticando a Filosofia da Matemática. Por outro

lado, uma vez atingido os axiomas e postulados, o seu emprego dedutivo, como

testemunhamos em Euclides, pertencia à matemática no sentido comum. A

distinção entre matemática e filosofia da matemática depende do interesse que inspire

a pesquisa e da etapa por esta atingida e não das proposições às quais a investigação

esteja afetada (RUSSELL, 1981, p. 9).

Russell, considerado um filósofo logicista, ressaltava alguns aspectos que

deveriam ser tomados com vigilância pelos próprios logicistas. Em suas palavras,

percebemos alguma destas ressalvas:

Uma vez toda a matemática pura e tradicional reduzida à teoria dos números

naturais, o passo seguinte na análise lógica, foi reduzir essa própria teoria ao

menor conjunto de premissas e termos não definidos dos quais se pudesse

ser derivada. Esse trabalho foi realizado por Peano. Ele mostrou que toda a

teoria dos números naturais podia ser derivada de três ideias primitivas e

cinco proposições primitivas, além daquelas da Lógica pura. Essas três ideias

e cinco proposições tornaram-se, desse modo, por assim dizer, as garantias de

toda a matemática pura. Seu “peso” lógico, caso se possa usar tal expressão, é

igual ao de toda a série de ciências deduzidas da teoria dos números naturais; a

verdade das cinco proposições primitivas, desde que, naturalmente, nada haja

de errôneo no aparato lógico também envolvido (1981, p. 12).

A principal tese logicista foi defendida por Russell, Whitehead, na

fundamental obra Principia Mathematica. O autor pretendia derivar as leias da

Aritmética e, de resto, toda a Matemática, das leis da Lógica normativa elementar.

Muito cedo, porém, a Lógica aristotélica, mesmo incorporando os desenvolvimentos

de Leibniz, bem como os que seguiram, mostrou-se pequena demais para tal tarefa

(MACHADO, 1994, p. 27). Neste sentido, Machado (1994) aponta os seguintes

objetivos propostos pelos logicistas:

a) todas as proposições matemáticas podem ser expressas na terminologia

lógica;

b) todas as proposições matemáticas verdadeiras são expressões de verdades

lógicas.

Cury (1994, p. 54) menciona que alguns dos logicistas mereceram destaque,

como Russell e Whitehead. Cury chama atenção para o coroamento das pesquisas

de vários matemáticos que antecederam os logicistas. Neste sentido, destacamos

Page 41: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

41AULA 2 TÓPICO 1

o simbolismo exagerado e a formalização presentes na obra escrita por Russell

intitulada Principia Mathematica mostram que, para os seus autores, a matemática

existe em um “céu platônico”, desligada dos problemas humanos.

Cury (1994, p. 54) destaca, no entanto que:

[...] a tentativa de Russell e Whitehead de mostrar que a matemática clássica

pode ser reduzida à Lógica não estava completa. Para evitar os paradoxos e as

críticas que surgiam à sua obra, Russell teve que edificar a teoria dos tipos e

assumir o axioma do infinito, que não tem caráter lógico estrito, pois é uma

hipótese sobre o mundo real. Assim, o programa logicista não teve êxito em

sua tentativa de assegurar a visão absolutista da matemática.

No final de sua vida, Russell abandonou a visão platônica em que se apoiara

nos seus trabalhos iniciais, talvez pelo desencanto em relação às possibilidades de

fundamentar a matemática (CURY, 1994, p. 54). Machado (1994, p. 27) salienta que:

A Lógica elementar contém regras de quantificação que provêem a matemática

de instrumental eficiente quando se trata de frases onde esteja bem-estabelecida

a caracterização do indivíduo e do atributo, distinção essa que sabemos de

raízes aristotélicas. Entretanto, ela não admite, sem enfrentar dificuldades,

regras de quantificação para expressões bem-formadas onde atributos são

tratados como indivíduos. Assim, frases do tipo “todos os indivíduos i têm

o atributo A” ou “existe um indivíduo i que tem o atributo A” não oferecem

problemas; mas frases como “todos os atributos A têm o atributo B” ou “existe

um atributo A que tem o atributo B” conduziriam a dificuldades lógicas.

Machado (1994) discute o Paradoxo de Russell, que consiste em uma situação

contraditória descoberta por Bertrand Russell em 1901 e que prova que a teoria

de conjuntos de Cantor e Frege é contraditória. Consideramos então o conjunto M

como definido “conjunto de todos os conjuntos que não se contêm a si próprio como

membro. Empregando a notação matemática, escrevemos A é elemento pertencente

de M se, e somente se, A não é elemento de A, ou seja, : { ; A A}M A= Ï .

No sistema concebido por George Cantor, M é um conjunto bem definido. A

questão que se apresenta diz respeito da possibilidade de M conter-se a si mesmo?

Ora, se as resposta é sim, não é membro de M, de acordo com a definição

estabelecida há pouco. Por outro lado, supondo que M não se contém a si mesmo,

tem de ser membro de M, de acordo mais uma vez com a definição de M. Deste modo,

as afirmações “M é membro de M” e “M não é membro de M” conduzem ambas

Page 42: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

42 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

a inconsistências e contradições. Já no sistema devido a Frege, M corresponde ao

conceito e não recai no conceito de sua definição. O sistema de Frege conduz ainda

a outras contradições.

Para concluir, vamos recordar o Paradoxo do Barbeiro de Sevilha. Tal

paradoxo é explicado a partir da Lógica e da Teoria dos Conjuntos. O paradoxo

envolve uma aldeia onde, todos os dias um barbeiro faz a barba de todos os homens

que não se barbeiam a si próprios e a mais ninguém. Ora, tal aldeia pode existir?

O raciocínio nos conduz a duas possibilidades: i) se o barbeiro não se barbeia a si

mesmo, então terá de fazer a barba de si mesmo; (ii) se o barbeiro se barbear a si

mesmo, de acordo com a regra estabelecida, ele não pode se barbear a si mesmo.

A regra anterior caracteriza uma situação indecidível. O paradoxo costuma

ser atribuído a Bertrand Russell, um matemático britânico que no ano de

1901 elaborou este paradoxo para demonstrar a natureza auto-contraditória e

inconsistente da teoria dos conjuntos estruturada por Cantor. Não nos deteremos

de modo aprofundado nestas questões que exigem um conhecimento aprofundado

de lógica e noções e programação.

Machado (1994, p. 27) discute outro paradoxo:

Consideremos o conjunto cujos elementos são os catálogos de livros

(indivíduos). Diremos que um catálogo é normal (atributo) se ele não se incluir

entre os livros que cita; se ele se incluir, será anormal. Consideremos, agora, o

conjunto de todos os catálogos normais e organizemos o catálogo de todos os

catálogos normais (indivíduo?). Este catálogo será normal ou anormal? Se ele

for normal, ele não se incluirá, por definição deste atributo e, portanto, deverá

se incluir uma vez que é o catálogo de todos os catálogos normais, sendo,

consequentemente, anormal. Se ele for anormal, ele se incluirá e, portanto,

será normal, uma vez que só inclui os normais. E agora?.

Por oposição de superação destes e outros entraves, identificamos na

história o surgimento de outra corrente filosófica que, em determinados aspectos,

sustentava a superação dos entraves logicistas. Assim, observamos o surgimento

do formalismo, uma das correntes que mais repercutiu no ensino de Matemática

(CURY, 1994).

Segundo Ernest (1991, p. 10), o formalismo é uma visão da matemática como

um jogo formal sem sentido, constituído de marcas no papel, seguindo regras. O seu

maior proponente foi David Hilbert. A corrente formalista teve em Kant profunda

inspiração, assim como em Leibniz, que na sua lógica fundou o logicismo. Para

Page 43: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

43AULA 2 TÓPICO 1

Kant, o papel que a lógica desempenha é semelhante ao papel em qualquer outro

setor do conhecimento. Podemos caracterizar um pressuposto formalista a partir

das considerações de Machado (1994, p. 29) quando observa que tal corrente:

Considera que, sem dúvida, em matemática, os teoremas decorrem de axiomas,

de acordo com as leis da lógica. Nega, no entanto, que os axiomas constituem

eles mesmos princípios lógicos ou consequências, de tais princípios. Admite,

isto sim, que eles sejam descritivos da estrutura dos dados da percepção

sensível, em particular, do espaço e tempo.

Seu maior ícone foi David Hilbert (1862 — 1943), um matemático alemão

que contribuiu a matemática com ideais inovadoras que se espalharam em diversas

áreas da matemática. Nasceu na cidade de Könisberg, atualmente Kaliningrado,

onde teve seu período de estudos acadêmicos na Universidade de Könisberg. No

ano de 1895 foi nomeado para a universidade de Göttingen, onde lecionou até sua

aposentadoria, em1930. David Hilbert é frequentemente considerado como um dos

maiores matemáticos do século XXX, no nível comparado do de Henri Poincaré.

Devemos a ele a lista famosa de 23 problemas, alguns dos mesmos sem solução até

os dias de hoje, que Hilbert apresentou em 1900 no Congresso Internacional de

Matemáticos em Paris.

Hilbert adotou as ideias de Kant em seu ambicioso programa prático que

caracterizou o formalismo. Grosso modo, fundamentava-se da seguinte forma:

a. A Matemática compreende descrições de objetos e construções

concretas, extra-lógicas;

b. Tais construções e estes objetos deve ser enlaçados em teorias formais em

que a Lógica é o instrumento fundamental;

c. O trabalho do matemático deve consistir no estabelecimento de teorias

formais consistentes, cada vez mais abrangentes até que se alcance a

formalização completa da Matemática. (MACHADO, 1994, p. 29)

Mais adiante, Machado (1994) levanta as seguintes questões:

• Em que consiste uma teoria formal?

• A que objetos ou construções se referem às teorias formais?

• O que significa ser uma teoria formal consistente?

• O que significa formalização completa?

Machado (1994, p. 30) responde que uma teoria formal consta de termos

primitivos, regras de formação de fórmulas a partir delas, axiomas ou postulados,

Page 44: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

44 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

regras de inferências e teoremas. De modo esquemático, vemos o diagrama proposto

na Figura 1, em que o autor descreve a organização epistemológica de uma teoria.

Figura 1: Teoria formal segundo Machado (1994, p. 30)

Machado (1994, p. 30) explica o diagrama acima ao esclarecer que:

Os termos primitivos descrevem os objetos concretos de que trata a teoria. As

regras de formação de fórmulas organizam o discurso a respeito destes objetos,

distinguem as fórmulas bem-formadas das que carecem de significado. Os

axiomas são as verdades básicas, iniciais, que devem se apoiar na evidência

empírica. As regras de inferência determinam as inferências legítimas e

distinguem, dentre as fórmulas bem-formadas, as que constituem os teoremas,

que são verdades demonstráveis a partir dos axiomas, em última análise.

Como se sabe, o sistema formal elaborado por Euclides para a Geometria,

durante mais de dois mil anos, permaneceu soberano como descritivo da estrutura

perceptual do espaço. Tendo como termos primitivos as noções de ponto, reta e

plano, Euclides enunciou os cinco postulados para este sistema formal:

1P : É possível traçar uma linha reta de qualquer ponto a qualquer ponto;

2P : Qualquer segmento de reta finito pode ser prolongado indefinidamente

para constituir uma linha reta;

3P : Dados um ponto qualquer e uma distância qualquer, pode-se traçar um

círculo de centro naquele ponto e raio igual à distância dada;

4P : Todos os ângulos retos são iguais entre si;

5P : Se uma reta cortar duas outras de modo que os dois ângulos interiores de

um mesmo lado tenham soma menor que dois ângulos retos, então as duas outras

Page 45: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

45AULA 2 TÓPICO 1

retas se cruzarão, se prolongadas indefinidamente, do lado da primeira reta em que

se encontram os dois ângulos citados.

Figura 2: Interpretação do 5º postulado euclidiano por Machado (1994, p. 31)

Ainda com referência ao trabalho erigido por Euclides, destacamos o trecho

interessante do trabalho de Machado (1993, p. 103) quando explica que:

Machado (1994, p. 32) explica ainda que Euclides assumiu outros cinco

princípios de caráter mais geral, de natureza que julgava lógica e que seriam

utilizados em todas as matérias. Estes princípios ele chamou de axiomas:

1A : Duas coisas iguais a uma terceira coisa são iguais entre si;

2A : Se parcelas iguais forem somadas a quantias iguais os resultados obtidos

serão iguais;

3A : Se quantias iguais forem subtraídas de quantias iguais, os restos obtidos

serão iguais;

4A : Coisas que coincidem umas com as outras são iguais entre si;

Page 46: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

46 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

5A : O todo é maior do que cada uma das partes.

Machado (1994, p. 32) sublinha que a ideia subjacente à fixação dos postulados

e axiomas é que eles sejam de tal modo evidentes que ninguém deles duvide. E a

partir deles que todos os fatos geométricos, todos os teoremas são demonstrados. Por

outro lado, um problema profundo de natureza filosófica diz respeito ao caráter de

“evidência” atribuído aos axiomas e postulados. Neste sentido, Machado (1994, p.

32) sublinha que:

A análise da afirmação do 5º postulado perturbou a muitos matemáticos desde

o início, uma vez que ele parecia menos evidente que os demais, anômalo

em algum sentido que não era explicitamente percebido. Na verdade, o 5º

postulado parecia um teorema como os inúmeros demonstrados por Euclides

e não faltaram candidatos, ao longo dos séculos, a tentarem demonstrá-lo a

partir dos outros quatro.

O problema maior apontado no trecho acima diz respeito ao caráter não tão

evidente do 5º postulado. Como consequência deste caráter de incredibilidade e

falta de consenso da comunidade, não faltaram candidatos, ao longo dos séculos, a

tentarem demonstrá-lo partir dos outros quatro (MACHADO, 1994, p. 32). Como essa

ideia se mostrou impraticável e tratou-se de uma tarefa não trivial, os esforços se

modificaram na tentativa de substituição do 5º postulado por outro enunciado de

natureza mais simples ou evidente. Todavia, tais iniciativas mostraram que existem

muitos outros princípios geométricos capazes de substituir o 5º postulado, sem que o

sistema formal (Figura 1) perca qualquer de seus teoremas (MACHADO, 1994, p. 32).

A partir daí, a História da Matemática descreve o advento das Geometrias

Não Euclidianas. Nestas novas geometrias, coisas estranhas e propriedades

que contrariam nossos sentidos, erigidos a partir dos modelos euclidianos, são

exploradas. Por exemplo, podemos recordar o problema que descreve que partindo

de um ponto da Terra, um caçador andou 10 km para Sul, 10 km para Leste e 10 km

para Norte, voltando assim ao ponto de partida. Aí encontrou um urso. Qual a cor

do urso?

À primeira vista, podemos imaginar que esta situação problema não possui

solução e, portanto, o caçador não retornaria ao ponto de partida, como mostra o

esquema da figura 3. No entanto, não podemos esquecer o fato de que a Terra não

é uma superfície plana, mas curva. Assim, a solução está à vista: andando 10Km

segundo aquelas três direções perpendiculares, o caçador só voltará ao ponto

inicial de partida se iniciar sua caminhada no Pólo Norte. Mas enquanto ao urso?

Page 47: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

47AULA 2 TÓPICO 1

Com a história toda se desenvolve no Pólo Norte, só pode ser um urso polar

e por isso um urso de cor branca. Toda a dificuldade na solução deste problema

passa pelo fato de pensarmos na Geometria sobre um plano. Note-se que desde o

século passado, com o aparecimento de Geometria Não Euclidiana, surge uma nova

solução para este problema.

Figura 3: O problema do urso polar envolvendo noções de geometrias não euclidianas

Vamos pensar ainda que o caçador está no Pólo Sul e a Terra possui círculos

concêntricos, com comprimentos distintos. Um desses círculos terá 10 km de

comprimento então, qualquer que seja o ponto, situado a 10km para a direção

norte desse círculo, satisfará as condições e exigências do problema inicial. De

fato, o caçador anda 10 km para a direção Sul e chega a esse circulo; em seguida

anda 10km para a direção Leste e dá uma volta completa; ao andar 10km para a

direção Norte, retorna ao mesmo ponto de origem. Nesta nova solução esta ainda o

urso, todavia, não existem ursos no Pólo Sul. Se bem que os ursos não tem relação

alguma com a Matemática, tem?

No século XVIII, o matemático italiano Sachieri fez outro tipo de tentativa: em

vez de demonstrar o 5º postulado de Euclides, a partir dos demais postulados ou de

propor um substituto mais evidente, ele investigou a independência deste postulado

em relação aos outros quatro (MACHADO, 1994, p. 33). Seu plano é descrito por

Machado (1994, p. 33) do seguinte modo:

[...] era admitir os quatro primeiros postulados e negar o 5º postulado,

para efeito de discussão, considerando o novo sistema formal resultante.

Page 48: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

48 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Naturalmente ele [Sachieri] esperava, com este novo sistema, chegar a

absurdos, a contradições que revelassem a necessidade formal do 5º postulado.

No entanto, curiosamente, Sachieri não obteve o que esperava, não deparou

com nenhuma inconsistência, tendo, isto sim, demonstrado muitos resultados

considerados “estranhos” e que se caracterizariam, mais tarde, como os

teoremas de uma nova Geometria.

Na sequência, exibimos a Figura 4, na qual visualizamos alguns dos

resultados emblemáticos da Geometria euclidiana que podem não ser esperados

nas Geometrias não euclidianas, como a propriedade que diz que a soma dos

ângulos internos de um triângulo vale dois ângulos retos conforme demonstrada por

Euclides.

Figura 4: Um triângulo nas geometrias não euclidianas

Assim como o formalismo, o intuicionismo tem raízes em Kant e Brouwer.

Nesta corrente filosófica, a intuição resultante da introspecção resulta em evidenciar

a verdade das proposições matemáticas e não a observação direta de objetos externos

(MACHADO, 1994, p. 39). Em relação ao intuicionismo, encontramos na literatura

que essa escola:

[...] parte do pressuposto contrário ao dos logicistas, pois considera que há

algo errado com a matemática clássica. Pensavam, então, os intuicionistas, em

reconstruí-la desde os alicerces e, para isso, só aceitavam a parte da matemática

construída a partir dos números naturais (CURY, 1994, p. 55).

Machado (1994, p. 39) esclarece que, para os intuicionistas, a Matemática é

uma atividade totalmente autônoma, autossuficiente. A pretensão dos logicistas de

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49AULA 2 TÓPICO 1

reduzi-la à logica ou dos formalistas de alcançar uma formalização rigorosa resulta

em mal entendidos fundamentais sobre a natureza da matemática. Para Brouwer, os

formalistas concebiam a Matemática como constituída de duas partes: um conteúdo

específico, autônomo e uma linguagem que dependia, para o seu crédito, da Lógica.

Por outro lado, o ponto de vista do intuicionismo, é:

[...] o de que a matemática é uma construção de entidades abstratas, a partir

da intuição do matemático, e tal construção prescinde de uma redução à

linguagem especial que é a lógica ou de uma formalização rigorosa em um

sistema dedutivo. Admitem os intuicionistas a utilidade dos sistemas formais,

mas os consideram produtos acessórios resultantes de uma atividade autônoma,

construtiva. E, com certo desprezo, atribuem à linguagem matemática uma

função essencialmente pedagógica (MACHADO, 1994, p. 40).

Para concluir esta seção, destacamos que esta corrente filosófica sofreu vários

reveses, parte deles foram assentados em fatos matemáticos que aparentemente

resultavam de contradições em relação às informações obtidas por intermédio da

intuição matemática. Em outras aulas, nos deteremos um pouco mais na compreensão

de uma habilidade cognitiva que chamamos de intuição, e que proporciona uma

atitude filosófica na Matemática. No próximo tópico, diferenciaremos e traçaremos

algumas críticas e distorções ao ensino de Matemática que assume o pressuposto

construtivista.

Page 50: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

50 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

TÓPICO 2O construtivismo na matemática e o construtivismo piagetianoObjetivO

• Conhecer aspectos do “construtivismo” matemático e os

fundamentos da teorização de Piaget e suas implicações

para o ensino

Nesta aula abordaremos uma palavra recorrentemente explorada

e aplicado em situações e domínio epistêmicos completamente

distintos dos quais efetivamente se originou. De fato, o termo

“construtivismo” se espalhou com tanto vigor que na atualidade não se encontra

ninguém não se autodenomine um construtivista. O equívoco acadêmico diz

respeito ao desconhecimento de dois pressupostos filosóficos. O primeiro é o

construtivismo no seio da própria Matemática e o segundo, mais popularizado,

o construtivismo piagetiano. Para compreender-mos um pouco mais do primeiro

a ponto de distingui-lo do segundo, destacamos Machado (1994, p. 41) quando

comenta os principais elementos inconsistentes e que receberam críticas das

correntes absolutistas da Matemática do seguinte modo:

O logicismo pretendeu fundar a matemática nas leis gerais do pensamento

sem que nunca penetrasse nas características específicas, na gênese dessas leis

lógicas. O formalismo pregou que os sistemas formais, que utilizavam essas

mesmas leis, constituiriam em si o objeto da matemática, independentemente

de suas interpretações. Mas também não deu grandes passos no sentido de

investigar o mecanismo que possibilita a concordância, mais cedo ou mais

tarde, destes sistemas abstratos com o real através das interpretações. O

intuicionismo deixou em permanente penumbra a dinâmica das intuições

que conduziam os matemáticos à criação de seu mundo autônomo. Nunca

esclareceu o modo como se mesclavam as concepções a priori sobre o espaço e

o tempo e as construções dos matemáticos.

Page 51: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

51AULA 2 TÓPICO 2

De modo semelhante ao discutido por Ermest (1991), neste trecho acima

Machado aponta de modo consistente os pontos mais delicados das correntes que

discutimos na seção anterior. Ademais, Machado (1994) insere nesta discussão as

formulações de Piaget, todavia, antes de discutirmos seu ponto de vista, torna-

se imperioso compreendermos a corrente filosófica construtivista pertencente à

Filosofia da Matemática, que se diferencia de modo substancial do construtivismo

piagetiano.

Neste sentido, Ernest (1991, p. 11) declara que o programa construtivista

diz respeito à reconstrução do conhecimento matemático (e reformulação da prática

matemática). Seu objetivo caracterizou-se por

rejeitar argumentos não construtivistas, tais

como os argumentos de Cantor relacionados a

não enumerabilidade do conjunto dos números

reais, e as leis da lógica relacionada ao Princípio

do Terceiro Excluído. Os construtivistas da

Matemática mais conhecidos foram Brouwer

e Arend Heyting (1898-1980) que foi um

matemático holandês. Ademais variadas

dimensões do construtivismo podem ser identificas hoje em dia (ERNEST, 1991, p. 11).

Esta corrente filosófica reúne matemáticos que acreditam que a Matemática

clássica necessita ser reconstruída a partir de métodos e raciocínio adequado. Os

construtivistas assumem que tanto as verdades matemáticas como os objetos existentes

da matemática precisam ser estabelecidos por meio de métodos construtivos (ERNEST,

1991, p. 11).

Ernest (1991, p. 12) explica que, considerando a clássica demonstração de

existência matemática em demonstrações, deve-se de modo similar demonstrar a

necessidade lógica da existência, e uma prova construtiva da existência pode mostrar

como construir o objeto matemático cuja existência é defendida. Por outro lado, os

construtivistas não demonstraram que existem problemas inescapáveis diante de

problemas clássicos de matemática (ERNEST, 1991, p. 12).

Todavia, de modo semelhante às outras correntes filosóficas absolutistas,

a perspectiva construtivista na Matemática, em alguns resultados, mostrou-se

inconsistente em relação a alguns resultados da Matemática clássica. Com respeito

a esta tendência verificada, Jairo (2007, p. 143) esclarece:

at e n ç ã o !

O princípio do Terceiro Excluído diz que uma

proposição pode ser verdadeira se não for falsa e

só pode ser falsa se não for verdadeira.

Page 52: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

52 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Considerando a linguagem e os métodos caracteristicamente construtivos

da matemática grega, o construtivismo remonta à Antiguidade Clássica.

Mas como uma filosofia da matemática, em particular uma ontologia e uma

epistemologia, ele é mais moderno; Kepler foi talvez o primeiro a dizer

explicitamente que uma figura geométrica não construída não existe. Mas o

pioneiro na elaboração de uma filosofia construtivista da matemática foi Kant

e, de um modo ou de outro, todos os filósofos da matemática de orientação

construtivista são seus herdeiros.

Kant não hesitou em negar como matemática tudo aquilo que não fosse atual

ou potencialmente construído, neste sentido, as raízes quadradas de números

negativos foram seriamente evitados. Segundo o próprio Kant, essas raízes são

pseudonúmeros, por não admitirem exemplificação intuitiva (SILVA, 2007, p. 143).

No entanto, foi no final do século XIX, primeiras décadas do século XX, que o

construtivismo ganhou maior vigor na comunidade de matemáticos. Jairo (2007, p.

145) comenta ainda que:

Construtivistas, como Poincaré e Brouwer, preferiam deixar Deus e a lógica

para apelar para a intuição humana. Eles acreditavam que é no interior da

consciência humana e suas vivências que os números naturais se constituem

e suas verdades se fundamentam. Não há, segundo eles, como definir esses

números em termos mais elementares. Poincaré, além de ridicularizar todo

o projeto logicista, criticou, como mencionamos há pouco, as tentativas de

Dedekind de definir o conceito de número natural. São esses os herdeiros

legítimos de Kant.

Até o momento já dispomos de elementos teóricos que nos permitirão

comparar o construtivismo piagetiano com o construtivismo na Matemática.

Provavelmente o que ambos possuem de comum é a identificação de elementos

essenciais pertencentes à cognição humana que precisam ser ativados e estimulados

de modo conveniente (MAIO, 2002) para que possamos esperar uma razoável

aprendizagem. O construtivismo piagetiano apresenta várias distorções no contexto

de ensino aprendizagem, apesar de seus pressupostos iniciais indicarem elementos

diferenciados de natureza epistemológica e filosófica.

Seu principal expoente foi Jean Piaget (1896-1980), que sempre manifestou

profundas inspirações no conhecimento matemático. Para ele, as soluções clássicas

do problema da relação da Matemática com a realidade se encerravam no dilema: ou

a matemática se impõe, a priori, à realidade empírica, ou a matemática é construída

Page 53: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

53AULA 2 TÓPICO 2

a partir de construções abstratas que emergem da realidade (MACHADO, 1994, p.

42). Machado (1994, p. 42) explica o dilema piagetiano ressaltando:

Em outras palavras, as soluções clássicas do problema da relação da

matemática com a realidade se encerram no dilema: ou a matemática se

impõe, a priori, à realidade empírica, ou a matemática é construída a partir

de construções abstratas que emergem desta realidade. Em outras palavras, as

soluções caracterizam ou uma proeminência do sujeito do conhecimento ou

uma proeminência do objeto do conhecimento, permanecendo presas a esta

dicotomia.

Piaget, diferentemente de muitos pontos de vista passados, propôs que a

relação da Matemática com a realidade não possa se fundar no sujeito pensante

(apriorismo) e nem apenas no objeto pensado (empirismo), mas numa interação

intensa entre sujeito e objeto. Todavia, não podemos destacar esta atitude como

original, afinal todas as soluções anteriores, poderiam, pelo menos enquanto discurso,

se pretender captando tal interação (MACHADO, 1994, p. 42).

Machado (1994, p. 42) acrescenta que:

A originalidade da posição de Piaget consiste na situação da interação sujeito-

objeto no interior do sujeito. Por esta via, elege, naturalmente, a Psicologia

como seu fundamental instrumento para as explicitações desta interação. Não

uma psicologia qualquer, mas a Psicologia Genética [...].

A utilização da Matemática em todos os seus estudos é muito marcante.

Observamos a relevância dessa área do conhecimento, a partir das próprias palavras

de Piaget, que caracteriza os objetivos de uma pesquisa ao mencionar que:

O objetivo desta nota não se trata de elaborar um novo procedimento de cálculo

logístico, mas unicamente de pesquisar se as operações de adição e subtração,

próprias da Álgebra e da Lógica, são suscetíveis, uma vez colocadas sob forma

de igualdade, de fabricar um verdadeiro grupo. A única novidade, do ponto

de vista do cálculo lógico, é de ter generalizado a operação inversa da adição:

a “subtração lógica”, interpretando o que os logicista chamam de “negação”

(PIAGET, 1937, p. 99, tradução nossa.)

No excerto acima, identificamos o vocábulo conhecido na Matemática como

“grupo”. Mais adiante no mesmo artigo, o próprio Jean Piaget discute propriedades

especificas relacionadas com a noção de grupo quando menciona:

Page 54: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

54 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Cremos ter encontrado analogias de

estruturas do que concerne a composição,

a associatividade e inversas. Quanto

à operação idêntica, uma diferença

fundamental se opõe ao grupo lógico

com respeito aos grupos aritméticos:

cada igualdade desempenha um papel

idêntico com respeito à igualdade de

ordem inferior. Esta oposição, que se

relaciona com respeito ao bloqueio de

classes umas sobre as outras na ausência

de interação na lógica mostra que muito

diferente possível entre os dois tipos de

grupos, e destacamos outras (PIAGET,

1937, p. 100, tradução nossa).

É patente o emprego constante de Piaget

de estruturas matemáticas para a descrição/

compreensão de várias operações cognitivas de pensamento da criança. Parece-nos

um ponto de vista bastante equivocado tentar apresentar a teoria elaborada por este

pensador ao futuro professor de Matemática sem falar/relacioná-la com a própria

Matemática. Neste sentido, destacamos um trecho de um artigo de Jean Piaget

relacionado com as relações de igualdade algébrica estabelecidas pela criança.

Para concluir, Machado (1994, p. 43) destaca as profundas preocupações de

Piaget com a Matemática ao declarar que:

at e n ç ã o !

Em Matemática o conceito de Grupo é dado

como um conjunto de elementos associados

a uma operação que combina dois elementos

quaisquer para formar um terceiro elemento Para

se qualificar um grupo, o conjunto e a operação

devem satisfazer algumas condições chamadas de

axiomas de grupo: associatividade, identidade e

existência de elementos inversos. A ubiquidade

dos grupos em inúmeras áreas – dentro e fora da

matemática – os tornam um princípio central nas

ciências.

Page 55: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

55AULA 2 TÓPICO 2

Grosso modo, sua proposta é de fundar a lógica nessa moderna Psicologia,

científica e objetiva. Ele pretende que, em sua origem, as operações lógico-

matemáticas procedam diretamente das ações mais gerais que podemos

exercer sobre objetos ou grupos de objetos. Elas consistem em estabelecer

correspondências contar, reunir, associar, dissociar, ordenar, etc. A gênese das

operações lógico-matemáticas deve ser buscada, segundo ele, neste aspecto de

atividade coordenadora das ações físicas mais elementares.

Deste modo, a perspectiva filosófica de Piaget pode ser descrita do seguinte

modo, no que diz respeito ao desenvolvimento da Matemática:

1) os entes matemáticos originam-se da coordenação das ações físicas mais

gerais que o sujeito exerce sobre o objeto;

2) desta ligação, tais entes se distanciam mais e mais do objeto concreto,

entretanto, conservam o poder de reunirem ao objeto, de se reencontrarem com

a realidade imediata em todos os níveis, de dizerem respeito à realidade, por mais

alto que seja o vôo alcançado.

Mais adiante, Machado (1994, p. 43) levanta algumas questões de ordem

filosófica:

a) Como, apesar deste afastamento da realidade, o pensamento matemático

segue fecundo?

b) O que possibilita este constante acordo com a realidade? Qual a condição

de possibilidade de tal compatibilidade?

Piaget responde alguns destes questionamentos quando declara que o

pensamento matemático é fecundo porque, ao ser uma assimilação do real às

coordenadas gerais da ação, é, essencialmente, operatório (PIAGET, 1978, apud

MACHADO, 1994, p. 44). Assim, alguns de seus pressupostos envolvem a intenção

de explicar as operações de composição das ações básicas em novas ações mais

complexas que se estabelecem e se sobrepõem às anteriores, na dependência de um

caráter de operacionalidade.

Para Piaget, é inexato dizer que os entes matemáticos e as estruturas

matemáticas se formam a partir do objeto isolado. Para ele, o pensamento matemático

em relação à realidade física:

É criação e agrega a ela em lugar de abstrair algo ou de extrair sua matéria...

antecipa experiências, em alguns casos, antes que se produzam, e lhes

proporciona marcos antes que a idéia de tais experiências haja germinado no

pensamento (PIAGET, 1978, apud, MACHADO, 1994, p. 44).

Page 56: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

56 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Na Figura 5 abaixo, descrevemos as relações que podem ser estabelecidas

entre o sujeito do conhecimento (indivíduo) e um objeto matemático. Note-se que

vários pensadores discutem as formas (dimensão filosófica) e maneiras da ocorrência

de um fenômeno (dimensão cognitiva) que conhecemos por abstração matemática,

que, depois da perspectiva piagetiana, passou a ser melhor compreendido.

Figura 5: Relações estabelecidas entre sujeito e objeto matemático diante à realidade

Machado (1994, p. 46) exalta o ponto de vista original piagetiano quando

declara que:

O fato de Piaget ter concentrado seus esforços na Psicologia teve como

conseqüência uma aparência de maior aproximação de seu trabalho da

prática docente o que conduziu a diversas tentativas de fundamentação de

uma didática para a matemática. Entretanto, o superdimensionamento da

componente psicológica da atividade didática, em detrimento de outros

fatores, frequentemente mais proeminentes, é um dado que compromete tais

tentativas, por não ser circunstancial, mas sim inteiramente decorrente da

visão piagetiana da relação da matemática com a realidade.

Para concluir esta aula, destacamos que, no ambiente da formação de

professores, muito se fala a respeito do construtivismo piagetiano e nada se comenta

ou se discute a respeito do construtivismo na Matemática. Com relação a este fato é

necessário estabelecer alguns pontos de vigilância.

Com relação ao primeiro ponto, evidenciamos com preocupação o discurso

retórico a respeito do construtivismo piagetiano no ambiente de formação, todavia,

como vimos em alguns exemplos, Piaget apoiou fortemente sua teoria na Matemática

e desenvolveu raciocínio metafóricos e analogias entre as operações cognitivas e as

Page 57: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

57AULA 2 TÓPICO 2

estruturas algébricas matemáticas (MAIO, 2002). Desse modo, sem dispor de uma

formação razoável em Matemática. não se pode esperar compreender Piaget.

Ademais, as pessoas costumam valorizar a face visível da Matemática, e neste

sentido, a dimensão lúdica recebe destaque, entretanto a beleza ou curiosidade

realçada por um educador adquire sentido na medida em que compreendemos

também o modelo lógico-matemático que reside nestas aplicações, alias, observamos

com frequência exemplos de aplicações supérfluas que, no final das contas, em

nada acrescentam ao conhecimento do futuro professor de Matemática.

O segundo ponto que requer vigilância se refere à necessidade de adquirirmos

um “olhar filosófico” do conhecimento matemático. De fato, observamos vários

exemplos de pensadores que destacam a ‘beleza’ do saber matemático quando

vislumbrado por meio de uma perspectiva filosófica, embora o domínio do conteúdo

seja ainda uma condição imprescindível para esta visão filosófica.

O terceiro ponto que requer vigilância se relaciona com os desdobramentos

e consequências das correntes filosóficas (formalismo, logicismo e intuicionismo) que

discutimos nas seções anteriores. Veremos que algumas delas mostraram-se mais

marcantes do que outras e conseguiram um espaço maior de influência, tanto no

que diz respeito à atitude do professor, quanto ao que pode ser relacionado à sua

práxis em sala de aula. Algumas destas “distorções” e “incongruências” no ensino

de Matemática são determinadas, em maior ou menor parte, por algumas dessas

correntes filosóficas. Nesse ponto, identificamos um discurso acadêmico, ancorado

em conhecimentos que apresentam campos epistêmicos distintos da própria

Matemática, todavia empregados de modo inadequado e superficial para explicar/

significar/compreender as distorções no ensino desta ciência.

Para encerrar, salientamos nesta aula a discussão em torno das correntes

filosóficas absolutistas da Matemática. Neste rol de posicionamentos filosóficos,

discutimos o construtivismo na Matemática e o distinguimos do construtivismo

de Piaget. Com relação a um observador mais atento, as consequências destas

tendências podem ser observadas no ambiente escolar em nossos dias e não

podem ser confundidas com movimentos pedagógicos inerentes às outras áreas do

conhecimento.

Page 58: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

58 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Na aula passada, estudamos as correntes absolutistas da Matemática,

conhecidas como formalismo, logicismo e intuicionismo. Nesta aula, mostraremos

outras correntes filosóficas que, embora tenham apresentado uma origem não

necessariamente no seio da Matemática, influenciaram diretamente os matemáticos

de vários séculos passados. Duas delas serão destacadas, o nominalismo e o

essencialismo. O interessante será a compreensão da práxis do professor que

pode se enquadrar numa destas correntes filosóficas.

Objetivos

• Reconhecer os aspectos filosóficos relacionados às definições matemáticas• Identificar as influências das correntes filosóficas no ensino atual de

Matemática• Identificar as características de uma definição matemática vinculando-as ao

ensino

AULA 3 Arquimedes e a Noção de Demonstração

Page 59: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

59AULA 3 TÓPICO 1

TÓPICO 1 Sobre a natureza das definições matemáticasObjetivO

• Reconhecer os aspectos filosóficos relacionados às

definições matemáticas

Nesta aula abordaremos aspectos específicos relacionados ao ensino

da Matemática. Fatores que para um observador descuidado

podem parecer naturais e de caráter neutro, todavia, recebem

ainda influencia das correntes filosóficas.

Assim, recordamos que uma das dificuldades que os alunos enfrentam

no estudo da Matemática diz respeito à exigência das operações de pensamento

realizadas sobre objetos conceituais idealizados, as quais, em muitos casos, são

regidas por propriedades extraídas das demonstrações. Parte destes condicionantes

é indicada por Maroger (1908, p. 67) ao declarar que:

Não é suficiente conhecer os primeiros princípios da especulação matemática

e a natureza das demonstrações, é necessário também preocupar-se com as

noções, os objetos do pensamento que formam a matéria do raciocínio. Estes

objetos matemáticos são criados por meio das definições.

As definições matemáticas, como Maroger explica, assumem um papel

essencial para a compreensão dos objetos da Matemática. E não se pode perder de

vista que a compreensão de tais objetos depende do seu caráter sintático, semântico

e das propriedades intrínsecas condicionadas pelas suas regras formais explicitadas

a priori ou a posteriori, com referência ao momento do estabelecimento de suas

respectivas definições formais dentro de uma teoria.

Em muitos casos, teoremas, corolários e regras caracterizarão o modo de

manipular, calcular, empregar e, de modo essencial, de compreender e raciocinar

com determinados objetos. Uma definição matemática condiciona uma determinada

Page 60: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

60 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

manipulação e/ou operação mental. De fato,

Maroger (1908, p. 67) explica que a definição

tem precisamente por objetivo assegurar uma

especificação semelhante, de fornecer uma

realidade, subjetiva ao menos, no sentido filosófico

da palavra, a um objeto do pensamento.

Quando definimos axiomaticamente um

objeto matemático ou realizamos formalmente

a sua construção, adquirimos a possibilidade

de distinguir/diferenciar este objeto definido

dos demais. Adquirimos a possibilidade de

raciocinar e conjecturar sobre tal objeto, que

agora passa a ser um objeto de nosso pensamento,

de nossa reflexão. Neste sentido, Buffet (2003, p.

20) recorda que D´Alembert atribuía importância às definições pois elas abreviam

o discurso, e a inexatitude de uma definição pode impedir a obtenção da verdadeira

significação da palavra. Por outro lado, em Matemática, não se pode perder de vista

que estamos numa espécie de camisa de força, dentro de um sistema teórico formal.

Assim, seu uso constante a todo o momento é exigido.

Em virtude deste fato, devemos ficar atentos no sentido de respeitar as

propriedades previamente existentes ao objeto definido. Acrescentamos que uma

única condição, mais absoluta, será requerida para a validade de uma definição:

que esta não implica numa contradição, em outros termos, que o objeto definido seja

possível (MAROGER, 1908, p. 67).

Maroger adverte que a criação/estabelecimento de uma definição matemática,

por um lado, não pode ser abusiva, e, por outro, não pode ser comparada à

liberdade de um poeta. Ela esta condicionada e amarrada ao sistema teórico em que

determinado objeto matemático é definido. Por exemplo, quando nos referimos ao

Cálculo Diferencial e Integral, estamos sujeitos a determinadas regras particulares

que se diferenciam das regras peculiares à Álgebra baseada em modelos finitos.

Maroger (1908, p. 68) discute uma questão fundamental formulada do

seguinte modo: Todos os objetos, todas as noções

de especulação matemática, podem ser definidos?

Dito de outro modo, não existem noções que

sabemos caracterizar o mais claro possível e

que, portanto, podem permanecer indefiníveis,

de forma rigorosa? Maroger acrescenta que,

depois de Pascal, não se pode mais conceber tal

idéia (1908, p. 68), uma vez que Blaise Pascal

s a i b a m a i s !

Blaise Pascal foi um matemático francês que

contribuiu para a sistematização do método

científico e a pesquisa em Matemática.

s a i b a m a i s !

Heráclito, filósofo grego que viveu há cerca de

600 a. C., afirmava que o mundo se caracterizava

pela mudança e que tudo mudava. O rio que

observamos muda a cada instante, pois as águas

que correm nunca são as mesmas. Para ele, a única

constante do mundo que habitamos é a mudança.

Este pensamento tornou-se célebre como metáfora

da mudança.

Page 61: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

61AULA 3 TÓPICO 1

(1623-1662) foi um matemático que se destacou, entre outros motivos, pela sua

preocupação demasiada com o papel das definições em Matemática.

Com o intuito de enriquecer nossa discussão e extrair algumas implicações

relacionadas aos objetos da Matemática, adotamos provisoriamente as distinções

assumidas por Maroger. Assim, diremos resumidamente que existem dois tipos de

definições matemáticas. A saber:

Definições matemáticas que necessitam das propriedades características do

objeto matemático definido, as quais podemos demonstrar sua existência;

Definições matemáticas que prescindem do objeto definido, sem demonstrar

sua existência.

Maroger assinala que a diferença entre as duas caracterizações remonta

a episódios sobre a história do pensamento matemático e acrescenta ainda que

as definições do primeiro tipo definem o objeto, enquanto a segunda somente

caracteriza-o e são chamadas apenas por caracterizações. Resumidamente, as

definições, de fato, são as primeiras e, em termos filosóficos, são chamadas de:

definições reais, causais, por generação ou genéticas.

Veremos que no primeiro caso, em que as definições requerem a verificação

do objeto definido, podem ocorrer dificuldades, sobretudo de compreensão, nas

situações ordinárias do seu ensino. Por outro lado, um aspecto mencionado pelo

autor é que uma definição é a melhor possível, quando podemos legitimá-la de uma

forma mais simples possível (MAROGER, 1908, p. 71).

Neste contexto de discussão, vale lembrar que não existe somente uma

única forma de se definir um objeto que lhe é submetido (MAROGER, 1908, p. 71).

Assim, dependendo de nossos objetivos, no caso do matemático profissional são

investigativos, mas, também, podem ser objetivos com vistas ao ensino, temos a

possibilidade de escolher a definição que melhor nos apraz e/ou a definição que

proporciona melhores condições ao entendimento.

O matemático Jules-Henri Poincaré

(1854-1912) manifesta em sua obra profunda

preocupação com a compreensão e entendimento

dos iniciantes. Dentre os vários aspectos que

foram objeto de análise por parte de Poincaré

(1904), destacam-se suas preocupações

relacionadas à intuição matemática e as definições

matemáticas. Poincaré questiona sobre o papel

das demonstrações em Matemática, interroga

se a compreensão de uma demonstração de um

teorema se limita a examinar sucessivamente cada silogismo e constatar que são

corretos. Pergunta ainda se no caso de compreendermos uma definição matemática,

se seria suficiente constatar que não se obteria uma contradição com o seu emprego

v o c ê s a b i a?

Henri Poincaré foi considerado por muitos como

um matemático universal. Com trabalhos nas

áreas de Matemática e Física Teórica.

Page 62: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

62 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

(POINCARÉ, 1904, p. 258).

Mais adiante ele sublinha que, para cada palavra, é necessário se acrescentar

uma imagem sensível; é necessário que a definição matemática evoque tal imagem

e que a cada passo da demonstração pode-se observar sua evolução. Somente nesta

condição ocorrerá a compreensão. (POINCARÉ, 1904, p. 259).

Poincaré questiona a posição tradicional de seus contemporâneos ao declarar

que para compreender as propriedades que geraram uma definição, é necessário apelar

à experiência ou a intuição, sem o que os teoremas seriam perfeitamente rigorosos,

mas perfeitamente inúteis (POINCARÉ, 1904, p. 263). Entretanto, como encontrar

um enunciado conciso que satisfaça ao mesmo tempo as regras da lógica e ao nosso

desejo de compreender o local novo de uma noção dentro da ciência matemática, e

a necessidade de pensar por meio de imagens?

Poincaré destaca a importância do

raciocínio intuitivo na produção das definições

matemáticas que não podem ser meramente

arbitrárias e baseadas puramente em argumentos

lógicos. Finaliza dizendo que grande parte das

definições matemáticas, como demonstrou Louis

Liard, são verdadeiras construções edificadas

sobre noções mais simples (POINCARÉ, 1904, p.

268).

Na tese de doutorado Des définitions géométriques et des définitions

empiriques, Louis Liard (1846-1917) desenvolve uma profunda reflexão sobre os

elementos essenciais que constituem as definições matemáticas. Logo no início

do seu trabalho, o referido autor explica que descrevemos as representações e

definimos as ideias. Descrever é determinar a circunscrição de um indivíduo; definir é

determinar a circunscrição de uma idéia. A descrição se faz por acidente, e a definição

por meio de essência (LIARD, 1873, p. 7).

Liard discute a origem das noções geométricas que derivam da experiência,

como podemos observar no seguinte trecho:

Em toda figura existem elementos, os quais se podem encontrar sua origem na

experiência, a saber: o conteúdo, o limite e a forma do conteúdo, a exterioridade

da figura com respeito ao pensamento. Um teorema enuncia a relação entre

uma figura e uma propriedade geométrica; a definição nos faz conhecer a

essência de uma forma determinada. Quando dizemos que a definição é uma

generalização de nossa experiência, queremos dizer generalização entre as

noções que compreendem a figura e sua forma (LIARD, 1873, p. 31)

Talvez o matemático mais famoso pela criação de “boas” notações tenha sido,

v o c ê s a b i a?

Louis Liard foi Professor da École Normal de

Paris, lecionava Filosofia e Letras. Foi diretor do

ensino superior em um ministério francês.

Page 63: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

63AULA 3 TÓPICO 1

segundo Cajori (1929, p. 181), G. W. Leibniz. Num de seus manuscritos, comentados

por Couturat (1901, p. 86), Florian Cajori esclarece que os algarismos árabes possuem

sobre os algarismos romanos a vantagem de melhor expressar a “gênese” dos números,

e em seguida sua definição, de sorte que sejam mais cômodos, não somente pela forma

de escrevê-los, mas também pelo cálculo mental. Cajori recorda que Leibniz mostrou

a importância atribuída aos signos e as condições de sua utilidade.

A invenção do Cálculo Infinitesimal procede da pesquisa de símbolos os mais

apropriados (COUTURAT, 1901, p 87). O matemático confirma a perspectiva de

Leibniz sobre a importância capital e a proficuidade vantajosa de um símbolo bem

escolhido. Veremos agora de que maneira a notação relacionada a uma definição pode

interferir diretamente na aprendizagem e no ensino do Cálculo quando nos atemos

a uma análise pormenorizada de natureza filosófica. Por exemplo, já comentamos

em textos passados que Cauchy e D´Alembert grafavam o símbolo de limites como

( )Limf x , enquanto em notação moderna os livros adotam a notação lim ( )x a f x® .

A vertente filosófica essencialista exaltava a dimensão construtiva dos objetos

matemáticos. Aristóteles, por exemplo, se refere às definições matemáticas como

uma espécie de discurso, que deve exprimir a essência das coisas. Em sua tese,

Buffet (2003, p. 29), valendo-se das palavras de Aristóteles, ilustra assim seu ponto

de vista: Para conhecer a essência, é necessário encontrar o gênero ao qual pertence à

coisa e seu tratamento particular que diferencia esta coisa das outras.

Observando este último excerto, quando analisamos um objeto cuja natureza

é essencialmente algébrica, identificamos aspectos que não se mostram ausentes

em relação a outro objeto de natureza essencialmente geométrica. Em relação a

esta última categoria de objetos, Bonnel (1870, p. 28) aponta como uma qualidade

essencial de uma definição geométrica é que a figura, que deve ser definida, seja

possível. E acrescenta que, para demonstrar que uma construção é possível, é

suficiente explicitar o meio de executá-la. Na Figura 1, destacamos alguns elementos

relacionados ao ensino.

Page 64: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

64 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Figura 1: Relações identificadas no ensino de Matemática (elaboração própria).

Como consequência da discussão anterior, perspectivamos duas vias possíveis

de serem adotadas no ensino. Na primeira via, o professor de Matemática apresenta

uma preocupação maior em discutir os principais aspectos e propriedades (essência)

de um objeto matemático particular, só então passará a discutir as condições

epistemológicas que propiciam assegurar a existência e unicidade do objeto. Na

segunda via, aparentemente a maior preocupação do professor reside em assegurar

a existência de um objeto, mesmo que possa ou não contar com a compreensão dos

seus estudantes. Em seguida, o professor passa a preocupar-se com a essência do

objeto.

Nota-se que, no ensino acadêmico, identificamos, na maioria dos casos, a

predominância da segunda trajetória. De fato, aparentemente, para o professor

do locus acadêmico, é mais “cômodo” ou eficiente, explorar existência essência® .

Entretanto, vale recordar que os alunos deste nível de ensino possuem uma

flexibilidade cognitiva bem mais elaborada do que estudantes comuns do nível

escolar.

Lima (2004, p. 44) faz uma reflexão interessante quando comenta:

Isto explica (embora não justifique) a definição dada no dicionário mais

vendido do país. Em algumas situações, ocorrem em matemática definições do

tipo seguinte: um vetor é o conjunto de todos os segmentos de reta do plano

que são eqüipolentes a um segmento dado. (definição por abstração). Nessa

mesma veia, poder-se-ia tentar dizer que: “numero cardinal de um conjunto é

o conjunto de todos os conjuntos equivalentes a esse conjunto”.

Ademais, parece-nos importante lembrar que a atividade demonstrativa,

seja ela auxiliada por uma construção geométrica ou não, se estabelece e adquire o

caráter de validade dentro de um sistema simbólico. Couturat (1901, p. 88), por sua

vez, comentou que para Leibniz tais sistemas devem ser concisos: eles são destinados

a abreviar o trabalho do espírito, condensando qualquer tipo de raciocínio. A partir

daí, vemos a utilidade ou a necessidade em Matemática, na qual os teoremas são,

segundo a expressão francesa de Couturat (1901, p. 88), “abregés de pensée”.

Leibniz, citado por Couturat (1901, p. 89) forneceu uma profunda reflexão

que não pode ser esquecida pelo professor de Matemática quando sublinhou que a

fraca capacidade do espírito não pode abranger e nem ser exposto ao mesmo tempo

além do que um pequeno número de ideias, nem efetuar de uma única vez mais do

que uma dedução imediata e simples.

O matemático alemão desenvolveu uma verdadeira teoria da definição, pois

os únicos princípios primeiros para Leibniz são as definições. Uma demonstração,

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65AULA 3 TÓPICO 1

para ele, parece um encadeamento de definições e distingue, na arte de demonstrar,

duas outras artes: a arte de definir (l´art de definir) e a arte de combinar definições

(l´art de combiner les définitions) (BUFFET, 2003, p. 31).

Como vimos, vários matemáticos e filósofos destacam e caracterizam o

papel das definições matemáticas. Outro aspecto que pode ser encarado como

uma consequência imediata desta preocupação diz respeito à compreensão que

o professor de Matemática precisa possuir para antever os aspectos positivos e

os aspectos negativos, com relação ao entendimento dos estudantes, vinculados à

natureza de uma definição matemática. Ou de outra forma, existem definições mais

adaptadas ao ensino do que outras? Existem definições matemáticas formais mais

intuitivas do que outras? No que se refere à caracterização lógica de uma definição,

qual a melhor e mais acessível ao entendimento dos aprendizes?

Questionamentos desta natureza são incongruentes com teorias generalistas

para o ensino. Por outro lado, quando assumimos desde o início a importância do

estudo da filosofia própria da Matemática, nos instrumentalizamos com mecanismos

mais precisos para a análise de nossa realidade, para compreender a esfera de

práticas do professor de Matemática. Vejamos um exemplo no qual evidenciamos

de que modo a natureza de uma definição matemática pode intervir diretamente no

ensino de Matemática.

No ensino ordinário, os estudantes aprendem o conceito e são apresentados

à definição formal de função bijetora, quando existe uma aplicação :f A B® ,

de modo que (i) , , com x y f(x) f(y)x y A" Î ¹ ® ¹ ; (ii) ( )f A B= . A primeira é

conhecida como injetividade e a segunda propriedade diz respeito à sobrejetividade.

Por outro lado, do ponto de vista da lógica, temos outra formulação equivalente

a que descrevemos em (i), declarando que: (iii) ,x y A" Î , se ( ) ( )f x f y x y= ® = .

Se admitirmos (i) como inferência direta, o que descrevemos em (iii) é sua

contrarrecíproca. E sabemos que ( ) ~ ~ (contra-recíproca)p q direta q p® Û ® .

O problema metodológico é: Qual das duas formas de definir uma propriedade

da função :f A B® é mais viável para o ensino do que a outra.? Qual das duas

definições envolve uma melhor interpretação geométrica?

Por exemplo, se consideramos a definição (i), dados , , com x yx y A" Î ¹ ,

digamos x y< , poderemos determinar os elementos no plano ´ . Notamos

na Figura 2-I que podemos representar suas imagens no gráfico. A dificuldade

é conseguir condições formais de verificar que f(x) f(y)¹ . Muitos matemáticos

formalistas desacreditavam o raciocínio matemático apoiado em figuras e desenhos.

Por outro lado, para verificar a condição equivalente (iii), necessitamos da

condição geométrica descrita algebricamente por ( ) ( )f x f y= . Note-se que na

Figura 2 do lado direito, necessitaríamos verificar que não pode acontecer x y< e

também que x y> . Nota-se que, no primeiro caso, nossa preocupação metodológica

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66 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

recairá sobre a necessidade de verificar, do ponto de vista lógico, que ( ) ( )f x f y<

ou ( ) ( )f x f y> . Por outro lado, no caso de (iii), o esforço didático recai sobre a

necessidade de verificação que não pode ocorrer a condição x y< e também a

outra possibilidade x y> . Deste modo, dependendo da definição de injetividade

adotada, o professor enfrentará maiores ou menores dificuldades metodológicas.

Figura 2: Representação de funções injetoras (elaboração própria).

De modo semelhante, podemos descrever a condição (ii) ( )f A B= por (iv)

y B" Î , existe x AÎ tal que ( )y f x= . Neste caso, a definição formal de função

sobrejetora trata de uma questão pouco trivial e de conteúdo indiscutivelmente

filosófica, conhecida como existência de um objeto x AÎ , de modo que sua imagem

realiza o valor numérico, por meio da regra formal característica da função geral

:f A B® . Sua negação pode ser mais complicada ainda, de fato, na Figura 3,

lado esquerdo: Como investigar um possível elemento que nunca poderá realizar a

propriedade desejada que declara a igualdade ( )f A B= ?

Figura 3: Representação de funções sobrejetoras (elaboração própria).

Antes de concluir esta seção, destacamos algumas ponderações de cunho

filosóficas devidas a Lima (2004, p. 60) quando desenvolve as seguintes declarações

sobre o conjunto dos números reais intimamente ligadas à noção de existência:

Um espírito mais crítico indagaria sobre a existência dos números reais, ou

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67AULA 3 TÓPICO 1

seja, se realmente se conhece algum exemplo de corpo ordenado completo.

Em outras palavras: partindo-se dos números naturais (digamos, apresentados

através dos axiomas de Peano) seria possível, por meio de extensões sucessivas

do conceito de número, chegar à construção dos números reais? A resposta é

afirmativa. Isto pode ser feito de varias maneiras. A passagem crucial é dos

racionais para os reais, a qual pode ser o método de cortes de Dedekind ou

das sequencias de Cauchy (devido a Cantor), para citar apenas os dois mais

populares.

Nota-se ainda que, dependendo da vertente filosófica assumida, determinados

argumentos indicados por Lima (2004) não são aceitos como confiáveis. Na seção

seguinte estabeleceremos alguns ambientes de atuação do professor nos quais

identificamos os condicionantes, os entraves e as concepções herdadas a partir das

correntes absolutistas da Matemática.

Page 68: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

68 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

TÓPICO 2 As influências das correntes filosóficas no ensino atualObjetivO

• Identificar as influências das correntes filosóficas no

ensino atual de Matemática

Como comentamos nas aulas anteriores, pessoas que carregam consigo

apenas uma aprendizagem e único contato com a Matemática a partir

do cenário escolar, como estudantes, dificilmente conseguem perceber,

descrever, identificar e compreender os condicionantes demarcados ao longo dos séculos

provenientes das correntes filosóficas que apresentam um caráter epistemológico de

raízes profundas no saber matemático.

Tal fato pode ser observado na postura pedagógica do ensino escolar e, de modo

especial, nas práticas avaliativas que se desenvolvem em torno do saber matemático.

Como já descrevemos na disciplina de Didática da Matemática, o maior problema

enfrentado pela maioria dos cursos de graduação no Estado do Ceará diz respeito à

situação em que o futuro professor de Matemática não estuda na graduação aquilo que

vai ensinar. Ademais, parte do que se estuda na graduação compõe-se de disciplinas que

veiculam saberes de natureza epistemológica de outras áreas do conhecimento, distintas

da Matemática, portanto nem sempre são aplicáveis, adequadas e suficientes para a

explicação/predição de fenômenos intrínsecos da Matemática.

De modo particular, reforçamos nossa última argumentação nos valendo das

palavras de Souza e Fernandes (2010, p. 28):

Por isto, é necessário que, na prática avaliativa, para que esta realmente

seja desenvolvida de forma qualitativa, é necessário que o professor tenha

compreensão das concepções e princípios de avaliação. A partir daí, ao tomar

conhecimento de conceitos avaliativos, das referidas metodologias e dos

instrumentos de avaliação, tal prática provavelmente se tornará mais eficaz.

Page 69: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

69AULA 3 TÓPICO 2

No que diz respeito à atividade avaliativa do professor de Matemática, quando

lemos o excerto acima, obteríamos uma resposta pelo menos provisória das seguintes

questões: O que significa uma prática avaliativa em Matemática de natureza qualitativa?

Que concepções condicionam/determinam e modelam as relações que são travadas em

torno do saber escolar? De onde são provenientes e/ou originados, do ponto de vista

epistemológico, os conceitos avaliativos? A que metodologias específicas os autores Souza

e Fernandes (2010) se referem ou mesmo fazem menção? O que caracteriza a “eficacidade”

de uma prática avaliativa para os autores Souza e Fernandes (2010)? Em relação a que

campo ou esfera de práticas fazem referência? E conhecendo-a, como operacionalizá-la

de fato, em sala de aula, no ensino de Matemática?

Em nossa realidade, encontramos professores recém formados, com pouca

maturidade e limitada eficiência prático-operacional, repletos de teorias desconexas,

e que são obrigados a responder estes e outros questionamentos de forma solitária,

desamparados pela universidade.

Diante de nossos objetivos e da limitação de espaço deste material, não nos

deteremos em cada uma destas questões, entretanto algumas delas merecem uma

maior atenção. Neste sentido, assumimos não ser muito produtivo para o professor de

Matemática adquirir toda uma retórica a respeito do “processo avaliativo” se ele mesmo

não consegue elaborar um instrumento de avaliação que diferencie o caráter quantitativo

e qualitativo de entendimento do saber matemático. Ademais, com relação aos saberes

e raciocínios mobilizados num instrumento de avaliação do conhecimento matemático

do estudante, o professor deve identificar raciocínios intuitivos e raciocínios lógicos-

formais empregados pelo mesmo.

Outros elementos que merecem atenção dizem respeito ao ato de avaliar a

aprendizagem em relação a um conceito de Matemática ou à definição vinculada ao

referido conceito. Embora o aprofundamento destas questões tenha sido realizado na

disciplina de Didática da Matemática, é oportuno destacar a sugestão fornecida por

Souza e Fernandes (2010, p. 28) quando aconselham:

Todavia, a avaliação é um processo que deve ser realizado a partir dos resultados

obtidos das atitudes tomadas pelo educando diante do saber escolar. Diante da

atividade do aluno, o professor deve analisar não apenas o resultado como

também os saberes mobilizados pelo aluno para chegar a resposta final. Assim,

o professor poderá perceber o nível de conhecimento do aluno e analisar se ele

necessita ou não de acompanhamento, bem como quais ações pedagógicas são

necessárias para que o aluno continue o processo de aprendizagem.

Page 70: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

70 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

O motivo diz respeito basicamente ao fato de que estes autores se apóiam em

fundamentações teóricas erigidas a partir de outra esfera de práticas, distinta do campo

de atuação do professor de Matemática, e que se mostram insuficientes neste âmbito

particular. Por outro lado, em sua tese, Cury (1994) desenvolve sua argumentação

relativa ao fenômeno avaliativo na medida em que analisa e identifica as influências das

correntes filosóficas da Matemática no ensino. Em relação a este fato, Cury (1994, p. 69)

conclui:

Parece-nos que a visão absolutista da matemática está presente nesse

procedimento dos professores: ele acreditam que, efetivamente, na existência,

em matemática, de uma verdade absoluta que não pode ser sujeita a criticas

e correções e, por extensão, de uma maneira de fazer, uma resolução certa

que deveria ser seguida por todos [...] Quando os professores de matemática

constroem um gabarito, já estão estabelecendo uma verdade única, isolada para

os alunos. Outro agravante pode ser citado: ao avaliar a prova separadamente

das outras atividades desenvolvidas durante o período de aprendizagem, ou

seja, do próprio trabalho da sala de aula, do estudo individual ou dos trabalhos

de casa, o professor isola o processo de aprendizagem de seu produto.

Mais adiante acrescenta um interessante ponto de vista quando comenta:

Na correção de cada questão, surge, em nossa opinião, novamente o laivo

absolutista, agora em sua versão formalista, quando o professor considera que

as regras formais de uso do conteúdo são mais importantes do que o significado

que é atribuído a esse conteúdo. E são as regras que contam na avaliação,

uma vez que ela é feita com base no uso das mesmas regras em uma prova.

Mesmo quando o professor salienta sua preocupação com o desenvolvimento

da questão, essa observação se refere ao encadeamento lógico dos raciocínios,

à elegância, à correção, ao rigor das provas apresentadas, ou seja, àqueles

elementos valorizados pela comunidade matemática, segundo os quais

um trabalho na área pode ou não habilitar-se a ser lido pelos membros da

comunidade (CURY, 1994, p. 69).

Cury (1994) faz referência às concepções, práticas de ensino, rituais introjetados,

cristalizados e condicionados pelas correntes absolutistas ou por seus prolongamentos.

Tais concepções e visões sobre o conteúdo e seu ensino dificilmente podem ser explicados

por teorias oriundas de outros campos epistêmicos, nomeadamente as teorias do campo

pedagógico das ciências humanas. Basta evidenciar, por exemplo, que, se um educador

observar que quando o professor considera que as regras formais de uso do conteúdo

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71AULA 3 TÓPICO 2

são mais importantes do que o significado que é atribuído a esse conteúdo, esse educador

interpretará tal fenômeno a partir da corrente pedagógica tecnicista, o que nos parece um

equívoco e desconhecimento gritante. Mas se um matemático observar o mesmo fato

interpretará e identificará as influências diretas da corrente filosófica formalista, devida

a David Hilbert.

Outra influência considerável das correntes filosóficas é observada nas

determinações curriculares na Matemática. Nota-se que não nos referimos a um currículo

qualquer, de uma área do conhecimento geral e, sim, de modo específico, ao currículo de

Matemática. Uma obra que merece destaque e que foi amplamente divulgada nos Estados

Unidos, no final da década de 60, é O fracasso da Matemática Moderna, do matemático

norte-americano Morris Kline, um protagonista da reforma do ensino da Matemática

que ocorreu na segunda metade do século XX, um período que inclui os programas

da Nova Matemática. Em 1956, Professor de Matemática, revista publicada por Kline,

responsabiliza os professores pelos fracassos dos alunos. Kline (1976, p. 34) escreveu: Há

um problema estudantil, mas também existem três outros fatores que são responsáveis pelo

estado atual da aprendizagem matemática, ou seja, os currículos, os textos, e os professores.

O discurso tocou um nervo, e as mudanças começaram a acontecer. Reproduzimos abaixo

um trecho do livro no qual o autor descreve o estado e as características equivocadas do

currículo de Matemática daquela época.

Embora o currículo tradicional tenha sido algo afetado nos últimos anos pelo

espírito de reforma, suas características básicas são facilmente descritas. Os

primeiros seis graus da escola elementar são dedicados à aritmética. No sétimo

e oitavo graus, os alunos aprendem um pouco de álgebra e os fatos simples

de geometria, tais como fórmulas para a área e o volume de figuras comuns.

O primeiro ano de escola secundária preocupa-se com álgebra elementar, o

segundo com geometria dedutiva e o terceiro com mais álgebra (geralmente

denominada álgebra intermediária) e com trigonometria. O quarto ano de

escola secundária geralmente abrange geometria sólida e álgebra adiantada [...]

Houve, frequentemente, várias criticas sérias que se aplicam ao currículo. A

primeira critica diz respeito à álgebra presente no mesmo que força o aluno a

memorização em detrimento da compreensão (KLINE, 1976, p. 19).

Vale destacar que a predominância ainda nos dias de hoje do pensamento

algébrico é observada quando encontramos pessoas, com conhecimento limitado em

Matemática que a concebem como a “ciência dos números”. Esta visão constitui, dentro

dos pensamentos do senso comum, o mais limitado e equivocado ponto de vista. Mas o

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72 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

que merece ser observado é que o currículo criticado por Kline foi o resultado de pressões

de grupos políticos de matemáticos, em determinada época histórica, que determinaram

e apontaram os paradigmas mais importantes do saber matemático naquela época.

Ainda nos deteremos nestes e outros aspectos, principalmente na identificação dos

fatores filosóficos, mas antes disso, em outro trecho abaixo, observamos as determinações

do currículo sobre a práxis do professor, identificadas e caracterizadas por Kline (1976,

p. 20) de modo eficiente ao mencionar que:

Uma boa professora sem dúvida esforçar-se-ia por auxiliar os alunos a

compreender o fundamento lógico deste processo, mas, via de regra, o

currículo tradicional não dá muita atenção à compreensão. Confia em exercícios

para fazer com que os alunos sigam facilmente o processo. Após aprenderem a

somar as frações numéricas, os alunos enfrentam a somar frações onde letras se

acham envolvidas. Conquanto se empregue o mesmo processo para calcular? 3 2

x a x a+

+ + os passos individuais são mais complicados. Novamente

o currículo confia em que os exercícios transmitam a lição. É solicitado ao

aluno que faça as somas em inúmeros exercícios até que as possa realizar com

facilidade.

Kline, como constamos a seguir, descreve de modo melancólico a análise

do currículo com relação aos conceitos de Álgebra e de Geometria e aponta um dos

conhecimentos que são menos aprofundados nos cursos de graduação. Tal conhecimento

diz respeito à Geometria Plana e Espacial herdada de Euclides. E o mais curioso em

nossos dias é que se perguntarmos a um aluno da escola regular suas preferências,

ele exclamará sem pestanejar que prefere Álgebra em vez de Geometria. O que ocorre

de mais irônico, para não dizer trágico, é que se fizermos a mesma pergunta para um

professor de Matemática recém formado, ele dirá também que prefere ensinar Álgebra,

em detrimento da Geometria dedutiva. Com respeito a tal cenário, Kline (1976) observa:

Após um ano deste estudo de álgebra, o currículo tradicional passa para a

geometria euclidiana. Nela a matemática torna-se subitamente dedutiva, isto

é, o texto começa com definições das figuras geométricas e com axiomas ou

asserções que presumivelmente são “obviamente verdadeiras” acerca das

figuras. Eles provam depois teoremas aplicando o raciocínio dedutivo aos

axiomas. Os teoremas seguem um ao outro numa sequência lógica; quer

dizer, as demonstrações dos teoremas posteriores dependem das conclusões

já estabelecidas nos anteriores. Esta mudança repentina de álgebra mecânica

para a geometria dedutiva certamente transtorna a maioria dos alunos. Até

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73AULA 3 TÓPICO 2

então, em seu estudo de Matemática, não aprenderam o que “demonstração”

é e tem que estar senhor deste conceito além, da aprendizagem da própria

matéria (p. 22).

Por fim, Kline aponta um problema que depende da visão e das concepções que

o professor de Matemática constrói, ao longo de sua carreira, sobre a Matemática. Neste

sentido, se o docente não consegue identificar e compreender a “beleza” do conhecimento

matemático, nunca conseguirá transmitir tal sensação para seus educandos, sem falar nos

casos em que o professor leciona Matemática por que não encontrou outra maneira de

garantir sua subsistência material ou por que está a espera de uma outra oportunidade

profissional. Com respeito a isto, Kline (1976, p. 23) declara no trecho abaixo:

Além de poucas falhas que já descrevemos, o currículo tradicional sofre do

defeito mais grave que se pode lançar sobre qualquer currículo: falta da

motivação. A própria matemática – para empregarmos as palavras do famoso

matemático do século vinte, Hermann Weyl, - tem a qualidade não humana da

luz estelar, brilhante e nítida, porém, fria. É também abstrata. Trata de conceitos

mentais embora alguns, como os geométricos, possam ser visualizados. Dadas

ambas as considerações, de sua qualidade fria e caráter abstrato, muito poucos

são os estudantes que se sentem atraídos por esta matéria de ensino (p. 23).

No trecho acima, o matemático acentua a importância do desenvolvimento de

mecanismos que instigam e motivam os estudantes a estudar Matemática. Antes de

discutirmos alguns pontos mais próximos de nossa discussão filosófica, destacamos

oportunamente trecho de um pensamento dos autores Moreira e Silva (1995, p. 7).

O currículo há muito tempo deixou de ser apenas uma área meramente

técnica, voltada para questões relativas a procedimentos, técnicas e métodos.

Já se pode falar agora em uma tradição crítica do currículo, guiada por

questões sociológicas, epistemológicas. Embora questões relativas ao “como”

do currículo continuem importantes, elas adquirem sentido dentro de uma

perspectiva que as considere em sua relação com questões que perguntem pelo

“por quê” das formas de organização do conhecimento escolar.

O trecho acima nos serve de modo eficiente para discutir linhas de pensamento

que em nada explicam, caracterizam ou prevêem as mudanças ocorridas ao longo

dos séculos no currículo de Matemática. Nossa posição é clara no sentido de que não

adianta buscar formar o futuro professor para a cidadania, no sentido de desenvolver

um ensino inclusivo, prazeroso, “lúdico”, se ele mesmo não consegue fazer seus alunos

Page 74: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

74 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

compreenderem o motivo e a justificativa pela qual multiplicamos as linhas pelas colunas

de uma matriz.

Em outras palavras, antes de tomar consciência de que o campo curricular não

constitui apenas uma técnica, o futuro professor deve compreender que a constituição

do currículo de Matemática sempre foi o resultado do embate e do jogo de poder entre

matemáticos, num determinado período histórico em que o saber matemático sempre

serviu de paradigma para a evolução das sociedades e para a fundamentação de outras

áreas do saber, e não o contrário.

Neste sentido, Santos (2008, p. 176) recorda as ideias diferenciadas do físico

teórico e epistemólogo Thomas Khun (1922-1996), quando comenta que:

Muitos dos opositores da idéia de revolução em matemática argumentam que

as verdades nesse campo são sempre preservadas, mesmo com o aparecimento

de novas teorias. Por esse motivo, o uso do conceito de revolução nestes casos

é um erro, já que esse conceito traz consigo aquilo que foi chamado a pouco de

princípio de destituição do antigo regime.

Mais adiante, Santos (2008) diferencia o campo epistêmico do saber matemático

de outros campos do saber. A partir de suas palavras referendamos nossas posições de

crítica com respeito à aplicação de “teorias pedagógicas” para explicar/caracterizar os

movimentos próprios de evolução do saber matemático. Santos (2008, p. 177) indica

elementos que não encontramos e/ou identificamos nestas teorias quando declara:

E de fato as verdades matemáticas são, pelo menos em algum nível de

consideração, preservadas com o aparecimento de totalmente novas teorias.

No entanto, para que essas verdades sejam preservadas, e para que continuem

a ter uma aplicação efetiva dentro da matemática, surge à necessidade de serem

reavaliadas e remodeladas dentro dos parâmetros indicados pelas novas escolas

e teorias matemáticas.

Santos (2008, p. 177) indica ainda o locus científico onde devemos nos acomodar

para o desenvolvimento de uma análise filosófica adequada ao acrescentar que:

As revoluções em matemática se parecem com certos eventos que, por vezes,

também percebemos ocorrer nas ciências naturais. A teoria da relatividade

de Einstein é, sem dúvida, um marco na história da física e da astronomia

contemporânea. Depois de Einstein componentes curriculares em cursos de

graduação e de pós-graduação tiveram que ser revistos, novos campos de

pesquisa foram abertos, livros escolares se tornaram ultrapassados. Em suma,

Page 75: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

75AULA 3 TÓPICO 2

a física e a astronomia do século XX em diante não pode mais ser considerada

a mesma desde então.

As tradições no currículo de Matemática são guiadas por questões de ordem

particular da própria Matemática e uma epistemologia também particular. E antes de

explorar de modo equivocado a necessidade de compreensão do porquê da constituição do

conhecimento matemático escolar, o professor deve compreender a própria constituição

do seu currículo de graduação, a constituição do currículo escolar de Matemática, e o

motivo pelo qual estuda mais Cálculo Diferencial e Integral em detrimento de Geometria

Plana.

Dois equívocos precisam ser apontados aqui. O primeiro diz respeito à sensação

de que o professor, ainda nos cursos de graduação, acha que “sabe” Geometria Plana,

entretanto não sabe. De fato, encontramos vários trabalhos acadêmicos dando conta

da precária atenção dos formadores de professores no ambiente de graduação. Assim,

admite-se que o professor sabe este conteúdo e priorizam-se tópicos de Matemática

avançada.

Neste contexto de discussão é que a Filosofia da Matemática pode fornecer um

viés de análise privilegiada para o professor. Nesse sentido, seria auspicioso para o

professor saber identificar os desdobramentos e condicionantes das antigas correntes

filosóficas da Matemática em sua sala de aula, na própria maneira de conceber, assim

como saber explicar o significado do conhecimento matemático.

A título de exemplo, Cury (1994, p. 44) discute um condicionante interessante ao

afirmar que:

Vemos, aqui, germe da seleção pela matemática, pois ela servirá para os eleitos.

Quando estudada em profundidade, propicia-lhe chegar à verdade. O seu uso

para os cálculos cotidianos é considerado desprezível, assim como eram os

mercadores e negociantes frente aos guerreiros. Está estabelecida a separação

entre a matemática pura e a aplicada, com a evidente valorização da primeira.

Assim, o futuro professor precisa ser formado no sentido de compreender estes

condicionantes,que agem e condicionam, de modo velado e com pouca nitidez, a

aprendizagem dos estudantes, escolhendo e selecionando os “eleitos”, os que possuem

mais habilidade com a Matemática. Esse tipo de função social, esse tipo de “funil social”,

assumido há séculos pela Matemática, precisa ser compreendido pelo professor e não

será a partir de teorias gestadas numa esfera de práticas completamente distantes da

esfera de prática do professor que o docente tornará sua ação mais eficaz.

Esta função de “seleção” é reforçada pela herança e hegemonia de concepções

Page 76: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

76 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

absolutistas no ambiente de ensino/aprendizagem, como a descrita por Santos (2008, p.

98):

Frege se refere aos axiomas como aquelas verdades irrefutáveis, para as quais,

contudo, não é possível nenhuma prova. Trata-se, portanto, de um contra-

senso tentar fornecer uma prova para uma verdade auto-evidente, seja devido

à natureza dessa verdade, que não admite, em princípio, uma refutação, seja

devido ao teor extremamente primitivo do conteúdo do que é expresso na

proposição. Os dois casos, muitas vezes, se identificam numa única e mesma

condição, aquela que determina se uma afirmação pode ou não ser considerada

um axioma do ponto de vista clássico, uma verdade imediata e inabalável.

Em outro fragmento, Santos (2008, p. 99) destaca que:

O conhecimento legítimo é um dado irrefutável, visto que é auto-evidente ou é

obtido por meio de uma demonstração. Um conhecimento se identifica sempre

com uma afirmação verdadeira sobre algo. Isto é, um conhecimento é sempre

a compreensão de uma verdade. Não é possível, portanto, um conhecimento

sobre algo que não exista, dado que nenhuma verdade, assim como nenhuma

falsidade, pode ser afirmada sobre o que não existe.

Para concluir esta seção, destacaremos de modo breve alguns pensamentos de

Imre Lakatos (1922 – 1974), que se graduou em Matemática, Física e Filosofia, e então

iniciou suas pesquisas em Filosofia da Matemática. Também se dedicou à Filosofia da

Ciência. Ele foi ativo em Filosofia da Matemática entre os anos de 1950 e 1967, com algum

trabalho retomado em torno de 1973. Seu maior trabalho em Filosofia da Matemática foi

Provas e Refutações, republicado postumamente em

1976.

Com respeito a Lakatos, Jesus (2002, p. 75)

comenta que o matemático húngaro é considerado

falibilista devido à influência do falseacionismo e

do falibilismo de Popper. Wittgenstein, por sua vez,

ora é considerado o mais estrito finitista, ora um

convencionalista. Mas o que o caracterizou mesmo

foi a sua singularidade na tradição filosófica. Jesus

(2002, p. 78) esclarece que:

at e n ç ã o !

Falibilismo é a doutrina filosófica segundo a qual

não podemos ter a certeza de qualquer forma de

conhecimento.

Page 77: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

77AULA 3 TÓPICO 2

Lakatos considera que a ciência constitui um dos jogos lingüísticos legítimos. A

filosofia da ciência, não. Segundo ele, o principal crime dos filósofos da ciência

de antanho – e dos filósofos da matemática e da lógica – foi tentar erigir-se a

si mesmos em um novo jogo de linguagem, autônomo com respeito à ciência.

Além disso, continua Lakatos, os filósofos tradicionais queriam estabelecer

um jogo de linguagem incorreto com regras explícitas – os wittgensteinianos

dizem mecânicas – que separassem a ciência da pseudociência, e com critérios

explícitos de progresso e degeneração dentro da ciência.

Mais adiante, Jesus (2002, p. 80-81) diferencia o olhar e a análise generalista de

Karl Popper com o olhar e o posicionamento filosófico de Lakatos quando declara:

Paul Ernest situa as raízes da filosofia da matemática de Lakatos em Hegel, em

Polya e em Popper. Seguramente este último fora uma das maiores influências

no pensamento de Lakatos. Alguns paralelos dão conta dessa influência:

a metodologia de Popper é chamada de lógica da descoberta científica; a

metodologia de Lakatos: lógica da descoberta matemática (LDM), o que é

uma transposição direta, segundo Ernest. Outro exemplo é o nome do maior

trabalho de Lakatos, Provas e refutações é um jogo direto sobre Conjecturas e

refutações de Popper.

A partir de Lakatos, a LDM passa a ser objeto de estudo filosófico nas ciências da

Matemática. De modo sistemático, Jesus (2002) propõe a seguinte tabela explicativa que

distingue o pensamento generalista de Popper (LDC – Lógica da Descoberta Científica)

da visão específica e particular de Lakatos (LDM – Lógica da Descoberta da Matemática),

conforme figuras 4 e 5.

Figura 4: Diferença entre LDC e LDM (JESUS,2002, p. 81)

Figura 5: Comparação entre LDC e LDM (JESUS, 2002, p. 81)

Page 78: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

78 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Mais adiante, Jesus estabelece importantes diferenças entre posicionamentos

filosóficos assumidos por Popper e Lakatos. Jesus (2002, p. 81) recorre à análise do neo

filósofo Paul Ernest ao sublinhar que:

Além dessas semelhanças, Ernest chama a atenção para uma diferença

importante. Para Popper, não haveria conexão necessária entre o novo problema

ou nova conjectura e a conjectura original (refutada) e na sua metodologia

nada poderia ser dito sobre a gênese de conjecturas porque esta pertenceria

ao contexto da descoberta, e não à filosofia da ciência. Para Lakatos, ao

contrário, existiria uma continuidade essencial entre a conjectura primitiva e

a conjectura melhorada. A conexão é que a crítica, a análise e o fortalecimento

da prova da conjectura primitiva é o que levariam à nova conjectura. Portanto,

os contextos da descoberta e da justificação são mantidos juntos, ao passo que,

para Popper, eles são separados.

E prossegue afirmando que

Em Provas e refutações, Lakatos propõe uma teoria da criação do conhecimento

em matemática que Ernest considera que pode ser representada como segue:

Dado um problema matemático (P) e uma teoria matemática informal (T) um

passo inicial na gênese de novo conhecimento é a proposta de uma conjectura

(C). O método de provas e refutações é aplicado a essa conjectura, e uma prova

informal da conjectura é construída e então submetida à crítica, levando a uma

refutação informal. Em resposta a essa refutação, a conjectura, e possivelmente

também a teoria informal e o problema original, são modificados ou trocados

em uma nova síntese, completando o ciclo (JESUS, 2002, p. 91).

O posicionamento falibilista, a partir de Lakatos, proporcionou um grande avanço

no que diz respeito às doutrinas absolutistas do passado. Jesus (2002, p. 124) desenvolve

uma comparação interessante que pode iluminar nosso entendimento ao afirmar:

Uma área central da controvérsia entre absolutismo e falibilismo na filosofia

da matemática trata da distinção entre os contextos da descoberta e da

justificação. Para os absolutistas, o contexto da justificação e o da descoberta

dizem respeito a domínios distintos do conhecimento; por isso, devem ser

mantidos separados. O contexto da justificação lidaria com condições objetivas

e lógicas do conhecimento, com a atividade racional da avaliação e da validação

do conhecimento constituído; portanto, lidaria com um objeto pertencente

ao domínio da epistemologia e da filosofia da matemática. O contexto da

descoberta trataria de circunstâncias contingentes da invenção humana ou

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79AULA 3 TÓPICO 2

histórica, e por não ser um processo racional, não poderia ser tratado lógica e

objetivamente, constituindo, portanto, um objeto pertencente ao domínio da

psicologia ou da história da matemática.

Certamente esta discussão requer páginas e páginas para que possamos

compreender o pensamento de Imre Lakatos, entretanto não poemos deixar de ressaltar

que este posicionamento de Lakatos adquiriu vigor tanto na Filosofia da Matemática

como na Filosofia das Ciências. Como já discutimos na seção passada, é improvável a

compreensão do aprendiz por meio da seguinte trajetória geral particular® . Assim

compreendendo, a Lógica da Descoberta Matemática (LDM), por exemplo, se tornará

mais acessível ao entendimento do movimento proposto por Popper, denominado pelo

próprio de Lógica da Descoberta Científica (LDC), que se caracteriza pela trajetória

particular geral® .

No próximo tópico veremos alguns exemplos específicos do ensino de Álgebra,

que recorre de modo frequente às definições matemáticas formais.

Page 80: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

80 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

TÓPICO 3As características de uma definição matemática e o ensino de álgebraObjetivO

• Identificar as características de uma definição

matemática vinculando-as ao ensino

Nas próximas aulas introduziremos a discussão de outras correntes

filosóficas que se ocuparam pela investigação científica filosófica

acerca da natureza das definições matemáticas. O consenso nesta

seara de perquirição não é preponderante e regra entre os pensadores, todavia,

antes de discutirmos suas vertentes de modo individualizado, vale recordar que

Kluth (2005, p. 12) explicita o papel das definições matemáticas e dos teoremas

que funcionam como guias construtores de definições na atividade algébrica do

alunos, quando menciona:

A apresentação das estruturas da Álgebra nos livros de Matemática dá-

se por meio de definições. Espera-se que, lendo-as e possuindo um prévio

conhecimento de outras definições e teoremas, os significados das estruturas

da Álgebra possam vir à tona, como uma articulação de resultados plenos de

sentido matemático, dos quais possam ser deduzidas asserções que constituirão

a teoria num processo lógico-dedutivo, caracterizando-se como o estudo das

estruturas. Esse é o movimento do pensar que se mostra na construção do

conhecimento das estruturas da álgebra nos livros de Álgebra em geral e, em

particular, no livro que vinha sendo adotado no programa da disciplina de

Álgebra Abstrata que eu ministrava.

Kluth (2005, p. 175), em determinado momento, indica as consequências

e condicionamentos impostos pelas correntes filosóficas absolutistas quando

comenta:

Page 81: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

81AULA 3 TÓPICO 3

ao educar-se, tendo como material de apoio a Matemática, evidencia-se, na

maioria das vezes, o pensar técnico, prático e utilitário em detrimento dos

aspectos essenciais da Matemática como uma Modulação de mundo. [...] o

conhecimento aprofundado e amplificado dos objetos da Matemática, que

englobam técnicas, teorias, análises e reflexões sobre essa Modulação, possam

auxiliar os Educadores Matemáticos a exercerem sua professoralidade, até

mesmo nas ações cotidianas mais comuns, como por exemplo, ao decidir qual

definição vai apresentar aos seus alunos. [...] As definições podem, ou não,

apresentar a priori sintético e a priori estrutural.

Observamos no trecho uma reflexão feita pela autora, uma professora de

Matemática. Destaca-se sua preocupação com respeito ao domínio aprofundado

do conhecimento que se tenciona explicar/ensinar. Sem tal aprofundamento, um

ensino “lúdico” e apoiado em atividades “prazerosas”, como muitos desavisados

defendem, torna-se um episódio rápido e passageiro, uma vez que, no momento

da avaliação, por meio de condicionantes absolutistas, é bem mais fácil ater-se ao

gabarito das provas. Principalmente no caso da Álgebra em que a linguagem, e,

portanto, o domínio sintático, em detrimento do domínio semântico, é priorizada.

De fato, neste contexto, o domínio sintático encobre muitos significados

dos conceitos. No final, resta ao aluno apenas as habilidades algorítmicas que

funcionam, embora não forneçam ou construam um significado do que se

esperava ser aprendido. Por exemplo, quando se toma 21 ........S a a= + + + , logo

o professor de Matemática, multiplica a expressão: 2 3 ........a S a a a× = + + + .

Portanto, temos 21 ( ........) 1 1 (1 ) 1S a a a S S a S a S= + + + = + × Þ = + × Û - × = .

Ou seja, 11

Sa

=-

. Neste tipo de “malabarismo algébrico”, não nos atemos de

modo recorrente ao significado dos elementos pertencentes às inferências lógicas

empregadas, e sim à própria simbologia. Mas quando refletimos a respeito do que

foi obtido, vemos que a soma de parcelas infinita 21 ........a a+ + + é equivalente

à execução de duas operações apenas. A primeira, uma subtração da unidade por

“a”, em seguida a divisão da unidade “1” por “1-a”. Isto foi motivo de desconfiança

para muitos matemáticos do passado.

Exemplos como estes e outros são discutidos por Otte (1991) quando descreve

o raciocínio algorítmico. Tal raciocínio proporciona, na maioria dos casos, a resolução

e a obtenção da resposta esperada pelo professor, todavia, qual o significado dos

valores encontrados?

Page 82: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

82 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Na figura abaixo, vemos a ilustração de um labirinto. Por meio de uma

instrução ou por meio de um conjunto de regras a priori conhecidas (Figura 5),

um estudante perdido dentro deste labirinto certamente conseguirá sair e se livrar

desta situação periclitante. Entretanto, Otte (1991) questiona se o estudante se

torna mais sábio ou inteligente pelo fato de conseguir lograr êxito na situação.

Figura 6: A metáfora do Labirinto desenvolvida por Otte (1991, p. 286).

1. Escolha uma direção inicial arbitrária, chame-a de “norte” e vire-se para

essa direção;

2. Vá em direção ao “norte” em linha reta até encontrar um obstáculo;

3. Vire à esquerda até que esse obstáculo esteja à sua direita;

4. Contorne o obstáculo, mantendo-o à sua direita até que a volta total

(incluindo a volta inicial do passo 3) seja igual a zero.

De modo semelhante, vemos isto ocorrer no ensino de Álgebra. Os

estudantes aprendem rotinas que envolvem “malabarismos algébricos” descritos

e estabelecidos de modo arbitrário pelo professor. Tais rotinas “funcionam”,

adquirem status de conduzir os estudantes sempre a um resultado. Basta entrarmos

com os dados iniciais e obteremos uma resposta. As próprias regras encerram o

caráter de verdade e justificam e determinam toda a aprendizagem.

Na História da Matemática, estes condicionamentos e obstáculos filosóficos

são apontados num trecho de um livro de Caraça (1951, p. 166), que denuncia:

De todas as surpresas que a história das Matemáticas nos apresenta, a menor

não é certamente esta – que, antes de os números negativos serem considerados

como verdadeiros números, já eram conhecidas e praticadas quase todas as

regras operatórias sobre os números complexos, coisa que parece simplesmente

Page 83: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

83AULA 3 TÓPICO 3

absurda, uma vez que, os números complexos resultam de raízes quadradas

de números negativos. A razão é esta – que os matemáticos se resignavam

ao formalismo, consentindo em criar e usar aquelas regras convenientes

para efetuar um calculo que fornecesse um resultado desejado; mas daí a

considerarem todos os símbolos sobre que operavam como números, isto é,

uma grande distancia, aquela distancia que separa um simples expediente de

manipulação, do cuidado, mais profundo, da compreensão.

Os elementos apontados acima podem ser registrados facilmente em sala

de aula, a partir da práxis do professor de Matemática, entretanto seria ingênuo

entendê-los como elementos isolados em uma esfera de práticas específicas do nosso

professor. Assim, preferimos um posicionamento crítico e filosófico no sentido de

interpretar estes e outros condicionantes como herança das visões filosóficas de

matemáticos dos séculos passados.

Na próxima aula, abordaremos outro tema polêmico e de natureza filosófica.

Assim como no caso das definições matemáticas formais, esta futura temática apresenta

um caráter de neutralidade, todavia veremos que está condicionada à dependência da

corrente filosófica predominante do momento histórico em que está inserida.

Page 84: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

84 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

A capacidade ontológica humana, característica de uma habilidade cognitiva que

chamamos de intuição, revelou enorme importância tanto para a pesquisa como

para a atividade do matemático, e consequentemente do professor. Nesta aula,

discutiremos alguns elementos epistemológicos e filosóficos relacionados a uma

temática que recebeu atenção e reflexão de matemáticos, filósofos, epistemólogos,

psicólogos, entre outros estudiosos interessados na capacidade do homem

produzir conhecimento.

Objetivos

• Reconhecer as características e os aspectos filosóficos da intuição matemática

• Descrever o papel da intuição na atividade investigativa• Identificar paradoxos e situações em que o raciocínio intuitivo conduz a

falsas concepções

AULA 4 As dimensões filosóficas da intuição, seu papel da atividade do matemático e alguns paradoxos

Page 85: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

85AULA 4 TÓPICO 1

TÓPICO 1 As dimensões filosóficas da intuição matemáticaObjetivO

• Reconhecer as características e os aspectos

filosóficos da intuição matemática

Nas aulas passadas discutimos as filosofias absolutistas da

Matemática. Destacamos também algumas de suas consequências

no ensino atual e suas condicionantes com respeito à práxis do

professor de Matemática. Nesta aula, detalharemos uma discussão relacionada

à intuição matemática. Veremos que matemáticos, epistemólogos, filósofos e

outros pensadores, se detiveram à busca de compreender tal faculdade psíquica

que intervém em todo momento na criação matemática. Mas não se pode falar

de intuição sem mencionarmos outra característica ontológica do ser humano

conhecida por percepção.

De fato, o interesse pela percepção que nos permite captar, entender e

interpretar o mundo que nos cerca remonta à história dos povos antigos. A

civilização helênica, de modo insuperável, foi a que deu a maior contribuição, o

que permitiu distingui-la de outras civilizações. De fato, os gregos, desde cedo,

refletiram sobre a relação entre homem e objeto e sobre os elementos da relação

estabelecida que permitem compreender e investigar propriedades intrínsecas do

objeto.

Entendemos bem esse posicionamento dos antigos gregos quando observamos

as afirmações de Aristóteles, presentes no texto Boutroux (1908) quando declarava

que:

Page 86: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

86 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Querer conhecer os fatos, não apenas do modo como se apresentam mas,

também, do modo como devem ser é querer resolver o contingente e o

necessário. É necessário, todavia, investigar as condições pelas quais o espírito

concebe algo como necessário; em outras palavras, é necessário inicialmente

encarar a ciência em sua forma, abstração feita do seu conteúdo: é o objeto da

lógica (BOUTROUX, 1908, p. 116, tradução nossa).

Étienne Émile Marie Boutroux (1845-

1921), filósofo e historiador francês, descreveu

a preocupação de Aristóteles em conhecer e

sistematizar os dados pesquisados. Boutroux

destaca, ainda, como vemos no final do excerto

acima, que um dos elementos que podem

promover o entendimento na investigação do

espírito é a Lógica.

Um dos povos da Grécia Antiga, os

jônicos atribuíam papel de relevo às ciências

matemáticas que recorrem à Lógica para o

estabelecimento de diversos fundamentos,

apesar de, em sua origem, a Matemática não ter

obedecido a regras explícitas e fórmulas bem

formadas que explicassem sua gênese. Desse

modo, a contribuição desse povo helênico,

no sentido da sistematização e depuração das

crenças e concepções que, em alguns casos,

formamos a partir dos nossos sentidos, é inigualável. Recorremos mais uma vez a

Boutroux, que extrai um ensinamento influenciado pela tradição helênica, quando

afirma que:

No que concerne à inteligência, uma boa educação aprimora e dirige as

faculdades, mais do que força a memória. Existem dois exercícios da faculdade:

um é livre, é o jogo; o outro imposto é o trabalho. Este último é obrigatório por

si mesmo e no ensino não é substituído pelo primeiro. A faculdade da intuição

deve ser formada antes do entendimento. Todo ensino será inicialmente

intuitivo, representativo e técnico (BOUTROUX, 1908, p. 394, tradução nossa.)

No final do excerto, vemos claramente a orientação e valorização de um

ensino intuitivo, entretanto, se desconhecemos a natureza, a fonte, o propósito e as

possibilidades alcançadas pelo entendimento humano ao fazer uso da habilidade ou

faculdade intuitiva, caminharemos por uma via infrutífera que torna inexequível

seguir o ensinamento de Boutroux.

v o c ê s a b i a?

Os jônios, ou jônicos, representavam um povo

indo-europeu e ficaram conhecidos pela grande

organização social e tradição militar. Participaram

ativamente da expansão grega e colaboraram

significativamente com o desenvolvimento da

cultura na Grécia Antiga, principalmente, da

ciência e do racionalismo. Os jônios foram um dos

quatro povos que formaram o povo grego, junto

com os aqueus, eólios e dórios.

(Disponível em: <www.suapesquisa.com/grecia/

jonios.htm>)

Page 87: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

87AULA 4 TÓPICO 1

A intuição mereceu atenção de Immanuel Kant (1724-1804). Kant assegurava

que um conceito permanecia vazio a menos que o mesmo se correspondesse com a

intuição; intuição é necessária para o estabelecimento de uma realidade objetiva do

conceito, isto é, a possibilidade de uma instância (KANT, apud PARSONS, 2008, p. 8).

Kant se interessou de modo especial pelas figuras geométricas na Matemática,

as quais denominava formas (empíricas) ou objetos. Nas provas, tais objetos são

construídos intuitivamente (no sentido de que podem ser intuídos). Representações

intuitivas surgem também na Matemática a partir de outros objetos, embora para os

números de modo particular estas surgem a partir de uma intuição mais indireta do

que as formas geométricas (KANT apud PARSONS, 2008, p. 8).

Parsons (2008, p. 8) dedica algumas páginas de sua obra para explicar o

termo em inglês “intuitability”, que traduziremos por a capacidade de aprender

por intuição. Parsons caracteriza o mencionado termo na acepção de uma condição

geral dos objetos. O autor recorda que Kant empregava o termo intuição (intuition)

como uma representação imediata de um objeto individual (PARSONS, 2008, p.8).

Por outro lado, que significado atribuímos ao termo “imediato” (immediate)?

Conforme o autor, este termo foi fruto de intensa polêmica. Retornando à discussão

do termo intuitability e o papel da intuição, observamos que seu conceito ocupa

um lugar não trivial de discussão entre diferentes noções que merecem atenção por

parte de filósofos e matemáticos.

Na Matemática, a importância do seu papel foi defendida por alguns e

atacada por outros, como recorda Parsons (2008, p. 139). Num âmbito filosófico,

intuição é mencionada em ambas as relações estabelecidas com objetos e relações

com proposições. Parsons usa as expressões “intuition of” e “intuition that” para

marcar as duas relações possíveis na perspectiva de alguns filósofos.

Para compreender o significado do termo “intuition of” e “intuition that” e o

seu emprego no âmbito filosófico, recorremos as suas ponderações:

O que fornece à “intuition of” um importante local na filosofia é provavelmente o

fato de que Kant´s Anschauung é intuição de objetos. Todavia, Kant certamente

confere ao conhecimento intuitivo uma indicação do que seria uma espécie de

“intuition of”. Eu penso ser bastante claro que Kant possuía tal concepção,

porém não as designou pelo termo Anschauung ou igualmente usado como na

frase anschauliche Erknntnis (PARSONS, 2008, p. 140, tradução nossa).

Pode-se falar, seguindo-se esta tradição de influencia kantiana, em intuição

de objetos e intuição de verdades, embora, neste último caso, alguns dilemas e

ambiguidades de âmbito filosófico precisem ser esclarecidos. Parsons (2008, p. 140)

diz que quando temos uma intuição sobre à (proposição), isto significa que seguimos

tal proposição. Por exemplo, quando um filósofo fala sobre suas ou sobre as intuições

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88 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

dos outros, isto frequentemente significa que a pessoa em questão está inclinada a

acreditar, pelo menos no início da inquirição, ou apenas como uma matéria do senso

comum.

Nesse sentido, as intuições não precisam ser sempre verdadeiras. Elas podem

ser guias bastante falíveis para o alcance da verdade. Parsons analisa as concepções

e os sentidos atribuídos por figuras ilustres ao termo intuição. Quando menciona

Descartes, explica que o filósofo e matemático francês diferenciava intuição de

dedução. Em sua acepção, a conclusão de uma inferência poderia não ser intuição.

Na discussão das fontes de conhecimento, não apenas a intuição seria

distinguível dos resultados dos argumentos envolvendo inferências, porém

tais resultados poderiam não se tratar de intuição, embora possivelmente uma

proposição possa ser ou não conhecida por intuição (PARSONS, 2008, p. 142).

Mais adiante, o autor destaca que a explicação de Descartes de intuitio

apresentada na Regras (Rules) fornece uma analogia com percepção. E é claro que

se refere a intuition that nos exemplos que Descarte fornece na Regra Terceira para

todo proposição (PARSONS, 2008, p. 144). Já em relação a Leibniz, Parsons afirma

que o filósofo e matemático alemão não usa tais analogias como Descartes, em

suas explicações acerca do conhecimento claro e distinto na obra “Meditations

on Knowledge, truth and ideas” (1684). E existe um contraste comparativo entre

intuitivo (intuitive) e o conhecimento cego ou simbólico. Nesse sentido, conhecimento

de uma noção é intuitivo quando podemos considerar todos os seus componentes ao

mesmo tempo (PARSONS, 2008, p. 145).

Outra figura emblemática discutida por

Parsons é Edmund Husserl, para quem a noção

de intuição assume uma posição de significância

geral. Na sua teoria, equivale aos atos ou

experiências intencionais que constituem nossa

consciência e às relações com o objeto. Tal

relação é realizada ou cumprida se o objeto se

apresenta à intuição (ou ao menos representado

na imaginação); no caso da intuição atual (actual intuition) (PARSONS, 2008, p.

145).

Por outro lado, pode-se identificar uma estreita conexão dos pensamentos

kantianos e husserlianos, como destaca Parsons, no que diz respeito à noção de

intuition that e intuition of. De acordo com Kant, intuition (que nós temos observado

como intuition of) em Matemática confere evidência ao que é imediato, como, por

exemplo, o caso dos axiomas. Mas, evidentemente, a imediaticidade de um julgamento

origina-se da construção da intuição sobre um objeto (PARSONS, 2008, p. 146).

s a i b a m a i s !

Quer saber um pouco mais sobre Edmund

Husserl, acesse http://educacao.uol.com.br/

biografias/edmund-husserl.jhtm

Page 89: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

89AULA 4 TÓPICO 1

Parsons (2008, p. 146) explica ainda que:

Tipicamente, uma proposição envolve referências aos objetos, evidência

envolverá a intuição destes objetos, porém eles fazem parte dos constituintes

de estágio de acontecimentos que são intuitivamente presentes, pelos menos

no caso ideal (tradução nossa).

Parsons analisa também a perspectiva de

Gödel, matemático austríaco, para quem deve

existir algo semelhante à percepção na teoria dos

conjuntos. Ele recorda que em virtude da clareza

de determinadas proposições e declarações na

teoria dos conjuntos, pode-se contar neste caso

com a intuition that. Certamente que

esta possui um estrito vínculo com a intuition of e, neste sentido, vale observar

que a intuition that permanece de algum modo vinculada a intuition of. E

intuition of é algo que se pode esperar quando a intuition that é análoga à

percepção, desde que um dos elementos centrais da percepção seja a própria

presença do objeto percebido. Por exemplo, sabemos por percepção que minha

bicicleta é azul ao vê-la. Alguém que nunca viu minha bicicleta nunca saberá

algo sobre a mesma por meio da percepção num sentido mais direto (PARSONS,

2008, p. 147).

As palavras de Parsons são promissoras no âmbito do ensino de Cálculo

Diferencial e Integral. De fato, quando comparamos os estudantes submetidos ao

ensino tradicional desta matéria, que privilegia a formalização e o estabelecimento

da verdade de enunciados a respeito da derivada parcial, com os estudantes que

são levados a conhecer o referido objeto por intermédio de crenças perceptuais

adequadas, depreendemos, a partir da diferença estabelecida por Parsons, que os

primeiros conhecem o objeto derivada por intermédio da intuition that e nunca

construirão nenhuma crença por meio da percepção. No segundo caso, os estudantes

contam com a própria presença (na tela do computador) do objeto que chamamos

de derivada parcial.

Retomando nossa discussão filosófica, sublinhamos que debilidade da

intuição sensível, segundo Bunge (1996, p. 21) é a fonte de nossos juízos de percepção.

Deste modo, sempre corremos algum risco ao desenvolver raciocínios rápidos e

breves, alicerçados por crenças perceptuais e, neste patamar, não se pode contar

com o alcance da verdade matemática.

s a i b a m a i s !

Acesse http://im.ufrj.br/~risk/diversos/godel.

html.

Page 90: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

90 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

De fato, Bunge (1996, p. 60) comenta que hoje se compreende que nem todas

as entidades, relações e operações se originam na intuição sensível e se reconhece que

a evidência não serve de critério de verdade e que as provas não podem se apresentar

somente por figuras, pois os raciocínios são invisíveis. Desse modo, com o fracasso

das intuições sensíveis e espaciais (ou geométricas) como guia para a construção da

Matemática, observamos o surgimento de concepções matemático-filosóficas que

caracterizariam a intuição pura.

Nesse contexto, uma corrente de pensamento matemático denominada

intuicionismo matemático (discutida na aula 2) se caracterizou como: a) uma reação

contra os exageros do logicismo e do formalismo; b) uma tentativa de resgatar a

Matemática do naufrágio que parecia ameaçar no início do século, como o resultado

do descobrimento dos paradoxos na teoria dos conjuntos; c) um produto menor da

filosofia kantiana (BUNGE, 1996, p. 61).

No próximo tópico discutiremos a relevância e a função da intuição na

atividade do matemático profissional.

Page 91: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

91AULA 4 TÓPICO 2

TÓPICO 2 O papel da intuição da atividade do matemáticoObjetivO

• Descrever o papel da intuição na atividade

investigativa

Decididamente, quando nos atemos ao fenômeno do ensino de

Matemática, questionamos até que ponto esta claro para o

entendimento do professor de Matemática, o papel e as formas

de manifestação do raciocínio intuitivo. Para compreender tal função inerente

à atividade matemática, torna-se imprescindível que entendamos o caráter de

ubiqüidade da intuição matemática, tanto no contexto escolar como no contexto

acadêmico. O matemático Jean Dieudonné (1906-1992) descreve uma maneira

particular na qual a intuição exerce seu papel coercitivo, ao declarar que:

Semelhantemente a vida da maioria dos sábios, a vida do matemático é

dominada por uma curiosidade insaciável, uma vontade de resolver os

problemas estudados que confirmam sua paixão e que conduzem à realização

de uma abstração quase total da realidade do ambiente; as distrações ou

excentricidades matemáticas célebres não possuem outra origem. É que a

descoberta de uma demonstração não se obtém em geral sem o auxílio de

períodos de concentração intenso que se renovam possivelmente por meses

ou anos até que o resultado pretendido seja alcançado (DIEUDONNÉ, 1987, p.

19, tradução nossa.)

A intuição matemática sempre despertou o interesse de muitos filósofos.

Parte desses interesses se caracterizava pela compreensão do tipo de ligação que

a intuição permite, especialmente, com a verdade ou, pelo menos, com a ausência

Page 92: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

92 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

do erro. Observamos uma reflexão particular do filósofo inglês John Locke (1632-

1704), sobre o conhecimento geométrico presente na Matemática. Stewart (1821, p.

23) destaca este episódio ao lembrar que:

Há muito tempo Locke destacou, à respeito dos axiomas da Geometria,

estabelecidos por Euclides, que embora a proposição seja inicialmente enunciada

em termos gerais, e posteriormente fazendo recurso na particularidade de suas

aplicações, como o princípio previamente examinado e admitido, todavia a

verdade não é menos evidente neste último caso do que no padrão inicial. Ele

observou mais adiante que em algumas de suas aplicações que a verdade de

cada axioma é percebida pela mente e, todavia, a proposição geral, distante do

local onde foi assentada e da verdade que encerra, é apenas uma generalização

verbal do que, em instâncias particulares, foi aceito como verdade (tradução

nossa).

Stewart aponta a preocupação manifesta por Locke a respeito da origem

ou a fonte da verdade matemática. A verdade deste tipo de saber é originada nos

enunciados mais gerais e distanciados das aplicações ou nos casos particulares em

que vemos suas aplicações? Em situações mais perceptíveis e menos abstratas a

verdade matemática está mais próxima do nosso entendimento?

Um elemento que merece atenção diante da situação pouco complexa

observada por Locke que é exemplificada por Mill (1869) diz respeito à possibilidade

de que enquanto tal verdade não se estabelece, enquanto a incerteza sobre o que

conhecemos da Geometria e como conhecemos não for reduzida a zero, a intuição

desempenhará um papel importante.

Mas é possível reduzir a zero nossas incertezas com a intenção de atingirmos

a verdade durante a investigação? Qual ou quais verdades podemos identificar no

saber matemático? E na condição de se atingi-la, de onde partimos e como saber se a

alcançamos? Algumas destes questionamentos não constituem simples tarefas para

se responder em poucos parágrafos, entretanto destacamos os que se aproximam da

nossa temática. Por exemplo, existe uma verdade única na Matemática? Guerrier

(2005, p. 12), por exemplo, destaca que:

A questão de saber se a verdade vincula-se ao domínio da Matemática ou

ao domínio da Lógica é uma questão bem antiga. Aristóteles distinguia

as verdades de fato (vérités de facto) e as verdades necessárias (vérités

nécessaires). Aquelas obtidas como conclusão de um silogismo concluído a

partir de premissas verdadeiras; e as últimas são os objetos da Lógica (tradução

nossa).

Page 93: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

93AULA 4 TÓPICO 2

E enquanto buscamos e ainda

não alcançamos uma verdade necessária,

como chamava Aristóteles, raciocinamos

intuitivamente? E nesta condição, ou seja, por

meio da intuição, obteremos tal verdade?

Vale lembrar que Frege considera que não

se pode sempre confiar na intuição (GUERRIER,

2005, p. 13). Todavia, para que haja a

compreensão e a certeza de estarmos fazendo uso

da intuição, mesmo no caso em que buscamos

uma verdade necessária, como na prática comum

do matemático, necessitamos definir o vocábulo

“intuição matemática”.

Neste momento nos deparamos com outro entrave histórico e filosófico. De

fato, Boutroux (1920, p. 224) lembra que:

Pascal, melhor do que Descartes caracterizou a intuição. E o mesmo escreveu

uma vez: Nós conhecemos a verdade, não somente pela razão, mais, sobretudo

pelo coração; e é por esta última sorte que nós conhecemos os princípios

primeiros, e é neste terreno que raciocinamos, e não existe outro ponto de

partida, outra sorte de combater... E é sobre este conhecimento do coração e

do instinto que a razão se apóia e fundamenta todo o seu discurso (tradução

nossa).

Mais adiante Boutroux adverte que:

Os intelectuais modernos, contudo, não buscam eles mesmos explicar, eles não

pretendem compreender completamente em que consiste e em que condições

podem agir por intuição. As definições que eles fornecem permanecem na

maioria das vezes negativas. As verdades matemática, dizem eles, não são

nem conseqüência de fatos experimentais e nem resultado de construções

ou deduções lógicas. Portanto, eles supõem um modo de percepção que não

se confunde, nem com a experiência dos sentidos, nem com o raciocínio.

Temos consciência deste modo de percepção por alguns instantes de pratica

(no trabalho de descoberta), e nos parece que ele não se assemelha a nenhum

conhecimento demonstrativo (BOUTROUX, 1920, p. 225, tradução nossa).

Ficam patentes nas afirmações de Boutroux duas dimensões a considerar:

a primeira relaciona o caráter afetivo/motivacional, enquanto a segundo diz

respeito ao campo epistêmico. Sublinhamos o termo afetivo/motivacional, uma vez

que, na atividade do matemático, apesar de nem sempre ser claro para o próprio

s a i b a m a i s !

A História da Ciência evidencia o recurso ao

apelo intuitivo para a edificação posterior de

várias teorias. Na Física, Almaraz (1997, p. 11)

recorda que Einstein obteve, por meio de imagens

mentais, indícios intuitivos que o serviram para

elaborar a Teoria da Relatividade.

Page 94: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

94 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

investigador, a busca pela estética se relaciona de modo íntimo com a ação de

descoberta e invenção.

Burton (2004, p. 66) desenvolveu um interessante estudo que fornece certos

indícios promissores. Ele caracterizou três características da estética: a função

generativa, a função avaliativa e a função motivacional. Com referência às três

características mencionadas, explica:

A função generativa foca no papel da estética na invenção e descoberta

matemática; a avaliativa tipicamente se manifesta nos próprios julgamentos

de um produto matemático, tal como um teorema; a função motivacional

relaciona-se com o papel da estética na medida em que induz ou inspira a

atividade matemática. Outra igualmente importante dimensão que se deve

considerar é a epistemológia baseada na estética deve apresentar uma função

de: De que modo opera ou funciona a estética como um modo de conhecer?

(BURTON, 2004, p. 66, tradução nossa).

No trecho acima observamos a relação entre a função generativa da estética

com a invenção e descoberta. Note-se que, nesses momentos, o matemático, sob

um ponto de vista psicológico, habita um mundo de incertezas, inseguranças e

dúvidas. Situação bem diferente da execução de uma prova matemática que requer

exatidão, generalidade, conexões lógicas e o conhecimento da estrutura matemática

com a qual está lidando.

Burton ressalva que, no âmbito de obtenção de um caminho para a

aquisição de conhecimento, a função generativa da estética adquire, na opinião dos

matemáticos participantes do seu estudo, um caráter de acessibilidade, interesse,

satisfação, simetria, transparência e surpresa. Burton (2004, p. 71) relata, em seu

estudo empírico que envolveu a participação de cerca de 80 participantes, que os

matemáticos não falaram a respeito do papel da imaginação.

A estética, para a maioria dos entrevistados, era concebida como um

produto da cultura dos matemáticos, dentro desta, a comunidade a constitui como:

estrutura, compacidade, conexão ou qualquer outra categoria funcional para a

obtenção de conhecimento, particularmente, na relação com o produto matemático,

provas e teoremas. Por outro lado, é importante distinguir o cognitivo do afetivo.

E no caso destes dois modelos componentes, a estética e a intuição parecem ser

inexplicavelmente interconectadas (BURTON, 2004, p. 72).

Burton (2004, p. 72) acrescenta ainda que a intuição fornece, para muitos,

a energia convincente que motiva e justifica o trabalho necessário na produção de

estética a qual um número de matemáticos chama de “euphoria” que acompanha a

resolução de problema. Embora para muitos, ainda que nem todos destes matemáticos

tenham sido consultados no seu estudo, a estética e a intuição parecem preencher

Page 95: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

95AULA 4 TÓPICO 2

diferentes funções psicológicas, evidenciamos

uma exaltação no reconhecimento da ligação da

estética mais conectada com a prova.

Hadamard (1945, p. 41) nos fornece uma

interessante explicação a respeito da noção de

estética e prova ao mencionar que:

Pode ser surpreendente ver a sensibilidade emocional

evocada nas demonstrações matemáticas que,

aparentemente, interessam apenas ao intelecto. [...]

Esta é a verdadeira estética do sentimento que todos

os matemáticos conhecem, e certamente pertence à

sensibilidade emocional (tradução nossa).

Assim como outros pensadores, Jacques

Salomon Hadamard (1865-1963) comenta o papel

do elemento afetivo, tanto na descoberta como na

invenção matemática, que o mesmo faz questão de diferenciar. Hadamard discute

também outros elementos nem sempre explícitos na atividade do matemático que

se relacionam de algum modo com a faculdade intuitiva. Com esta perspectiva,

Hadamard discute os momentos em que o matemático trabalha de modo consciente

na atividade solucionadora de problemas e outros momentos em que ocorrem

determinados fenômenos mentais sem o controle intencional e um pensamento

sistemático.

Hadarmard discute alguns pontos de vista fornecidos por Henri Poincaré.

Recorda que Poincaré salientava a importância da intervenção de uma atividade

consciente, após uma atividade mental inconsciente, não apenas para o emprego

de uma linguagem conveniente, mas também para verificar e precisar os resultados

finais, uma vez que é flagrante a insistência de Poincaré na atribuição de uma

significação geométrica antes mesmo de possuir uma demonstração (ROBADEY, 2006,

p. 1999). No que diz respeito à verificação dos resultados, Hadarmard (1945, p.

64) esclarece que o sentimento de certeza absoluta que acompanha a inspiração

geralmente corresponde à verdade; porém, este pode nos enganar.

Em todo caso, seja num momento de esforço mental consciente ou estágio

mental inconsciente em que se encontre o matemático, as imagens mentais e

representações que alicerçam uma ideia particular proporcionam o terreno para a

atividade intuitiva. Neste sentido, Souriau (1881, p. 12) explica:

As imagens que concebemos a cada momento não surgem do caos, mas de

um pensamento anterior. Antes que nossas ideias se combinem numa ordem

s a i b a m a i s !

Sauriau (1881, p. 121) diz que quando

mencionamos, por exemplo, a palavra ‘triângulo’,

ou se a vemos escrita, imaginamos imediatamente

a figura geométrica que aprendemos associar a este

som ou letras. E de modo similar, se pronuncio ou

escrevo esta palavra, sabemos que a mesma não

faltará em me sugerir uma concepção semelhante.

Assim, as palavras possuem a propriedade de

despertar em nossos espíritos certas imagens, que

são o que denomino de significação.

Page 96: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

96 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

presente, elas possuíam já certa ordem,

ou nosso espírito já apresentava

determinada organização. Na medida

em que em concebemos um pensamento

novo, consideramos certo tipo de

inteligência adquirida, e tal inteligência

determinará, pelo menos em parte, o

tipo de pensamento que conceberemos

(tradução nossa).

Hadamard discute algumas das ideias de

Paul Souriau, como a que destacamos no trecho

acima. A expressão “pensar de lado” teve origem

com Paul Souriau (1852 – 1926), com seu livro “Théorie de L’Invention”, de 1881.

Tal atividade mental requer o emprego da intuição, na medida em que o indivíduo

percebe a necessidade de relacionar as ideias objetivadas quando ‘pensava de

lado’, e as ideias principais que buscava compreender. Notamos que, em todo caso,

as ideias se combinam na dependência das imagens que formamos.

Por outro lado, quando falamos do aluno ou do indivíduo que tenta

compreender um raciocínio empregado por um matemático profissional,

identificamos dificuldades consideráveis, uma vez que:

Na procura de se abstrair ao máximo, o matemático se priva de uma determinada

sorte de intuição e priva de modo similar o leitor que não compreende mais o

porquê das definições e acredita se perder numa nuvem escura (QUENNEAU,

1978, p. 23).

Quenneau aponta um hábito peculiar na frente investigativa que em

muitos casos se manifesta na sala de aula do locus acadêmico. Paradoxalmente,

observamos uma mudança do modus operandi do matemático. De fato, enquanto,

em sua pesquisa, as imagens mentais e representações provisórias auxiliavam

seu raciocínio, na sala de aula, figuras ou representações que fornecem ideias

particulares podiam ser evitadas, em detrimento do alcance das ideias mais gerais

que explicam os teoremas que devem ser discutidos. Além disso, no âmbito de

sua pesquisa, os problemas são atacados, em muitos casos de modo indireto e de

modo sistemático; entretanto, no seu ensino, apresenta argumentações diretas para

a resolução definitiva de situações-problema.

Acrescentamos que, em muitos casos, o tempo didático não permite o

exercício da ‘incubação’ das ideias que, para Hadamard, possibilitava a combinação

e recombinação das ideias, de modo consciente ou não, com a expectativa do

s a i b a m a i s !

Sauriau (1881, p. 128) explica que a linguagem é

capaz de substituir o pensamento, uma vez que

as palavras podem substituir as ideias, ao menos

provisoriamente, e ver de que modo pode ser feito

o emprego de signos no trabalho da invenção.

Page 97: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

97AULA 4 TÓPICO 2

alcance, de modo individual, de uma solução. Com isto temos a oportunidade de

proporcionar que o estudante vivencie situações de euforia e contentamento em

virtude do alcance de um objetivo.

Com consequência, o estudante não alcança o prazer de uma descoberta

matemática, como consequência do exercício de sua imaginação; e assim, não

compreende o que significa fazer Ciência. Hadamard (1945) comenta de modo

pitoresco o papel de imaginação quando considera que:

Imaginação, por si só, não possibilita fazer Ciência, entretanto, em certos

casos, devemos explorá-la. Primeiramente, focando o objeto que desejamos

considerar, prevenimos os desvios de percurso [...] Imaginação pode ser

essencial na solução de problemas por meio de várias deduções, e os resultados

precisam ser coordenados após uma completa enumeração (p. 86, tradução

nossa.)

Em sentido contrário, não fazemos Ciência e, de modo particular, não fazemos

Matemática quando desenvolvemos em nossos estudantes o hábito de exploração de

sua capacidade imaginativa. Resulta na eliminação paulatina do espírito inventivo

do estudante, que, segundo a opinião de Souriau (1881, p. 106), deve ser curioso e

original. Com isto, o estudante permanece indiferente à descoberta de uma verdade

matemática e não fará nenhum esforço para pensar. Mas para pensar energicamente,

é necessário o estabelecimento de um objetivo e o desejo de alcançá-lo, é necessário, em

uma única palavra, ser curioso (SOURIAU, 1881, p. 106).

Neste tópico analisamos alguns aspectos e elementos que explicam e se

relacionam de modo íntimo com a intuição. Na sequência, discutiremos alguns

exemplos particulares nos quais poderemos observar de que modo nossa intuição

acarreta em conclusões errôneas, paradoxos, surpresas inesperadas e uma flagrante

contradição com a teoria matemática formal.

Page 98: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

98 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

TÓPICO 3 Os paradoxos relacionadosà intuição matemáticaObjetivO

• Identificar paradoxos e situações em que o raciocínio

intuitivo conduz a falsas concepções

Em vários contextos nos deparamos com fatos matemáticos estranhos.

De fato, desde os períodos escolares aprendemos que o conjunto

dos números pares e o conjunto dos números impares fazem parte

da ‘coleção’ que chamamos de números naturais, todavia, formalmente falando,

podemos afirmar que existem mais naturais do que pares? Ou que existem mais

números naturais do que ímpares?

Outro conceito explicado de modo intuitivo e vago no contexto escolar é

conhecido como números racionais e irracionais. No contexto acadêmico (LIMA,

2010), encontramos argumentações dando conta que dado um intervalo ( ),a b , no

mesmo podemos encontrar tanto um número racional como um número irracional.

Ora, argumentações como esta não constituem demonstrações formais,

todavia, tais propriedades relacionam-se com algumas operações aprendidas na

academia que preservam propriedades intrínsecas que podem contrariar nossos

sentidos.

Neste sentido, um dos nossos primeiros exemplos é discutido por Caraça

(1951, p. 14) quando menciona que:

Page 99: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

99AULA 4 TÓPICO 3

A nossa operação da contagem vai ainda fornecer-nos o modelo (mas agora só o

modelo) do que há a fazer para comparar os vários tipos de infinito. Vimos que

se realiza uma contagem fazendo corresponder objetos a números; ‘Vejamos 58

será possível estender a ideia de correspondência aos conjuntos infinitos. Nada

mais fácil; pela correspondência, a cada elemento vem associado antro pelo

pensamento; não há mais que supor que esta operação - fazer corresponder

a - se pode repetir indefinidamente. Ora, se já aceitámos, duas vezes, a

possibidade de repetição ilimitada dum certo ato mental porque não a admitir

agora? Assentemos, portanto, em que se estende a conjuntos infinitos a noção

de correspondência e vamos transportar para eles, tanto quanto possível, as

coisas já adquiridas, em especial a noção de equivalência, tão importante,

corno vimos, na contagem das coleções finitas - se, entre os elementos de dois

conjuntos infinitos, puder estabelecer-se uma correspondência biunívoca,

esses dois conjuntos dizem-se equivalentes.

O trecho de Caraça faz referências a vários

aspectos interessantes. Inicialmente, o autor

menciona a necessidade de realizarmos uma

contagem dos elementos de um conjunto. Nos

tempos atuais, quando dispomos de um conjunto

A que apresenta uma quantidade finita de

objetos, que podemos denotar por ( )Car A <¥

( : cardinalidadeCar = ), por definição, diz-se que

isto ocorre quando existe uma bijeção : nf I A® ,

onde {1,2,3,....., }nI n= . Por exemplo, se

temos dois conjuntos finitos ,A B UÌ , onde

( )Card A n= e ( )Card B m= , e se A BÌ , então,

devemos ter que n m£ . Assim, por definição,

podemos considerar duas bijeções : nf I A® e

' : mf I B® , onde {1,2,3,...., }n mI I mÌ = .

Por exemplo, quando consideramos os conjuntos dos pares e ímpares

: { 2 , k }n kà = = Î e : { 2 1, k }n kI = = + Î , notamos que à I=Æ . Ademais,

podemos intuir que ,Ã IÌ , entretanto podemos realizar uma inferência visual

na seguinte listagem:

2 4 6 8 10 12 14 ........ 2n

1 2 3 4 5 6 7 n

s a i b a m a i s !

Paradoxo e antinomias: Em sentido amplo,

«paradoxo» significa o que é «contrário à opinião

recebida e comum», ou à opinião admitida como

válida. Em Filosofia, paradoxo designa o que é

aparentemente contraditório, mas que apesar de

tudo tem sentido. Em Matemática, fala-se muitas

vezes de paradoxo matemático ou paradoxo

lógico, ou seja, de uma contradição deduzida no

seio dos sistemas lógicos e das teorias matemáticas.

Page 100: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

100 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

De modo particular, relacionado com a noção de conjuntos infinitos e

outras noções, encontramos na matemática e na lógica um intenso debate que

caracterizaram paradoxos.

Uma das maneiras conhecidas de mostrar que o conjunto ´ é

enumerável, isto é, que existe uma bijeção entre ´ e , (onde = {0; 1; 2;

…} é o conjunto dos números naturais), é exibir uma bijeção de ´ sobre ,

inspirada na figura:

(0; 0) (0; 1) (0; 2) (0; 3) …

(1; 0) (1; 1) (1; 2) (1; 3) …

(2; 0) (2; 1) (2; 2) (2; 3) …

(3; 0) (3; 1) (3; 2) (3; 3) …

… … … …

Observando-a, podemos conjecturar a seguinte enumeração dos elementos

do conjunto x

: (0; 0); (1; 0); (0; 1); (2; 0); (1; 1); (0; 2); (3; 0); (2; 1); (1; 2); (0;

3);… Ou seja, colocamos, sucessivamente, os pares (a; b) tais que a soma a + b

assuma os valores 0; 1; 2; 3; …, e dentro da cada grupamento que tenha a + b

constante (correspondente, na figura, a uma das diagonais indicadas), ordenamos

os pares pela ordem natural de sua segunda componente.

Obtém-se então a seguinte bijeção:

f : ´

(0; 0) → 0

(1; 0) → 1

(0; 1) → 2

(2; 0) → 3

(1; 1) → 4

(0; 2) → 5

………….

Observamos que f(x; y) é o lugar que ocupa (x; y) nesta enumeração (como

estamos incluindo 0 em N, é preciso começar a contar a partir do 0-ésimo lugar).

Uma questão interessante é construir uma fórmula para esta função e utilizar esta

fórmula para provar que f é realmente uma bijeção descrita em :f x ® . Para

isto, seja (x; y) ´ . Observando a figura, vê-se que se (x; y) for tal que x + y

Page 101: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

101AULA 4 TÓPICO 3

= s > 0, então o par (x; y) é precedido, pelo menos, por todos os pares (u; v) tais

que u + v = 0; 1; 2;…;s – 1.

Existe um par que tem soma 0, dois que têm soma 1, e assim por diante,

até s pares que têm soma s – 1, de modo que esses pares são em número de ( 1)

1 ...2

s ss

++ + = . Além disto, já na sua diagonal, o par (x; y) é precedido por y

pares.

Portanto, 2( )( 1) ( ) 3

( ; )2 2

x y x y x y x yf x y y

+ + + + + += + = .

Finalmente, constata-se diretamente que esta fórmula também é válida se (x;

y) = (0; 0). Podemos então afirmar que f é dada pela fórmula analítica:

:f ´ ®

2( ) 3( ; )

2

x y x yf x y

+ + +=

Eis um exemplo clássico em que nossa intuição parece contrariar o modelo

lógico a partir da constatação de que sendo a função bijetora, concluímos, por

definição, que os conjuntos x

e possuem a mesma quantidade de elementos.

Para ilustrar e relacionar com os nossos conhecimentos sobre Cálculo, plotamos

o gráfico da função :f ´ ®

e damos ênfase aos pares ordenados do plano

( , )x y Î ´ nos quais a função originariamente está definida. Para cada ponto

desta superfície associamos uma imagem pertencente ao eixo (0,0, )z Î ´ ´ .

Figura 1: Representação geométrica da função :f ´ ®

Lima (2004, p. 42) fornece um exemplo interessante quando considera a

situação em que Y é a base de um triângulo e X um segundo segmento paralelo

a Y, unindo os outros dois lados desse triângulo. Toma ainda o ponto P o vértice

oposto à base Y. Obtém-se assim uma correspondência biunívoca do tipo :f X Y®

Page 102: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

102 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

associando a cada ponto x XÎ , o ponto ( )f x onde a semirreta Px intersecta a base

Y. Veja na Figura 2, lado esquerdo.

Figura 2: Exemplos de Lima (2004) que contrariam a intuição

Na Figura 2, do lado direito, discute um exemplo no qual temos o

conjunto { }X C P= - obtido retirando da circunferência o ponto ‘P’ e Y uma

reta perpendicular ao diâmetro que passa por P. Definindo-se uma correspondência

biunívoca :f X Y® pondo, para cada x XÎ , ( ) :f x = interseção da semi-reta

Px com a reta Y (LIMA, 2004, p. 43). Neste caso estabelecemos que os conjuntos

{ }X C P= - e Y possuem o mesmo numero cardinal, ou seja, podemos definir, no

sentido de Lima (2004), uma correspondência biunívoca entre os mesmos.

Em outros exemplos curiosos fornecidos por Domingues (1991), encontramos

a função ( )1

xf x

x=

+ definida em : ] 1,1[f ® -

, tomada como bijetora. Assim,

por meio da definição anterior, os conjuntos e ] 1,1[- possuem a mesma

cardinalidade de elementos.

Figura 3: Bijeção entre a reta e um intervalo (DOMINGUES,1991, p. 247)

Por outro lado, antes de exibir tal função, Domingues discute a possibilidade

de se estabelecer uma bijeção entre os intervalos ]0,1[ e [0,1] . Neste sentido, o autor

explica que tomando 1 1

[0,1] {0,1, , ,....,...}2 3

A= È e que 1 1

]0,1[ { , ,....,...}2 3

A= È ,

Page 103: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

103AULA 4 TÓPICO 3

onde se tomou 1 1[0,1] {0,1, , ,....,...}

2 3A= - . A função desejada definida em

: [0,1] ]0,1[f ® é definida do seguinte modo:

1 1 1{0,1, , , ,....,...}

2 3 4 Identidade

1 1 1{ , , ,....,...} A

2 3 4

ß ß

È

ou de modo analítico temos:

1 se x=0

21 1

( ) se x=n+2 nx se x A

f x

ìïïïïïïïï=íïïïï Îïïïïî

Domingues (1991, p. 247) declara que tal função é injetora, assim os intervalos

]0,1[ e [0,1] possuem a mesma cardinalidade. Num modelo geométrico relacionado

ao Calculo Diferencial e Integral, o matemático Morris Klein (1908-1992) discute a

noção de reta tangente a uma curva, no contexto de construção da derivada de uma

função. Questiona a partir de um desenho (Figura 4) se podemos acreditar que a

curva e a reta candidata à tangente em um ponto possuem de fato apenas um ponto

de interseção?

Figura 4: Desenho sugerido por Klein em 1893 em relação a noção intuitiva de derivada

Outro matemático de não menor importância (cf. Figura 5) comenta as

ilusões de ótica provocadas por ilustrações e figuras. Em sua análise, a atividade

intuitiva do observador desempenha papel fundamental. Neste, como nos casos

passados, nossas faculdades intuitivas, por meio de conclusões por vezes imediatas,

tácitas, podem nos conduzir a equívocos e estimular o desenvolvimento de falsas

concepções ou raciocínios inconsistentes, do ponto de vista lógico matemático.

Page 104: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

104 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Figura 5: Gravura analisada por Klein (1985), que exemplifica a perspectiva linear

Assim como Felix Klein, Morris Kline e Henri Poincaré referenciaram os

equíivocos e contradições nos quais podemos incorrer quando apoiamos nossas

conclusões predominantemente na intuição. Não que isto caracterize um defeito

ou limitação que deve ser evitado e eliminado na atividade do matemático, ou na

atividade do professor e do aluno, entretanto é preciso atenção e vigilância no

momento em que temos de utilizá-las.

Mas aí intervém outra dificuldade, a

saber: quando de fato mobilizamos um raciocínio

intuitivo? Quando compreendemos algo, a partir

de uma relação estabelecida com um objeto

matemático, por intermédio da intuição? Quais

as características da intuição?

No ensino as respostas para estas questões

possuem caráter indispensável para quem

tenciona atuar no ensino.

Caraça (1951, p. 233) aponta problemas no uso da linguagem matemática e da

língua materna quando analisa o conceito de sequências de números reais denotadas

por { }n nx Î . Neste sentido, modernamente dizemos que uma sequência converge

quando n nLim x L®+¥ = . Caraça considera que podem ter o mesmo significado

as seguintes sentenças: (i) a sucessão enumerável { }n nx Î tem por limite L; (ii) a

at e n ç ã o !

Como já salientamos no curso de Cálculo,

grafamos o símbolo de limites com “L” maiúsculo.

Assim faziam também os matemáticos Cauchy e

M. Young.

Page 105: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

105AULA 4 TÓPICO 3

sucessão enumerável { }n nx Î tende para L; (iii) a sucessão enumerável { }n nx Î

converge para L. Note-se que a opção por uma ou por outra expressão destacada

por Caraça (1951) dependerá de uma preferência individual do solucionador de

problemas e, nesta escolha, a intuição guiará o raciocínio, até de modo às vezes

inconsciente. Na Figura 6, exibimos o comportamento de sequências numéricas

que convergem. Baseando-se apenas nas figuras, você, aluno, acredita que vale 50

0!n

nLim

n®+¥

æ ö÷ç =÷ç ÷çè ø ou que 1

1n

nLim

n®+¥

æ ö÷ç =÷ç ÷çè ø+?

Figura 6: Exemplos de sequências de números reais convergentes

Para concluir esta seção, salientamos mais uma vez a dimensão filosófica do

raciocínio intuitivo. Algumas características do raciocínio intuitivo deverão ser

caracterizadas, do ponto de vista psicológico. Nesta aula, tencionamos salientar

seus aspectos filosóficos e epistemológicos. Muitos destes aspectos não são simples

de se detectar e compreender.

Por outro lado, o que deve ficar claro para o futuro professor de Matemática é

que, se desconhecemos as características, a natureza, a função e a dimensão criativa

da intuição na atividade matemática, nunca conseguiremos promover e estimular

raciocínios desta natureza. Afinal é bem mais fácil; e digamos “concreto”, estimular

e desenvolver um ensino de Matemática baseado no pensamento algorítmico (OTTE,

1991).

A ponta do iceberg na frente pedagógica é um ensino baseado em regras e

memorização. Para os leigos, com pouca ou nenhuma formação em Matemática,

tal situação se explica dizendo: “Ah... Isto é culpa da metodologia do professor!”.

Ou dirão ainda “A matemática é a ciência dos números!”. Com maior preocupação,

escutamos alguns desavisados se pronunciarem: “Vamos estimular o lúdico para

que tudo fique mais prazeroso!”.

Page 106: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

106 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Concepções dessa natureza são recorrentes no ensino de Matemática,

principalmente no discurso de pessoas que carregam consigo o saber matemático restrito

ao escolar, entretanto uma visão e uma formação filosófica dessa ciência proporcionará um

olhar critico do professor de Matemática no sentido de questionar e evitar a evolução de

concepções retrógradas, ideias inócuas e crenças equivocadas e pouco fundamentadas.

Page 107: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

107AULA 5

AULA 5 A construção axiomática dos números naturais, inteiros e racionais

Nas aulas passadas, apresentamos e discutimos o caráter filosófico dos Axiomas

de Peano. Tal discussão torna-se essencial na medida em que tencionamos

formar a visão epistemológica do futuro professor de Matemática. Nesta aula,

retomaremos este assunto com o auxílio de argumentos axiomáticos modernos

os quais Giuseppe Peano (1858-1932) não dispôs de métodos axiomáticos

modernos para a construção e verificação das inclusões Ì Ì discutidas

no contexto escolar. Concluiremos ainda nesta aula, a partir do desenvolvimento

teórico devido a Ferreira (2010), que tanto as inclusões Ì Ì como outros

fatos matemáticos admitidos de “modo intuitivo” no contexto escolar são

completamente equivocados e formalmente incorretos.

Objetivo

• Descrever a construção axiomática dos números naturais, inteiros e racionais

Page 108: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

108 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Nas aulas passadas, tecemos algumas considerações acerca do

conjunto . Nesta aula discutiremos algumas propriedades

axiomáticas e teoremas interessantes que proporcionam

resultados inesperados quando confrontados com nossa intuição. Neste sentido,

recordamos que Ferreira (2010, p. 22) define um conjunto X infinito quando existe

uma função injetora ®:f X . Diz ainda que um conjunto é dito finito quando

não for infinito. Ou seja, um conjunto é infinito quando contiver um subconjunto

Y em bijeção com , o que também se expressa dizendo que Y é equipotente a .

Acrescenta que:

Há outras definições de conjuntos infinitos (portanto, de conjuntos finitos)

obviamente equivalentes à que demos acima. Vale a pena comentar que uma

das definições, que é devida a Cantor, porque ela rompeu com o paradigma

milenar grego de que o todo é sempre maior do que suas próprias partes. Um

conjunto diz-se infinito quando existe uma bijeção entre ele e um subconjunto

próprio dele (FERREIRA, 2010, p. 22).

Vale recordar a função definida por Peano:

(i) Axioma: Existe uma função injetiva ®: s . A imagem ( )s n de cada

número natural În chama-se o sucessor de ‘n’;

(ii) Axioma: Existe um único número natural Î1 tal que ¹1 ( )s n para

todo În ;

TÓPICO 1 Um problema antigo relacionado à equação polinomial do segundo grauObjetivO

• Apresentar situações-problema de civilizações antigas

que envolvem a equação quadrática

Page 109: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

109AULA 5 TÓPICO 1

(iii) Axioma: Se um conjunto ÌX é tal que Î1 X e Ì( )s X X , isto é, se

Î ® Î( )n X s n X , então =X .

Muitas das propriedades do conjunto dos números naturais conhecidas

de modo intuitivo podem ser verificadas de modo axiomático e deveriam ser

conhecidas pelo futuro professor. Ferreira (2010, p. 23) enuncia o teorema: Seja a

função ®: s a função sucessor, então, tem-se:

i) ¹( )s n n para todo În ;

ii) = -Im( ( )) {0}s n .

Demonstração:

Vamos admitir a função sucessor ®: s . Definimos o conjunto

= Î ¹: { tal que s(n) n}A n . Desejamos verificar que =A , ou seja, nenhum

número natural é sucessor de si mesmo. Para tanto, usaremos o axioma (iii). De

fato, notamos que = Î ¹ ¹Æ: { tal que s(n) n}A n , uma vez que ¹(0) 0s , para

= Î0 n , pois Ï0 Im( ( ))s n e Î(0) Im( ( ))s s n .

Verificaremos agora que se Îk A , então Î( )s k A . De fato, se Îk A , pela

definição deste conjunto ¹( )s k k . Aplicando a função sucessor a ambos os membros,

segue que ¹ ® ¹ \( ) ( ( )) ( )injetora

s k k s s k s k Î( )s k A . Pelo axioma (iii), chamado de

Princípio da Indução, concluímos que =A .

Para verificar (ii) = -Im( ( )) {0}s n , usaremos o Princípio da Indução do

seguinte modo: = È Ì{0} Im( ( )) A s n . Ademais Î0 A e vimos que se Îk A ,

então Î( )s k A . Logo =A e Ï \ = -0 Im( ( )) Im( ( )) {0}s n s n .

Ferreira (2010, p. 24) denota = -* {0} e diz que todo elemento de * é

sucessor de um único número natural, que se chama seu antecessor. A partir disto,

definiremos de modo axiomático as operações de soma (+) e multiplicação (× ) de

números naturais.

Ferreira (2010, p. 24) define a adição de dois números naturais, e nm designada

por +m n e definida recursivamente do seguinte modo: ì + =ïïíï + = +ïî

( ) 0

( ) ( ) ( )

i m m

ii m s n s m n.

A definição acima nos fornece, então, a soma de um número arbitrário ‘m’ com

‘0’: + =0m m (FERREIRA, 2010, p. 25).

Ela nos dá também a soma de ‘m’ com (0)s : + = + =(0) ( 0) ( )ii i

m s s m s m (*).

Temos, ainda, usando as propriedades (i) e (ii): + = + =(*)

( (0)) ( (0)) ( ( ))ii

m s s s m s s s m

(**).

Page 110: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

110 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Temos também: + = + =(**)

( ( (0))) ( ( (0))) ( ( ( )))ii

m s s s s m s s s s s m . A formalização

deste processo se dá pelo Princípio da Indução e nos mostra que a soma +m n

está definida para todo par Î, m n . Introduziremos a familiar notação para os

números naturais que conhecemos desde nossa infância.

Note-se que, quando definimos, a soma +m n está definida para todo par

Î, m n . Até este momento não mencionamos nenhuma propriedade relacionada à

comutatividade destes objetos, ou seja, + = +m n n m . Na sequência começaremos

a caracterizar axiomaticamente esta propriedade.

Definição

Indicaremos por ‘1’ (lê-se “um”) o número natural que é sucessor de 0, ou

seja, =1 (0)s . Notamos assim que = \ + = + =1 (0) 1 0 (0) 0 (0)i

s s s . Em seguida,

Ferreira (2010, p. 25) enuncia a proposição

ProPosição:

Para todo número natural m, tem-se = +( ) 1s m m e = +( ) 1s m m . Portanto

+ = +1 1m m .

Demonstração:

Como resultado desta proposição verificaremos a comutatividade da

expressão + = +1 1m m para este caso particular. De fato, a partir de (ii)

escrevemos + = + = + = \ + =1 (0) ( 0) ( ) 1 ( )definição ii i

m m s s m s m m s m . Falta verificar

que = +( ) 1s m m .

Para tanto, Ferreira (2010, p. 26) emprega a seguinte estratégia: consideremos

o conjunto = Î: { ; s(m)=1+m}A m . Claramente ¹ÆA , pois =(0) 1definição

s . Mas

vimos que = \ = +1 (0) (0) 1 0s s , segue que Î ¹Æ0 A . Seja então Îm A , assim

escrevemos (Hipótese de Indução - HP) s(m)=1+m . Vamos mostrar que Î( )s m A .

De fato, notamos que = + = +( ( )) (1 ) 1 ( )HI ii

s s m s m s m . Isto é, Î( )s m A . Pelo

axioma 3 de Peano, teremos = Î: { ; s(m)=1+m}= A m . Ferreira (2010, p. 26)

prossegue explicando que como era de se esperar, passaremos a adotar a notação

indo-arábica (de base dez) para os elementos de ; já temos os símbolos ‘0’ e ‘

=1 (0)s ’. Definiremos: = + =(1) 1 1 2proposição

s ; = +(2) 2 1s , = +(3) 3 1s e assim por

diante. Reparamos as dificuldades para verificar uma propriedade simples como

= + = +( ) 1 1s m m m . Daqui em diante, a partir dessas considerações axiomáticas,

escrevemos: ={0, (0), ( (0)), ( ( (0))),.....} {0,1,2,....}s s s s s s .

Page 111: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

111AULA 5 TÓPICO 1

A questão que se coloca agora é: contém outros elementos além destes?

Se a resposta for negativa, teremos concluído que os axiomas de Peano realmente

formalizam a nossa ideia intuitiva de conjunto de números naturais? (FERREIRA,

2010, p. 26). Assim, poderemos enunciar o seguinte teorema.

1 :Teorema ={0,1,2,3,....}

.

Demonstração:

Seja S o conjunto =: {0,1,2,3,....}S , desejamos estabelecer a igualdade acima.

Ferreira (2010, p. 26) esclarece que S foi construído como um subconjunto de

que contém o ‘0’, ou seja, Î0 S e também o sucessor de qualquer elemento nele

contido. Pelo principio da Indução, concluímos que =S .

Ferreira (2010, p. 27) comenta ainda que ¹0 1 , mas não sabemos ainda

comparar ‘0’ com ‘1’, isto é, não formalizamos ainda a ideia intuitiva de que ‘1’

é maior do ‘0’. Isso decorrerá a partir da definição de uma relação de ordem em

, que estabeleceremos posteriormente. Para ilustrar, Ferreira (2010, p. 27):

+ = =1 1 (1) 2proposição

s , + = =2 1 (2) 3s , e ainda temos:

+ = + = + = + = + = = =2 2 2 (1) (2 1) (2 (0)) ( (2 0)) ( (2)) (3) 4ii ii

s s s s s s s s s .

Por fim temos + = + = + = =0 2 0 (1) (0 1) (1) 2ii

s s s . Ferreira (2010, p. 27)

destaca que algumas propriedades da adição, que admitíamos como intuitivamente

óbvias, são demonstradas no teorema seguinte com base nos axiomas de Peano e nas

definições precedentes.

2 :Teorema Sejam m, n e p números naturais arbitrários. São verdadeiras as

afirmações:

i) Propriedade associativa da adição: + + = + +( ) ( )m n p m n p ;

ii) Propriedade comutativa da adição: + = +n m m n ;

iii) Lei do cancelamento da adição + = + Þ =m p n p m n .

Demonstração:

Mostraremos inicialmente (i). Para tanto, fixando os naturais

Î, m n quaisquer, aplicaremos indução sobre ‘p’. Seja agora o conjunto

= Î Ì( , ) : { tal que m+(n+p)=(m+n)+p} m nA p . De imediato, inferimos

que ¹Æ( , )m nA , visto que Î ( , )0 m nA . Com efeito, basta notar que

Page 112: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

112 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

i i

m+(n+0)=m+n=(m+n)=(m+n)+0 . Mostraremos que se Î ® Î( , ) ( , )( )m n m nk A s k A .

De fato, notamos que, admitindo a hipótese indutiva Î ( , )m nk A , escrevemos:

+ + = + + = + + = + +

m+(n+s(k))= ( ) ( ( )) (( ) ) ( ) ( )Hipótese de induçãoii ii ii

m s n k s m n k s m n k m n s k

Segue que = Î( , ) : { tal que m+(n+p)=(m+n)+p}= m nA p . Para verificar

o item (ii), inicialmente necessitamos verificar que + = +0 0m m , " Îm . Em

seguida, fixando Îm , define-se o conjunto = Î: { tal que n+m=m+n}mC n .

E por indução deve-se concluir que = Î: { tal que n+m=m+n}= mC n . A Lei

do cancelamento fica como exercício para você, leitor. Definiremos em seguida

propriedades relacionadas à multiplicação de números naturais.

Definição

A multiplicação de dois números naturais, m e n, é designada por ×m n e

definida recursivamente do seguinte modo: ì × =ïïíï × + = × +ïî

0 0

( 1)

m

m n m n m.

TEOREMA

Para m, n e p naturais arbitrários, valem as proposições abaixo:

i) × Îm n , isto é, a multiplicação de fato é uma operação em ;

ii) existência do elemento neutro multiplicativo × = × =1 1n n n ;

iii) distributividade × + = × + ×( )m n p m n m p e + × = × + ×( )m n p m p n p ;

iv) associatividade × × = × ×( ) ( )m n p m n p ;

v) × = Þ =0 0 ou n=0m n m ;

vi) comutatividade × = ×m n n m .

Demonstração:

Ferreira (2010, p. 30) destaca que novamente usa-se o Princípio da Indução

para demonstrar todos os seis itens. Note-se que a importância do item (i) é que

definimos uma ‘nova’ operação com dois números naturais Î e m n , denotada

por ×m n e precisamos garantir que, quando aplicada tal ‘operação’, continuamos

ainda com um número natural. É o que quer dizer a implicação × Îm n .

Faremos agora o item (ii), notando inicialmente que × =1n n . De fato, temos

× = × + = × + = + =1 (0 1) 0 0ii i

n n n n n n , usando a definição de multiplicação. Agora,

por indução, veremos que × =1 n n . De fato, já temos, por definição, × =1 0 0

e, pela hipótese indutiva, escrevemos × =1 n n . Na sequência investigamos a

Page 113: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

113AULA 5 TÓPICO 1

expressão × + = × + = +1 ( 1) 1 1 1Hipótese

n n n . Segue o resultado. Para verificar (iii),

Ferreira (2010, p. 30) considera Î. m n arbitrários e, em seguida, usa indução

sobre ‘p’. Seja então , ( )m nP p a afirmação caracterizada pela propriedade que

tencionamos verificar, ou seja, × + = × + ×( )m n p m n m p . Observamos que , (0)m nP

é verdade, pois × + = ×( 0)m n m n e × + × = × + = ×0 0definição

m n m m n m n . Logo,

× + = × + ×( 0) 0m n m n m . Verificaremos por indução que, se , ( )m nP p é verdade,

então vale +, ( 1)m nP p . Com efeito, observamos que

m n p m n p m n p m m n m pdefini o hipotese

⋅ + + = ⋅ + + = ⋅ + + = ⋅ + ⋅( [ ]) (( ) ) ( )1 1çã

++ ⋅ == ⋅ + ⋅ + ⋅ == ⋅ + ⋅ + = ⋅ + ⋅ +

m

m n m p m

m n m p m m n m p

1

1

1

( )

( ) ( ).

Após desenvolver todas estas essas propriedades do ponto de vista axiomático,

Ferreira (2010, p. 31) destaca que a relação de ordem em nos permitirá comparar

os números naturais, formalizando a ideia intuitiva de que ‘0’ é menor do que ‘1’, que

é menor do que ‘2’, e assim por diante.

Definição

Uma relação binária R em um conjunto não vazio A diz-se uma relação de

ordem em A quando satisfizer as condições, para quaisquer Î, ,x y z A ,

Re1: reflexividade xRx ;

Re2: antissimetria se xRy e yRx , então =x y ;

Re3: transitividade se xRy e yRz , então xRz .

Um conjunto não vazio A, munido desta relação de ordem, diz-se um

conjunto ordenado. Na sequência, definiremos uma relação de ordem em através

da operação da adição, tornando-o, portanto, um conjunto ordenado.

Definição

Dados Î, m n , dizemos que mRn se existir Îp tal que = +n m p .

exercício:

Mostre que é uma relação de ordem em .

Definição

Para Î, m n , se mRn , onde R é a relação da definição anterior, dizemos

que m é menor do que ou igual a n e passaremos a escrever o símbolo £ no lugar

de R; assim, £m n significará mRn .

Page 114: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

114 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Ferreira (2010, p. 32) destaca que a expressão “m é menor ou igual a n”,

embora gramaticalmente incorreta, é de uso corrente desde o Ensino Fundamental.

Mais adiante, Ferreira (2010) estabelece as notações:

1) Se £m n , mas ¹m n , escrevemos <m n e dizemos que m é menor do

que n;

2) Escrevemos ³n m como alternativa a £m n . Leremos n é maior do que

ou igual a n;

3) Escrevemos >n m como alternativa a <m n . Leremos n é maior do que

m.

TEOREMA (LEI DA TRICOTOMIA)

Para quaisquer Î, m n , temos uma e apenas uma das seguintes relações:

a) <m n b) =m n c) >m n

Demonstração:

Deixamos para você, aluno, fazer...

Ferreira (2010, p. 34) comenta que

a lei tricotomia equivale a dizer que, dados Î, m n , tem-se, necessariamente

que £m n ou ³m n , isto é, dois naturais quaisquer são sempre comparáveis

pela relação de ordem acima definida. Por isso, uma relação de ordem que

satisfaz à lei da tricotomia é chamada de relação de ordem total.

A partir desta relação, enunciamos os seguintes teoremas.

Demonstração:

Deixamos para você, aluno, fazer..

teorema

(Lei do cancelamento da multiplicação) Sejam Î, , a b c , com ¹ 0c , tais que

=ac bc , então =a b .

Demonstração:

Deixamos para você, aluno.

Page 115: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

115AULA 5 TÓPICO 1

TEOREMA

Sejam Î, a b . Então <a b se, e somente se, + £1a b .

Demonstração:

Deixamos para você, aluno.

Para concluir esta parte inicial relativa à importante construção axiomática

dos números naturais, apresentamos um teorema que reflete um fato intuitivo claro

desde o Ensino Fundamental: o de que todo subconjunto não vazio de números naturais

possui um menor elemento (FERREIRA, 2010, p. 36).

Observamos que tal propriedade não é verificada no conjunto dos números

racionais. Por exemplo, se consideramos o subconjunto dos números racionais

positivos, ele possui um menor elemento (Por quê?) (FERREIRA, 2010, p. 36). Já no

conjunto dos números inteiros, só possuem elemento mínimo os subconjuntos que

são limitados inferiormente.

Formalmente, dizemos que um elemento a de um conjunto ordenado A é

um menor elemento de A, se £a x , para todo Îx A . Se a relação de ordem é total

em A, tem-se um menor elemento, quando existe, é único, também chamado de

elemento mínimo de A. Ele se denota por min( )A . De modo similar, define-se maior

elemento ou elemento máximo de um conjunto A, denotado por max( )A .

TEOREMA (PRINCÍPIO DA BOA ORDENAÇÃO – PBO)

Todo subconjunto não vazio de números naturais possui um menor elemento.

Demonstração:

Deixamos para você, aluno.

Concluímos este tópico destacando a importância, para o professor de

Matemática, de compreender e dominar a axiomática formal subjacente à construção

dos números naturais e, principalmente, de saber responder o questionamento

referente ao que é um número natural. Prosseguimos com a construção dos números

inteiros.

Page 116: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

116 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

No tópico anterior, falamos dos números naturais. Neste

tópico prosseguimos a construção Ì . Sabemos que os

números inteiros necessitaram de um tempo maior para serem

completamente compreendidos, principalmente pelo fato de determinadas

intuições equivocadas, construídas em anos iniciais da formação escolar, precisarem

ser esclarecidas. Nesse sentido, destacamos que, no inicio do capítulo referente à

construção axiomática dos números inteiros, Ferreira (2010, p. 41) explica que:

Em estão definidas duas operações que denominamos de adição e

multiplicação. No Ensino Fundamental, os números inteiros negativos e suas

propriedades são introduzidos para dar significado a certas subtrações, do

tipo: 3 5 8 13- -, , etc . Uma vez introduzidos tais números, são “definidas”

as demais operações com eles, como: - - - × - ¸ - - 23 ( 5),( 8) ( 3),8 ( 4),( 3) ,

etc. As aspas devem-se ao fato de que tais “definições” são dadas de modo

ingênuo, não rigoroso, numa tentativa de estender as operações aritméticas e

suas propriedades no conjunto para o conjunto . E é isso mesmo o que

está acessível ao estudante do Ensino Fundamental (embora mais se espere de

seu professor de matemática, para quem este livro foi escrito).

Ferreira (2010, p. 41) discute ainda que foi dessa forma empírica que os

números inteiros negativos foram descobertos e aplicados na expressão matemática

de certas situações e na resolução de problemas. Todavia, do ponto de vista do rigor

matemático, apenas admitir a existência de números inteiros negativos e incorporá-

los ao conjunto não é adequado. Além disso, temos em as operações de adição

TÓPICO 2 As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática IIObjetivO

• Descrever a construção axiomática dos números inteiros

Page 117: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

117AULA 5 TÓPICO 2

e multiplicação. A subtração, como entendemos na matemática elementar, não é, a

rigor, uma operação em , conforme discutiremos mais adiante, em um exercício.

Por essas razões, não seguiremos a linha adotada no Ensino Fundamental. O que

faremos é construir esses números negativos a partir da estrutura aritmética que

temos em , através das noções básicas de Teoria dos Conjuntos e de relações de

equivalência (FERREIRA, 2010, p. 42).

A estratégia de Ferreira (2010) constitui-se em definir uma relação de

equivalência no conjunto x . Assim, o autor concluirá que um número inteiro

será então definido como uma classe de equivalência dada por essa relação. O conjunto

dos números inteiros será, portanto, o conjunto dessas classes de equivalência (p.

42).

Lembramos que uma relação de equivalência sobre um conjunto não vazio X,

segundo Aragona (2010, p. 9), é uma relação (binária) entre os elementos de X, que

podemos indicar, por exemplo, por ‘~ ’, que tem as três propriedades seguintes:

Re1) ~x x , " Îx X (reflexiva);

Re2) Se Îx X , Îy X e ~x y então ~y x (simétrica).

Re3) Se Îx X , Îy X , Îz X e ~x y , ~y z então ~x z (transitiva).

Mais adiante, Ferreira (2010) explica que sua estratégia será definir duas

operações aritméticas em e mostrar que contém uma cópia algébrica do

conjunto , num sentido que precisaremos na sequência. Por fim, o autor declara

que a operação de subtração em que, restrita a elementos da cópia de em ,

trará significado às operações do tipo -3 5 e às demais operações.

TEOREMA

A relação ‘~ ’ em x definida por ( ) ( ), ~ ,a b c d quando + = +a d b c é

de equivalência.

Demonstração:

Vejamos cada um dos itens que exigem verificar para que de fato tenhamos

uma relação de equivalência, entretanto, antes de desenvolvermos a demonstração

formal, vale destacar o comentário de Ferreira (2010, p. 43):

[...] se admitirmos por um momento a nossa noção intuitiva de números

inteiros e de subtração, notamos que + = + Û - = -a d b c a b c d ,

isto é, dois pares ordenados são equivalentes segundo a definição acima,

quando a diferença entre suas coordenadas, na mesma ordem, coincidem. [...]

Page 118: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

118 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

É esta a forma que os matemáticos do final do século XIX encontraram para

iniciar a construção do conjunto sem mencionar subtração, mas trazendo

na sua essência o germe dessa operação, tendo como ponto de partida o

conjunto e suas operações, as noções de produto cartesiano e de relação de

equivalência [...].

Após estas explicações filosóficas, para verificar a reflexividade,

observamos que ( ) ( ), ~ ,a b a b , pois temos sempre + = +a b b a , como

propriedade herdada desde o conjunto

. Para verificar a simetria descrita

por ( ) ( ), ~ ,a b c d , basta recorrer mais uma vez à comutatividade em , isto é,

( ) ( ) ( ) ( )Û + = + Û + = + Û

, ~ , , ~ ,Em

a b c d a d b c c b d a c d a b . Para verificar

a transitividade, podemos inferir que, se ( ) ( ), ~ ,a b c d e ( ) ( ), ~ ,c d e f , então

( ) ( ), ~ ,a b e f . Mas esta demonstração deixamos como tarefa para você, aluno.

Denotaremos por ( ),a b a classe de equivalência do par ordenado ( ),a b pela

relação ‘~ ’, isto é, ( ) ( ) ( )= Î, : {( , ) tal que x,y ~ , } a b x y x a b . Por exemplo,

podemos observar os elementos pertencentes às seguintes classes:

i) ( ) ( ) ( ) ( ) ( )=3,0 { 3,0 , 4,1 , 5,2 , 6,3 ,.......,....} ;

ii) ( ) ( ) ( ) ( ) ( )=0,3 { 0,3 , 1,4 , 2,5 , 3,6 ,.......,....} ;

iii) ( ) ( ) ( ) ( ) ( )=5,2 { 3,0 , 4,1 , 5,2 , 6,3 ,.......,....} .

Notamos que ( ) ( )=3,0 5,2 que é consequência de um teorema que pode ser

facilmente demonstrado (ver exercícios no final desta aula). A próxima definição é

crucial para nossa construção.

Definição

O conjunto quociente ~ x ou ~

x é constituído pelas classes de

equivalências ( ),a b , se denota por , e será chamado de conjunto dos números

inteiros. Assim, estabelecemos ( ) ( )æ ö÷ç= = Î÷ç ÷çè ø

{ , tal que a,b }~

xa b x .

A partir desta definição, descreveremos o modo de operar os elementos

deste novo conjunto. Assim, poderemos falar da noção de adição e subtração em

. Temos agora ( ) ( ), ~ ,a b x y que equivale a ( ) ( )=, ,a b x y , expressa pelo fato de

que + = + « - = -( )a y b x a b x y . Vamos utilizar esta observação como ponto de

partida para buscar uma definição rigorosa de adição de inteiros (FERREIRA, 2010,

p. 44).

Veremos então o que deveria ser ( ) ( )+, ,a b c d . Neste sentido,

Ferreira (2010, p.44) argumenta que se ( ),a b expressa, em essência, a

“diferença” -( )a b , e ( ),c d expressa -( )c d , a matemática elementar nos dá

Page 119: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

119AULA 5 TÓPICO 2

- + - = - + - = + - - = + - +( ) ( ) ( ) ( )associatividade

a b c d a b c d a c b d a c b d . E esta

última expressão se traduz, no nosso contexto, como a classe ( )+ +,a c b d .

Passando a limpo, obtemos a definição formal de adição de inteiros, sem mencionar

subtrações de naturais nem elementos da matemática elementar (FERREIRA, 2010,

p. 45).

Definição

Dados ( ) ( ), e ,a b c d em æ ö÷ç= ÷ç ÷çè ø~

x , definiremos a soma de dois elementos

( ) ( ) ( )= + +, + , : ,

a b c d a c b d .

Ao definirmos objetos que envolvem classes de equivalências, é necessário

verificarmos que tais definições não dependem de como os representamos em

classes (FERREIRA, 2010, p. 45). Nesse sentido, Ferreira (2010, p. 45) observa

que, pela definição, teríamos ( ) ( ) ( )=3,5 + 4,1 7,6 . No entanto, temos também

( ) ( ) ( ) ( )= =2,4 3,5 e 3,0 4,1 , logo deveríamos ter ( ) ( )+2,4 3,0 também igual

a ( )7,6 . E pela definição dada, ( ) ( ) ( )+ =2,4 3,0 5,4 , felizmente, é igual a ( )7,6 .

Mostraremos agora que isso vale, em geral, isto é, a definição dada não depende dos

representantes das classes de equivalências envolvidas. Neste caso, dizemos que a

adição de números inteiros está bem definida.

TEOREMA

Se ( ) ( )=, ', 'a b a b e ( ) ( )=, ', 'c d c d , então ( ) ( ) ( ) ( )+ = +, , ', ' ', 'a b c d a b c d ,

isto é, a adição de números inteiros +

está bem definida.

Demonstração:

Sabemos pelo teorema anterior que, se ( ) ( )=, ', 'a b a b , então

( ) ( )Û + = +, ~ ', ' ' 'a b a b a b b a . Por outro lado, temos ( ) ( )=, ', 'c d c d , então,

( ) ( )Û + = +, ~ ', ' ' 'c d c d c d d c . Logo, temos: ( ) ( ) ( )= + +, + , : ,

a b c d a c b d

e ( ) ( ) ( )= + +', ' + ', ' : ' ', ' '

a b c d a c b d . Ferreira (2010, p. 46) verifica que

os dois segundos membros coincidem. Mas isto equivale a verificar que

( ) ( ) ( ) ( )+ + + = + + +' ' ' 'a c b d b d a c . O resto deixaremos a seu cargo, aluno.

TEOREMA

A operação de adição em é associativa, comutativa, tem ( )0,0 como

elemento neutro e vale a lei do cancelamento, como em . Além disso, vale a

Page 120: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

120 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

propriedade do elemento oposto (ou simétrico, ou inverso aditivo): dado ( )Î, a b ,

existe um único ( )Î, c d tal que ( ) ( ) ( )+ = Î, , 0,0 a b c d . Este ( )Î, c d é o

elemento ( )Î, b a .

Demonstração:

Deixamos a seu cargo, aluno.

Definição

Dados ( )Î, a b e ( )Î, c d , definimos o produto ( ) ( )×, ,

a b c d como sendo

o inteiro ( )+ +,ac db ad bc .

TEOREMA

A multiplicação em está bem definida, isto é, se ( ) ( )=, ', 'a b a b e

( ) ( )=, ', 'c d c d , então ( ) ( ) ( ) ( )× = ×, , ', ' ', '

a b c d a b c d .

TEOREMA

A multiplicação em é comutativa, associativa, tem ( )1,0 como elemento

neutro da multiplicação e é distributiva em relação à adição. Além disso, vale a

propriedade do cancelamento multiplicativo, isto é, se Î, , a b g , com ( )¹ 0,0g ,

então se = ® =ag bg a b .

Demonstração:

Deixamos para você, leitor.

Ferreira (2010, p. 50) explica que como em , vamos comparar os elementos

de através de uma relação de ordem. Com motivações análogas àquelas que

precederam as definições de adição e de multiplicação, temos a seguinte definição:

Definição

Dados os inteiros ( )Î, a b e ( )Î, c d , escrevemos ( ) ( )£, ,a b c d , quando

+ £ +a d b c . Os símbolos ³ <, e < definem-se de forma análoga à que fizemos

para a relação de ordem em (FERREIRA, 2010, p. 50).

Como nos casos da adição e multiplicação, verifica-se que a relação de ordem

definida por Ferreira (2010) está bem definida. Os símbolos de desigualdade utilizados

para a relação de ordem em

são os mesmos que utilizamos para a relação de ordem

Page 121: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

121AULA 5 TÓPICO 2

em

, mas o contexto deixará claro que ordem está sendo considerada (FERREIRA,

2010, p. 50).

TEOREMA

A relação £ definida acima é uma relação de ordem em

, ou seja, é

reflexiva, antissimétrica e transitiva. Além disso, essa relação é compatível com as

operações em , isto é, para quaisquer Î, , a b g ,vale:

a) £ Þ + £ +a b a g b g ;

b) se ( )£ ¹ Þ £ e 0,0a b g ag bg ;

c) (Lei da tricotomia): apenas uma das situações seguintes ocorre:

( ) ( ) ( )= > <0,0 ou 0,0 ou 0,0a a a .

Demonstração:

Deixamos a seu cargo, leitor.

Definição

Dado ( )Î, a b , dizemos que:

i) ( ),a b é positivo quando ( ) ( )>, 0,0a b ; ii) ( ),a b é não negativo quando

( ) ( )³, 0,0a b ; iii) ( ),a b é negativo quando ( ) ( )<, 0,0a b ; iv) ( ),a b é não positivo

quando ( ) ( )£, 0,0a b .

Ferreira (2010, p. 52) observa que ( ) ( )³ Û + ³ + \ ³, 0,0 0 0a b a b a b .

Analogamente, se ( ) ( )> Û + > + \ >, 0,0 0 0a b a b a b . Ademais, se

( ) ( )£ Û £, 0,0a b a b . Essa observação está de acordo com a ideia de que a classe

de equivalência ( )Î, a b representa a “diferença -a b ”. Tornaremos essa ideia

precisa mais adiante, ao final das observações após o próximo teorema.

Observamos ainda que se ( )Î, a b é positivo, como vimos que >a b ,

então existe Î *m tal que = +a b m . Esta igualdade equivale a ( ) ( )=, ,0a b m .

Analogamente, se ( )Î, a b é negativo, então existe Î *m tal que ( ) ( )=, 0,a b m .

Essas observações levantadas por Ferreira (2010, p. 52) e o princípio da Tricotomia

nos dizem que: ( ) ( ) ( )= Î È È Î* *{ 0, tal que m } { 0,0 } { ,0 tal que m } m m sendo

uma união disjunta. A partir desta constatação, utilizaremos as seguintes notações:

( )- = Î* *: { 0, tal que m } m , ( )+ = Î* *{ ,0 tal que m } m , ( )+ += È* { 0,0 }

,

( )- -= È* { 0,0 }

. Note-se ainda que o conjunto dos números inteiros não negativos,

+ , está em bijeção com . Esta bijeção é bastante especial porque mostra que +

é uma “cópia algébrica” de , no sentido dado pelo teorema seguinte (FERREIRA,

2010, 51).

Page 122: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

122 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

TEOREMA

Seja ®: f dada por =( ) ( ,0)f m m . Então, f é injetora e valem as

propriedades:

i) + = +( ) ( ) ( )f m n f m f n ;

ii) =( ) ( ) ( )f mn f m f n ;

iii) Se £m n então £( ) ( )f m f n .

Demonstração:

Deixamos a seu cargo, aluno.

Ferreira (2010, p. 53) comenta ainda que o conjunto +=( ) f tem, pelo

teorema acima, a mesma estrutura algébrica que . Por exemplo, + =3 5 8 em ,

corresponde, via f , a ( ) ( ) ( )+ =3,0 5,0 8,0

. Do mesmo modo, × =3 5 15 se preserva,

via f , como ( ) ( ) ( )× =3,0 5,0 15,0

. Finalmente, a relação £3 5 se preserva, via f ,

como ( ) ( )£3,0 5,0

, o que confirma nosso comentário do início desta seção de que a

ordem em é uma extensão da ordem de (FERREIRA, 2010, p. 53).

Assim, do ponto de vista das operações aritméticas e da ordenação, + é

indistinguível de . Embora, no nosso contexto, não seja um subconjunto de ,

sua cópia algébrica + o é (FERREIRA, 2010, p. 53). Na sequencia, notamos que

®: f acima chama-se uma imersão de em . Esta imersão mostra que

é infinito. Obtemos, então, sob a identificação de com + , via f , que:

= - Î È È = - - -* *{ tal que m } {0} {...,..., ,.... 2, 1,0,1,2,...., ,....} m m m como

no Ensino Fundamental.

Em seguida, Ferreira (2010. p. 54) mostra que, à semelhança de , o

conjunto é bem ordenado.

Definição

Seja X um subconjunto não vazio de

. Dizemos que X é limitado

inferiormente se existe Îa , tal que £ xa , para todo Îx X . Um tal a se

chama cota inferior de X. Analogamente, definimos subconjunto de limitado

superiormente e cota superior dele.

TEOREMA (PRINCÍPIO DA BOA ORDENAÇÃO PARA )

Seja ÌX não vazio e limitado inferiormente. Então X possui elemento

mínimo.

Page 123: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

123AULA 5 TÓPICO 2

Demonstração:

Seja a uma cota inferior de X , isto é, £ Û - ³ 0x xa a , " Îx X .

Consideremos o conjunto = - Î' { | x X}X x a . Claramente, vemos que

= - Î Ì' { | x X} X x a (identificado com + ) e, pelo Princípio da Boa Ordenação

em

, o conjunto 'X possui elemento mínimo, digamos 'm . Assim, Î' 'm X e

£'m y , para todo Î 'y X . Afirmamos que = +'m m a é um elemento mínimo do

conjunto X .

Primeiramente, Ferreira (2010, p. 55) explica que Îm X , pois = - Î' 'm m Xa .

Em segundo lugar, £m x , " Îx X , uma vez que isso equivale a - £ -m xa a ,

para todo Îx X , ou seja, £'m y , " Î 'y X , que é verdade pela definição de 'm .

Logo, m é o elemento mínimo de X.

Em seguida, Ferreira (2010, p. 55) enuncia o seguinte corolário.

corolário

Seja Îx tal que < £0 1x , então =1x .

Demonstração:

Use como sugestão o conjunto = Î £{ | 0<y 1}A y . Use o PBO para mostrar

que este conjunto possui elemento mínimo. Conclua que = Î £{ | 0<y 1}={1}A y .

corolário

Sejam Î, n x , tais que < £ +1n x n , então = +1x n .

Demonstração:

Deixaremos para você, aluno.

Definição

Seja Îx , definimos o valor absoluto de s, denotando por ì ³ïï=íï-ïî

se x 0

x se x<0

xx .

Definição

Um elemento Îx diz-se inversível se existe Îy tal que =1xy .

ProPosição:

Os únicos elementos inversíveis em são 1 e -1 .

Page 124: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

124 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Demonstração:

Seja então Î *x um elemento inversível, tal que =1xy . Segue que,

a partir da propriedade de módulo = =1 1 xy , e como ³ 0x , ³ 0y ,

temos = = \ > >1 0 e y 0xy x y x . Assim, podemos concluir que

³ ³1 e y 1x , multiplicando a última desigualdade por x . Segue que

³ Þ = × ³ × ³ × = \ ³ ³ Û = -y 1 1 y 1 1 1 1 1 1 1 ou x= 1x x x x .

exercício:

Mostre que ì -ïï=íï- £ïî

2 1 se n>0( )

2 se n 0

nf n

n é uma bijeção de ®: f .

Para concluir esta seção, vale destacar as considerações de Ferreira (2010, p.

57) ao mencionar que Cantor rompeu o paradigma grego de que “o todo é sempre

maior do que suas partes próprias”, como vimos também na aula anterior. Cantor

caracterizou conjuntos infinitos que podem ser colocados em bijeção com uma parte

própria sua (FERREIRA, 2010, p. 58).

Nesta aula procedemos com a construção axiomática dos números inteiros.

Na aula seguinte. abordaremos a construção dos números racionais, denotados

por

, ao discutir as inclusões Ì Ì . Os números que, no senso comum,

são interpretados como “pedaços de pizza” ou “partes de um bolo” no contexto

escolar, evidenciam uma acepção superficial que não pode ser suficiente para um

futuro professor de Matemática.

Page 125: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

125AULA 5 TÓPICO 3

TÓPICO 3 As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática IIIObjetivO

• Descrever a construção axiomática dos números

racionais

Parece-nos temerário para o futuro professor de Matemática saber

exemplificar os números racionais somente por meio de exemplos

concretos como “pedaços de pizza” ou “pedaços de bolo”.

Assumimos que o professor deve conhecer bem mais do que o estudante e ter

condições de interpretar a teoria formal subjacente a cada situação de ensino. Com

relação a um fato semelhante, destacamos que, no início da construção do conjunto

dos números racionais, Ferreira (2010, p. 61) comenta que:

No Ensino Fundamental, aprendemos que um número racional é a “razão”

ente dois números inteiros. Assim, por exemplo, o número 35

é a “razão” entre

3 e 5. O termo “razão” naquele contexto significa “divisão”. Dessa forma, 35

é o mesmo que 3 : 5 , que tem o mesmo resultado da divisão 6 :10 , o qual se

escreve como 0,6 . No nosso contexto, os termos “razão”, “divisão” e mesmo

“fração” devem ser definidos com base no que já temos, isto é, o conjunto dos

números inteiros e suas propriedades algébricas.

Ferreira (2010, p. 61) observa ainda que em estão definidas apenas as

operações de adição, de multiplicação e a subtração, que é um caso particular da

adição: -a b , que é por definição + -( )a b , onde -b é o simétrico de b. Ferreira

(2010, p. 61) explica ainda que:

Page 126: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

126 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Poderíamos tentar definir a divisão de modo análogo à definição de subtração,

ou seja, -= × 1:a b a b , onde -1b é o inverso multiplicativo de b, isto é, o

número que multiplicado por b resulta no neutro multiplicativo 1 (do mesmo

que o simétrico de b é o número -b , que somando a b resulta o neutro aditivo

0). O problema é que os únicos elementos inversíveis de são o 1 e o -1 [...]

logo não faz sentido a definição de divisão acima, dentro dos propósitos de

uma definição rigorosa de número racional.

Ferreira (2010, p. 62) destaca ainda que, para se chegar a uma definição

adequada, novamente trabalha-se com o conceito de relação de equivalência, do

mesmo modo que empregamos para definir um número inteiro a partir do conceito de

número natural.

Consideremos o conjunto = Î Î* *: {( , ) tal que a e b } x a b . Definimos

nele a relação ( ) ( )Û =, ~ ,a b c d ad bc . Em seguida temos o seguinte teorema.

TEOREMA

A relação ( ) ( )Û =, ~ ,a b c d ad bc é de equivalência.

Demonstração:Ferreira (2010, p. 62) diz que a prova de que ~ tem as propriedades reflexiva

e simétrica fica como exercício. Quanto à propriedade transitiva, se ( ) ( ), ~ ,a b c d

e ( ) ( ), ~ ,c d e f , então queremos mostrar que ( ) ( ), ~ ,a b e f , isto é, se =ad bc e

=cf de , então =af be . Multiplicando ambos os membros da primeira igualdade

por ‘f’ e da segunda igualdade por ‘b’, obtemos =adf bcf e =bcf bde , onde segue

que =adf bde , cancelando ¹ 0d , obtemos o que queríamos. É por causa deste

último detalhe da demonstração que partimos de * x e não de x (FERREIRA,

2010, p. 62).

Definição

Dado Î *( , ) a b x , denotamos por ab

(que se lê “a sobre b”)

a classe de equivalência do par ( , )a b pela relação ~ acima. Assim,

= Î *{( , ) se (x,y)~(a,b)}

ax y x

b.

TEOREMA (PROPRIEDADE FUNDAMENTAL DAS FRAÇÕES)

Se ( , )a b e ( , )c d são elementos de * x , então = Û =

a cad bc

b d.

Demonstração:Deixaremos a seu cargo, leitor.

Page 127: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

127AULA 5 TÓPICO 3

Temos agora um significado preciso para o símbolo de fração ab

. Trata-se de

uma classe de equivalência com respeito à relação de equivalência que acabamos de

introduzir (FERREIRA, 2010, p. 63).

Definição

Denotamos por , e denominamos conjunto dos números racionais,

o conjunto quociente de * x pela relação de equivalência ~ , isto é,

= = Î Î*

*( ) { tal que a e b }~

axb

como no Ensino Fundamental

(FERREIRA, 2010, p. 63). A partir de agora, podemos definir algumas operações

neste conjunto, dotando-o, portanto, de uma estrutura algébrica que estudaremos

posteriormente. No Ensino Fundamental, aprendemos que Ì . É claro que do

nosso ponto de vista atual isso não faz sentido, pois os elementos de são classes

de equivalência de pares inteiros, logo de natureza diferente da dos números inteiros

(FERREIRA, 2010, p. 64).

Ferreira (2010, p. 64) destaca ainda que:

No entanto, veremos que existe uma aplicação injetora de em que

“preserva” as operações aritméticas e, dessa forma, permite que a imagem de

em por essa aplicação seja uma cópia algébrica de em

. Assim, do

ponto de vista da álgebra, poderemos considerar como um subconjunto de

. Note a analogia com a imersão de em .

Definição

Sejam ab

e cd

números racionais, isto é, elementos de . Definimos as

operações chamadas de adição e de multiplicação, respectivamente, por: (*)+

+ =

a c ad bcb d bd

e (**) +=

a c ad bcb d bd

.

TEOREMA

As operações +

e ×

estão bem definidas.

Demonstração:Deixaremos para você, leitor.

TEOREMA

O conjunto

, munido das operações acima, tem as propriedades algébricas

de , onde o elemento neutro aditivo é 01

e o neutro multiplicativo é 11

. Além

Page 128: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

128 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

disso, dado ¹ Î01

ab

, existe Îcd

tal que =11

a cb d

, isto é, todo elemento não

nulo de tem inverso multiplicativo.

Demonstração:Deixaremos para você, leitor.

De modo semelhante ao que fez no conjunto dos números inteiros, Ferreira

(2010, p. 67) define a seguinte relação de ordem em .

Definição

Sejam ab

e cd

números racionais, com >, 0b d . Escrevemos £a cb d

, quando

£ad bc e dizemos que ab

é menor do que ou igual a cd

.

TEOREMA

A relação £ , introduzida acima, está bem definida e é uma relação de ordem

em

.

Demonstração:Deixaremos para você, aluno.

TEOREMA (LEI DA TRICOTOMIA)

Dados Î, r s , um, e apenas uma, das situações seguintes ocorre: ou =r s ,

ou <r s ou <s r .

Demonstração:Escrevendo = = Î e

a cr s

b d, com >, 0b d , vamos comparar os inteiros

ad e bc . Pela Lei da Tricotomia em , ou =ad bc , em cujo caso ocorre =r s , ou

<ad bc , em cujo caso ocorre <r s , ou >ad bc , em cujo caso ocorre <s r . Além

disso, a validade de uma das afirmações exclui a validade das outras.

Em seguida, Ferreira (2010, p. 68) define a função ®: i por =( )1n

i n ,

para todo În . Esta é a função de que falamos anteriormente, que “imerge”

em

. Assim, podemos enunciar o seguinte teorema.

Page 129: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

129AULA 5 TÓPICO 3

TEOREMA

A função ®: i , acima definida, é injetora. Além disso, ela preserva as

operações e a relação de ordem de em

no seguinte sentido:

1. + = +( ) ( ) ( )i m n i m i n

2. × = ×( ) ( ) ( )

i m n i m i n

3. se £m n , então £( ) ( )

i m i n .

Demonstração:No item (i) temos que se = Û = Û × = × Û =( ) ( ) 1 1

1 1

m ni m i n n m n m (1-

1). Mostremos que ®: i preserva a estrutura algébrica de

. Do seguinte

modo × + × ++ = + = = = +

×1 1

( ) ( ) ( )1 1 1 1 1

definição definição definiçãon m n m n mi n i m i m n . De modo

semelhante, verificamos as outras condições.

Assim, o conjunto = Î( ) { tal que n }1

ni é uma cópia algébrica de

em

, no sentido de ® Ì: ( ) i i . Essa imersão de em

também mostra que

é infinito, já que contém uma cópia de que é infinito e enumerável.

Antes de demonstramos os teoremas mais importantes que encerram esta seção,

enunciamos o lema.

exercício:Sejam X um subconjunto de um universo U e Î Ì{ }

n nA U

uma família de subconjuntos de U. Mostre que ( ) ( )Î Î=Ç\ \

n n n nX U A X A e ( ) ( )Î ÎÇ =È\ \ n n n nX A X A , lembrando

que Î = Î Î În{ tal que x A , para algum n }

n nU A x U e

ÎÇ = Î Î " În{ tal que x A , n }

n nA x U .

1 :Lema Todo subconjunto infinito de é enumerável.

Demonstração:Seja X um subconjunto infinito de e 0x seu menor elemento, que existe

devido ao Principio da Boa Ordem. Como X é infinito, o conjunto = - ¹Æ0 0{ }Y X x .

Seja agora 1x o menor elemento de 0Y . De modo indutivo, obteremos por meio deste

raciocínio os elementos 0 1 2 3, , , ,....., nx x x x x . Em seguida, obtemos o elemento +1nx

como o menor elemento de = - ¹Æ0 1 2 3{ , , , ,......, }n nY X x x x x x , para todo În .

Caso contrário, o conjunto X seria finito. Afirmamos agora que:

= Î= = È È È =È0 1 2 3 0 0 1 0 1 2{ , , , ,......, ,.....,....} { } { , } { , , } .....n n nX x x x x x x x x x x x A

onde = 0 1 2 3{ , , , ,......, }n nA x x x x x . De fato, pelo exercício anterior, podemos

escrever que ( ) ( ) ( )Î Î Î=Ç =Ç\ \ n n n n n nX U A X A Y . Assim, se existisse mais

algum ( )ÎÎ -n nx X U A , tal que ( )ÎÎ Ç[ ]

n nx Y , e como tal, deveria ser maior do

que 0x , com mesma razão, deve ser maior do que 1x , por estar em 1Y , e, assim,

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130 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

sucessivamente. Deste modo, x deveria ser maior do que nx , para todo În

. Nesse sentido, o conjunto infinito = Ì0 1 2 3{ , , , ,......, ,.....,....}n xX x x x x x I , onde

={1,2,3,......, }xI x e seria, portanto, finito, uma contradição.

No que segue, Ferreira (2010, p. 70) aplica o Teorema Fundamental da

Aritmética. Seu enunciado intuitivo, segundo Ferreira, pode ser descrito por: todo

número natural maior do que 1 pode ser expresso como produto de números primos.

Além disso, essa fatoração é única, a menor da ordem dos fatores.

2 :Lema Todo número racional positivo ab

, ( >, 0a b ), pode ser escrito, de

modo único, como uma fração irredutível, isto é, na forma mn

, onde m e n são

relativamente primos entre si, isto é, não possuem fatores primos em comum.

Demonstração:Deixaremos como tarefa para você, leitor.

ProPosição:

+*

é enumerável.

Demonstração:Consideremos os números racionais escritos na forma irredutível, dada pelo

lema anterior. Seja + ®*: f dada por æ ö÷ç = ×÷ç ÷çè ø

2 3m nmf

n. O teorema Fundamental

da Aritmética e a unicidade da representação de frações na forma irredutível, dada

pela proposição acima, mostram que f é 1-1 e tem como imagem um subconjunto

infinito de , que é, enumerável.

TEOREMA

é enumerável.

Demonstração:Basta escrever - += È È* *{0} .

Para concluir com algumas propriedades a mais do conjunto

, sublinhamos

que este conjunto está munido das duas operações, adição e multiplicação, estudadas

acima (FERREIRA, 2010, p. 72). Pode-se definir a partir destas operações, mais

duas a subtração e a divisão, simbolizadas por “-” e “¸ ”, respectivamente, da

seguinte forma: se Î, r s , define-se - = + -( )r s r s como em

e, se ¹ 0s , -¸ = × 1r s r s . Ferreira (2010, p. 72) destaca que, estritamente falando, a divisão

não seria em

, uma vez que seu domínio não é x e sim *

x . Por fim, Ferreira

(2010, p. 73) sugere o interessante exercício.

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131AULA 5 TÓPICO 3

exercício:Mostre que

não é bem ordenado, isto é, existem em

subconjuntos não

vazios, limitados inferiormente que não possuem elemento mínimo.

Apesar de não ser bem ordenado como e

,

possui todas as

propriedades aritméticas de , além da propriedade de que todo elemento não

nulo possui inverso. Na linguagem algébrica, qualquer conjunto munido de duas

operações, + e × , com propriedades aritméticas análogas às de

chama-se de

corpo. Se, além disso, um corpo estiver munido de uma relação de ordem compatível

com suas operações aritméticas, ele é chamado de corpo ordenado. Assim, é um

exemplo de corpo ordenado (FERREIRA, 2010, p. 73).

Na próxima aula, estudaremos a construção axiomática dos números reais.

Se, até este momento, o leitor não captou a “essência” de tudo o que está sendo

estabelecido, ou melhor dizendo, não compreendeu a dimensão filosófica do

que foi discutido, aconselhamos uma releitura do todo o trecho anterior em que

descrevemos a construção dos racionais. Em termos práticos do ofício, achamos

comprometedor um egresso de um curso de graduação em Matemática desconhecer

a “natureza” e não saber dizer o que de fato é um número natural, um inteiro ou

um número racional. Nem muito menos compreender as razões de sua existência.

Retomaremos estas questões preocupantes na última aula.

E antes de concluir esta seção, cabe reforçar algumas argumentações e pontos

de vista assumidos desde o início do curso. O primeiro diz respeito à importância,

para quem tenciona ser professor de Matemática, de conhecer, compreender e

transmitir a natureza dos objetos com os quais lida. Sublinhamos bem no início

do curso a situação lastimável em que encontramos pessoas que concebem a

Matemática como a “ciências dos números”.

Parafraseando Platão, estas pessoas possuem, em nosso entendimento, um

“espírito pesado” para a Matemática, pois a Matemática é bem mais do que isso.

De fato, vimos nas aulas passadas situações em que a existência de um certo objeto

é a priori admitida e, a partir da força de uma teoria axiomática desenvolvida e um

formalismo adequado, não se chega a outra conclusão diferente da real existência

daquele objeto.

A história da Matemática é marcada por eventos dessa natureza. Situações

nas quais nem mesmo os matemáticos profissionais sabiam ao certo com que

lidavam, mas admitiam e aceitavam sua existência com a intenção de extrair alguma

propriedade logicamente aceitável. Ora, isto é Filosofia da Matemática pura!

Destacamos o excerto abaixo creditado ao grande matemático Morris Kline.

Em suas palavras, observamos alguns conselhos e cuidados no que diz respeito ao

formalismo excessivo no ambiente escolar ao declarar que:

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132 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

As origens históricas dos conceitos e processos matemáticos não têm

naturalmente necessidade de ser a abordagem pedagógica. Contudo, uma

objeção válida à criação de novos conceitos e operações através dos mais

antigos é a falta de sentido do que é apresentado. Por exemplo, para introduzir

números negativos, alguns textos modernos perguntam, “Qual o número que

somado a 2 dá 0? Eles então apresentam – 2 como o número que se requer.

Como o dizem alguns textos, 2 é o único inverso aditivo para 2. Mas esta

introdução de -2 não dá a compreensão que a declaração, “Antimatéria

é aquela substância que adicionada à matéria produz vácuo”, dá qualquer

compreensão da antimatéria. Ao criar matemática por meio das questões

matemáticas e estender a novos domínios, leis ou axiomas que prevalecem

nos estabelecidos anteriormente, a matemática isola-se de todos os outros

corpos do conhecimento. Ela existe pelo que representa e é presumivelmente

auto-suficiente. Parece então que, por acaso, as estruturas dedutivas assim

construídas se ajustam [...] (KLINE, 1976, p. 99).

Note-se, porém, que este formalismo e artificialismo, condenado por Kline,

não pode ser de completo desconhecimento do professor, afinal, é impossível

conceber uma abordagem intuitiva para um conceito matemático se desconhecemos

de modo consistente seu comportamento e natureza dentro da teoria formal a qual

pertence.

Espera-se, assim, do professor de Matemática, encerradas estas aulas, saber

declarar, de fato, do que se trata e qual a natureza de um número natural, inteiro

ou racional. Compreender que as inclusões Ì Ì tratam-se de “criações

pedagógicas” que podem tornar menos tortuosos o entendimento dos pequenos,

todavia, formalmente falando, o professor sabe que isto está equivocado, como

explica Ferreira (2010).

Para finalizar, antecipando um pouco de nosso próximo assunto, que

proporcionará escrever Ì Ì Ì , destacamos que existem várias formas

de construir os números reais. Um dos métodos possíveis é caracterizado por

sequências de Cauchy de números racionais (o completamento de

), descrito por

Aragona (2010). A vantagem deste método, segundo o autor, é que ele nos leva de

forma rápida e natural à representação decimal dos números reais que foi a forma

em que estes números foram conhecidos durante muito tempo antes de ter sua teoria

devidamente estruturada (ARAGONA, 2010, p. 39).

Por outro lado, em termos de economia, optamos pela construção do campo

do reais desenvolvida por Ferreira (2010). O autor emprega a noção de cortes de

Dedekind. Com respeito ao contexto escolar de introdução do conjunto dos reais

, Ferreira (2010, p. 78) comenta em tom de crítica:

Page 133: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

133AULA 5 TÓPICO 3

No Ensino Fundamental, os números reais são geralmente introduzidos de

uma maneira um tanto empírica e seu estudo não costuma ir além de algumas

operações algébricas elementares. Basicamente, o que diz-se nesse nível sobre

os números reais é o seguinte: admite-se que a cada ponto de uma reta está

associado um número real. Há pontos que não correspondem a números

racionais (o que é fácil verificar usando a diagonal do quadrado de lado 1). A

esses pontos sem abcissa racional correspondem os números irracionais. Outra

forma de introduzi-los é a seguinte: admite-se ou, em alguns casos, demonstra-

se que a representação decimal de números racionais é periódica. Conclui-se

por definir número irracional como sendo aqueles (cuja existência é admitida)

que possuem representação decimal não periódica. Ao conjunto constituído

pelos racionais e irracionais dá-se o nome de conjunto dos números reais. Note

que, em ambas as abordagens, somos conduzidos a admitir a existência de

números não racionais: no primeiro caso, para dotar todo ponto da reta de uma

abcissa e, no segundo caso, para conceber qualquer desenvolvimento decimal

como número (no caso, os não periódicos). Em ambos os casos, no entanto,

raramente se toca na natureza destes novos números [...].

Concluímos ressaltando que tencionamos descrever nesta aula a construção

dos conjuntos numéricos. Como comentamos no início da aula, julgamos

comprometedor um professor tentar ensinar um conceito sem mesmo compreendê-

lo, nem saber dizer do que trata a natureza desse conceito. Foi com esta intenção

que descrevemos as construções dos conjuntos anteriores. Nas aulas seguintes

iniciaremos a longa construção axiomática dos números reais e números complexos.

Page 134: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

134 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Nesta última aula, discutiremos alguns aspectos formais a respeito dos números

reais e dos números complexos. Lima (2004) critica de modo veemente a forma pela

qual são introduzidos tais conceitos no ensino escolar. Além de serem introduzidos

de forma indevida e de modo equivocado, na medida em que não se conhece sua

natureza em essência, dificilmente o professor percebe tais problemas, uma vez

que nem sempre na graduação se dá a ênfase devida a esses conceitos. Com

a reflexão que propomos nesta aula, buscamos, assim, evitar esse problema no

âmbito da formação do futuro professor.

Objetivos

• Descrever a construção axiomática dos números reais• Descrever a construção axiomática dos números complexos

AULA 6 A construção dos números reais, complexos e considerações finais

Page 135: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

135AULA 6 TÓPICO 1

TÓPICO 1 As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática IIIObjetivO

• Descrever a construção axiomática dos números

reais

Nesta aula abordaremos construção axiomática dos números reais.

Vale sempre destacar a importância de o futuro professor conhecer

e compreender, formalmente falando, a natureza de um número

real. Desse modo, sublinhamos as considerações de Ferreira (2010, p. 77):

O conceito de número real é um dos mais profundos da matemática

e, [...], remonta aos gregos da escola pitagórica, com a descoberta da

incomensurabilidade entre o lado e a diagonal de um quadrado. A construção

desse conceito passou por Eudoxo (século IV a.C.), com sua teoria das

proporções, registrada nos Elementos de Euclides, e só foi concretizada no

século XIX, [...]. Os matemáticos alemães, Cantor e Dedekind, construíram os

números reais a partir dos racionais por métodos diferentes, respectivamente

conhecidos por Classes de Equivalências de Sequências de Cauchy e por Cortes

de Dedekind. O último, [...], inspirou-se na Teoria das Proporções de Eudoxo.

Antes de apresentarmos de modo axiomático a construção dessas novas

entidades conceituais, que desde a escola chamamos de números reais e com essa

denominação nos acostumamos, sem muitos questionamentos, recordamos que se

conta que, no templo de Apolo, situado na ilha de Delos na Grécia, existia um altar

com forma geométrica de uma figura que hoje é conhecida como cubo. Havendo

uma peste em Atenas, um habitante da cidade, em busca de auxílio divino, dirigiu-

se a Delos para consultá-lo sobre o extermínio da peste. A divindade respondeu

que, se fosse construído um altar no templo de Apolo cujo volume medisse o dobro

do existente, mantendo-se a mesma forma, a peste seria eliminada.

Em termos matemáticos, isto equivale a fornecer um cubo de aresta ‘a’;

construir um cubo de aresta ‘x’, cujo volume seja o dobro do volume conhecido, que

Page 136: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

136 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

denotamos modernamente pela equação =3 32x a . De modo particular, tomamos

= \ =31 2a x . Este problema antigo não foi resolvido, uma vez que não existe em

tal solução para =3 2x , sem falar no fato de os gregos não disporem ainda de

um conjunto mais ‘completo’ do que este.

Este fato envolvendo um problema antigo explica que o corpo

foi

‘completado’ e obteve-se um conjunto maior, que modernamente chamamos de

corpo dos reais (denotado por ), no qual a equação possui solução. Esse problema

foi resolvido de modo consistente com a introdução dos números irracionais por

Richard Dedekind (1831-1916). De fato, a partir da equação obtida no mesmo

problema, apenas no plano, obtemos =2 2x e, a partir dos elementos de História

da Matemática, verifica-se que não existe Îq que satisfaz =2 2q .

Assim, uma possibilidade é o estudo das aproximações racionais para a

equação =2 2x . Introduzimos a seguinte noção: denomina-se raiz quadrada

de 2, a menos de uma unidade, por falta, o maior número inteiro În tal

que ( )< < + 22 2 1n n . Assim, diz-se que o número +1n é denominado de raiz

quadrada de ‘2’ a menos de uma unidade por excesso. No caso inicial, para =1n ,

que implica que a solução de =2 2x satisfaz < <1 2x . A seguir, realizamos as

aproximações decimais da solução desta raiz que se encontra entre 1 e 2.

Denomina-se raiz quadrada de 2 a menos de 110

por falta, ao maior

número inteiro de décimos cujo quadrado é menor do que 2. Isto equivale a

æ ö æ ö+÷ ÷ç ç< <÷ ÷ç ç÷ ÷ç çè ø è ø

2 212

10 10n n . Reparamos agora que o número +1

10n é a raiz quadrada de

2, por excesso e por menos de um décimo. Para proceder ao cálculo desta outra

aproximação, toma-se o intervalo [1,2] e divide-se em dez partes iguais por meio

dos pontos: 1; 1,1; 1,2; 1,3; 1,4; 1,5; 1,6; 1,7; 1,8; 1,9; 2. Usando a inequação

anterior, obtemos ( ) ( )< <2 21,4 2 1,5 . Deste modo, 1,4 é a solução aproximada de

=2 2x a menos de 110

por falta e 1,5 por excesso. Logo, a solução ‘x’ desta equação

se encontra no segmento [1,4;1,5] .

Para a obtenção de soluções aproximadas de =2 2x a menos de 1100

, por

falta e por excesso, divide-se este segmento em dez partes iguais descritas por:

1,4; 1,41; 1,42; 1,43; 1,44; 1,45; 1,46; 1,47; 1,48; 1,49; 1,5. De modo semelhante ao

caso anterior, podemos obter que ( ) ( )< <2 21,41 2 1,42 , que representa a solução

da equação =2 2x , a menos de 1100

por falta e 1,42 por excesso. Logo a solução

encontra-se no intervalo de extremos [1,41;1,42] . A ideia agora a repetir, por meio

do raciocínio indutivo, o processo, e as soluções serão aproximadas a menos de:

3 4 5 6

1 1 1 1 1, , , , ,....,

10 10 10 10 10n.

Page 137: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

137AULA 6 TÓPICO 1

Em seguida, construímos as classes de aproximações F, por falta, e por

excesso E das soluções de =2 2x , ao tomarmos: =: {1;1,4;1,41;1,414;1,4142;....}F

e =: {2;1,5;1,42;1,415;1,4143;....}E . Mais adiante, passamos a observar que os

quadrados dos números de F são menores do que 2 e os de E são maiores. Ademais,

percebemos que, de um modo geral, os números de F são da forma 1 2 31 .... na a a a e

os de E são da forma +1 2 31 ....( 1)..na a a a , sendo ia um algarismo de 0 a 9. Tem-se,

portanto: < < +1 2 3 1 2 31 .... 1 ....( 1)....n na a a a x a a a a .

Representaremos agora por nx os elementos de F e ny os elementos de E.Dessa

forma: - = >n

1 , y para n=1,2,3,...

10n n nny x x . De modo resumido enunciamos a

proposição.

Proposição: Não existe elemento máximo em F e não existe elemento mínimo em E.

Finalmente, por meio da construção das classes E e F, como vimos acima, e

de suas propriedades, é possível definir a solução que buscamos para a equação

=2 2x , fato que foi investigado profundamente por Dedekind. Precisamos da

seguinte definição.

Definição: Um conjunto ÌA é dito um elemento máximo Îa A (resp. mínimo),

quando ³ " Î , x Aa x

Exemplo:Observamos que o elemento mínimo do conjunto =A é o número ‘0’. Por

outro lado, o conjunto = Î{ | 0<x<1}A x não tem elemento mínimo, pelo fato

de que, para todo Îx , temos \x

0<x<1 0< <x<12

.

Definição: Dizemos que ‘a’ é uma cota superior para um conjunto A quando

³ " Î , x Aa x . Por exemplo, todo número racional Îa , tal que >1a é cota

superior para o conjunto = Î{ | 0<x<1}A x . De modo semelhante, definimos a cota

inferior para um conjunto ÌA .

A partir destas definições, dizemos que, se um conjunto não vazio ÌA de

todas as cotas superiores possui um elemento mínimo, é chamado de supremo de A

e denotamos por ( ).Sup A De modo análogo, se um conjunto não vazio ÌA de

todas as cotas inferiores possui um elemento máximo, é chamado de ínfimo de A e

denotamos por ( )Inf A .

Vejamos então uma definição importante a seguir.

Page 138: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

138 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Definição: Um conjunto a de números racionais diz-se um corte se satisfizer as

seguintes condições:

i) ƹ ¹a ;

ii) se Îr a e < Î (s )s r , então Îs a ;

iii) para cada Îa a , existe Îc a tal que <a c (em a não existe elemento máximo).

De modo equivalente, podemos definir também que:

i’) ƹ ¹a ;

ii’) se Îa a , então para todo Îb tal que ³b a , deveremos ter Îb a .

iii’) para cada Îa a racional, existe Îc a tal que <c a (não existe elemento

mínimo).

A ideia geométrica do conjunto acima que chamamos de corte de Dedekind

é a de “cortar” a reta em duas semirretas. Destacamos que “cortar” significa

decompor

em dois conjuntos e A a , tais que = È A a e = Ç =Æ A a . E

se Î Î e ar A a , então <r a .

Por exemplo, o conjunto { }= Î >2| x>0 e x 2xa . De fato, vemos que

Ï0 a e { }Î = Î > ¹Æ22 | x>0 e x 2xa , satisfazendo (i). Por outro lado, se

{ }Î = Î >2| x>0 e x 2a xa e ³ > \ > > ® >2 2 20 2 2b a b a b , ou seja,

Îb a que satisfaz (ii). Finalmente, se Îa a , com =p

aq

, então notamos que

> 0pq

e æ ö÷ç ÷ = > « - >ç ÷ç ÷çè ø

2 22 2

22 ( 2 ) 2

p pp q

q q, assim, escrevemos - = ³2 22 1p q m .

Por outro lado, notamos que ×< =

× +1

n p pa

n q q, para todo În . De

fato, basta observar que × ×< < = =

× + ×0

1

n p n p pa

n q n q q. Assim, precisamos

mostrar que não existe elemento mínimo, mas tomando = 8n q , obtemos ×

=× +

8:

8 1

q pc

q q, observando que

( )×

= >+

2 22

22

642

8 1

q pc

q. De fato, vemos que:

- > + « - > + «2 2 2 2 2 22

1 1( 2 ) 32 ( 2 ) 1 16

32 2p q q p q q

q

32 64 16 1 32 64 16 1

32

8 11

6

2 2 4 2 2 2 4 2

2 2

2 2

q p q q q p q q

q p

q

⋅ − − > ↔ ⋅ > + +

+( )> ↔

44

8 12

2 2

2 2

q p

q

+( )>

Vejamos alguns exemplos concretos.

a) O conjunto { }= Î3

| x<5

xa é um corte. De fato, notamos que tomando

Î25

e <2 35 5

, assim, vale o item (i). No caso do item (ii), considerando = Î25

r a ,

Page 139: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

139AULA 6 TÓPICO 1

notamos que, se Îs e <25

s , então, < \ Î35

s s a . Para verificar que o conjunto

{ }= Î3

| x<5

xa não admite elemento máximo.

b) O conjunto { }= Î3

| x>5

xa não é um corte. Deixamos como exercício.

c) O conjunto { }= Î ³| x 0xa não é um corte. De fato, vemos

que Î ¹Æ0 a satisfaz (i). Ademais, se { }Î = Î ³| x 0a xa , para todo

³ ³ \ ³0 0b a b , assim, Îb a e vale (ii’). Por outro lado, notamos que não vale

(iii’) se = 0a ; não podemos obter um elemento Îc a tal que < 0c .

e) O conjunto { }= Î - £8

| 3 x<5

xa não é um corte. Deixamos como

exercício.

f) O conjunto { }= Î -| x< 1xa não é um corte.

De fato, apesar de { }- Î = Î - ¹Æ2 | x< 1xa (vale i), verificamos que se

Îr a e < <-1s r , com Îs , então <-1s .

g) O conjunto { }= Î | x<0xa é um corte.

De fato, observamos que - Î ¹Æ1 a (i) e que, se Îr a e < Î (s )s r ,

temos < 0r , com = < < \ <0 0p

s r sq

(ii). Por fim, notamos que, para todo Îr a ,

temos +

< = <0

02 2

r rr , com Î

2r

a (iii).

h) O conjunto { }= Î ³ <2| x<0 ou (x 0 e x 2xa é um corte.

De fato, notamos que =- <1 0x e - = <2( 1) 1 2 , portanto,

para £ 0x , - Î ¹Æ1 a . Vamos verificar a condição (ii) tomando

{ }Î = Î £ <2| x>0 ou para x 0 e x 2r xa . Temos dois casos a considerar, se

£ 0r e Îs , com <s r , logo < 0s e Îs a .

No caso em que > 0r e <2 2r com < Î (s )s r , temos as possibilidades:

< <0s r ou < <0 s r . Mas se < 0s , temos que Îs a . No segundo caso, se

< < « < < < \ <2 2 20 0 2 2s r s r s , assim, s também pertence ao conjunto

{ }= Î ³ <2| x<0 ou (x 0 e x 2xa .

Na condição (iii), se { }Î = Î ³ <2| x<0 ou (x 0 e x 2r xa , podemos

ter < 0r , neste caso, tomamos =1s , com <r s e <2 2s . No outro caso,

quando > <20 e r 2r , vamos tomar - >2 h=2 0r então, temos 2+h=2r e

- <2 0<h=2 2r consideramos o caso de > <20 e r 2r . Para tanto, consideramos

o elemento = +5h

rg . Segue que æ ö÷ç= + = + +÷ç ÷çè ø

2 22 2 2

5 5 25h rh h

r rg . Notamos,

todavia que < \ < ×2 2 2 2r rh h e observe que < < ® < <20 2 0 2h h h , logo

= + + < + + < + < + =2 2

2 2 2 22 4 222

5 25 5 25 5rh h h h h

r r r x hg . Consequentemente,

obtivemos um elemento > < Î20 e 2 ( ) e >xg g g a g , que é um corte.

Page 140: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

140 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Proposição:

Seja a um corte, Îp a e Ïq a . Então, >q p .

Demonstração:Vamos negar a propriedade desejada acima, ou seja, supor que £q p . Como

admitimos que a é um corte, já temos de graça a condição (i). Por outro lado, se

£q p , onde Îp a e Îq , então, pelo item (ii) da definição, deveríamos ter que

Îq a , o que implica uma contradição. Assim, necessariamente, temos >q p .

Observamos que a negação da propriedade fornecida por esta proposição

pode ser útil, assim, caso tenhamos um corte a , com Îp a e se £q p ,

necessariamente, obtemos que Îq a , que é basicamente a condição (iii).

Proposição:

Se Îr e { }= Î | x<rxa , então a é um corte e r é a menor cota superior de a .

Demonstração:Vejamos que o conjunto { }= Î | x<rxa é um corte. De fato, notamos que

{ }= Î Ì| x<r xa , mas ¹a , pois o conjunto dos racionais é ilimitado. Por

outro lado, { }= Î ¹Æ| x<rxa , dado Îr , podemos sempre encontrar um

número Îx , de modo que <x r .

Para verificar (iii), basta observar que, se tivermos um elemento qualquer Îs a , então sempre podemos tomar a média aritmética de dois racionais

+< <

2s r

s r , e como Îr e +Î

2

s r , vemos que o elemento cumpre a condição

+<

2s r

r , logo +Î

2s r

a . Assim, sempre conseguimos obter um valor maior do

que Îs a , de modo que +Î

2s r

a , ou seja, Îs a não é elemento máximo. Ferreira

(2010, p. 80) sublinha que ‘ r ’ é a menor cota superior. De fato, supomos que exista

outra cota superior 'r de { }= Î | x<rxa , menor do que ‘ r ’, ou seja, <'r r .

Os cortes do tipo da proposição anterior são denominados cortes racionais e

se representam por *r . Os cortes que não possuem cota superior mínima não são

racionais.

Pode-se verificar que todo corte que possui cota superior mínima é racional.

Mostraremos que existem cortes que não possuem cota superior mínima, logo não

são racionais.

Demonstração:Verificaremos o item (i). De fato, de imediato temos ƹa , pois - ¹Æ*

e

{ }+ -Ï = Î È2 *0 | x <2 xa , logo ¹a . Para o item (ii), desejamos verificar

Page 141: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

141AULA 6 TÓPICO 1

que se { }+ -Î = Î È2 *| x <2 r xa , e tomando qualquer Îs , de modo que

<s r .

Teorema

Seja { }+ -= Î È2 *| x <2 xa . Então a é um corte que não é racional.

Deixamos as condições (i) e (ii) para discutir mais adiante. Quanto à condição

(iii), devemos provar que, se Îx a , então existe Îy a , com >y x (não admite

elemento máximo). Isso é óbvio se £ 0x . Mas vamos supor que > 0x , com <2 2x .

Para encontrarmos um elemento ‘y’ nas condições acima, tomaremos +Î *h tal que

( )+ <2 2x h e pôr = +y x h . Vamos trabalhar com a condição ( )+ × + <2 22 2x h x h

e reparamos que poderíamos resolver tal inequação.

Por outro lado, não perdemos a generalidade admitindo que <1h , assim,

obteremos ( ) ( )<

+ × + < + × +2 2 2

12 2

hx h x h x h x h e esta expressão fica menor do que

2 se tomarmos:

< 2-

+ × + < « × + < - « + < - « <+

22 2 2 2

2 2 2 2 (2 1) 2(2 1)

xx h x h h x h x h x x h

x.

Desde que esta expressão -+

22(2 1)

xx

seja positiva, tomaremos -

<+

22min{1, }

(2 1)x

hx

,

com +Îh e = +y x h , e obteremos = + < \ Î2 2( ) 2 e y>xy x h y a . É um corte.

Notação:

Denotaremos por  o conjunto de todos os cortes, ou seja,  =: { | é um corte}a a .

Na sequência, veremos que se podem definir duas operações em  ,

denotadas por “+” e “×”, e uma relação de ordem.

Proposição:

Sejam ÎÂ,a b . Dizemos que a é menor do que b e escrevemos <a b quando

¹Æ\b a .

Ferreira (2010, p. 82) comenta os seguintes exemplos:

a) æ ö÷ç> ÷ç ÷çè ø

** 3

45

, pois æ ö÷çÎ ÷ç ÷çè ø

** 3

2 4 \5

. De fato, reparamos que

æ ö÷çÎ = Î÷ç ÷çè ø

** 3 3

4 :={x | x<4} e : {x | x< }5 5

e que <2 4 , todavia, >3

25

.

b) ( )> **1 0 , pois Î * *11 \ 0

2. Verifique!

Page 142: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

142 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

c) ( ) ( )- <* *3 0 , pois ( )- Î - **1 0 \ 3 .Notamos que - Î = Î*1 0 { | x<0}x e

( )- Ï - = Î -*1 3 { | x< 3}x .

Definição

Se ÎÂa e > *0a , a chama-se corte positivo. Se > *0a , a é dito corte negativo. Se

³ *0a , a se chama corte não negativo e se £ *0a , a se chama corte não positivo.

Teorema (tricotomia)

Para ÎÂ,a b , uma e apenas umas das possibilidades ocorre, =a b ou <a b ou

>a b .

Demonstração:Deixamos como tarefa para você, leitor.

Lema:

Sejam ÎÂ,a b , então:

i) se <a b Û Ìa b e ¹a b ;

ii) £ Û Ìa a a b .

Demonstração:Deixamos como tarefa para você, leitor.

Teorema

A relação ‘£ ’ é uma relação de equivalência em  .

Demonstração:Deixamos como tarefa para você, leitor.

Teorema

Sejam ÎÂ,a b . Se = + Î Î: { | r e s }r sg a b , então ÎÂg .

Demonstração:Mostraremos que o conjunto acima satisfaz as três condições de corte.

Notamos que estamos admitindo que ¹Æ,a b , portanto ¹Æg . Sejam

Î - Î - e y t a b , e observamos que, por definição, > " Î , rt r a e

> " Î , su s b . Assim, obtivemos + > + " Î " Î , r e st u r s a b , ou seja, + Ït u g ,

logo ¹g .

Page 143: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

143AULA 6 TÓPICO 1

Na condição (ii), notamos que, se Î e s<rr g , com Îs , mostraremos

que Îs g . Notamos que ‘r’ é do tipo +p q , com Î Î e qp a b . Daí, s<p+q e

escrevemos = + 's p q , onde <'q q , e, portanto, Î'q b . Conclui-se que Îs g .

Para verificar a condição (iii), precisamos mostrar que o conjunto não possui

elemento máximo, ou seja, se Îr g , existe Îs g tal que >s r . Pelo fato de que

Îr g , escrevemos = + Î Î, com p e qr p q a b , que por sua vez são cortes. Assim,

existe Î Î' , com p'>p e q' , com q'>qp a b , portanto tomamos = + Î's p q g , que

é maior do que r.

Definição

Para ÎÂ,a b , definimos +a b como sendo o corte do teorema anterior, ou seja,

+ = + Î Î: { | r e s }r sa b a b .

Teorema

A adição de cortes em  é comutativa, associativa, e possui elemento *0 como neutro.

Demonstração:Com a comutatividade descrita por + = +a b b a , reparamos que, se

Î +r a b , podemos escrever = +r p q , e pela comutatividade da soma de números

racionais, escrevemos = + = + Î +r p q q p b a . Portanto, + Ì +a b b a , e, de

modo semelhante, verificamos que + É +a b b a .

A associatividade é descrita por + + = + +( ) ( )a b g a b g .

lema:Sejam ÎÂa e +Î *

r , então o conjunto + × Î{ | m }s m r não é limitado

superiormente em

.

Demonstração:Deixamos a seu cargo, leitor.

Ferreira (2010, p. 85) apresenta o seguinte lema.

lema:Sejam ÎÂa e +Î *

r , então existem números racionais p e q tais que

Îp a , Ïq a , q não é cota superior mínima de a e - =q p r .

Page 144: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

144 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Demonstração:Vamos tomar um elemento qualquer Îs a e consideremos a sequência

+ + + + +, , 2 , 3 , 4 ,......,s s r s r s r s r s nr . Notamos que essa sequência não é

limitada superiormente, e a é limitado superiormente e Îs a , então existe um

único inteiro ³ 0m tal que + Îs mr a e + + Ï( 1)s m r a .

Se + +( 1)s m r não for cota superior mínima de a , tome = +p s mr

e = + +( 1)q s m r . Se + +( 1)s m r for cota superior mínima de a , tome

= + +2r

p s mr e = + +( 1)q s m r .

Definição

Seja ÎÂa . Existe um único ÎÂb tal que + = *0a b . Como no caso dos inteiros e

racionais, tal elemento b denota-se por -a e se chama simétrico (ou inverso aditivo) de

a .

Demonstração:Ferreira (2010, p. 86) supõe a condição em que se tem + = + = *

1 2 0a b a b . Na

sequência, escreve = + = + + = + + = + =* *2 2 2 1 2 1 1 10 ( ) ( ) 0

associatividade

b b b a b b a b b b .

Por outro lado, a demonstração da existência do simétrico depende, no entanto, da

situação considerada (FERREIRA, 2010, p. 86).

Ferreira (2010, p. 86) fornece a ideia de como construir o elemento simétrico,

considerando, inicialmente, um caso particular de = *3a . É de se esperar que

o simétrico seja - *( 3) . Temos: = = Î - = Î -* *3 { | r<3}, ( 3) { | s< 3} r sa .

E ainda que - = + Î Î Î -* * * *3 + ( 3) { | 3 s ( 3) }r s r . Necessitamos verificar que

- Ì* * *3 + ( 3) 0 e vice-versa.

Seja Î -* *3 + ( 3)t , então = +t r s , onde <3r e <-3s . Logo,

= + < + - =3 ( 3) 0t r s e portanto < 0t e Î *0t . Seja agora Î *0t , ou seja, < 0t .

Para fixar as ideias tomemos =-2t e como expressar o -2 como uma soma +r s

com <3r e <-3s ? (FERREIRA, 2010, p. 86).

Reparamos que, pelo lema anterior, existem Î Ï -* *3 e r' ( 3)r , com

¹ *' 3 (=cota superior mínima de 3 )r , tais que - =' 2r r ou ainda - = + -2 ( ')r r ,

como >' 3r , então - <-' 3r , ou seja, - Î - *' ( 3)r . Tentaremos utilizar as ideias

desse caso particular no caso geral (FERREIRA, 2010, p. 86).

Dado ÎÂa , o candidato ao caso -a é o conjunto obtido

pelos negativos dos elementos que estão fora de a , com exceção

da eventual cota superior mínima de a . Mais precisamente, seja

= Î - Ï -{ | e não é cota superior mínima de }p p pb a a . Observamos que

- = Î - Ï - -* * * ( 3) { | 3 3 e não é cota superior mínima de ( 3) }p p .

Page 145: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

145AULA 6 TÓPICO 1

Ferreira (2010, p. 86) sublinha que, no caso geral, não temos necessariamente

cortes racionais e, então, o símbolo - *( )a pode não fazer sentido. Mostremos que

b é um corte e que + = *0a b . Como de costume, precisamos verificar as três

condições. As condições (i) e (ii) deixaremos como atividades e verificaremos a

condição (iii).

Com esta intenção, Ferreira (2010, p. 87) toma Îr b . Queremos mostrar

que podemos encontrar >s r em b . Como -r é cota superior de a , mas não

é mínima, logo existe Ît , com - <-t r , tal que -t é cota superior de a e,

portanto, - Ït a . Seja então +

=2

r ts . Temos - <- <-t s r , de modo que -s é

cota superior de a . Em seguida, o autor verifica que vale a propriedade + = *0a b .

Definição

Como nos casos de e , definimos a subtração em  por

- = + - " ÎÂ( ) , ,a b a b a b .

Teorema(compatibilidade da relação de ordem com a adição)

Sejam ÎÂ, ,a b g tais que £a b . Então + £ +a g b g .

Demonstração:Deixamos como tarefa para você, leitor.

Ferreira (2010, p. 87) define uma multiplicação em  , seguindo os mesmos

passos realizados na definição da adição e de suas propriedades. Nota-se que o

tratamento da multiplicação em  seja tecnicamente um pouco mais complicada, o

mesmo autor segue o tratamento e as demonstrações para o caso da adição. Ferreira

repara, todavia, que alguns ajustes são necessários para uma definição precisa da

multiplicação. Para tanto, enuncia o teorema.

Teorema

Para ÎÂ, ,a b g , com ³ ³* *0 e 0a b ,

seja -= È Î Î Î ³ ³*: { | r=pq , com p , q , p 0 e q 0} rg a b .

Demonstração:Deixamos como tarefa para você, leitor.

Page 146: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

146 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Definição

Dado ÎÂa , definimos o valor absoluto de a ( ou o módulo de a ), representado

por a , do seguinte modo ìï ³ï=íï- £ïî

*

*

se 0

se 0

a aa

a a.

Definição

Sejam ÎÂ, ,a b g , definimos:

( )( )

ìï- > < < >ïïïï= < < > >íïïï = =ïïî

* * * *

* * * *

* *

se 0 e 0 ou 0 e 0

se 0 , 0 ou 0 e 0

0 se 0 e 0

a b a b a b

ab a b a b a b

a b

Teorema

A multiplicação de cortes é comutativa, associativa, tem *1 como elemento neutro e se

ÎÂ, ,a b g , vale:

i) + = +( )a b g ab ag

ii) × =* *0 0a

iii) = *0ab se, e somente se, = *0a ou = *0b

iv) se ³ ³ * e 0a b g , então £ag bg

v) se ³ < * e 0a b g , então ³ag bg

vi) se ¹ *0a em  , então existe um único ÎÂb tal que = *1ab . Tal corte chama-se

de inverso de a e denota-se por -1a .

Teorema (regra dos sinais)

Sejam ÎÂ,a b , então valem as propriedades

a) ( ) ( ) ( )- × = × - =- ×a b a b a b .

b) ( ) ( ) ( )- × - = ×a b a b .

Demonstração:Deixamos como tarefa para você, leitor.

Proposição:

Seja ÎÂa , temos que Îr a se, e somente se, <*r a .

Page 147: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

147AULA 6 TÓPICO 1

Demonstração:Deixamos como tarefa para você, leitor.

Proposição:

Sejam ÎÂ,a b e <a b , então existe um corte racional *r tal que < <*ra b .

Demonstração:Deixamos a seu cargo, leitor.

Ferreira (2010, p. 90) comenta que o conjunto  munido de duas operações

é uma relação de ordem obedecendo às mesmas leis aritméticas dos racionais. Além

disso, a aplicação ®Â:j dada por = *( )j r r é injetora e preserva a adição,

multiplicação e ordem. O autor explica ainda que obtivemos uma cópia algébrica

de um conjunto em outro, desta vez, ( )j é uma cópia de em  , sendo ( )j

precisamente o conjunto dos cortes racionais (FERREIRA, 2010, p. 90).

Recordamos um teorema que assegura a existência de cortes não racionais.

Portanto, podemos afirmar que Â- ¹Æ( )j . Em seguida, Ferreira (2010, p. 91)

apresenta a importante definição.

DefiniçãoO conjunto dos cortes  será, a partir de agora, denominado de conjunto dos números

reais e é denotado por . Os cortes racionais serão identificados, via a injeção ®Â:j ,

com os números racionais. Todo corte que não for racional será denominado numero

irracional.

Notação:

A identificação de ( )j com

nos permite escrever Ì

. O conjunto -

representa o conjunto dos números irracionais.

Mais adiante, Ferreira (2010, p. 91)

sublinha, ao tempo em que prossegue sua

elaboração, que os resultados seguintes mostram

que, apesar da semelhança entre as propriedades

aritméticas e de ordem entre e , há uma

importante propriedade em que

não

possui a da completude.

g u a r d e b e m i s s o !

Para o professor de Matemática, destacamos

o seguinte alerta de Ferreira (2010, p. 91): um

número real é um conjunto de números racionais.

Page 148: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

148 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Teorema (Dedekind)Sejam A e B subconjuntos de tais que:1) = È A B 2) Ç =ÆA B 3) ¹Æ ¹Æ e BA4) se Î Î e , então <A Ba b a b . Nestas condições existe um, e apenas um, número real g tal que £ £a g b , para todo Î Î e A Ba b .

Demonstração:Vamos supor que existam dois números 1 2 e g g , nas condições do enunciado

acima, com 1 2<g g , nas condições do enunciado do teorema. Consideremos 3g tal

que <1 3 2<g g g , devido pela proposição anterior. Repare que de <3 2g g , resulta

que Î3 Ag , pois ³ 2b g , " ÎBb e = È A B . De modo análogo, 1 3<g g , resulta

que Î3 Bg . Obtemos então que Î Ç =Æ3 A Bg uma contradição. A existência

fica a seu cargo, leitor.

Ferreira (2010, p. 93) acentua que este teorema fornece, em essência, a

diferença entre e . E acrescenta: no teorema anterior e o exercício anterior nos

dizem, informalmente que, em não há “lacunas”, mas que em , há. Por esta

razão, dizemos que possui a propriedade da completude ou que é completo

(FERREIRA, 2010, p. 93).

CorolárioNas condições do teorema anterior, ou existe em A um número máximo, ou, em B um número mínimo.

Demonstração:Deixamos para você, leitor.

Concluímos este tópico discutindo as propriedades axiomáticas que permitem

construir formalmente os números reais. Sublinhamos sempre a importância de

compreender sua essência, embora muitos dos aspectos estudados não pertençam ao

universo de compreensão dos estudantes. Partimos do pressuposto que o professor

de Matemática deve ser conhecedor de um saber bem mais aprofundado do que seu

aprendiz, inclusive para analisar e identificar lacunas, deficiências e inconsistências

nos livros adotados no ambiente escolar. Na pior das hipóteses, saber o que é

de fato um número real e que, formalmente, a inclusão Ì

apresentada no

contexto escolar não tem sentido. A seguir, discutiremos a construção axiomática

dos números complexos.

Page 149: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

149AULA 6 TÓPICO 2

TÓPICO 2 As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática IVObjetivO

• Descrever a construção axiomática dos números

complexos

Os números complexos chamam a atenção dos estudantes até mesmo

pela própria nomenclatura adotada tradicionalmente. De fato, aos

olhos do aprendiz, como significar e interpretar de um objeto que

de início já o denominamos de “complexo”? Nesta aula abordaremos esta noção

de modo axiomático no sentido de finalizar a construção dos principais conjuntos

numéricos do ensino escolar.

Observamos que Ferreira (2010, p. 113) menciona que:

No Ensino Médio, os números complexos são introduzidos a partir da chamada

“unidade imaginária”, i, com a propriedade de que =-2 1i . Eles são

definidos então, como expressões da forma +a bi , onde Î, a b , sujeitas

às regras operacionais conhecidas dos números reais. Assim, por exemplo,

( ) ( )+ × - = - + - = + + = +23 5 7 2 21 6 36 10 21 10 29 31 29

i i i i i i i

Ou seja, manipulam-se tais expressões como expressões algébricas reais, sob a

condição extra de que =-2 1i .

Do ponto de vista do rigor matemático, é necessário justificar cuidadosamente

a origem de um tal numero ‘i’. Por outro lado, a construção rigorosa dos números

complexos a partir dos números reais é mais simples do que todas as que realizamos

até agora (FERREIRA, 2010, p. 113). No Ensino Médio, aprendemos que dois

números complexos, +a bi e +c di , são iguais apenas quando =a b e =c d , o

que nos lembra a igualdade entre os pares ordenados ( ),a b e ( ),c d . É esse o ponto

de partida para a construção dos complexos (FERREIRA, 2010, p. 113).

Page 150: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

150 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Assim, define-se a soma ( ) ( ) ( ) ( )+ + + = + + +

a bi c di a c b d i e

( ) ( ) ( ) ( )+ × + = - + +

a bi c di ac bd ad bc i . Em seguida Ferreira (2010, p.

114) esclarece que se admitíssemos um número complexo como sendo um par

ordenado de números reais, portanto sem mencionar o símbolo ‘i’, poderíamos

definir as operações acima do seguinte modo: ( ) ( ) ( )+ = + +, , ,a b c d a c b d e

( ) ( ) ( )× = - +, , ,a b c d ac bd ad bc . Temos formalmente a seguinte definição.

Definição

Consideremos o conjunto ´ = 2 e nele definamos a adição e a multiplicação com

acima. O conjunto 2 , denotado por essas operações, será denominado conjunto dos

números complexos e denotado por .

Teorema

As operações em têm as seguintes propriedades: a adição e a multiplicação são

comutativas, associativas e têm elemento neutro. (0,0) para a adição e (1,0) para a

multiplicação. Além disso, dado ( )Î, a b seu simétrico existe, ( )- ,a b , e é ( )- -,a b ,

e se ( ) ( )¹, 0,0a b , seu inverso existe ( )-1,a b e é æ ö- ÷ç ÷ç ÷çè ø+ +2 2 2 2

,a b

a b a b. Finalmente, a

multiplicação é distributiva e relação a adição.

Demonstração:Deixamos como exercício para você, leitor.

Ferreira (2010, p. 115) explica que podemos imergir

em

e observa

inicialmente que um número complexo arbitrário ( )Î, a b pode ser escrito da

forma ( ) ( ) ( ) ( )= + ×, ,0 ,0 0,1a b a b , ou seja, utilizando-se apenas de pares ordenados

com a segunda coordenada nula, ( ),0a , e ( ),0b , e o número complexo especial ( )0,1 .

Consideremos agora a seguinte função ®: k dada por ( )=( ) ,0k x x .

Definição

A função ®: k é injetora e preserva as operações de adição e multiplicação, isto é,

+ = +( ) ( ) ( )k x y k x k y e × = ×( ) ( ) ( )k x y k x k y .

Demonstração:Deixamos como exercício para você, leitor.

De modo similar aos casos estudados anteriormente, aqui também temos em

uma cópia algébrica de

, ( )k , o que nos permite identificar com ( )ke, portanto, considerar Ì . Admitindo essa identificação e adotando ‘i’ para o

número complexo ( )0,1 , a expressão para ( ) ( ) ( )( )= +, ,0 ,0 0,1a b a b pode ser escrita

como +a bi , como fazíamos no Ensino Médio (FERREIRA, 2010, p. 115).

Page 151: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

151AULA 6 TÓPICO 2

Note ainda que ( ) ( )= = -2 20,1 1,0i , o que identificamos com o real -1 .

Sob a notação acima, os complexos do tipo +a bi , com ¹ 0b , chamam-se números

imaginários, e, além disso, = 0a , obtemos os imaginários puros. Essas denominações

têm sua origem na resistência histórica em se admitir os complexos como números.

Observe que o termo “imaginário” vem no sentido de contraposição a “reais”.

Observamos ainda que as propriedades aritméticas de

, dadas pelo teorema

anterior, são as mesmas que as de (que são as mesmas que as de

). Assim, um

conjunto, munido de duas operações que podemos continuar denotando por + × e ,

possuindo essas propriedades aritméticas chama-se corpo.

Apesar de aspectos semelhantes, há grandes dessemelhanças entre os três

corpos , e , como acentua Ferreira (2010, p. 116). O autor recorda ainda que

os corpos e

, como já tínhamos visto, são dotados de uma relação de ordem

compatível com as suas operações e são, portanto, ambos corpos ordenados, sendo

um corpo ordenado completo e

um corpo ordenado não completo.

Observamos que é impossível dotar

de uma relação de ordem compatível

com as suas operações aritméticas. Intuitivamente, não temos como dizer se 3 é

maior ou menor do que 3i ou do que +2 i , por exemplo. Dessa forma,

é um

corpo não ordenável. Por outro lado, Ferreira (2010, p. 116) acentua que

possui

uma propriedade algébrica importante. Tal propriedade é descrita no teorema: todo

polinômio não constante com coeficientes complexos admite uma raiz em

.

Devido a este resultado atribuído a Gauss, o teorema é chamado de Teorema

Fundamental da Álgebra. E o conjunto é dito algebricamente fechado.

Berlinghoff e Gouvêa (2004, p. 177) recordam um fato semelhante envolvendo nada

menos do que Renée Descartes (1596-1650), que, no século XVII, indicava que,

para encontrar os pontos de interseção entre uma circunferência C e uma linha

r (Figura 1), encontramos uma equação quadrática e tal equação conduz a raízes

quadradas de grandezas negativas quando Ç =Æ{ }C r . Assim, para a maior parte,

o sentimento era a aparência de soluções “impossíveis” ou “imaginárias” que

dava um sinal de que o problema não possuía qualquer solução. Todo o problema

advinha da desconfiança dos matemáticos com respeito aos números complexos.

Figura 1: Descrição geométrica da situação envolvendo o conceito de números complexos (BERLINGHOFF; GOUVÊA, 2004, p. 123).

Page 152: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

152 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Para concluir a discussão em torno da construção dos conjuntos numéricos

que tradicionalmente são apresentados no contexto escolar satisfazendo a

seguinte cadeia Ì Ì Ì Ì Ì ????

, Ferreira (2010, p. 122) acrescenta a

interessante discussão em torno das questões que podemos elaborar em relação

à seguinte pergunta: Os conjuntos numéricos param por aí? Ou seja,

pode ser

imerso propriamente em algum outro conjunto de números?

O autor declara que a resposta para tal questionamento é afirmativa e recorda

que o conjunto

pode ser imerso no anel dos quatérnios de Hamilton. Ademais,

declara:

Entretanto, não tem mais a estrutura algébrica de corpo porque a multiplicação

deixa de ser comutativa. Os quatérnios são hoje utilizados em robótica,

computação gráfica e em outras áreas da ciência. Por sua vez, os quatérnios

podem ser imersos nos octônios, no qual a multiplicação não é mais associativa.

Os octônios tem importantes aplicações em ramos da física como relatividade

especial e teoria das cordas, além de se relacionarem com outras estruturas

matemáticas como os grupos de Lie excepcionais (FERREIRA, 2010, p. 122-

123).

Para concluir, sublinhamos nossos posicionamentos assumidos desde o início

deste curso. Tais posicionamentos assumem um compromisso epistemológico com a

formação do professor de Matemática. Desse modo, embora de modo introdutório,

discutimos determinados tópicos pertencentes aos fundamentos da Matemática e

seu inevitável caráter filosófico.

Tais escolhas devem influenciar o olhar e o exercício do ofício do professor,

afinal, concordamos com Thom (1992, p. 24) quando explica que quer desejemos

ou não, toda pedagogia matemática, mesmo aquela menos coerente, repousa sobre a

filosofia da matemática. Portanto, não discutimos uma pedagogia desinteressada e

aplicável a todas as áreas do conhecimento científico. Discutimos e alertamos sobre

a importância de uma “pedagogia da Matemática”, que, inevitavelmente, deve

possuir seus fundamentos epistemológicos e filosóficos, os quais apresentamos,

pelo menos em parte, aqui.

Recordamos que algumas questões filosóficas negligenciadas em cursos de

formação de licenciados dizem respeito à dimensão axiológica do saber matemático

que abordamos nas aulas iniciais. Mais especificamente falando, a questão sobre a

verdade ou a falsidade dos enunciados matemáticos.

O modelo standart no locus acadêmico de busca da verdade de propriedades

do tipo: = +2 2 2a b c (Teorema de Pitágoras) ou +

= 1( )

2n

n

a a nS (soma dos termos)

se restringe em seguir passo a passo uma demonstração até se alcançar a tese;

Page 153: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

153AULA 6 TÓPICO 2

contudo, os próprios modelos de inferências e a natureza da argumentação não são

discutidos.

É inapropriado o professor transmitir a impressão de que as decisões em

sala de aula e as escolhas feitas em cadeias de raciocínio deste tipo são sempre

baseadas na certeza matemática. Neste sentido, concordamos com Brochard (1884,

p. 5) quando lembra que a maior parte dos homens, nas circunstâncias da vida, se

decide baseando-se na crença e não na certeza.

Além disso, encontramos vários exemplos de teorias na História da Matemática

e das Ciências que apresentavam uma sustentação sólida e consistente, em

determinados momentos históricos e, em outros, tiveram suas bases enfraquecidas

em virtude de determinadas refutações e questionamentos, haja vista o surgimento

de novos pontos de vista. É justamente o caso da teoria de Isaac Newton (1643-

1727), que foi bem estabelecida e confirmada no século XVIII e questionada séculos

mais tarde.

De fato, Popper (1972, p. 34) lembra que a teoria de Einstein veio mostrar

que a teoria newtoniana não passa de uma hipótese ou conjectura e seu valor se

mede, sobretudo por sua falsicabilidade. Ou seja, com Einstein, evidenciamos o

levantamento de determinadas conjecturas que

se mostraram verdadeiras e que negaram ou

falsearam enunciados essenciais da teoria de

Newton.

Em exemplos como este, percebemos que a

própria noção de verdade e falsidade, a noção do

rigor matemático, de existência, de consistência e

a noção de completude de uma teoria matemática

vai se modificando no decorrer dos séculos.

Faz parte de nossa missão, como professores

formadores, evitar a falsa impressão em nossos

alunos de que o conhecimento matemático,

desde o seu nascedouro, se apresenta daquela

forma “bonitinha” como o encontramos nos

livros didáticos, descritos axiomaticamente por

uma linguagem moderna adotada pelo professor

na escola. Afinal, até mesmo a linguagem ou o

sistema de representação semiótica empregado na

Matemática evolui, uma vez que os símbolos e

classificações em Matemática são historicamente

determinados. Eles são arbitrários no sentido de

que símbolos e classificações numa linguagem são

v o c ê s a b i a?

Shapiro (2000, p. 166) explica que Gôdel admitia G

uma sentença na linguagem T. Se T é consistente,

então G não é teorema de T.

s a i b a m a i s !

Sertafi (2008, p. 125) lembra que Leibnitz colocou

em circulação cerca de doze novos símbolos,

que o mesmo queria testar e selecionar o mais

apropriado. Porém, todos eles dotados de uma

extraordinária imaginação simbólica e otimismo

inveterado.

Page 154: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

154 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

escolhidos. Desta forma eles podem ser vistos numa perspectiva fenomenológica

em que tais símbolos possuem significados particulares e derivam de experiência

individual do seu uso (SERTAFI, 2008, p. 53).

O caráter arbitrário que mencionamos se manifesta de forma sutil e velada.

Um professor consciente sabe que simbologias são “enterradas” e descartadas

em razão de suas limitações, ambiguidades ou falta de operacionalização; mas,

de modo autoritário, vemos a adoção, sem nenhuma explicação, de determinadas

notações que obtiveram mais êxito do que outras, contudo não nos lembramos de

que elas representam a superação dos erros, das incompreensões e as inseguranças

de matemáticos do passado.

Temos aí uma face deste absolutismo

quando priorizamos o caráter sintático

da linguagem, que passou por profundas

modificações em vez do seu caráter semântico.

Paradoxalmente, o teor e a visão absolutista,

o caráter rigoroso e formal da Matemática

parecem ser mais “cômodos” no que se refere

à transposição didática do saber. Na prática,

no ambiente acadêmico, o próprio método

axiomático de estruturação e organização deste

saber é usado como “metodologia de ensino”.

Denunciamos que o grande equívoco é aplicar um método de construção e

constituição do saber matemático no ambiente da pesquisa como uma “metodologia

de ensino”, haja vista que o primordial no

método axiomático é a abstração da abstração,

enquanto isso, no ensino escolar, deveríamos

primar pela intuição, pelo raciocínio heurístico.

Nesse sentido, recordamos as colocações

filosóficas do matemático Freudenthal (2002, p.

145) quando declara que se o construtivismo

significa algo didático, devemos indicar o

que esperamos construir. Mas, infelizmente,

os indicadores de nossa realidade nos fazem

concordar com Gattegno (1960, apud, PIAGET

et al.,1960, p. 159) quando conclui que a maior

parte dos professores de matemática considera que sua tarefa consiste em fazer os

estudantes racionar logicamente e não importa a que custo.

Advertimos que a concepção do curso de formação deverá ser um fator

condicionante e determinante na futura identidade profissional construída pelo

v o c ê s a b i a?

Ernest (1991, p. 7) explica que a visão absolutista

da matemática consiste em certas verdades

imutáveis. O conhecimento matemático nesta

perspectiva se constitui a partir de verdades

absolutas e irrefutáveis.

s a i b a m a i s !

Sertafi (2008, p. 125) Shapiro (2005, p. 176) explica

que o termo estruturalismo é associado ao grupo

inolvidável chamado Bourbaki. Dentre as suas

propostas, o método axiomático poderia fornecer

a unificação dos diversos ramos da Matemática e

apenas ele tornaria a Matemática inteligível.

Page 155: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

155AULA 6 TÓPICO 2

egresso de um curso de graduação. Vale a pena comparar as duas concepções

possíveis que exibimos nas ilustrações abaixo.

Figura 2: Fluxograma do currículo de formação de professores de Matemática que não estabelece conexão entre os saberes específicos e pedagógicos (elaboração própria).

Reparamos que, na Figura 2, descrevemos o modelo obsoleto de formação

mais identificável e mais explorado em vários cursos de graduação no Brasil. Por

outro lado, na Figura 3, a seguir, recordamos a concepção de formação assumida no

decorrer das aulas de Filosofia das Ciências e da Matemática. Deixamos para você,

leitor, a prerrogativa de efetuar suas próprias escolhas.

Figura 3: Fluxograma proposto para uma adequada formação do professor de Matemática (elaboração própria).

Concluímos esta destacando a importância de divisarmos a dimensão filosófica

do saber matemático. Observamos que nas ultimas aulas, em que descrevemos,

embora de modo “apressado”, em virtude da concisão necessária neste material,

a construção axiomática dos conjuntos numéricos. Torna-se uma exigência, deste

modo, que o professor amplie sua própria visão da Matemática e transmita um

significado bem mais amplo do que o significado usual e restrito fornecido pelos

livros didáticos. Entretanto, o “livro didático” será nosso objeto de discussão em

um futuro próximo.

Page 156: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

156 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Grugnetti & Rogers (2000, p. 53) explicam que a História da

Matemática pode atuar não apenas como um fator de ligação

entre tópicos de Matemática, como também as ligações entre a

Matemática e outras disciplinas. Os referidos autores desenvolvem uma análise

na perspectiva da História da Matemática e discutem como determinados saberes

podem ser mediados no ensino.

Entretanto, no âmbito do ensino de Matemática, assumimos a necessidade

da adoção de uma proposta metodológica que viabilize a abordagem de conteúdos

matemáticos por meio de sua história. Assim, adotaremos a “proposta teórico-

metodológica apresentada por um grupo de Educadores Matemáticos do Estado

do Ceará” (BORGES et al, 2001, p. 3) denominada Sequência Fedathi – SF que

possibilita a criação de um clima experimental que retrata o os momentos e as

dificuldades enfrentadas por um matemático profissional em busca da constituição

de um saber. A referida sequência de ensino prevê os seguintes níveis:

• Nível 1 Tomada de posição – apresentação do problema ou de um

teorema. Neste nível, o pesquisador-professor apresenta uma situação-

problema (possivelmente no âmbito da História da Matemática) para o

grupo de alunos, que devem possuir meios de atacar mediante a aplicação

do conhecimento a ser ensinado.

• Nível 2 Maturação – compreensão e identificação das variáveis

envolvidas no problema relacionado à História da Matemática (destinado

a discussão e debate envolvendo os elementos: professor-alunos-saber).

TÓPICO 3 Uma aplicação de sequência metodológica de ensino por meio de sua históriaObjetivO

• Apresentar uma aplicação de uma sequência de ensino

para conteúdos de História da Matemática

Page 157: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

157AULA 6 TÓPICO 3

• Nível 3 Solução – apresentação e organização de esquemas/modelos que

visem à solução do problema. Aqui, os alunos organizados em grupos,

devem apresentar soluções e estratégias, que possam conduzir aos

objetivos solicitados e convencer com suas argumentações outros grupos.

• Nível 4 Prova – apresentação e formalização do modelo matemático a ser

ensinado. Aqui, a didática do professor determinará em que condições

ocorrerá a aquisição de um novo saber que deve ser confrontado com os

saberes matemáticos atuais, inclusive as modificações condicionadas pela

evolução e modernização do mesmo.

A adoção de uma proposta metodológica para o ensino das sequências de

Fibonacci e de Lucas é justificada a partir da evidencia de que, na literatura da

área de História da Matemática, obtida por meio de um levantamento bibliográfico

e análise de livros, ocorre escassez de uma discussão mais aprofundada e das

implicações possíveis extraídas a partir das relações conceituais entre as sequências

supracitadas, além do quadro acadêmico preocupante descrito por Bianchi (2006)

e Stamato (2003).

Encontramos também nas afirmações de Lima (2001(a)) preocupantes

conclusões a respeito da qualidade do livro didático de Matemática, de modo

particular, na abordagem de sequências numéricas. Deste modo, de acordo com

a sugestão de Lima, desenvolveremos algumas considerações que podem evitar

determinadas concepções e hábitos indesejados na aprendizagem dos estudantes.

Uma concepção facilmente identificada diz respeito a um ensino de

Matemática que não evidencia as relações conceituais. Deste modo, como

descrevemos na Figura 1, discutimos um assunto que possibilita uma ampla ligação

conceitual interna à própria Matemática. “Tal ligação precisa ser compreendida de

modo local e global por parte do professor interessado em seu ensino” (ALVES;

BORGES NETO, 2010, p.3). Além disso, ao observarmos as conexões e implicações

possíveis e conhecendo a natureza da complexidade dos conceitos envolvidos,

podemos prever os momentos didáticos em que cada noção pode ser explorada e

antever os possíveis obstáculos ao aprendizado.

Passamos assim a descrever uma proposta de aplicação teórica dos conteúdos

de sequência de Fibonacci e de Lucas, segundo o modelo que nominamos de

“estendido”.

Page 158: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

158 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

Figura 2: Relações conceituais exploradas (ALVES; BORGES NETO, 2010, p. 5).

Honsberger (1985, p. 104) menciona, sem fornecer muitos detalhes, que, “não

existe dificuldade em estender a seqüência de Fibonacci no sentido indefinidamente

oposto”. De fato, notamos que: - -= + \ =1 0 1 1f f f f 1 ; - - -= + \ =-0 1 2 2f f f f 1 ,...,

etc. Sucessivamente temos:

- Î - - - - - - - - -

- - - -n n n 8 7 6 5 4 3 2 1 0{f } :{......; f ;...; f ; f ; f ; f ; f ; f ; f ; f ; f }

{ ....;...... ; 21; 13 ; 8 ; 5 ; 3 ; 2 ; 1 ; 1 ; 0} (1)

Destacamos que, em nenhuma das

obras consultadas, encontramos a descrição

da sequência de Fibonacci para o conjunto dos

inteiros negativos. Entretanto, usando o mesmo

princípio para a forma geral - -= +n n 1 n 2f f f ,

estabelecemos - - - - -= +n n 1 n 2f f f , În

.

Acrescentamos ainda que o modelo matemático

descrito por - -= +n n 1 n 2f f f , pode ser

considerado, numa linguagem atual, como uma

singela modelagem da geração de coelhos; todavia, o mesmo não podemos dizer em

relação à sequência - În n{f }

.

De modo análogo, lembrando que - -= + \ = - =-1 0 1 1 1 0L L L L L L 1 , temos

a seguinte regra - - - - -= +n n 1 n 2L L L , para În . Exibimos a sequência:

- Î - - - - - - - - -

- - -n n n 8 7 6 5 4 3 2 1 0{L } :{..; L ;...; L ; L ; L ; L ; L ; L ; L ; L ; L }

{ ...;...... ; ; 18 ; 11 ; 7 ; 4 ; 3 ; 1 ; 2 } (2)

A vantagem desta formulação pode ser compreendida, por exemplo, a

partir da fórmula + -× - = -2 nn 1 n 1 nf f f ( 1) demonstrada pela primeira vez por

Giovanni Domenico Cassini (1625-1712), em 1680, como explica Koshy (2007,

apud ALVES; BORGES NETO, p. 134). Vamos agora realizar o mesmo raciocínio

s a i b a m a i s !

Conheça mais sobre a história do matemático

Giovanni Domenico Cassini acessando o site

http://www.apprendre-math.info/portugal/

historyDetail.htm?id=Cassini

Page 159: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

159AULA 6 TÓPICO 3

para a sequência descrita por - - - - -= +n n 1 n 2f f f . A matriz adequada será dada

por -

- -

æ ö æ ö÷ ÷ç ç÷ ÷= =ç ç÷ ÷ç ç÷ ÷ç ç-è ø è ø0 11

1 2

0 1 f fQ

1 1 f f. De modo análogo e com algum esforço, concluímos

- + -

- - -

æ ö÷ç ÷=ç ÷ç ÷çè øn 1 nn

n n 1

f fQ

f f. Aplicando um argumento semelhante ao de Honsberger,

obtemos a seguinte identidade - + - - -× = - +n 2n 1 n 1 nf f ( 1) f , para În

. Assim,

tomando-se os modelos - În n{f }

e - În n{L }

, que chamaremos de “sequências

estendidas”, podemos inferir propriedades surpreendentes. Vamos exemplificar

nossa afirmação sugerindo o seguinte problema: Qual o comportamento geométrico

de - În n{f }

e - În n{L }

?

faremos agora o Passo a Passo Do Processo metoDológico Da aula sobre

sequência.

Nível 1 Tomada de posição – apresentação do problema ou de um teorema.

Destacamos que tal questionamento é pouco usual. De fato, notamos que

a noção de sequência é explorada, eminentemente, “num quadro aritmético e

algébrico” (LIMA, 2001(b), p. 123). Assim, a partir da listagem (1) e (2), podemos

estimular os estudantes na construção dos seguintes gráficos.

Figura 3: Apresentação geométrica das sequências (ALVES; BORGES NETO, 2010, p. 8).

Certamente que sem o auxílio computacional, não conseguimos descrever o

gráfico acima para valores muito grandes. Assim, no nível 2 empregamos o aparato

tecnológico.

Nível 2 Maturação – compreensão e identificação das variáveis envolvidas

no problema. (Destinado à discussão e debate envolvendo os elementos: professor-

alunos-saber).

Page 160: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

160 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

A partir da observação da figura 4, o professor deve salientar aos seus

estudantes o caráter limitado e insuficiente, no sentido de prever o comportamento

das sequências. Inclusive, usando o software Maple 10, notamos que, de modo

semelhante ao modelo tradicional, o mesmo fornece apenas os valores positivos

da sequência, definida para inteiros positivos. Reparamos as aproximações por

casas decimais descritas pelo programa na figura 3. Tal listagem pode gerar alguma

estranheza nos estudantes, uma vez que, segundo o modelo de Fibonacci, não

poderiam existir 4,9999999956 casais de coelhos.

Neste nível, o professor poderá estimular atividades numéricas. Por exemplo,

a partir da figura 6, - =-2n 2nf f e - + +=(2n 1) 2n 1f f para o caso do gráfico de - În n{f }

.

E de modo equivalente, os alunos podem debater o comportamento do gráfico

da sequência de Lucas, entretanto, respeitando o poder de síntese desta aula, nos

restringiremos daqui em diante ao caso da sequência de Fibonacci estendida - În n{f }

.

Nível 3 Solução – apresentação e organização de esquemas/modelos que

visem à solução do problema relacionado a História da Matemática.

A partir das propriedades conjecturadas no nível 3, a saber - =-2n 2nf f

e - + +=(2n 1) 2n 1f f , o professor necessita instigar a turma na compreensão de que

tais propriedades são insuficientes para responder o problema inicial. Aqui,

evidenciamos uma importante característica da SF, que busca evitar uma aparência

superficial do conhecimento matemático.

Tal aparência superficial leva os estudantes a pensarem que para todo

problema encontramos uma resposta definitiva e conclusiva. Neste caso, o mestre

sabe que a resposta para o problema exige bem mais do que algumas linhas de

argumentação e, além disso, deve conhecer a priori as possíveis propriedades

necessárias e antever as dificuldades reais à evolução do conhecimento em discussão

pela turma. No próximo nível, o professor convencerá seus alunos a respeito das

argumentações que apresentam maiores chances de êxito, mesmo que parcial, para

o problema.

Nível 4 Prova – apresentação e formalização do modelo matemático a ser

ensinado.

Admitindo que seja verdade que - =-2n 2nf f e - + +=(2n 1) 2n 1f f , poderíamos

afirmar que o comportamento geométrico da sequência de Fibonacci de termos

pares estendida será o mesmo comportamento da sequência tradicional, a menos

Page 161: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

161AULA 6 TÓPICO 3

de um sinal, o que provocará a simetria no gráfico. E no segundo caso, poderíamos

concluir que os termos ímpares, tanto da sequência tradicional como a sequência

de Fibonacci estendida, devem ser idênticos, entretanto ambas produzem respostas

parciais para nosso problema inicial. Para verificar tais igualdades, seguimos a

sugestão de Benjamin; Quinn (2005, p. 143), que propõem a verificação da seguinte

igualdade +- = - ×n 1

n nf ( 1) f para În .

Mas assumindo por indução a igualdade +- = - ×n 1

n nf ( 1) f ,

necessitamos provar que + + +- + - - + += = - × = - ×(n 1) 1 n 2

(n 1) n 1 n 1 n 1f f ( 1) f ( 1) f . Usamos - +

- - - -= - × = - ×n 1 1 n(n 1) n 1 n 1f ( 1) f ( 1) f , assim:

- + - - - - - - + -= + \ = - =Hipótese

n 1 n n 1 n 1 n 1 nf f f f f f

= − ⋅ − − ⋅ = − ⋅ + − ⋅ =

= − ⋅ +(−

+−

( ) ( ) ( ) ( )

( )

1 1 1 1

11

11

1

nn

nn

nn

nn

nn n

f f f f

f f ))= − ⋅+ +( )1 21

nnf

“O pensamento matemático pode apoiar os estudantes em diversos modos

quando estudam história” (GRUGNETTI; ROGERS, 2000, p. 53). A investigação de

evidências primárias e o processo de decisão de quais são os resultados e fatores

chave em cada evento proporciona uma visão global e interconectada aos jovens,

entretanto o professor necessita se apoiar em concepções e teorias que possam

viabilizar um ensino/aprendizagem produtivo, com o suporte da História da

Matemática.

A proposta metodológica denominada Sequência Fedathi visa um ensino

desta ciência que preserva alguns traços característicos do momento de criação

e descoberta de um matemático. Deste modo, uma das variáveis na pesquisa é

a formulação de situações-problema intrigantes que exigem bem mais do que o

exercício do pensamento algorítmico (OTTE,1991, p. 285).

Em nosso caso, evidenciamos em várias obras a ausência da exploração de

propriedades intrigantes entre as sequências de Fibonacci e de Lucas. Apenas em

Honsberger (1985), encontramos a breve sugestão de desenvolver propriedades

com o que nomeamos de sequência estendidade de Fibonacci. A partir dela,

desenvolvemos também algumas propriedades para a sequência estendida de Lucas.

Seguindo o raciocínio encontrado nos livros consultados, adaptamos os resultados

obtidos para a primeira sequência na segunda.

Na figura 3 exibimos nossa última relação descrita de modo significativo

por meio de uma interpretação geométrica. Respeitando os limites de síntese

deste artigo, salientamos, de modo resumido, o caso das relações com a noção

Page 162: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

162 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

de convergência de sequências. Descobrimos que o quociente +n 1

n

ff converge

(BENJAMIN; QUINN, 2005, p. 157). O mesmo resultado pode ser compreendido

de modo intuitivo e informal num curso de História da Matemática, quando

recorremos à tecnologia. De modo surpreendente, não identificamos, na literatura

pesquisada, o comportamento de +n 1

n

LL descrita do lado direito da Figura 4.

Figura 4: Comportamento geométrico do quociente (ALVES; BORGES NETO, 2010, p. 8).

Finalizamos este tópico salientando a dificuldade enfrentada pelos

professores com vistas a uma efetiva exploração em sala de aula. Com mencionamos

anteriormente, muitos dos conhecimentos apresentados ao professor em formação

envolvem um saber de “caráter informacional”, e não um as obras consultadas

“caráter operacional”. Alertamos que, na maioria dos casos, o professor, por si só,

não consegue realizar as necessárias ligações entre teoria e prática, principalmente

o incipiente na carreira.

Desse modo, buscamos discutir e explorar nestes tópicos um caráter

operacional do saber matemático com um viés eminentemente histórico. Sua

importância é destacada por Dambros (2006, p. 5) ao relatar que:

Dentre as justificativas apresentadas pelos defensores do estudo da história

da matemática pelo professor, há uma insistentemente citada: o professor que

conhece a história da matemática compreende a matemática como uma ciência

em progresso e construção, como uma criação conjunta da humanidade e não

como uma ciência pré-existente, um presente acabado de Deus, descoberta

por gênios e por isso incontestável.

Este caráter de “saber universal”, manifestado de modo peculiar na

Matemática, é histórico. Ele perpassa e influencia toda a formação dos formadores

Page 163: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

163AULA 6 TÓPICO 3

de professores e, por último, influenciará a formação do licenciado. Muitos destes

condicionamentos podem ser entendidos, na medida em que nos atemos à própria

constituição, evolução e determinação dos currículos de Matemática, desde o Brasil

colônia até os dias atuais. Neste sentido, Miorim (1995, p.192) discute que:

Na 3ª série a articulação entre a aritmética e a álgebra continua através da

ampliação do estudo de funções, de sua representação gráfica e das equações e

desigualdades algébricas. Na geometria percebe-se claramente o rompimento com o

modelo euclidiano, quando é proposto o estudo de proposições fundamentais que

servem de base à geometria dedutiva, das noções de deslocamentos elementares no

plano; translação e rotação de figuras e, em seguida, uma série de estudos específicos

sobre figuras relações métricas e homotetia. É a pulverização da geometria dedutiva

eucliana.

Em suas considerações, notamos a denúncia a respeito das reformas históricas

envolvendo o currículo de Matemática, que, em alguns casos, proporcionaram um

efeito nocivo à Educação. Os elementos apontados pela pesquisadora Maria Ângela

Miorim constituem elementos da História da Educação Matemática.

Page 164: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

164 F i loso f ia das C iênc ias e da Matemát ica

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Page 167: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

167CURRÍCULO

CURRÍCULOFrancisco Regis Vieira Alves

Professor Francisco Régis Vieira Alves atua há dez anos no ensino superior como professor

de Matemática. Foi professor da Universidade Regional do Cariri – URCA, onde promoveu a

modificação e reorganização do currículo para o professor de Matemática em consonância

com paradigmas nacionais e internacionais, e coordenador de cursos de especialização nesta

instituição voltados ao ensino da Matemática. Atualmente é professor do Instituto Federal

de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do Ceará (IFCE), no qual possui atividades

direcionadas ao curso de licenciatura. No que diz respeito à sua formação acadêmica, é

licenciado e bacharel em Matemática – UFC; mestre em Matemática Pura e em Educação

(UFC); e doutor em Educação com ênfase no ensino de Matemática em nível superior. É

pesquisador do laboratório Multimeios da UFC.

Page 168: filosofia das ciências e da matemática - CAPES

filosofia dasciências e damatemáticalicenciatura emmatemática

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Ministério da Educação - MEC

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

Universidade Aberta do Brasi l

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará